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Lester EMBREE
Florida Atlantic University
2012
Embree@fau.edu
www.reflectiveanalysis.net
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Introdução
Tendo em conta os milhares de itens bibliográficos, não há dúvida de
que se pode aprender a interpretar textos fenomenológicos. Mas a
fenomenologia não é a interpretação de textos, mas antes a observação e a
análise reflexivas, e a descrição eidética de fenómenos, ou seja, de
processos mentais ou intentivos e das coisas-enquanto-intentadas ou
encontradas neles, e deste género não há nem perto de milhares de itens, e
isto apesar de obras como as Ideen (1913), de Edmund Husserl. É legítimo
perguntar porquê.
Com os exemplos não só das Ideen, mas também de Sein und Zeit
(1927), L’être et le néant (1943), Phénoménologie de la perception (1945),
Le Deuxième Sexe (1949), etc., as hesitações de modéstia por parte
daqueles entre nós que não são gigantes na nossa tradição de tentar
realmente produzir fenomenologia a essa escala tornam-se compreensíveis.
Mas existe a alternativa de tentar compor trabalhos concisos de cerca de
3000 palavras num estilo a que eu chamo “análise reflexiva”. Para evitar
que se confundam com trabalho erudito, estas análises devem ter muito
poucas ou nenhumas referências a autoridades ou a literatura, raras notas de
rodapé e citações, etc. Por outro lado, devem incluir a clarificação de
termos-chave e exemplos cuidadosamente escolhidos. Acima de tudo, uma
“AR” é acerca de algumas coisas em si.
A minha esperança é de que o estudo de análises reflexivas motive o
aluno a uma observação reflexiva das coisas em si que são referidas, ou
seja, alguns fenómenos, e que tente também, para além disso, verificar as
descrições e, no caso em que as análises sejam falsas, que as corrija
fenomenologicamente, e se estiverem incompletas que as desenvolva,
também fenomenologicamente. Fazendo isto, creio que um indivíduo a
trabalhar sozinho pode melhorar a sua capacidade de reflexão (acredito que
todos os adultos normais já têm alguma capacidade de reflexão sobre as
suas próprias vidas mentais e as de outros). Mas também creio que este
melhoramento pode ser alcançado através do ensino, em que os alunos
estudam uma análise reflexiva por si próprios e depois se reúnem com um
professor que procede de modo socrático. Os parágrafos nos capítulos deste
livro estão numerados para facilitar a discussão nas aulas.
À medida que se desenvolve destreza e confiança, deve tentar-se
compor as suas próprias análises reflexivas e partilhá-las com colegas
compreensivos. A modesta coleção que aqui apresento é deste tipo. Sou o
autor das dez AR aqui mencionadas e encorajo cópias desta coleção para
uso de alunos e colegas interessados. Estas AR foram originalmente
escritas para ocasiões diferentes e têm grandes sobreposições de conteúdo
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Lester Embree
Delray Beach, outubro de 2012
7
Contents
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
VI. Simulando . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
I.
O que é a Análise Reflexiva?
10.—Os que estão a ouvir e ler este texto devem ser capazes de
encontrar e observar se as coisas são como eu as descrevi até aqui. As
descrições são baseadas no que pode ser descrito como “observação
reflexiva”, que inclui os três ângulos também descritos e, correlativamente,
os encontros, as coisas-enquanto-encontradas, e as atitudes dos encontros
são reflexivamente observáveis. Podemos sintetizar as nossas descobertas
até agora com um breve esquema de classificação (as coisas-enquanto-
encontradas podem ser acrescentadas, se se quiser):
ENCONTROS
I. Posicionalidades
A. Volitivas
B. Valorativas
C. Crenças
II. Experiências (de realidades)
A. Antecipação
B. Recordação
C. Perceção
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Para uma análise reflexiva de Cairns que vai para além do âmbito deste texto e descreve sínteses
intentivas de vários tipos, ver Dorion Cairns: “The Theory of Intentionality in Husserl”, Journal
of the British Society for Phenomenology, 32 (1999): 116-124.
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que ela tem a mesma que eu, e vice-versa. E, se descubro que temos
preferências opostas, elas são, ainda assim, intentivas às mesmas coisas,
mas com valores inversos. A minha amiga é transcendente em relação à
minha corrente de vida mental, mas apesar de tudo temos uma vida mental
comum ou partilhada, na qual se podem dsitinguir através da reflexão tipos
de experiência um do outro.
21.—Contudo, se reconhecermos que começamos numa atitude em
que partilhamos coisas públicas, pode levantar-se a questão: haverá uma
alternativa a esta atitude? A resposta é que esta “atitude intersubjetiva”
pode ser “reduzida” a uma “atitude egológica”. Aí, todas as coisas são
consideradas apenas em relação a uma única pessoa e, em contraste, podem
ser ditas “privadas”. A minha amiga passa, digamos assim, de ser um “co-
sujeito” a ser mais outro objeto para mim. Então, podemos perguntar não
só como é que o que está ilustrado na imagem do canto do quarto aparece
apenas a mim, mas também como aparece apenas à minha amiga, ou a
qualquer outra pessoa individual.
22.—Acredito que esta redução egológica é necessária para uma
investigação psicológica e, portanto, nas investigações de outros indivíduos
tal como do nosso “eu” individual. Demasiado frequentemente, os
fenomenólogos parecem acreditar que a análise reflexiva na atitude
egológica é limitada à auto-observação, mas não é verdade. Não só pode
haver observação individual de um outro a par de auto-observação
individual, como pode haver observação de grupos, e os grupos são
fundamentais nas ciências sociais e históricas em comparação com o estudo
dos indivíduos em psicologia. Talvez este comentário seja suficiente para
sugerir que comecemos com o que analisámos acima para continuarmos a
discutir em filosofia ou em teoria científica. Para obter a objetividade de
resultados científicos, teremos de regressar da atitude egológica para a
intersubjetiva.
23.—Nesta altura da exposição, podemos submeter uma outra breve
descrição ao exame do leitor ou ouvinte. Ao vermos a almofada na cama,
reconhecemos que na nossa perceção há uma face de frente para nós, e que
esta é intentada na componente “presentativa” do nosso experienciar, sendo
a outra face “apresentada”. Temos a perceção de uma almofada que possui
não só os lados “exteriores” mencionados, mas também outros lados
“interiores”. Sem rasgar a almofada para tornar o seu interior presente,
podemos simplesmente virá-la para que um lado exterior apresentado se
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II.
Reflexão sobre Outros
III.
Análise Reflexiva de Encontros Indiretos
INTRODUÇÃO
conta os objetivos presentes, não será necessário deixar a atitude natural ou,
melhor dizendo, mundana.
ENCONTROS EM GERAL
*
**
IV.
Irrefletividade absoluta
V.
Uma Análise Reflexiva sobre o Recordar
INTRODUÇÃO
prontamente que éramos a sua nova família; podíamos deixá-lo correr solto
pelo bairro e esperá-lo perto da hora do jantar, mas, a maior parte das
vezes, ele deixava-se ficar em frente à porta de casa e, como a minha mãe
dizia, “a ver o mundo a passar”.
4.—A minha recordação particularmente vívida é de uma vez que o
Skipper me viu a subir a rua a caminho de casa vindo da escola, e que
correu para mim, a ladrar, a ganir e a abanar a cauda com tanta força que
quase caía, e depois praticamente me atirou ao chão tentando lamber-me a
cara. Claro que eu tinha uma família que me amava sem reservas, mas esta
foi sempre a maior expressão de amor incondicional de que me recordo. Eu
e o Skipper fomos companheiros durante uma década até que, numa altura
em que me encontrava fora de casa, na marinha, ele foi atropelado.
Recordo-me muitas vezes de como fui recebido naquela tarde ao sair da
escola há cerca de 65 anos.
5.—Nos seus comentários dispersos acerca do recordar, o meu
professor Cairns pegaria num exemplo como este e limitá-lo-ia à
recordação da perceção sensorial de uma coisa física (011120, cf. 011066).
Isso simplificaria o assunto, sem dúvida, mas prefiro tornar claro desde o
início que o que encontramos quando refletimos sobre as nossas vidas
mentais é mais adequadamente denominado por encontro de coisas
culturais (e, no meu exemplo, uma coisa cultural animada, um cão
adorado). Apesar de às vezes falar de “processos intentivos”, que acabou
por ser a expressão escolhida por Cairns para traduzir a Erlebnisse de
Husserl, e que eu também aceito, não nos esqueçamos que os “encontros”,
termo que prefiro, incluem não só as experiências (e a perceção sensorial é
um tipo específico), mas também componentes téticos ou posicionais aos
quais, em termos latos, podemos chamar acreditar, valorar e querer, e que
podem também ser ditos dóxicos, páticos e práxicos. Muito seria omitido se
permanecêssemos com Cairns e nos limitássemos à perceção sensorial e às
coisas físicas.
6.—Nas análises de Cairns, as coisas físicas, animadas ou não, são
abstraídas do que encontramos como objetos culturais concretos. Estes são
objetos que, enquanto culturais, incluem necessariamente usos como fins
e/ou meios, valores intrínsecos e/ou extrínsecos, e características de crença,
todas correlativas ao tipo de posicionar pertinente nos encontros delas.
Deste modo, o que é concretamente recordado são os encontros que,
tecnicamente falando, são intentivos às coisas e – no sentido lato em que
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ANALISANDO REFLEXIVAMENTE
4
Provavelmente, também está em jogo a preocupação de muitos colegas com a linguagem. Claro que
podemos recordar operações de expressão e compreensão, assim como muitos tipos de operações
sintáticas que estão nelas envolvidas, mas explorar este tema desenvolveria demasiado a presente análise.
Deixemos, assim, essa tarefa para outro dia e/ou outros investigadores.
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6
(018091). Sobre síntese de identificação, ver Dorion Cairns, ed. Lester Embree, Fred Kersten and
Richard M. Zaner: “The Theory of Intentionality in Husserl”, Journal of the British Society for
Phenomenology: Critical Concepts in Philosophy, 5 vols., London: Routledge, 2004, I, pp. 184-192.
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VI.
Simulando
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Às vezes, tanto “simular” como “fingir” incluem uma intenção de iludir, por exemplo, se fingimos
gostar de um patrão que desprezamos, mas aqui excluimos a significação que inclui essa intenção.
“Simular” nesta significação não-ilusória aparece na forma de adjectivo no artigo de Dorion Cairns,
“Perceiving, Remembering, Image-Awareness, Feigning Awareness”, em F. Kersten e R. Zaner, eds.,
Phenomenology: Continuation and Criticism: Essays in Memory of Dorion Cairns (The Hague: Martinus
Nijhoff, 1973)
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como se viu na epígrafe acima, mas “sério” parece funcionar bem na maior
parte dos contextos.
6.—Na psicologia académica tradicional, e em linguagem comum,
considera-se a imaginação como uma capacidade ou faculdade mental entre
outras e, de facto, uma que está em igualdade de condições com os
sentidos, a memória, o juízo, as emoções, a vontade, etc. No entanto, a tese
aqui presente, assim como na passagem citada no início do capítulo a partir
de uma palestra do meu professor Cairns, é a de que isto não é correto e
que há antes uma versão ficcional para cada tipo de intentar sério. Assim,
por exemplo, posso fingir que Marilyn Monroe foi o meu par no baile de
finalistas do liceu, o que quer dizer que recordo ficcionalmente algo que
não posso realmente, ou melhor, seriamente recordar.
7.—Para apoiar esta tese, descreverei uma série de exemplos de tipos
de simulação e objetos-enquanto-simulados, e convidarei o leitor ou
ouvinte desta exposição a verificar as minhas descrições.
Metodologicamente, pretendo análises reflexivas e, além disso, que o meu
leitor ou ouvinte se enquadre no que se chama em termos técnicos “epoché
fenomenológica-psicológica, redução e purificação”. Em termos simples,
podemos acreditar, por exemplo, em fotões, ondas de som, processos
neurológicos, etc., e nas formas como estes afetam pelo menos a perceção
sensorial, mas para nos focarmos de modo eficaz nos vários tipos de
simular ou fingir, e nos seus correlatos ficcionais ou quase-reais, é melhor
abstrair-nos provisoriamente de tais fatores.
8.—OS SENTIDOS. Aceitemos para os objetivos presentes que há
cinco sentidos; e, porque os seres humanos são “animais visuais”, vamos
começar com a VISÃO, mas focando-nos no processo intentivo, ou seja, no
ver, em vez de na faculdade. Muitas pessoas parecem pensar que todo o
fingir é uma questão de simulação visual, o que é um grande erro. Será
possível para alguém simular visualmente um gato sentado em cima de um
livro do lado oposto da secretária em que está sentado? Muitos chamariam
ao que é simulado neste caso uma “imagem visual”, mas nós já não
cometemos esse erro porque sabemos que o que é simulado não representa
outra coisa; por isso, vou antes chamar-lhe uma coisa ficcional, a fingir ou
quase-real, e – uma vez mais – reconheço que ela não figura outra coisa. É
porventura interessante que, se o gato for simulado como estando quieto, e
fingirmos inclinarmo-nos para a frente e depois para trás, o gato não se
altera no seu tamanho, mas a sua aparência, simulada, torna-se maior e
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depois mais pequena. Será então possível simular não apenas objetos mas
também as suas aparências visuais?
9.—AUDIÇÃO. De seguida, imagine que simula um gato ficcional a
ronronar. Agora, podemos focar-nos na “simulação auditiva”, talvez de
olhos fechados e, mais uma vez, fingir que nos inclinamos para a frente e
para trás. Não será então possível encontrar aparências ficcionais auditivas
que aumentam e diminuem de volume enquanto o próprio ronronar se
mantém igual? E talvez encontremos algo de semelhante no cheiro
simulado do gato. Quanto ao gosto e ao tato, é necessário haver contacto, e
para mim é tão difícil dizer qual é o sabor de um gato como qual é o seu
cheiro. Mas consigo facilmente simular o TATO ficcional se fingir afagar
tatilmente o seu dorso peludo. Os sons e tatos ficcionais são claramente
diferentes das visões ficcionais e, deste modo, é evidente que nem toda a
simulação é visual.
10.—RECORDAÇÃO. Se disséssemos que ver, ouvir, cheirar,
saborear e tocar são tipos de perceção, talvez fosse mais fácil reconhecer a
possibilidade da recordação ficcional não só de objetos percebidos
ficcionais passados, mas também de perceções passadas simuladas, tal
como o exemplo já mencionado do meu ver simulado do meu par simulado
no baile de finalistas. Hoje, posso fingir recordar o meu deleite naquele
encontro ficcional.
11.—ANTECIPAÇÃO. Provavelmente mais comuns do que as
recordações ficcionais são as simulações de processos futuros e do que é
intentado ficcionalmente neles. Não será possível simular antecipadamente
o sabor que algo terá na nossa próxima refeição, talvez enquanto decidimos
num restaurante, e também antecipar o futuro saborear simulado? Não
haverá, assim, versões ficcionais de tipos sérios de recordação e de
antecipação, assim como de perceção, que poderão ainda ser especificados
em relação aos mencionados cinco sentidos?
12.—REFLEXÃO. Ao mesmo tempo, aquilo que podemos chamar
reflexão, ou melhor, “perceção reflexiva séria de processos intentivos”, não
é sensorial e já foi indicada em casos de perceção passada e futura, séria ou
ficcional. Por outras palavras, há perceção não sensorial. Talvez já
tenhamos dito o suficiente para incentivar observações e análises reflexivas
de vários tipos de simulação correspondentes a processos intentivos sérios
que tenham a ver com os sentidos e com a reflexão sobre eles. Não será
também possível percecionar ficcionalmente processos intentivos?
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sérias, ainda temos para analisar os tipos ficcionais e sérios daquilo a que
os fenomenólogos chamam “posicionalidade”.
18.—ACREDITAR. Muitas vezes, senão de modo geral, “juízo” na
psicologia académica tradicional é principalmente uma questão de crença.
É possível acreditar em proposições e testemunhas, mas aqui o foco será
posto no “acreditar em” objetos. Parece que normalmente acreditamos séria
e positivamente, mas também é possível não acreditar seriamente que, por
exemplo, a Lua é feita de queijo, e podemos não acreditar ficcionalmente
na cadeira em que estamos sentados. Para reconhecer estas formas de
acreditar sérias e ficcionais, é necessário refletir sobre elas. E isso requer
distinguir, de um lado, o componente de acreditar na experiência
representacional ou presentacional e, do outro, outras formas de posicionar.
No que diz respeito à tese geral desta investigação, a imaginação não é,
digo outra vez, uma capacidade igual ao juízo ou crença, mas há antes
crenças ficcionais em paralelo com crenças sérias, tal como há presentar e
representar ficcional em paralelo com tipos de experiências sérias.
19.—EMOÇÃO. Nas suas palestras, Cairns usava o exemplo da
rapariga da casa ao lado. Será que podemos fingir amá-la, mesmo se,
seriamente, não a amamos? Tal seria uma emoção positiva de um tipo
ficcional. E, mesmo sendo desconfortável, será que também não podemos
fingir que odiamos, por exemplo, a nossa própria mãe? Para além destes
processos positivos e negativos, será que não podemos ser indiferentes, por
exemplo, em relação a candidatos presidenciais?
20.—VOLIÇÃO. Depois, temos as formas positivas, negativas e
neutras, tanto ficcionais como sérias, não só de emoções mas também de
quereres. Deste modo, podemos querer seriamente lavar a louça e querer
queimar o lixo, sendo o caso de lavar a louça de volição positiva e o outro
um querer negativo do lixo queimado. Se estes podem ser casos de volição
séria, não poderemos então simular versões ficcionais? Talvez, para
contrastar, fingir que queremos partir a louça e lavar o lixo! E há também o
movimento dos planetas à volta do Sol, mais um exemplo que recordo das
palestras de Cairns. Aí, podemos ser volitivamente neutros e não querer
nem favorecer nem prejudicar os movimentos planetários.
*
* *
56
VII.
A Derivação de “Dever” e “Ter-de” a partir de “É”.
“ter de” (shall) e dever (ought) de é (is-es) a partir de uma reflexão sobre a
vida mental não predicativa. Talvez tenha sido a noção vaga desta
possibilidade que tenha motivado a tentativa de derivar proposições
valorativas e volitivas das cognitivas num modo estritamente lógico em
determinadas tendências filosóficas, nas quais a filosofia é acima de tudo
lógica aplicada.
27.—Podemos acrescentar que a verdade não é justificação, que a
palavra “saúde” tem várias conotações das quais podemos, apesar de tudo,
abstrair-nos, e que podemos distinguir escolha enquanto volitiva da
preferência enquanto valorativa. Vale a pena repetir que pessoas em
posições de autoridade dizem muitas vezes “deve” quando estão, de facto, a
emitir imperativos e querem portanto dizer “tem de”. E apesar de, enquanto
um “eu”, nos podermos empenhar em realizar o que podemos denominar
da melhor maneira como “operações”, a grande parte da vida mental
individual e em grupo é de facto, respetivamente, habitual e tradicional;
assim, pode haver um esforço para alterar o que Husserl chama
“passividade secundária” para que seja mais bem justificada, isto é, que a
nossa cultura seja mais justificada ou racional. Finalmente, podemos
acrescentar que se pode falar de tomar as escadas como sendo igualmente
bom e útil, tal como acertadamente bom e/ou útil para expressar que há
uma justificação que funda essas afirmações, ou podemos conotá-lo com
“dever”.
*
**
VIII.
A Justificação das Normas Reflexivamente Analisada
INTRODUÇÃO
comandante do pelotão pode ordenar que o faça. Mas, no que diz respeito à
constituição das normas, o fundamental é a valoração envolvida. De modo
pre-predicativo, o guerreiro pode aprovar a sua própria conduta corajosa
(ou reprovar a sua própria covardia), e os seus companheiros, e o comité
que poderá atribuir-lhe uma medalha (ou levá-lo a tribunal militar),
também podem valorar (ou desvalorar) a sua conduta. Valorar é central à
questão de ele poder ter o bem (ou o mal) predicado à sua conduta corajosa
(ou covarde). Por outras palavras, o valor da conduta é constituído em
valorar, e isto é algo que predomina no encontro da conduta do guerreiro.
A QUESTÃO DA JUSTIFICAÇÃO
13.—Se o que foi dito até agora é suficiente para mostrar como a
coragem (e a covardia) é encontrada de modo pre-predicativo, podemos de
seguida alcançar o nível das proposições de Husserl através da formação
categorial do sujeito e da objetivação e predicação do bem e do mal. Mas
isto só dá conta de como é que alguém pode dizer que a conduta de um
guerreiro é boa (ou má) e, de facto, pode ser recomendada (ou não). Esta
análise ainda não abordou a questão da justificação, ou seja, se a coragem é
correta ou racional, e a covardia não.
14.—Segundo a minha compreensão de Husserl, uma
posicionalidade é justificada quando é motivada por, e está fundada em, um
evidenciar. Quer seja um caso de autoexperiência direta, ou de experiência-
de-outro direta ou indireta, há no caso analisado um experienciar que pode
assumir o papel de evidenciar. As pessoas são sempre motivadas por
encontros no passado de modo a se comportarem e avaliarem a si mesmos e
aos outros de várias maneiras. É neste aspeto que o exame crítico precisa
de considerar não só a motivação, mas também o caráter fundador do
componente valorativo no evidenciar e, correlativamente, o valor
reflexivamente discernível e a doação da coisa valorada. Um pacifista
abnegado não tenta matar pessoas, mesmo que elas estejam a tentar matá-
lo. A valoração de se manter vivo a si mesmo pelos outros pode ser uma
motivação forte, e apenas relacionada de modo vago pelo guerreiro com o
evidenciar da necessidade de disparar com máxima eficácia sobre o
inimigo.
15.—Pelo menos igualmente importante nesta conexão é o modo
como os companheiros de pelotão e o comité de medalhas (ou tribunal
70
APÊNDICE I
«"Um guerreiro deve ser corajoso", quer dizer <54> antes: só um guerreiro
corajoso é um "bom" guerreiro, e isso implica,dado que os predicados bom
e mau dividem entre si a extensão do conceito de guerreiro, que um
guerreiro não corajoso é um "mau" guerreiro. Porque este juízo de valor é
válido, tem razão qualquer um que exija de um guerreiro que seja corajoso;
pelas mesmas razões é também desejável, louvável, etc., que ele o seja. E
do mesmo modo noutros exemplos. "Um homem deve praticar o amor ao
próximo", i.e., quem não o pratica não é um homem "bom" e, então, é eo
ipso um homem (a este respeito) "mau". "Um drama não se deve dividir em
episódios" - senão não é um "bom" drama, uma obra de arte "correcta". Em
todos estes casos fazemos, assim, a nossa apreciação positiva, o
reconhecimento de um predicado de valor positivo, dependente de uma
71
IX.
Uma Análise Reflexiva sobre uma Maneira de Compor
Análises Reflexivas
nesta exposição. Assim, por exemplo, a expressão inglesa “home base”9 foi
emprestada do basebol, que é um dos desportos mais bem conhecidos
internacionalmente. A home base é o sítio no campo de jogo onde o
batedor se posiciona e tenta bater na bola que lhe é atirada; se conseguir,
esse é o lugar de onde o batedor parte para tentar passar pelas outras três
“bases” com o objetivo final de voltar a “casa” e assim marcar um run, ou
um ponto. Na verdade, o começo da análise no 2.º passo já desconstruiu
consideravelmente esta metáfora.
16.—As questões acerca daquilo a que uma metáfora literalmente se
refere podem ser úteis não só para elaborar perguntas destinadas aos
alunos, mas também no desenvolvimento da análise de cada um. Assim,
que tipo de sítios são as posições dos jogadores de basebol quando a equipa
está à defesa, ou seja, quando os membros da equipa rival se sucedem a
bater a bola com o taco, ou que tipo de lugar é o banco onde os jogadores
esperam a sua vez para bater na bola? (Será que o banco é mais uma
“residência” do que aquela que é oficialmente chamada “home base”?) E
como é que estes lugares se relacionam entre si, que mais, para além das
atividades que acontecem neles ou em relação a eles, é que determina o que
eles são, e será que há estruturas semelhantes noutros deportos, por
exemplo, haverá “home bases” no bilhar ou no basquetebol?
17.—4.º Passo. Reflita! Nesta altura, faço o que tendo a chamar não
só “refletir”, mas também “ponderar”, ou até “ruminar nas coisas”. Este é o
passo mais importante e também, infelizmente, aquele em que posso
oferecer menos ajuda. O objetivo é uma descrição dos aspetos principais
que fazem parte das coisas que estamos a tematizar e que o nosso exemplo
demonstra. Na verdade, a reflexão começou quando se escolheu um tema, e
continua até se acabar de escrever, mas, para mim, chega uma altura em
que o meu tema é suficientemente claro para que possa começar a tentar a
escrevê-lo. Não quero dizer com isto que é necessário ter tudo claro antes
de escrever. No caso presente, os comentários acerca de como as
residências temporárias e permanentes são um tipo de lugar foram algo que
não reconheci originalmente e que acrescentei na primeira revisão do texto.
18.—Às vezes, a análise reflexiva é uma resposta a uma questão
obviamente significativa. Numa análise anterior, por exemplo, tentei
responder à questão do que é a tolerância; a conclusão mais importante a
que cheguei depois de ponderar centrava-se na forma como, quando somos
9
A expressão inglesa home base foi aquela que aqui se traduziu por “residência”. (N. T.)
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como definitiva. Este meu pequeno livro apenas desenha um esboço e serão
sempre necessários traços mais refinados.
22.—5.º Passo – Faça distinções em relação ao exemplo!
Distinções é algo que fazemos desde o início. Pode resultar num esquema,
ou mental (como se diz) ou em papel, no qual se traça a ordem na qual as
coisas devem ser descritas. Eu fiz isso, por exemplo, para distinguir os
passos nesta análise. Há pessoas que nunca o fazem, outras que o fazem
sempre, e eu costumo fazê-lo quanto mais complicadas forem as coisas e
menos avançada seja a minha contemplação (e fazê-lo nem sempre faz as
coisas andarem mais depressa!). Às vezes, a análise fica mais bem
organizada de um modo sistemático, de maneira que se vai do mais geral
ao mais específico; outras vezes, é melhor ir do mais específico ao mais
geral, e são possíveis várias combinações. O que dá a uma análise reflexiva
o título de “análise” é a série de distinções que são clarificadas usando
exemplos com referência a aspetos da coisa em discussão.
23.—Deste modo, para lá da distinção entre residências temporárias
e permanentes, impõe-se a questão do que é um lugar. Como é óbvio, um
lugar é algo situado no tempo e no espaço: por exemplo, nesta ou naquela
rua, entre a altura em que foi estabelecido e a altura em que for
desmantelado. Um lugar também pode ser percebido sensoriamente, por
exemplo, por ter um som distinto, ou pela carpete fofa que tocamos com os
pés quando nos levantamos e andamos sobre ela, mas também pode ser
recordado quando o deixamos temporária ou definitivamente, e pode ser
antecipado quando o visitamos pela primeira vez ou, de modo diferente,
quando lá voltamos. Podemos dizer mais acerca de um lugar a este nível.
Este nível, que podemos chamar “experienciar”, é abstraído do encontro,
que inlcui outros componentes.
24.—Quando temos a perceção de um lugar ou qualquer outra coisa
na espacio-temporalidade, acreditamos nela com firmeza a não ser que haja
motivação para duvidar: por exemplo, até se provar ser uma miragem ou
outro tipo de ilusão. Além disso, as residências são, regra geral, valoradas
positivamente. Mesmo que a residência de alguém seja uma cela de prisão,
ela pode ser valorada positivamente porque é um lugar mais seguro do que
qualquer outro na prisão. Mais importante é que os lugares em geral e,
assim, as residências são, numa significação geral, queridos. Podem ser
queridos de modo ativo quando, por exemplo, escolhemos um hotel, ou
queridos de modo passivo quando, por exemplo, aceitamos o hotel
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escolhido pelo nosso anfitrião. Além disso, esse querer pode tornar-se
habitual, ou até tradicional. Ao refletir, podemos perceber que a casa onde
vivemos há muito tempo é aceite por rotina.
25.—Para usar um sinónimo interessante, podemos dizer que as
coisas neste sentido geral são “usadas”. Assim, uma residência pode ser
usada para descansar ou, senão, para preparar a próxima saída para outros
lugares. Assim, serve como meio para os fins últimos de um projeto maior,
e também pode ser usada como o fim imediato de um movimento inicial ou
subsequente nosso na sua direção no âmbito desse projeto. A reflexão
revela que as coisas-enquanto-queridas têm características que podem ser
chamadas usos extrínsecos e intrínsecos.
26.—Tal como foi dito, usamos por vezes lugares não só como
residências permanentes, mas também como residências temporárias. Isto
também pode estar relacionado com tecnologia específica. Um navio pode
ter um porto de residência e usar outro porto temporariamente. O caso é
semelhante com aviões e aeroportos e com garagens para os automóveis em
casa e no trabalho. E as residências, senão todos os lugares, implicam rotas
para movimento entre elas. Se analisarmos reflexivamente como
encontramos lugares em geral, e residências permanentes e temporárias
especificamente, podemos encontrar e descrever muito acerca dos
encontros e coisas-enquanto-encontradas que estão envolvidos.
Figura 1.
Lugares
Permanentes
Temporárias
COMENTÁRIOS ADICIONAIS
X.
Uma Forma de Ensinar Análise Reflexiva
INTRODUÇÃO
ALGUMAS QUESTÕES
88
Comentários Finais:
A Necessidade de Análises Reflexivas
estão escritos de tal forma, que espero que o leitor ou ouvinte efetivamente
não pergunte “Onde é que uma grande figura do passado expressa o que
está aqui a ser afirmado interpretativamente?”, mas antes se dirija para as
próprias coisas em questão e pergunte se elas são como eu disse que são.
Menções de autoridades importantes, citações e notas de rodapé são
algumas das maneiras pelas quais é possível conduzir o leitor ou ouvinte a
examinar o que se diz como uma peça de trabalho erudito; por outro lado, é
melhor incluir pouco, ou nenhum, “aparato de erudição” numa descrição ou
análise reflexiva baseada nas coisas em questão.
Se me perguntam sobre a audiência dos cerca de 2000 discursos e
textos que procurei compreender ao longo destes anos, a resposta é
simples: tipicamente, são os meus colegas profissionais que são
proficientes nesta erudição técnica; assim, pertencem a uma especialidade,
a uma escola de pensamento ou, pelo menos, a uma disciplina académica.
Se, por contraste, me perguntam a quem se dirigem as investigações em
vez dos textos eruditos, podem incluir-se ouvintes e leitores que não estão
necessariamente familiarizados com aparatos técnicos; assim, podemos
também pensar em colegas profissionais de outras áreas, especialidades ou
escolas de pensamento, e podemos, acima de tudo, pensar em alunos.
Pondo de parte os colegas profissionais, o que é que os alunos aprendem
para além de como produzir trabalho erudito se tudo o que leem e ouvem é
erudição? Será que é algo mais do que simplesmente como produzir mais
trabalho erudito, e não será verdade que o método de erudição é
interpretação de textos em vez da observação reflexiva das coisas em
questão (que, regra geral, não são textos)? Não é surpreendente que alguns
colegas tenham questionado se a nossa magnífica tradição não estaria a
degenerar em algo como um tipo de história da filosofia do século XX
meramente particular. No sentido de evitar esse caminho, defendo que
precisamos de muito ensino, para além de escrita, não em filologia mas em
fenomenologia ou, mais uma vez, análise reflexiva.
Já publiquei um livro que agora existe em dez idiomas, com outros
por vir, sobre aquilo que acredito serem análises reflexivas, e até tenho a
ideia de que se trata de uma análise reflexiva sobre a abordagem de análises
reflexivas. (Promovi traduções para idiomas menos comuns assim como
para os mais comuns, como castelhano, francês, português e russo, porque,
apesar de cada vez mais a comunicação entre profissionais se fazer em
inglês, os meus colegas dizem-me que ensinam maioritariamente nas suas
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línguas nativas e, para benefício dos seus alunos, usam mais materiais
escritos nessas línguas.) O meu texto reconhece as figuras com quem
aprendi num parágrafo, tem apenas uma nota de rodapé e nem uma única
citação. (Ver a Introdução, acima.)
Com certeza que não sou o primeiro a produzir textos deste género,
já que se encontram muitos na nossa tradição, começando pelo menos com
Princípios de Psicologia (1890), de William James. Já agora, os gigantes
do passado da nossa tradição que tanto idolatramos produziram muito
pouco trabalho erudito.
O que espero que aconteça é que estas descrições desenvolvidas por
mim e por outros sejam ensinadas através da sua distribuição, uma de cada
vez, a alunos avançados na licenciatura, ou a alunos de pós-graduação, para
serem preparados na noite anterior, e que depois haja sessões de seminário
conduzidas de modo socrático pelo instrutor, perguntando coisas como:
“Qual é o tema desta análise reflexiva?”, “Haverá um nome melhor?”, “Já
tinham pensado nisso?”, “Conseguem encontrar na vossa própria vida
mental exemplos reais e ficcionais das coisas discutidas?”, “Esses
exemplos são como se descrevem nesta análise reflexiva?”, “Se não, de que
outra maneira poderiam ser mais bem descritos?”, “Acham que as
correções e refinamentos feitos por outros alunos estão corretos?”, “Se os
acham verdadeiros até ao ponto onde vão, conseguem levá-los mais longe,
ou seja, refiná-los vocês mesmos com descrições baseadas numa análise
reflexiva?” Todos nós temos alguma ideia da nossa vida mental com que
começar e podemos, especialmente se tivermos ajuda, continuar a refiná-la
com uma vasta prática, tornando-a numa competência. Deste modo, espero
que haja mais fenomenólogos que filólogos no futuro. Precisamos de mais
fenomenólogos e as análises reflexivas são um meio para o fim de
providenciar esta necessidade.
Neste momento, não ensino alunos de doutoramento, mas se
ensinasse, antes de tudo, ensinava-os a fazerem análises reflexivas e, deste
modo, a serem fenomenólogos. Mas também os encorajaria principalmente
a publicar trabalhos eruditos quando se graduassem e até terem contrato
efetivo. A razão para tal é que o trabalho erudito é mais fácil de fazer e
pode ser sempre produzido ano após ano, porque é mais fácil para colegas
de outras escolas de pensamento perceberem, e é mais seguro porque se
apoia em trechos escritos por autoridades reconhecidas em vez de se basear
nas análises reflexivas de cada um, que precisam de confirmação através de
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finis