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Pode aprender-se a fazer fenomenología?


Lester EMBREE

Gustavo de Fraga (1 Novembro 1922 – 15 Novembro 2003) foi Professor


de Filosofia na Universidade de Coimbra, fez parte da Escola de Fenomenologia
de Coimbra, e foi membro fundador do Centro de Estudos Fenomenológicos,
anexo à mesma universidade. Publicou múltiplas obras na área sob a influência
de Husserl e Heidegger.
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Pode aprender-se a fazer fenomenología?


por

Lester EMBREE
Florida Atlantic University
2012
Embree@fau.edu

Traduzido por Inês Pereira Rodrigues

Primeira versão 10/14/2012

Não hesite em partilhar este pequeno livro com os seus colegas e,


especialmente, com os seus alunos.
(Agradecem-se comentários e sugestões para melhoramentos!)

www.reflectiveanalysis.net
4

Este texto é dedicado


ao meu amigo Herbert Spiegelberg,
que recordo com afeto e
cujo trabalho encontra aqui um eco.
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Introdução
 
Tendo em conta os milhares de itens bibliográficos, não há dúvida de
que se pode aprender a interpretar textos fenomenológicos. Mas a
fenomenologia não é a interpretação de textos, mas antes a observação e a
análise reflexivas, e a descrição eidética de fenómenos, ou seja, de
processos mentais ou intentivos e das coisas-enquanto-intentadas ou
encontradas neles, e deste género não há nem perto de milhares de itens, e
isto apesar de obras como as Ideen (1913), de Edmund Husserl. É legítimo
perguntar porquê.
Com os exemplos não só das Ideen, mas também de Sein und Zeit
(1927), L’être et le néant (1943), Phénoménologie de la perception (1945),
Le Deuxième Sexe (1949), etc., as hesitações de modéstia por parte
daqueles entre nós que não são gigantes na nossa tradição de tentar
realmente produzir fenomenologia a essa escala tornam-se compreensíveis.
Mas existe a alternativa de tentar compor trabalhos concisos de cerca de
3000 palavras num estilo a que eu chamo “análise reflexiva”. Para evitar
que se confundam com trabalho erudito, estas análises devem ter muito
poucas ou nenhumas referências a autoridades ou a literatura, raras notas de
rodapé e citações, etc. Por outro lado, devem incluir a clarificação de
termos-chave e exemplos cuidadosamente escolhidos. Acima de tudo, uma
“AR” é acerca de algumas coisas em si.
A minha esperança é de que o estudo de análises reflexivas motive o
aluno a uma observação reflexiva das coisas em si que são referidas, ou
seja, alguns fenómenos, e que tente também, para além disso, verificar as
descrições e, no caso em que as análises sejam falsas, que as corrija
fenomenologicamente, e se estiverem incompletas que as desenvolva,
também fenomenologicamente. Fazendo isto, creio que um indivíduo a
trabalhar sozinho pode melhorar a sua capacidade de reflexão (acredito que
todos os adultos normais já têm alguma capacidade de reflexão sobre as
suas próprias vidas mentais e as de outros). Mas também creio que este
melhoramento pode ser alcançado através do ensino, em que os alunos
estudam uma análise reflexiva por si próprios e depois se reúnem com um
professor que procede de modo socrático. Os parágrafos nos capítulos deste
livro estão numerados para facilitar a discussão nas aulas.
À medida que se desenvolve destreza e confiança, deve tentar-se
compor as suas próprias análises reflexivas e partilhá-las com colegas
compreensivos. A modesta coleção que aqui apresento é deste tipo. Sou o
autor das dez AR aqui mencionadas e encorajo cópias desta coleção para
uso de alunos e colegas interessados. Estas AR foram originalmente
escritas para ocasiões diferentes e têm grandes sobreposições de conteúdo
6

de modo que os capítulos possam ser lecionados individualmente; espero


que isto não distraia demasiado o leitor. Os dois primeiros capítulos são
mais longos do que os outros, pelo que pode ser divertido voltar atrás e
estudá-los outra vez quando já se leram os outros.
Claro que não sou a única pessoa que já tentou realmente fazer
fenomenologia. Deste modo, peço ao leitor que me envie não só qualquer
AR nova que tenha escrito, mas também alguma descoberta no trabalho de
outros (e não apenas no dos gigantes do passado). Isto pode abarcar outras
línguas para além do inglês, porque o ensino é feito na língua local, e
algumas AR na língua local podem ser úteis. O meu objetivo seria publicar
mais coleções, em particular com o trabalho de outros.
Como o leitor poderá ter conhecimento, já publiquei dois textos
contendo várias AR que também podem ser usadas (os astericos em baixo
indicam publicações que estão disponíveis pela Amazon.com e/ou Kindle).
Análisis reflexivo. Una primera introducción a la Fenomenología /
Reflective Analysis. A First Introduction to Phenomenology, texto bilingue,
traduzido para o castelhano por Luis Román Rabanaque (Morelia: Editorial
Jitanjáfora, 2003, 543 pp.). O original em inglês foi editado separadamente
como Reflective Analysis (Bucareste: Zeta Books, 2006, 196 pp.; 2.ª edição,
2011)*; Traduções: Лестер Эмбри Рефлексивный анализ.
Первоначальное введение в феноменологию, trad. Victor Moltchanov
(Moscovo: Triquadrata, 2005, 223 pp.); , 使える現象学 (Tóquio, 2007);
Analiza refleksyjn, (Varsóvia, 2006); 思性分析:現象學研究入門
(Taiwan, 2007; também pela Peking University Press, segunda reimpressão
em 2008); Analiza Reflexivă (Cluj Napoca: Casa Cărţii de Ştiinţă, 2007);
Analyse réflexive, trad. Mathieu Trichet (Bucareste: Zeta Books, 2009)*;
Analisi riflessiva. Una prima introduzione all’investigazione
fenomenologica, trad. Angelo Bottone (Roma: Edizioni Studium S.r.l,
2011)*; Análise reflexiva: Uma primeira introdução na investigação
fenomenológica, trad. Antonieta Lopes, revisão científica de Pedro Alves
(Bucareste: Zeta Books, 2011)*; [Tradução norueguesa em preparação:
Refleksiv analyse; Ei første innføring i fenomenologisk gransking.
Traduzido por Kåre S. Fuglseth (Trondheim: Tapir akademisk forlag,
previsto para 2012); a tradução para lituano está à procura de editor.]
Environment, Technology, Justification. (Bucareste: Zeta Books,
2008, 173 pp.);* Ambiente, Technología, y Justificación, trad. Luis Román
Rabanaque (Bucareste: Zeta Books, 2010), 210 pp. [Espera-se a sua
publicação em chinês e japonês].

Lester Embree
Delray Beach, outubro de 2012
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Contents
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3

I. O que é a análise reflexiva? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

II. Reflexão sobre Outros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14

III. Análise Reflexiva de Encontros Indiretos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

IV. Irreflectividade Absoluta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

V. Uma Análise Reflexiva sobre o Recordar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

VI. Simulando . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

VII. A Derivação de “Dever” e “Ter-de” a partir de “É” . . . . . . . . . . . . . 43

VIII. A Justificação das Normas Reflexivamente Analisada . . . . . . . . . . .49

IX. Uma Análise Reflexiva sobre uma Maneira de Compôr


Análises Reflexivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
X. Uma Forma de Ensinar Análise Reflexiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
Comentários Finais: A Necessidade de Análises Reflexivas . . . . . . . . . . .69
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I.
O que é a Análise Reflexiva?

1.—“Análise reflexiva” é outro nome para fenomenologia, a escola


filosófica iniciada em 1900 por Edmund Husserl (1859-1938). Husserl
pretendia desenvolver uma metafísica ou uma filosofia primordial que
fosse uma ciência rigorosa e, assim, merecesse ser uma “logia”, mas
“análise reflexiva” transmite melhor inicialmente o que a fenomenologia é
enquanto abordagem que pode ser adotada em muitas outras áreas.
2.—Hoje em dia, quando grande parte do que se chama
fenomenologia é, na verdade, estudo de textos, há uma necessidade não só
de compreender, mas também de melhorar as competências nesta
abordagem, porque essa é a maneira pela qual as afirmações da
fenomenologia podem ser avaliadas, assim como promover o avanço das
investigações fenomenológicas.
3.—Neste texto, tentarei mostrar alguma coisa sobre o que é esta
abordagem geral. Enquanto a maioria do que é escrito em ou sobre
fenomenologia constitui obra de profissionais dirigindo-se apenas a outros
profissionais em filosofia, eu dirijo-me igualmente a profissionais de outras
9

áreas, bem como a estudantes universitários que não estejam


comprometidos com uma área de estudo, e não pressuponho qualquer
conhecimento de filosofia. Talvez este esboço introdutório seja útil para
discussões em salas de aula, e a minha numeração dos parágrafos pode
ajudar nesse sentido. No entanto, alguns dos assuntos discutidos também
podem ser uma novidade para os professores.
4.—Será usada pouca terminologia técnica. Em vez disso, irei
introduzir algumas expressões técnicas à medida que for avançando, a
maior parte das vezes, mas nem sempre, assinalando-as com as chamadas
“aspas intimidantes”. Estas expressões técnicas normalmente são
desenvolvidas a partir de palavras comuns e clarificadas com exemplos.
Uma análise reflexiva bem feita inclui bons exemplos.
5.—Para começar, vamos supor que estamos na atitude em que o que
aparece na fotografia acima pode ser descrito como o canto de um quarto,
com um quadro pendurado na parede sobre uma cama por fazer. As
paredes, a cama, a roupa da cama, as almofadas e o quadro são objetos
culturais que podem, obviamente, ser descritos com muito mais detalhe.
Mas mais tarde, através de uma familiar mudança de atitude, reconhecemos
que a atitude com que começámos é a pura e simples ou, talvez melhor, a
atitude “irreflexiva”, aquela em que nos passa despercebida, por assim
dizer, muita coisa, incluindo (a) o “modo de doação” pelo qual aquilo
ilustrado acima é percebido predominantemente de modo visual e não é
tocado, embora seja ainda percebido como sendo tátil, (b) que a cena que
faz parte de uma situação mais ampla é vista através de “aparências”; por
exemplo, se nos movêssemos para mais perto ou nos afastássemos, o
quadro na parede iria parecer maior ou mais pequeno, mas acreditaríamos
que o quadro em si permaneceria do mesmo tamanho, (c) que o quadro tem
um sentido estético positivo e os lençóis amachucados são um pouco feios,
e (d) a cama por fazer apela ao ato volitivo de a arranjar.
6.—A atitude com a qual podemos observar e descrever as tais
“coisas” despercebidas (“coisas” no sentido em que tudo é considerado
uma coisa) pode ser chamada “reflexiva”. E o recurso a esta segunda
atitude torna possível dizer, como eu já o fiz, que a cama, as paredes, etc.,
são principalmente percebidos visualmente, que são vistos através de
aparências visuais, que têm determinados valores para nós, e que estamos
dispostos a agir de alguma maneira nesta situação.
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7.—Através de um ângulo de reflexão diferente, quando olhamos


para o canto do quarto ilustrado, podemos reconhecer “correlações” pelas
quais há (a) perceção visual, (b) valoração, e (c) uma vontade possível em
relação ao que foi distinguido, e há ainda, a partir de um terceiro ângulo de
reflexão, as atitudes reflexiva e irreflexiva, assim como outras coisas como
os humores, que também conseguimos reconhecer facilmente. No entanto,
no que diz respeito à perceção visual, ela é diferente da perceção auditiva
que teríamos se uma bola fosse atirada contra a parede e saltasse na cama e
depois no chão; mas isto é apenas uma possibilidade e não algo atual, como
no caso da perceção tátil se acariciássemos a parede com a nossa mão.
Adicionalmente, o “experienciar” que é atualizado neste caso é um em que
a “coisa-enquanto-experienciada” nele, assim como o próprio experienciar,
ocorre no que pode ser descrito da melhor maneira como “agora” (porque a
palavra “presente” vai ser usada para um objetivo descritivo diferente mais
adiante), e estes casos são caracterizados da melhor maneira como
“percetivos”.
8.—A experiência percetiva é diferente, por um lado, de “recordar”
e, por outro, de “antecipar”, no que diz respeito a coisas reais. (“Coisas
reais” são no tempo, enquanto “coisas ideais”, tais como os significados
das palavras, não. Mas não é preciso dizer mais nada sobre coisas ideais
neste capítulo.) Ao recordar, a experiência ocorre nitidamente no agora,
enquanto o que é experienciado é do passado; na antecipação, o que é
antecipado é normalmente uma possibilidade no futuro, enquanto a
antecipação da possibilidade ocorre também, nitidamente, no agora.
9.—Para além dos três tipos de experiência de coisas reais que foram
distinguidos, também se aludiu às diferenças entre valoração positiva ou
negativa, e também entre perceções inatuais e atualizadas, e vontades
correlativas a diferentes aspetos da cena no canto do quarto ilustrada acima.
Os atos de valoração e os atos volitivos, e, já agora, os cognitivos, são
variedades do que se pode chamar “posicionar”. De modo mais geral, as
experiências e as posicionalidades são tipos de componentes no que se
pode chamar “encontros”. Podíamos sentir-nos tentados a usar
“experiência” num sentido alargado de modo a cobrir todos estes
componentes, mas usar “encontros” desta maneira deixa “experiência” para
descrever especificamente a perceção, a recordação e a antecipação, e para
contrastar com acreditar, valorar e querer como tipos de posicionalidades.
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10.—Os que estão a ouvir e ler este texto devem ser capazes de
encontrar e observar se as coisas são como eu as descrevi até aqui. As
descrições são baseadas no que pode ser descrito como “observação
reflexiva”, que inclui os três ângulos também descritos e, correlativamente,
os encontros, as coisas-enquanto-encontradas, e as atitudes dos encontros
são reflexivamente observáveis. Podemos sintetizar as nossas descobertas
até agora com um breve esquema de classificação (as coisas-enquanto-
encontradas podem ser acrescentadas, se se quiser):

ENCONTROS
I. Posicionalidades
A. Volitivas
B. Valorativas
C. Crenças
II. Experiências (de realidades)
A. Antecipação
B. Recordação
C. Perceção

11.—Temos agora três questões que talvez levem o ouvinte ou leitor


a refletir um pouco mais sobre o que foi dito:
(1) Na recordação e na antecipação, respetivamente, podemos apenas
reparar nas coisas como coisas-previamente-encontradas e coisas-
enquanto-por-encontrar, ou devemos também reparar nos encontros
passados e futuros e correlativas nas atitudes de encontro?
(2) É relativamente simples reconhecer que as valorações não são
apenas positivas e negativas, mas, por vezes, também neutras; por exemplo,
enquanto o nosso quadro pode ser considerado bonito, e a roupa de cama
amarrotada um pouco feia, a parede no canto do quarto pode ter um valor
nem positivo nem negativo para nós. Se for esse o caso, haverá as mesmas
três “modalidades” análogas no querer e no acreditar?
(3) Segundo o pensamento tradicional, a imaginação é considerada
uma faculdade mental a par com a sensação, a memória, a emoção, a
volição, etc. Penso que isso é falso. Somos capazes não apenas de imaginar
que vemos um segundo quadro na parede à direita do primeiro, mas
também de fingir recordar que comemos algo ontem ao almoço que na
verdade não podemos recordar ter comido, de fingir gostar de alguém de
12

quem não gostamos, de fingir que estamos a acenar os braços acima da


cabeça quando de facto não estamos. Se isto é verdade, não haverá uma
versão “ficcional” para cada espécie de posocionalidades e experiências
“não ficcionais” que foram distinguidas acima, e a imaginação não estará a
par com as outras faculdades?
12.—Até aqui, vimos que a análise reflexiva pode focar-se nos
encontros, nas coisas-enquanto-encontradas e nas atitudes de encontro.
Agora, podemos alargar os limites da nossa observação reflexiva. Ainda a
observar reflexivamente a nossa perceção predominantemente visual do
canto do quarto, podemos ter uma série de encontros um pouco diferentes
que variam de acordo com aquilo a que se dá atenção, ou melhor, com
aquilo que é “focado” nelas. Assim, podemos “focar-nos” no quadro, ou
em como as duas paredes formam um canto, ou na cabeceira da cama
inclinada, ou numa das almofadas, ou na outra, ou no monte de lençóis e
cobertores, ou, finalmente, focar-nos no colchão. Contámos sete focos de
atenção. Apesar das semelhanças entre eles, o que chama mais a atenção é
que formam uma sequência temporal no contexto daquilo a que podemos
chamar “vida mental”. Cada um decorre durante algum tempo e segue-se-
lhe outro com o qual acontece o mesmo.
13.—Às vezes, estas perceções que se distinguem pelo que é focado
nelas são chamadas “processos mentais”, o que é uma expressão
relativamente neutra que poderia ser apropriadamente modificada, mas eu
prefiro chamar-lhes “encontros”, porque esta expressão levanta logo as
questões sobre o que é encontrado e como. Os sete encontros com focos de
atenção diferentes são encontros de coisas exteriores, ou melhor,
“exteriormente transcendentes” em relação ao fluxo de vida mental no qual
eles se sucedem. Isto é tão interessante como óbvio. O que também se torna
interessante, no entanto, é como estes encontros se encontram uns aos
outros dentro, ou melhor, na “imanência” da vida mental. Quando um
encontro encontra imanentemente um encontro no seu futuro, pode dizer-se
que lhe é “protensivo”; quando encontra imanentemente um encontro no
seu passado, pode dizer-se que lhe é “retensivo”.
14.—A “protensão” e a “retenção” são espécies de uma propriedade
extraordinária que Husserl chamou, em concordância com o seu professor
Franz Brentano, “Intentionalität”; eu prefiro seguir o meu próprio professor
13

(e aluno de Husserl) Dorion Cairns e chamar-lhe “intentividade”1.


Provavelmente, descobriremos primeiro como os encontros que estão a
ocorrer no agora são intentivos a coisas transcendentes à vida mental, tal
como as almofadas na cama. Não há nada igual a isso. Mas talvez seja uma
ajuda para perceber a que se refere esta palavra ao considerarmos como, à
primeira vista, os encontros “apontam significativamente” para as coisas
encontradas neles.
15.—A objeção a um erro pode ajudar o leitor ou ouvinte deste texto
a concentrar-se na “intentividade”. Muitos pensadores defenderam ao longo
dos tempos a existência das chamadas “imagens da memória”, de tal
maneira que, quando nos lembrássemos de uma cena da nossa juventude,
haveria realmente uma imagem no agora em conjunto com o recordar e que
essa imagem representaria a cena passada. Porém, quando refletimos, não
encontramos estas imagens, e então perguntamo-nos porque se acredita
nestas coisas. O que na verdade encontramos reflexivamente é o recordar a
ocorrer no agora, a cena passada como cena-recordada no passado, e que o
recordar é intentivo a eventos no passsado. Às vezes, pode ser esclarecedor
referir, como fez Husserl, o encontro intentivo como uma “noese” (o
adjetivo é “noético”) e a coisa-enquanto-encontrada como um “noema” (o
adjetivo é noemático). Depois, há reflexão noética, reflexão noemática e
recordação pura e simples. Ainda pior do que a teoria da recordação de
imagens da memória é a teoria da perceção que defende que, de algum
modo, temos representações entre a perceção e a coisa “real” percebida,
algo que consiste em fotões incolores. (Talvez os fotões existam e até
sejam causas, mas não são objetos visuais.)
16.—Deixem-me agora descrever como se poderia construir um
diagrama que ilustrasse as coisas analisadas acima, mas deixo para os
leitores e ouvintes a possibilidade de construir esse mesmo diagrama.
Primeiro, podíamos representar encontros através de linhas verticais curtas
com os extremos em seta que apontam para coisas transcendentes à
corrente da vida mental, e para a esquerda e direita representando a
retenção e protensão (a atitude podia ser indicada na cauda da seta vertical,
mas por agora isso não é necessário):

                                                                                                                         
1
 Para uma análise reflexiva de Cairns que vai para além do âmbito deste texto e descreve sínteses
intentivas de vários tipos, ver Dorion Cairns: “The Theory of Intentionality in Husserl”, Journal
of the British Society for Phenomenology, 32 (1999): 116-124.
14

17.—Segundo, podíamos desenhar linhas horizontais para


representar as margens, por assim dizer, da corrente da vida mental, e
incluir os nossos sete encontros em sequência dentro da corrente e
intentivos uns aos outros, assim como às coisas transcendentes, por
exemplo, a confusão de lençóis na nossa imagem.

18.—E, terceiro, a nossa corrente pode ser concebida como fluindo


do futuro à direita, pelo agora, e para o passado à esquerda. (A nossa
tendência “natural” é adotar este fluxo temporal como fazendo parte da
espacio-temporalidade da experiência, mas esta convição pode ser
questionada.)
19.—Com a abordagem e os conceitos introduzidos, o leitor ou
ouvinte pode aperceber-se de que é possível realizar investigações no modo
tradicional que, em 1890, William James chamava introspetivo. Aliás, pode
desenvolver-se muita coisa a partir daqui, mas comecemos com o que é
necessário para uma psicologia introspetiva, ou melhor, fenomenológica.
20.—Em grande parte da exposição acima, mas não em toda, usou-se
a primeira pessoa do plural (“nós”, e “nosso”). Isto não foi uma mera
questão de estilo. Para nós, a cena da cama, parede, quadro, etc., é
originalmente objetiva, ou, porque essa palavra já tem muitas conotações,
será melhor dizer que ela é “pública”. Por outras palavras, é vista ou é
visível por mais do que uma pessoa. E então deparamo-nos com o aspeto
fascinante de como as pessoas que encontram a cena ou têm a possibilidade
de a encontrar também têm a experiência uns dos outros e formam assim
uma intersubjetividade ou, em termos menos técnicos, um grupo que
partilha o encontro. Deste modo, “nós” encontramos o canto do quarto. Até
descobrir que a minha amiga que está comigo a ver o canto do quarto tem
uma apreciação da roupa da cama e do quadro diferente da minha, presumo
15

que ela tem a mesma que eu, e vice-versa. E, se descubro que temos
preferências opostas, elas são, ainda assim, intentivas às mesmas coisas,
mas com valores inversos. A minha amiga é transcendente em relação à
minha corrente de vida mental, mas apesar de tudo temos uma vida mental
comum ou partilhada, na qual se podem dsitinguir através da reflexão tipos
de experiência um do outro.
21.—Contudo, se reconhecermos que começamos numa atitude em
que partilhamos coisas públicas, pode levantar-se a questão: haverá uma
alternativa a esta atitude? A resposta é que esta “atitude intersubjetiva”
pode ser “reduzida” a uma “atitude egológica”. Aí, todas as coisas são
consideradas apenas em relação a uma única pessoa e, em contraste, podem
ser ditas “privadas”. A minha amiga passa, digamos assim, de ser um “co-
sujeito” a ser mais outro objeto para mim. Então, podemos perguntar não
só como é que o que está ilustrado na imagem do canto do quarto aparece
apenas a mim, mas também como aparece apenas à minha amiga, ou a
qualquer outra pessoa individual.
22.—Acredito que esta redução egológica é necessária para uma
investigação psicológica e, portanto, nas investigações de outros indivíduos
tal como do nosso “eu” individual. Demasiado frequentemente, os
fenomenólogos parecem acreditar que a análise reflexiva na atitude
egológica é limitada à auto-observação, mas não é verdade. Não só pode
haver observação individual de um outro a par de auto-observação
individual, como pode haver observação de grupos, e os grupos são
fundamentais nas ciências sociais e históricas em comparação com o estudo
dos indivíduos em psicologia. Talvez este comentário seja suficiente para
sugerir que comecemos com o que analisámos acima para continuarmos a
discutir em filosofia ou em teoria científica. Para obter a objetividade de
resultados científicos, teremos de regressar da atitude egológica para a
intersubjetiva.
23.—Nesta altura da exposição, podemos submeter uma outra breve
descrição ao exame do leitor ou ouvinte. Ao vermos a almofada na cama,
reconhecemos que na nossa perceção há uma face de frente para nós, e que
esta é intentada na componente “presentativa” do nosso experienciar, sendo
a outra face “apresentada”. Temos a perceção de uma almofada que possui
não só os lados “exteriores” mencionados, mas também outros lados
“interiores”. Sem rasgar a almofada para tornar o seu interior presente,
podemos simplesmente virá-la para que um lado exterior apresentado se
16

torne presente enquanto o lado que estava presente se torna apresentado. A


partir desta base, e sem entrarmos no problema de como isto é
originalmente estabelecido, podemos continuar e dizer que o corpo de outra
pessoa, incluido os seus gestos, posturas, artefactos, etc., nos apresenta a
sua vida mental, apesar de neste caso não haver uma perspetiva na qual o
lado apresentado se possa tornar presente para nós como é sempre presente
para o outro.
24.—Algo mais deve ser dito acerca da ilustração aqui usada. Para
mim que escrevo este texto, ela é percebida diretamente, assim como o são
os encontros que foram descritos. Porém, para o leitor ou ouvinte, ela é
evidentemente uma fotografia, e as minhas descrições são palavras, além
de que tenho estado a tirar partido da forma como nesses casos somos
capazes de nos focar não nas representações mas no que é representado.
Quando é analisada reflexivamente, observa-se que a “experiência
representacional” tem uma estrutura estratificada na qual o infraestrato é
intentivo à representação (a palavra ou a imagem) e o superestrato é
intentivo à coisa representada pela representação. Por isso se considera de
modo geral que se trata de uma experiência indireta, apesar de esta
estrutura ser ignorada. E isto, assim como as outras descrições aqui dadas,
deve ser confirmado, corrigido se necessário, e desenvolvido pelo leitor ou
ouvinte na sua própria análise reflexiva.
25.—É agora altura de dizer também alguma coisa acerca das
atitudes, começando por aquelas introduzidas no início deste texto. Tanto a
atitude irreflexiva como a reflexiva podem ser denominadas
“contemplativas” ou “observacionais”, porque nelas nos limitamos a ver e a
relatar o que vemos. Assim, elas contrastam com dois outros tipos de
atitudes nas quais também há variedades. O tipo mais fundamental de
atitude é a “prática” e, como tal, preocupa-se com o que acontece, muitas
vezes tentando influenciar os acontecimentos, mas outras vezes apenas
deixando que algo aconteça. Enquanto o pensamento e a experiência
dominam nas atitudes contemplativas, a volição ou o querer dominam nas
atitudes práticas. O terceiro tipo de atitude pode chamar-se de “usufruto”
ou recreação, e tem a valoração como ato dominante. Um exercício
possível para aplicar a análise reflexiva do leitor ou ouvinte passa pela
especificação destes três tipos de atitude.
26.—Finalmente, podemos dizer alguma coisa acerca das vidas
mentais e do mundo. O que em fenomenologia se chama tradicionalmente
17

“atitude natural” deveria antes ser chamado “atitude mundana” porque,


apesar de a natureza ser certamente fundamental, o mundo é mais do que só
natureza. Inicialmente, o que é proeminente é a forma como o mundo é
“socio-histórico”, ou “cultural”. Isto quer dizer que o mundo contém
objetos culturais tais como a cama no canto do meu quarto, os quais
incluem valores e usos, e contém ainda pessoas e animais não humanos e
humanos. Na atitude mundana, acreditamos que há um grande sistema de
coisas fundamentalmente relacionadas entre si de modos espaciais,
temporais e causais, e que este sistema inclui vidas mentais, que pelo
menos têm relações causais com outras coisas, nomeadamente com os
nossos corpos de forma imediata e com outras coisas de forma mediata.
27.—Husserl e os seus seguidores mais próximos rejeitam que não
haja uma atitude alternativa à mundana e, desta forma, não aceitam que
tudo é sempre apenas alguma coisa “no mundo”. Eles mantém que, ao
refletirmos sobre a vida mental, podemos suspender ou neutralizar
temporariamente a nossa crença acerca do estatuto de ser-no-mundo da
nossa vida mental, e que, desde que se mantenha a “atitude transcendental”
alternativa, a vida mental é não mundana e pode servir como a base
necessária na primeira filosofia transcendental. Como tudo o resto,
podemos investigar este assunto mais aprofundadamente através da análise
reflexiva, mas afirmei no início que não iria pressupor qualquer
conhecimento de filosofia. Espero que os colegas em outras áreas
reconheçam os vários usos possíveis, e não filosóficos, da abordagem que
aqui se chamou “análise reflexiva”.
18

II.
Reflexão sobre Outros

1.—O problema complexo do Outro ou – melhor dizendo – “Outros” é


há muito um tema em fenomenologia. Alfred Schutz, por exemplo, ocupou-
se principalmente da forma como os Outros interpretam as suas próprias
ações, como se interpretam a si próprios, uns aos outros, as ações de outros,
os seus grupos, artefactos e situações. Edmund Husserl, por outro lado,
focou-se no modo como os Outros são originalmente constituídos por um
“si” através de uma transferência de sentido e apresentação numa
passividade primária. O tema da presente análise situa-se entre as
preocupações de Husserl e de Schutz. Assumiremos simplesmente que já
estamos sempre em encontro com Outros e que podemos abstrair-nos de
como os Outros interpretam as suas próprias ações, artefactos, etc. Aqui, a
preocupação será antes a de se, e de que maneiras, os Outros podem sequer
ser observados reflexivamente. A importância da questão deve tornar-se
mais clara à medida que a exposição avançar.
2.—A palavra “Outros” pretende aqui referir-se não apenas a outros
indivíduos pensados separadamente, mas também a grupos; além do mais,
refere-se não só a humanos, mas também a outros animais. A “observação”
19

pode ser pura e simples ou reflexiva. Na observação simples, o “eu” não


presta qualquer atenção aos seus próprios encontros das coisas, às coisas-
enquanto-encontradas, ou a si-próprio. A tematização é exclusivamente
acerca das coisas. Em algumas tradições da filosofia e da ciência, é um
facto assumido que a observação é simples, e isto pode tornar difícil
aprender a refletir. Noutras tradições, incluindo a da fenomenologia, a
reflexão é essencial à própria abordagem. A própria análise temática, e a
descrição da diferença entre observação simples ou “auto-ignorada”, por
um lado, e a observação reflexiva por outro, já requer reflexão.
3.—A maior parte da reflexão na história da fenomenologia é auto-
observação, onde os encontros e as coisas-enquanto-encontradas pertencem
ao mesmo fluxo de vida mental que as reflete. Mas este não é o único tipo
de reflexão. A nossa preocupação aqui é com “reflexões sobre Outros”,
onde “reflexão” não implica necessariamente que aquilo em que se reflete
tenha de pertencer ao mesmo fluxo que o “refletir”. Alternativamente, o
que torna a observação, de modo geral, “reflexiva” é a sua tematização do
que tecnicamente se chama correlações noético-noemáticas. Através de
métodos de auto-observação, posso observar como encontro coisas e,
correlativamente, como as coisas são encontradas enquanto-encontradas-
por-mim. Ao contrário, a reflexão sobre Outros foca-se em como os Outros
encontram coisas e, correlativamente, nas coisas-enquanto-encontradas-
por-eles. Deste modo, temos dois tipos de reflexão. Os Outros observados
reflexivamente podem estar num estado de reflexão simples e auto-
ignorada, ou em autorreflexão, ou podem estar eles próprios a refletir sobre
Outros – incluindo, por exemplo, alguém que está por sua vez a refletir
sobre essa pessoa. E isto também pode ser determinado pela reflexão sobre
Outros.
4.—Devido a séculos de teorias de representação na filosofia
moderna, alguns podem resistir até à possibilidade de reflexão sobre
Outros. Mas qualquer pessoa que já deu aulas sabe reconhecer se os alunos
estão a prestar atenção ou a sonhar acordados, ou a prestar atenção a outra
coisa qualquer na sala (tal como um outro aluno), etc. Num exemplo mais
subtil, os que estão a prestar atenção ao que se está a tentar ensinar podem
ser obervados a (a) compreender, (b) não compreender, (c) a passar pela
transição entre não compreender e compreender, ou (d) a ficar cada vez
mais e mais perplexos!
20

5.—Antes de nos voltarmos para o que, de modo mais geral, podemos


observar reflexivamente nos Outros, é preciso dizer alguma coisa acerca do
que está aqui a ser abstraído – isto é, as nossas interpretações e as dos
Outros –, assim como acerca da observação de Outros que permanece
intacta nesta abstração. Como se pode caracterizar este último aspeto? A
observação de Outros presupõe o encontro de Outros, que ocorre de modo
mais claro quando seres vivos (especialmente, aqueles que possuem órgãos
de sensação e movimento) são percebidos ou lembrados. Quando estas
coisas são experienciadas diretamente, isto é, presentadas, as psiques são
apresentadas “neles”, e as coisas experienciadas de forma imediata são
apreendidas como as somas ou organismos que estão (mais ou menos) sob
a influência destas outras psiques2. Um encontro primário de Outros como
este inclui muito mais do que isto, mas aqui só é necessário dizer mais uma
coisa, ou seja, que este encontro primário ocorre automaticamente. Por
outras palavras, o “eu” não está empenhado em realizar este processo de
apresentação – e, na verdade, não pode empenhar-se em realizá-lo.
6.—Em contraste, a observação que aqui se chama reflexão sobre
Outros é um tipo de encontro secundário. Originalmente, é uma operação
na qual um “eu” está empenhado, apesar de poder tornar-se uma ocupação
habitual ou até, em determinados grupos (como os psiquiatras) um tipo de
encontro comum. Tem a mesma estrutura de presentação/-presentação de
um encontro primário; deste modo, pode distinguir-se a soma e psique do
Outro e, em certa medida, até se pode tematizar a sua soma no modo como
aparece à outra pessoa, algo que os médicos por vezes fazem. No entanto,
regra geral, o que é focado em observações-do-Outro é a outra psique. Mais
adiante, continuaremos a elaborar sobre este tipo de observação. Primeiro,
é preciso considerar a questão das auto-interpretações do Outro.
7.—Compreender Outros através das suas próprias interpretações das
suas ações e de si próprios, daquilo que produzem, etc., é na verdade uma
abordagem fidedigna, uma que é regularmente utilizada nas ciências
culturais durante a observação de participantes e no estudo de discursos e
textos. Mas podemos perguntar-nos se um Outro está a mentir, se se ilude a
si próprio, ou simplesmente se não é capaz de auto-observação e narrativa
de si próprio. Ser uma pessoa educada implica dizer pequenas mentiras
                                                                                                                         
2
Note-se que se evita a expressão de Husserl, Einfühlung, que é traduzida literalmente em inglês como
“empatia”. A razão para tal é que há fenomenólogos que deslizaram do sentido técnico deste termo,
essencialmente cognitivo, para um significado predominantemente afetivo-valorativo, no qual alguém
empatiza através dos seus sentimentos com os sentimentos de um Outro.
21

acerca de coisas triviais, e muitas actividades profissionais – como, por


exemplo, a venda de carros usados – requerem uma ainda maior capacidade
de engano. A capacidade de se iludir a si mesmo é um problema demasiado
complexo para ser desenvolvido na presente ocasião. Finalmente, a
capacidade de observação de si mesmo, dos seus encontros e das suas
coisas-enquanto-encontradas varia consideravelmente de pessoa para
pessoa (inclusivamente, alguns soi-disant fenomenólogos não parecem
saber fazê-lo muito bem).
8.—Contudo, se começarmos a questionar a fiabilidade das narrativas
de si próprio e das auto-interpretações nelas expressas, como poderemos
resolver as questões colocadas e ser capazes de afirmar, como fizemos
acima, que a compreensão de Outros através das suas próprias auto-
interpretações é, de facto, fidedigna? Uma razão para esta fiabilidade é,
claro, a coerência interna dessas narrativas. Outra é a conformidade das
auto-interpretações com o senso comum. Mas o aspeto essencial é como
estas narrativas estão de acordo com o que se pode observar, de modo não
interpretativo, através da reflexão sobre Outros; por exemplo, alguém que
diz não estar zangado, está percetivelmente zangado, ou não? Esta é uma
base decisiva para reconhecer a mentira, o autoengano, etc. (tal como para
reconhecer a sinceridade – consigo próprio assim como com os outros – e
outras capacidades de auto-interpretação que estejam desenvolvidas).
9.—Aqui, aparece outra consideração relevante. As narrativas de si
mesmo dos Outros são expressas em diversas línguas. Os que leem mais do
que uma língua sabem que as línguas não são isomórficas. Pode defender-
se que se pode expressar em vernáculos comuns aquilo que é importante
acerca de encontros e das coisas-enquanto-encontradas. Contudo, podemos
ser iludidos pela linguagem comum e, por isso, é preferível muitas vezes
desenvolver terminologia técnica para sermos capazes de expressar
descrições que possam ser verificadas por outros colegas fenomenólogos.
10.—Podemos agora usar um conjunto de termos, aprimorado
principalmente pela auto-observação, para nos guiar na reflexão sobre
Outros abstraída de interpretações de senso comum. Antes de mais, é
necessário um termo e expressão geral para aquilo com que a análise
reflexiva se ocupa. A palavra de Husserl é Erlebnis, que é muitas vezes
traduzida em francês como vécu, e em castelhano como vivencia. Em
inglês, os que fazem parte da tradição analítica parecem preferir “mental
act”, o que é problemático, já que muitos dos processos em questão são
22

passivos, enquanto na tradição fenomenológica algumas pessoas usam


“experience”, ao passo que outros usam “lived experience”, o que levanta a
questão sobre o que seria uma experiência não vivida. Dorion Cairns
começou por usar o termo “awareness” para exprimir Erlebnis e, mais
tarde, “subjective process” – que acabou por considerar ter sido o seu maior
erro – para finalmente acabar por preferir “mental process” em traduções e
“intentive process” nas suas próprias investigações.
11.—No entanto, o termo geral usado aqui é “encontro”
[“encountering”]. Indica que se trata de um processo e sugere que algo é
encontrado. Adicionalmente, é facilmente especificado não só como
encontro de tipo cognitivo, mas também valorativo e volitivo, algo
desejável se quisermos evitar o intelectualismo (aqui, intelectualismo
indica um hábito de se focar no experienciar, no pensar e no acreditar,
tendendo a ignorar o valorar e o querer). “Encontrar” expressa o conceito
geral e pode ser qualificado para obter conceitos e expressões mais
específicos. É importante lembrar, contudo, que apenas os encontros são
concretos, enquanto palavras como “recordar”, “querer”, etc., se referem a
componentes abstratos contidos nelas.
12.—Também é importante lembrar que cada encontro inclui
necessarimente todos os componentes básicos. Deste modo, ao dizer que
um encontro é uma perceção, por exemplo, sublinha-se o tipo de
experiência (isto é, de coisas presentes e diretas, em vez de coisas indiretas)
e atenua-se o acreditar, o valorar e o querer que também fazem parte do
encontro. As coisas-reais-enquanto-encontradas são sempre percebidas ou
recordadas, ou antecipadas, ou representadas e – pelo menos, em alguns
modos – podemos dizer que se acredita numa coisa, ou que ela é valorada
ou querida. Pensar que, por exemplo, as coisas-enquanto-encontradas e as
suas perceções correlativas são concretas, em vez de serem componentes
noéticos e noemáticos abstratos de encontros, é um erro de avaliação
daquilo que é o concreto.
13.—A divisão mais geral no seio dos componentes de encontros é
entre “posicionalidade” de um lado e, do outro, o que se pode chamar
“experienciar”. Na verdade, uma outra vantagem de utilizar a palavra
“encontro” como o termo mais geral é que deixa livre o termo
“experienciar” para expressar um conceito mais restrito. “Experienciar”
pode até ser usado de modo técnico para os encontros com coisas ideais,
tais como números e essências universais, o que corresponde a um tipo de
23

“experienciar direto”, enquanto o “experienciar indireto” é intentivo às


coisas na base de representações que podem ser indicativas, pictóricas ou
linguísticas. O encontro original e a reflexão sobre Outros são ambos
indiretos, apesar de nem sempre estarmos explicitamente conscientes disso.
O experienciar é tão rico em tipos e aspetos, que a preocupação que tende a
suscitar é compreensível, ainda que lamentável.
14.—Lamentável porque a posicionalidade é igualmente importante e,
por isso, não deve ser ignorada ou atenuada. O tipo mais óbvio de
posicionalidade parece ser o afetivo-valorativo. Em linguagem comum, é
uma questão de gostar, não gostar, adorar, detestar, ser indiferente, etc.
Semelhantes expressões estão muitas vezes associadas à irracionalidade, e
estes fenómenos só começaram a ser analisados intensivamente na filosofia
ocidental durante o século XVIII. Por isso, parece sensato adotar a expressão
artificial “valorar”. Tal como acreditar, valorar pode ser positivo, negativo
ou neutro, e há valores positivos, negativos e neutros correlativos que são
discerníveis nas coisas-enquanto-encontradas. E os três tipos de
posicionalidade têm níveis variados de firmeza nos seus modos positivos e
negativos, isto é, determinação e hesitação tanto positiva como negativa no
querer, certeza e conjetura no acreditar, assim como uma valoração firme
ou incerta.
15.—Como é que podemos usar esta taxonomia como guia nas
reflexões sobre Outros? Podemos derivar dela questões acerca do que pode
ser reflexivamente observado nos encontros e nas coisas-enquanto-
encontradas de Outros, coletivos e individuais, assim como humanos e não
humanos. A maneira mais eficaz de estabelecer rapidamente possibilidades
é dar exemplos. Este esboço é apenas um começo. Teremos de ser capazes
de produzir descrições mais aprimoradas através de uma investigação mais
aprofundada.
16.—Apesar de ser possível discernir componentes no seio dos
encontros e das coisas-enquanto-encontradas, tais como os tipos
mencionados, isto não quer dizer que não haja diferenças inerentes entre
encontros. O melhor termo a usar para reconhecer as principais diferenças
entre encontros é “predominância”. Deste modo, um encontro concreto é
por vezes predominantemente volitivo, e por essa razão chamamos-lhe
querer. Isto não significa que não haja também outros componentes de
acreditar e valorar no encontro, porque os há, significa apenas que o
componente volitivo predomina. Paralelamente, perceber também pode
24

predominar no componente do experienciar, mas com ele também ocorre,


de modo subordinado, alguma recordação e antecipação.
17.—Neste momento, talvez seja útil dar alguns exemplos que dizem
respeito a um animal não humano. Falando agora pessoalmente, na minha
infância tive um cão. Quando chegava a casa da escola, parecia-me
bastante claro, assim como à minha família e amigos, que o cão ficava
contente por me ver. Agora, já posso dizer que encontrávamos o encontro
de mim que ocorria na psique do meu cão nas ocasiões do meu regresso a
casa. O nosso encontro da psique dele tinha uma base na nossa perceção
sensorial dos barulhos e movimentos que ele fazia. O tipo de
posicionalidade predominante nos seus encontros de mim era valorativa, e
o modo era positivo. Também se tornava evidente que era eu o que ele
valorava, e que eu tinha um valor positivo. Ao mesmo tempo, lembro-me
que estive uma vez de cama doente enquanto tive esse cão. Não me lembro
qual era a doença, mas lembro-me que a casa estava sossegada e que o
médico veio visitar-me várias vezes. E lembro-me que o cão estava triste.
Isto estava nitidamente apresentado na sua postura e movimentos. Neste
caso, a sua atitude para com a situação centrada em mim era valorativa e
negativa.
18.—No que diz respeito aos componentes experienciais nos
encontros, ambos os casos descritos acima foram percetivos no sentido lato
de perceção: o experienciar de coisas no presente (um significado que
inclui a-perceção). Contudo, não foi apenas percetivo, porque o perceber
foi acompanhado de valoração positiva e negativa. Pode ser que o encontro
que o meu cão teve de mim tenha sido mais antecipativo do que percetivo:
chego a casa, o meu cão “antecipa” o nosso reencontro, ter as orelhas
coçadas, ir brincar. Isto manifestava-se nas corridas para trás e para diante
à entrada da porta.
19.—No que diz respeito a encontros do meu cão a recordar, lembro-
me de ocasiões onde, após uma ausência, voltávamos a um lugar familiar e
que ele avançava numa espécie de missão de reconhecimento para ver,
parecia, se alguma coisa tinha mudado. Isto parecia incluir o recordar como
base para reconhecer a presença ou ausência do que era antecipado e
familiar, mas não se trata de prestar atenção, em recordações, a eventos
passados do mesmo modo que eu o faço quando me recordo de encontros
passados meus. Com outros humanos, no entanto, há realmente ocasiões
em que o Outro é encontrado a recordar, o que quer dizer a recordar
25

ativamente, tal como há ocasiões em que eventos do passado se impõem à


sua atenção. Em ambos os casos, existe um declínio ou até cessação total
de atenção a aspetos da situação presente; além do mais, a atenção que
descobrimos no Outro nesses momentos parece muitas vezes não ter o
propósito continuado que acompanha a deliberação acerca de possíveis
ações.
20.—Os factos esboçados foram encontros primários de Outros no
passado e, depois, reflexões sobre eles enquanto recordados. No sentido de
estabelecer possibilidades, basta aos leitores ou ouvintes deste texto
simularem casos semelhantes, o que significa fazerem de conta que estão a
lembrar-se de coisas como estas, ou até que estão a ter estes encontros
agora. Adicionalmente, as descrições são bastante vagas; incluem os
encontros apercebidos nos Outros, os seus tipos fundamentais e modos de
posicionalidade, e os tipos de experienciar que ocorrem concorrentemente.
Não são necessários detalhes subtis quando a questão é apenas acerca da
possibilidade de reflexão sobre Outros (o que não quer dizer que não seja
possível alcançar uma especificidade maior com maior esforço em
circunstâncias mais apropriadas).
21.—Se já se disse o suficiente para estabelecer que é possível
encontrar – e, sobre essa base, observar – o valorar e o experienciar em
Outros, quer humanos quer não humanos, que podemos dizer acerca de
outros tipos de posicionalidade? Será possível observar reflexivamente
Outros como estando resolutos nos seus esforços, observar (pelo menos, até
certo ponto) aquilo por que, de modo imediato, se esforçam, e depois
observar reflexivamente não só os fins imediatos para eles, mas também
alguns dos meios? Isto parece tão óbvio que não me parece necessário dar
um exemplo, mas, só para ter a certeza, deixo a sugestão de que muitos
exemplos podem ser encontrados no desporto.
22.—Temos para análise as modalidades já mencionadas, isto é,
algum querer é positivo, o que inclui apoiar o que Outros fazem, outro é
debilitante, e também pode haver um querer destrutivo ou criativo. O modo
mais interessante de encontro predominantemente volitivo que podemos
reflexivamente observar nos Outros talvez seja a neutralidade volitiva, ou
seja, o Outro está decidido a não tomar partido ou, como se diz, a não se
involver. Isto costuma aparecer em combinação com a apatia no
componente valorativo.
26

23.—E quanto ao acreditar? Quando se está numa atitude teórica de


auto-observação, pode parecer que o acreditar, assim como o experienciar
que, regra geral, lhe serve de base e o motiva, são os aspetos mais notáveis
de um encontro. Mas isto pode ser um produto de um certo intelectualismo,
senão mesmo de uma posição naturalista. Se resistirmos à tendência
prevalecente entre pessoas eruditas, tanto nas disciplinas práticas como nas
teóricas, de ignorar (ou depreciar) não só o valorar e os valores, mas
também o querer e os usos ou características práticas correlativas nas
coisas-enquanto-encontradas, se, por outras palavras, aceitarmos as coisas
como as coisas culturais que elas são originalmente, então, acreditar é
somente um dos três tipos principais de posicionalidade num encontro
cultural concreto.
24.—Quanto ao acreditar que encontramos em Outros seres humanos,
a mim parece-me mais uma vez óbvio que estes Outros são por vezes
encontrados como certos, outras vezes como dúbios, e que estes graus de
certeza podem ocorrer de forma positiva ou negativa. Certeza é um
acreditar convicto. “Dúvida”, no entanto, é um termo ambíguo tanto em
linguagem comum como na filosófica. Duvidar pode querer dizer que não
se acredita, mas também pode significar uma neutralidade dóxica.
“Ceticismo” também é ambíguo pelas mesmas razões. O modo neutro é
muitas vezes acompanhado por uma neutralidade valorativa, ou uma certa
indiferença.
25.—Uma outra questão diz respeito à imaginação, ou melhor, ao
simular. Através da auto-observação, podemos confirmar que todos os
componentes de encontros sérios têm versões quase-, como-se, ou a fingir.
Podemos fazer de conta que nos lembramos, que percecionamos, que
valoramos, que queremos, e assim por diante. Fazer de conta ou simular é
algo que se manifesta muitas vezes como brincadeira; por exemplo, não há
dúvida de que os cachorros brincam.
26.—Como já foi indicado, o termo “Outros” neste texto refere-se
tanto a indivíduos como a grupos. Pelo menos em grupos pequenos, é facil
observar reflexivamente a busca de propósitos comuns através de meios
partilhados, a perceção, a antecipação e a valoração conjunta das mesmas
coisas para os membros do grupo. Isto é evidente em desportos de equipa e
em matilhas de cães numa caçada.
27.—Devemos tornar explícito que a reflexão sobre Outros tem uma
função cognitiva ou epistémica. Embora já estejamos sempre a encontrar
27

Outros na nossa vida quotidiana, a reflexão sobre Outros surge


adicionalmente a isto e não só tem o componente de acreditar
predominante, mas também, no que diz respeito ao experienciar, este pode
ser percetivo e de recordação em modos ficcionais ou sérios. Talvez ainda
mais importante, o percecionar ou recordar dos encontros e das coisas-
enquanto-encontradas nos Outros é o que permite justificar a crença não só
em casos presentes e passados, ou seja, factos, mas também em eidé ou
essências universais. Apesar de não terem sido desenvolvidos
metodologicamente, os casos descritos acima tinham como objetivo
clarificar as espécies e géneros eidéticos de reflexão sobre Outros.
28

III.
Análise Reflexiva de Encontros Indiretos

INTRODUÇÃO

1.—Há uma diferença entre encontros diretos e indiretos das coisas.


No curso da história da fenomenologia, tal como na restante filosofia
moderna, a enfâse tem sido colocada nos encontros diretos. A razão para tal
é epistemológica. Quando existe um conflito entre o que é encontrado
diretamente ou indiretamente, o que se torna decisivo em última instância é
o que é encontrado diretamente. No entanto, pelo menos no que diz
respeito às sociedades industrializadas, há um contacto muito mais vasto
com coisas através de encontros indiretos do que diretos.
Consequentemente, para aqueles que vivem em sociedades como estas, é
benéfico compreender e avaliar os encontros indiretos.
2.—Na exposição que se segue, iremos primeiro procurar clarificar o
que é, de modo geral, um encontro, objectaremos algumas teorias
tradicionais e, depois, explorar-se-á a diferença entre encontros diretos e
indiretos. Apesar da vasta literatura existente sobre o assunto, este ensaio
não é uma obra académica, ou sequer de crítica académica – o que seria
capaz de encher um livro –, mas antes uma investigação modesta que
convida o leitor a verificar, corrigir e desenvolver o seu conteúdo. Se há
algo original nela, terá a ver com a terminologia, o género e a enfâse
secundária nos componentes téticos ou posicionais de acreditar, valorar e
querer. A abordagem será fenomenológica, que pode ser alternativamente
caracterizada como “análise reflexiva”.
3.—Aqui, “análise” significa não apenas distinguir os componentes
na coisa analisada, mas também o resultado, que pode ser descritivo tanto
em termos particulares como em termos gerais. Será descrito em termos
gerais, com referência aos particulares apenas enquanto exemplos de
universais específicos e gerais. “Reflexiva” refere-se aqui, antes de mais, a
um direcionar teórico para os processos de encontros, mas irá
imediatamente incluir as coisas-enquanto-encontradas; assim, o que é
analisado é um tema que se desdobra em dois. (Na verdade, é um tema que
se desdobra em quatro quando se reflete sobre a participação do “eu” no
estrato operacional do encontro, mas, tendo em conta os objetivos
presentes, podemos ignorar esse lado da situação refletida.) E, tendo em
29

conta os objetivos presentes, não será necessário deixar a atitude natural ou,
melhor dizendo, mundana.

ENCONTROS EM GERAL

4.—O conceito central da fenomenologia é defensivelmente aquele


que Husserl expressa com o termo “Erlebnis”. Ao longo das últimas
décadas, esta palavra foi traduzida em inglês de diversas maneiras. Alguns
colegas interpretaram-na como “experiência” [“experience”], enquanto
outros preferiram “processo mental” [“mental process”], e houve ainda
outros que usaram a expressão “experiência vivida” [“lived experience”].
“Experiência” não dá enfâse suficiente aos componentes de valorar e
querer discerníveis nas Erlebnisse, posição contra a qual iremos
desenvolver uma crítica mais adiante. “Processo mental” soa muito
psicológico, de acordo com vários críticos. Quanto a “experiência vivida”,
ficamos perante a questão sobre o que seria uma experiência não vivida,
isto é, o que é que o qualificativo, afinal, acrescenta. “Experiência vivida”
parece ser uma tradução de “expérience vécue”, a expressão usada pelos
franceses para traduzir a Erlebnis de Husserl. Mas “experiência vivida” não
parece conotar a subjetividade ou o processo envolvido que uma expressão
como “vivido através da experiência” ou “experiência vivente” poderia
transmitir melhor.
5.—Em alternativa às expressões em inglês usadas para expressar o
conceito husserliano dito Erlebnis, recomendo antes a palvra “encontro”
[“encounter”], ou melhor, “encontrar” [“encountering”]. A razão para tal é
porque este termo conota mais facilmente os componentes de valorar e
querer, assim como o de acreditar, concebidos num sentido lato, os quais
também podem ser usados para especificar o termo genérico. Deste modo,
alguns encontros são “encontros valorativos” nos quais predomina o gostar,
o não gostar ou a indiferença acerca de algo; outros são “encontros práticos
ou volitivos”, nos quais há a predominância de um querer, não querer, ou
ser volitivamente neutro em relação à existência continuada ou inatual de
algo; e ainda há outros que – para usar os termos de Husserl – são
“encontros dóxicos”, nos quais predomina o acreditar, o não acreditar ou
uma neutralidade cética acerca de algo.
6.—Para além de incluírem o que pode ser denominado, de modo
geral, por componentes téticos ou posicionais, que acabámos de enumerar,
30

os encontros também podem incluir os componentes experienciais da


perceção, recordação ou antecipação de coisas reais, e até o experienciar de
coisas ideais, tais como conceitos e essências universais. Em
fenomenologia, é comum dar relevo ao estrato do que se pode aqui chamar
de modo geral “experienciar”, algo que promove e beneficia a escolha de
traduzir Erlebnis por “experiência”; mas – uma vez mais – a expressão
“encontro” pode ajudar-nos a incluir os componentes de acreditar, valorar e
querer.
7.—Correlativas aos componentes mencionados como fazendo parte
dos encontros, as coisas-enquanto-encontradas podem ser discernidas
reflexivamente e descritas em relação a como são experienciadas, isto é,
enquanto-percecionadas, enquanto-recordadas e enquanto-antecipadas, ou
idealmente-intentadas, assim como em relação a como são posicionadas,
isto é, enquanto-acreditadas, enquanto-valoradas e enquanto-queridas. No
que diz respeito a este último caso, as coisas podem ser queridas por si
próprias, ou seja, como fins, ou em função de outras coisas, ou seja, como
meios, e podemos ainda distinguir entre os “usos” intrínsecos e extrínsecos
que uma coisa-enquanto-querida pode ter. De forma análoga, podemos
discernir os valores intrínsecos e extrínsecos que as coisas-enquanto-
valoradas podem ter, e até as características dóxicas intrínsecas e
extrínsecas que as coisas-enquanto-acreditadas têm, por exemplo, como
efeitos e causas.
8.—Estes termos irão tornar-se mais claros quando os ilustrarmos
com os exemplos que se seguem.

COMPARANDO ENCONTROS DIRETOS E INDIRETOS

9.—Como parte do processo para obter uma autorização para fazer


obras em minha casa, pedi recentemente uma cópia do mapa e da planta da
casa ao organismo responsável por esse tipo de autorizações na minha
cidade. Esta planta parece mostrar o que se veria se estivéssemos a
sobrevoar esta propriedade, sem o telhado da casa ou as árvores à volta.
Possui linhas e indica as distâncias até à cerca, à estrada, e para as paredes
da casa e as que dividem os quartos. Também tem a indicação da direção
Norte. É a preto e branco e não retrata muitas coisas como as janelas, a
mobília, as árvores e a relva. Estou convencido de que está
proporcionalmente correta quanto à área e estrutura.
31

10.—Esta planta é uma espécie de “representação pictórica” da


minha casa e do terreno que a rodeia. Ao vê-la, tenho a experiência da
minha casa de uma forma um pouco invulgar. No começo, é um caso de
experienciar indireto e, após uma análise reflexiva, verificamos que tem
dois estratos: um, a visão do papel desenhado com linhas imediatamente à
minha frente e, com base neste, um outro experienciar da disposição da
minha casa e terreno. Dito de modo mais adequado, eu encontro o desenho
e, sobre a base desse encontro, encontro a minha casa, mas indiretamente
em vez de diretamente, como é habitual.
11.—Que mais é revelado pela análise reflexiva neste caso? Para
começar, não só vejo a folha de papel com linhas, palavras e números
escritos, como também acredito que é uma coisa física aqui na secretária à
minha frente, e valorizo-a positivamente como sendo uma representação
correta e, na verdade, fascinante. Também tem uma utilidade prática para
mim e para os trabalhadores que empreguei, ao mostrar os locais onde as
autoridades governamentais autorizam a realização de obras.
12.—Mas aquilo que é representado por esta imagem também é
encontrado. A primeira coisa que fiz foi percorrer com o olhar os percursos
desde a porta de entrada, pela sala até à cozinha e sala de jantar e depois
para os quartos, e finalmente pela porta das traseiras até ao quintal. Estes
percursos são práticos. Até uma certa medida, são experienciados na
memória, mas também o são de modo fictício, que é tão antecipativo como
é percetivo ou recordado, sem dúvida porque se trata de algo
profundamente familiar. Parte da representação da planta bem conhecida da
casa é o seu conforto, querendo dizer como é valorado positivamente por
mim. É concebível que alguém que não estivesse familiarizado com estas
coisas pudesse valorar negativamente um aspeto ou outro, digamos, por
exemplo, a forma como a segunda casa de banho está tão próxima da sala
de estar.
13.—O infraestrato deste encontro é predominantemente visual, mas
também secundariamente tátil, quando percorro, ou tenho consicência de
poder percorrer com o meu dedo na imagem, o modo como alguém se
poderia mover dentro do edifício onde moro ou em seu redor. Porém,
quando não estamos a distinguir ou a analisar reflexivamente este
infraestrato, é o lugar retratado que é temático. Podemos dizer que o facto
de ser um lugar retratado passa despercebido, e não há consciência
explícita de que o encontro é indireto ou representacional. O que é diferente
32

do habitual é, como já se disse, a perspetiva como estando acima da


propriedade, e a ausência do telhado e das árvores.

CONTRA O REPRESENTACIONALISMO TRADICIONAL

14.—Há uma teoria tradicional da experiência que ainda merece ser


denunciada, mesmo agora quase um ano após as Logische Untersuchungen
de Husserl. É a teoria segundo a qual aquilo de que temos experiência
direta, até na perceção e na recordação, são “ideias”, para usar o termo de
John Locke, que estão “dentro da” nossa mente e que são diferentes das
realidades exteriores. Esta tese pode ser contradita através da análise
reflexiva, a qual não revela nenhuma diferença entre, primeiro, aquilo que
se experiencia diretamente e a coisa diretamente experienciada. É verdade
que, no que diz respeito a coisas físicas percebidas, um aspeto, como o lado
da frente, está sempre presentado enquanto outros aspetos, como o lado de
trás ou o interior, estão apresentados, mas a relação entre o presentado e o
apresentado não é equivalente à suposta relação entre a ideia e a realidade
que supostamente representa, nem que seja porque o lado apresentado pode
tornar-se presentado se nos movermos em redor ou olharmos para dentro da
coisa física, enquanto no caso da teoria representacionalista tradicional
nunca há acesso direto às realidades externas.
15.—A teoria representacionalista tradicional pode derivar de como
as aparências das coisas físicas se alteram quando a distância entre elas e os
nossos órgãos sensoriais, ou seja, os olhos, mudam. Nestes casos, as
aparências visuais tornam-se maiores ou mais pequenas à medida que nos
aproximamos ou afastamos da coisa. mas, no entanto, percebemos a coisa
física através destas mudanças e que ela não se altera no seu tamanho. (Já
agora, a fenomenologia não se restringe às aparências, é acerca das coisas –
no sentido em que qualquer coisa pode ser uma coisa – que são, ou podem
ser presentadas.)
16.—Pode ser que a teoria representacionalista tradicional seja
especialmente atrativa quando se trata de compreender a memória. Na
minha infância tive um cão, e lembro-me perfeitamente de um dia, há mais
de sessenta anos, em que ele correu pela rua abaixo, latindo de excitação,
para me cumprimentar no meu regresso de algures, provavelmente da
escola. Certas pessoas podem dizer que deve haver um pequeno retrato, até
uma espécie de pequeno filme ou vídeo, na minha mente como objeto
33

imediato no agora quando me recordo afetuosamente do Skipper nessa


ocasião no passado. Também pode ser que, assim, as ideias sejam
concebidas como palavras, para que a referência linguística aos objetos
consiga realizar o alcançar do passado que, fenomenologicamente, a
intentividade de uma operação de recordação realmente consegue. Em
qualquer caso, o problema com a teoria representacionalista tradicional é
que, quando reflito, o que encontro é a operação de recordar a acontecer no
agora da minha vida mental e, correlativamente, o seu objeto intencional, o
cão excitado, há tanto tempo, há mais de sessenta anos, e nada no
intermédio, não há nenhum retrato, animado ou não, nenhuma palavra,
nenhuma imagem de memória.
17.—Uma outra origem possível para a tese representacionalista
acerca de recordar e percecionar (e é bastante fácil alargá-la para incluir
também a antecipação) é que a descrição do experienciar indireto é
generalizada para que todo o experienciar e, assim, todos os encontros
sejam considerados indiretos ou representacionais. Tenho, de facto, uma
fotografia do Skipper na qual ele está retratado sentado com grande
dignidade numa cadeira na qual não é suposto estar. Através da análise
reflexiva, posso identificar o estrato do meu encontro que consiste em ver
um pedaço de papel pequeno, liso e multicolor e, sobre essa base, o
experienciar da recordação do meu cão sentado no sofá há muito tempo.
Neste caso, normalmente encontro o meu cão sem consciência explícita de
que o faço com base na visão da fotografia. O estrato e o aspeto
representacional da fotografia passam despercebidos. Mas se a perceção e a
recordação são assim, então, posso distinguir reflexivamente e descrever
dois estratos nelas quando dizem respeito ao encontro de um objeto através
de uma fotografia. Mas não consigo fazer o mesmo quando me lembro do
Skipper. Recordar, antecipar e percecionar não são estratificados dessa
maneira.
18.—E basta de contestação da tese representacionalista tradicional.

CONTINUANDO A ANÁLISE REFLEXIVA

19.—Os casos da planta de arquiteto da minha casa e da fotografia


do meu cão pertencem ao tipo de encontro indireto que pode ser melhor
denominado por encontro pictórico. Esta caracterização coloca a enfâse no
infraestrato experiencial, mas espero que pelo menos o meu esboço de me
34

recordar do Skipper com e sem a fotografia mostre como gostava dele e,


assim, que ele tinha um valor positivo para mim. Além do mais, posso falar
do seu papel como companheiro, que mais tarde compreendi que a minha
mãe considerava uma proteção para mim enquanto criança – ele era
realmente um cão muito protetor, lembro-me agora –, o que tinha um
aspeto prático e volitivo, pelo menos para ela, enquanto para mim ele era
útil apenas no sentido de nos divertir-nos juntos, e era, claro, uma realidade
psicofísica para ambos.
20.—Há mais dois tipos de experienciar indireto ditos puros. Um
deles ocorre através de palavras e o outros através de indicações. Espero
que o leitor atento aos presentes comentários, de natureza principalmente
descritiva, não se limite a seguir-me cegamente, mas que procure observar
reflexivamente se as coisas que vou dizendo são realmente como eu digo
que são. Por exemplo, será que o acreditar, o valorar e o querer, num
sentido lato, são mesmo componentes distinguíveis nos encontros? (Já
agora, utilizo o qualificativo “num sentido lato” porque estes componentes
são discerníveis não só em operações nas quais um “eu” está passivamente
ou ativamente envolvido, mas também em encontros automáticos ou
habituais, no que Husserl denominou sekondär e primär Passivität.)
21.—Mas será que o acreditar, o valorar e o querer, num sentido lato,
têm modalidades positivas, negativas e neutras? Será então possível
encontrar nove exemplos nítidos desde a crença positiva na cadeira do
outro lado da sala, passando pela tentativa de evitar ficar molhado usando
um guarda-chuva durante um aguaceiro, à indiferença em relação ao
resultado de uma competição desportiva? E, além do mais, será possível
distinguir a perceção, a recordação e a antecipação segundo o facto de
terem os seus objetos no agora, no passado ou no futuro dos encontros
deles, e não será que têm em comum serem diretamente intentivos a esses
objetos? Ao refletir sobre este pequeno exercício, deveríamos ser capazes
de distinguir entre ouvir sons ou ver sinais e pensar sobre os significados
que eles mostram, e as coisas que são aquilo a que as expressões
significativas se referem. Aqui temos então um outro tipo de encontro
indireto. Neste caso, o percecionar e o pensar nos quais a expressão é
constituída passam normalmente despercebidos, e o que se tematiza são as
coisas referidas, e mesmo nesse caso não são tematizadas como coisas-
referidas. Só através de uma análise reflexiva é que se reconhece o que
envolve ler ou ouvir a nível de estratificação. De facto, no ler e ouvir
35

acerca de coisas, encontramos simplesmente as coisas referidas e deixamos


passar despercebido o acreditar, o gostar e/ou o não gostar, ou até o estar
inclinado a apoiar ou a opor o seu acontecer, ou pelo menos, é esse o caso
de textos sérios, ou seja, não ficcionais. O caso da literatura de fição é um
pouco diferente e pode ser aqui ignorado. Esta segunda espécie de encontro
indireto pode ser chamado “encontro linguístico”, desde que também se
considere como linguagem o uso de linguagens artificiais, como os
símbolos matemáticos.
22.—Há um terceiro tipo de encontro indireto que pode ser chamado
“encontro indicativo”. Numa universidade onde costumava ensinar, tive um
colega que tinha um horário parecido com o meu, e com quem eu gostava
de conversar acerca de vários acontecimentos da vida universitária e do
mundo em geral. A caminho do meu escritório, normalmente saía do
elevador, virava a esquina do corredor e espreitava para ver se havia luz
por baixo da porta dele. Havendo, era uma boa indicação de que estava lá, e
eu então bateria à porta para dois dedos de conversa.
23.—Ora, a luz por baixo da porta do meu colega não é uma
expressão verbal. E também não é semelhante a aquilo que representa,
como é o caso de uma fotografia. No entanto, através da análise reflexiva,
consigo encontrar o mesmo tipo de estratificação que encontro nos
encontros linguísticos e pictóricos. Tenho a perceção da luz por baixo da
porta e, sobre essa base, tenho o encontro do meu colega no seu escritório.
Os encontros pictóricos e indicativos são diferentes dos encontros
linguísticos por não envolverem necessariamente nenhuma significação, e
são diferentes uns dos outros porque a reflexão nos revela semelhanças
entre o retrato e a coisa retratada, enquanto o meu colega, por exemplo, não
se parece nada com um feixe de luz por baixo da porta.
24.—Esta análise tem procurado focar-se em casos simples, mas há
claramente casos compostos, tanto puros como mistos. Num composto
puramente linguístico, alguém fala, compreende, ouve ou escreve acerca de
uma representação linguística e temos uma representação linguística de
uma representação linguística. É igualmente possível ter uma representação
pictórica de uma representação pictórica. Quanto a compostos mistos,
poderia haver uma fotografia de mim a espreitar, na esquina do corredor, a
luz por baixo da porta do meu amigo, que era descrita em palavras, e neste
caso o retrato de um caso de um encontro indicativo poderia ser encontrado
linguisticamente. No sentido de compreender que estas complexidades não
36

precisam de ser estáticas, basta considerar os encontros através de filmes e


vídeos, nos quais as coisas são encontradas indiretamente juntas com base
em palavras, imagens e música que indicam emoções. E, mais uma vez,
esses encontros incluem sempre os componentes discerníveis de acreditar,
valorar e querer.

*
**

25.—Permitam-me concluir referindo-me aos meus comentários


iniciais. Para a tribo dos Kalahari, por exemplo, pelo menos antes da
chegada da civilização e quando ainda eram virgens de materiais escritos,
fotografia, rádio e televisão, pode ter acontecido que os encontros indiretos
apenas ocorressem através do discurso, do rasto de animais, talvez uns
traços riscados na terra e, claro, através das vidas mentais apresentadas de
outros humanos e outros animais não humanos; mas, para as pessoas em
sociedades industrializadas, a impressionante maioria dos contactos com as
coisas no mundo acontece através de encontros indiretos, com livros e
revistas, a rádio, os filmes e a televisão, e é por isso que vale a pena tentar
uma análise reflexiva como esta, que evidentemente poderá ser corrigida e
refinada através de mais análises reflexivas. E, devo acrescentar, os
encontros indiretos são muito mais propensos a erros e ilusões do que os
encontros diretos.
37

IV.
Irrefletividade absoluta

1.—Jiten Mohanty e eu viajámos juntos de avião de Nova Deli para


Nova Iorque após a conferência sobre “Fenomenologia e Filosofia
Indiana”, em Janeiro de 1988. Durante a conferência, ele tinha entabulado
uma conversa com um amigo acerca da possibilidade de se estar ciente de
algo sem nenhuma consciência do tempo e perguntou-me o que eu achava.
Imediatamente e sem pensar, respondi que talvez fosse possível focarmo-
nos num objeto ideal e, enquanto o fizéssemos, ignorar completamente
tudo o que fosse temporal. Jiten sorriu no seu modo característico e
continuámos a conversar de outras coisas.
2.—Já passou muito tempo desde então, mas quero aproveitar a
oportunidade para prosseguir com a minha resposta, mas desta vez
elaborando uma resposta pensada ou, melhor dizendo, refletida
fenomenologicamente. Vou começar com uma clarificação do conceito de
atitude e depois descreverei como se pode estar ciente de algo sem estar
ciente do tempo. Podia usar a doutrina de consciência marginal do nosso
amigo comum, Aron Gurwitsch, se quisesse o apoio de uma referência,
mas escolhi não o fazer.
3.—O que se segue não é um exercício de filologia mas de
fenomenologia. Isto significa que a minha tese pode ser examinada por
outros, ou até por mim mesmo mais tarde, observando reflexivamente
casos da vida mental dos tipos que foram mencionados, quer reais ou
fictícios, e depois operando uma eideação [eideating]. Quando se mostrar
que as coisas ocorrem como eu as descrevi, a minha tese será confirmada e,
quando a minha tese estiver errada ou incompleta, encoraja-se o leitor a
corrigi-la ou a completá-la fenomenologicamente.
4.—Muitos fenomenólogos diriam que o que se encontra primeiro na
reflexão são os processos, ou até os atos, de perceção sensorial. Contudo,
suspeito que isto seja um resultado do naturalismo patológico da filosofia
no nosso tempo. Para aqueles cuja perspetiva ainda não foi naturalizada
através do estudo da engenharia, das ciências naturais e de alguns tipos de
filosofia, o que primeiro se encontra na reflexão são atitudes, e estas são
caracterizadas, antes de mais, pelos seus componentes posicionais.
Pergunte-se a um universitário americano qual a sua atitude em relação ao
futebol americano profissional e, tipicamente, ele responderá que gosta.
38

Isto não é um sentimento passageiro mas uma atitude duradoura, e não é


tanto percetiva como é valorativa.
5.—Se continuarmos a questionar e a refletir, será prontamente
revelado que um estudante como este encontrou este jogo principalmente
de modo representacional vendo televisão, e também que é uma observação
social de jogadores e, assim, mesmo tendo apenas em conta estes dois
aspetos, já não é meramente um ato de perceção sensorial. Mas, uma vez
mais, o primeiro comentário que este jovem fará será provavelmente a
respeito do componente positivo do seu gostar. Correlativamente, diria
provavelmente que “o futebol americano profissional é bom”.
6.—As atitudes afetivas podem ser organizadas de várias maneiras.
Podem, por exemplo, ser organizadas de acordo com a temporalidade do
objeto. Até agora, no exemplo do futebol, a temporalidade manteve-se
vaga, quer dizer, não está determinada quanto a se os jogos são no agora,
no passado, no futuro, ou se se refere a todos estes tempos. No entanto,
refletindo, torna-se claro que os jogos de futebol, quando ocorrem, ocorrem
no tempo. Lembramo-nos afetuosamente deste ou daquele jogo passado ou,
de modo menos determinado, de como o futebol simplesmente se jogava
tão maravilhosamente melhor nalgum tempo passado.
7.—Nostalgia, remorsos, culpa, vergonha e orgulho são atitudes
afetivas retrospetivas fáceis de ilustrar. As atitudes para o futuro incluem
esperança, receio e ansiedade. E, para além das atitudes retrospetivas e
prospetivas, há as atitudes face a objetos agora. Pergunte ao mesmo
estudante enquanto vê um jogo e ele provavelmente responderá que gosta
do que vê.
8.—Há outras atitudes posicionais face a objetos no tempo. As dos
tipos práticos e volitivos podem ser negativas, sendo dirigidas na forma de
esforços para destruir, prevenir, diminuir, etc., ou positivas na forma de
esforços para criar, preservar, promover, etc. Contudo, é interessante que
não há atitudes práticas diretamente intentivas a objetos passados ou
futuros, apesar de se poder ser indiretamente intentivo de modo positivo ao
desejar a sua preservação ou renovação.
9.—Aqueles que foram expostos a grandes doses de ciência
naturalista e filosofia recente podem tender para uma orientação não apenas
naturalista, mas também intelectualista. Isto significa uma tendência para
desvalorizar os componentes de atitudes afetivas e práticas, a favor do
pensar, do acreditar e do evidenciar. Tendo dado a devida atenção às
39

atitudes afetivas e práticas acima referidas, no entanto, podemos então


voltar-nos para atitudes mais intelectuais.
10.—Ao nível do senso comum e do pensar nas áreas académicas
culturais, assim como nas formais e naturalistas, e até em grande parte da
filosofia, existem preocupações acerca do que se pode denominar uma
coisa, o que se pode dizer acerca dela, se se deve ou não acreditar nela, e
como justificar essa mesma crença através de evidências. Quando esta
atitude cognitiva predomina, encontramos ainda assim o sentimento e a
vontade no seu fundo.
11.—De modo mais geral, há dois tipos de objetos. Há os objetos
reais, ou melhor, temporais. De acordo com os fenomenólogos
transcendentais, eles incluem a vida consciente no seu estatuto não
mundano, assim como as casas, automóveis, pastilha elástica, etc. E
também há os objetos ideais. Os adultos humanos normais também
costumam ter uma familiaridade latente com vários tipos de objetos ideais.
12.—Cursos introdutórios de lógica resultam muitas vezes numa
familiaridade patente com objetos ideais. Nesses cursos, os alunos tornam-
se aptos a reconhecer as formas lógicas de proposições particulares e as
teorias construídas sobre a sua base. Os alunos também podem tornar-se
aptos, quer seja ou não aceite na doutrina de teoria lógica que aquele
professor particular subscreva, a reconhecer as formas universais ou
eidéticas que as palavras ou situações exemplificam.
13.—Considerando um pouco de aritmética, os nomes dos números
“um, dois, três” expressam conceitos que são, na verdade, conceitos
formais. Quando o que é enumerado não é expresso verbalmente, pode
então ser expresso por símbolos, e estes podem ser combinados de forma a
que 1 + 2 = 3, 3 – 2 = 1, etc. Adicionalmente, pode ter-se a noção clara e
distinta dos universais formais de um ou unidade, de dois ou dualidade, de
três ou triplicidade, que são instanciados através dos conceitos formais
expressos por “um, dois, três”, ou normalmente atribuídos às coisas no
processo de as contar.
14.—É necessário fazer mais uma distinção acerca das atitudes.
Quando se faz a mencionada pergunta ao estudante, pode ser que ele reflita.
Não é improvável que responda apenas segundo o hábito, ou mesmo por
causa daquilo que outros tenham dito, ou das expectativas quanto ao que
deve dizer. Mas também pode voltar-se para a sua própria atitude e
observá-la e analisá-la, mesmo que breve e superficialmente, e daí resultar,
40

com a justificação de um mínimo de evidência, a afirmação “Eu gosto”, ou


a afirmação correlativa equivalente: “É bom.”
15.—Os intelectuais, especialmente os das humanidades e de
algumas escolas das ciências sociais, refletem com bastante frequência e
podem não apreciar o facto de um cientista naturalista não o fazer. Por
exemplo, um astrónomo não se preocupa regularmente sobre como as
estrelas aparecem e são posicionadas por ele, ou se são percecionadas com
ou sem instrumentos com os quais ele tem noção delas. Além disso, há as
características de crença constituídas nos componentes dóxicos da sua vida
consciente, o estado das coisas estelares constituídos no seu pensamento e
o facto de alguns objectos poderem ser tacitamente bons ou maus ou, pelo
menos, bonitos, vulgares ou feios.
16.—Para além deste tipo de irrefletividade em alguns tipos de
ciências, também há a irrefletividade na vida do dia a dia. Quando vamos a
conduzir, podemos obviamente refletir em como a estrada se revela a si
própria correlativamente ao nosso encontro dela, especialmente se se
estiver aborrecido de conduzir (e influenciado pela fenomenologia!), mas
isso é um caso invulgar. O comum é ignorar ou deixar passar despercebido
não só o encontro e os seus componentes, mas também a coisa-enquanto-
encontrada. Nesse caso, subsiste apenas a estrada e os outros carros no
nosso foco de atenção. O que se revela quando refletimos é uma atitude
absolutamente irreflexiva.
17.—Será possível ter a noção de algo sem qualquer noção do
tempo, sem consciência dos objetos enquanto localizados no tempo, como
presentes, passados ou futuros, ou enquanto ocorrendo no tempo, quer
alterando-se quer permanecendo inalterados? Para este que escreve, isso é
difícil de fazer. Estou demasiado habituado a reflectir. Mas reconheço que
esta tendência para refletir é invulgarmente forte e regular. E, apesar de
tudo, acredito que poderia treinar-me, ou ser treinado, a ser totalmente
irreflexivo de propósito e, para mais, fazê-lo com uma atitude especial que
fosse direcionada exclusivamente para objetos ideais, tais como 1 + 2 = 3,
que não são temporais. Esta possibilidade é evidente.
41

V.
Uma Análise Reflexiva sobre o Recordar

«Na recordação, a minha atenção volta a uma experiência passada que


deixei e na qual agora volto a pegar. Recordo não só a coisa que
experienciei no passado, mas todo o contexto – o pano de fundo passado
presentado e a-presentado, e eu-próprio como ente percetivo passado»3.

INTRODUÇÃO

1.—Numa altura em que procurava outra coisa na Nachlass de


Dorion Cairns, reparei que havia várias referência à recordação. Enquanto
“memória” aparece menos vezes, e “lembrar” ou versões do mesmo (em
particular “Eu lembro-me”) bastante mais, “recordação” ou uma sua
variante ocorre com frequência. O estudo da obra revela que “recordar” é o
tema dos comentários mais significativos de Cairns, como, por exemplo,
“recordar é recordar algo” (037936), e irá, por isso, dar o título ao tema
desta análise.
2.—Apesar de tudo, os comentários dispersos de Cairns sobre o
recordar são habitualmente feitos de passagem e quase sempre breves. A
epígrafe acima é capaz de ser a afirmação mais completa. Na exposição que
se segue, irei referenciar algumas páginas da Nachlass, mas farei apenas
mais uma citação, mencionando duas publicações de Cairns. Devo
sublinhar que o que estou aqui a expressar é o que aceitei dele
fenomenologicamente. Esta é a forma como o meu professor se relacionou
com o seu professor, Edmund Husserl, isto é, não pela interpretação de
textos mas antes expressando aquilo que, com a ajuda da obra escrita do
seu professor, ele próprio foi capaz de observar, corrigir e desenvolver
reflexivamente.
3.—Será útil usar um exemplo ao longo da exposição, que irá, antes
de mais, ajudar a clarificar a estrutura concetual geral. Aqui, recordo-me de
algo que aconteceu quando tinha mais ou menos nove anos. Aconteceu
cerca de um mês depois de me terem dado um bonito cão que vinha do
canil, que já tinha cerca de dois anos e o nome Skipper. O Skipper aceitou
                                                                                                                         
3
 Nachlass, de Dorion Cairns, p. 037275. A partir daqui, as referências aparecerão como números de seis
dígitos, entre parênteses, no corpo do texto.
42

prontamente que éramos a sua nova família; podíamos deixá-lo correr solto
pelo bairro e esperá-lo perto da hora do jantar, mas, a maior parte das
vezes, ele deixava-se ficar em frente à porta de casa e, como a minha mãe
dizia, “a ver o mundo a passar”.
4.—A minha recordação particularmente vívida é de uma vez que o
Skipper me viu a subir a rua a caminho de casa vindo da escola, e que
correu para mim, a ladrar, a ganir e a abanar a cauda com tanta força que
quase caía, e depois praticamente me atirou ao chão tentando lamber-me a
cara. Claro que eu tinha uma família que me amava sem reservas, mas esta
foi sempre a maior expressão de amor incondicional de que me recordo. Eu
e o Skipper fomos companheiros durante uma década até que, numa altura
em que me encontrava fora de casa, na marinha, ele foi atropelado.
Recordo-me muitas vezes de como fui recebido naquela tarde ao sair da
escola há cerca de 65 anos.
5.—Nos seus comentários dispersos acerca do recordar, o meu
professor Cairns pegaria num exemplo como este e limitá-lo-ia à
recordação da perceção sensorial de uma coisa física (011120, cf. 011066).
Isso simplificaria o assunto, sem dúvida, mas prefiro tornar claro desde o
início que o que encontramos quando refletimos sobre as nossas vidas
mentais é mais adequadamente denominado por encontro de coisas
culturais (e, no meu exemplo, uma coisa cultural animada, um cão
adorado). Apesar de às vezes falar de “processos intentivos”, que acabou
por ser a expressão escolhida por Cairns para traduzir a Erlebnisse de
Husserl, e que eu também aceito, não nos esqueçamos que os “encontros”,
termo que prefiro, incluem não só as experiências (e a perceção sensorial é
um tipo específico), mas também componentes téticos ou posicionais aos
quais, em termos latos, podemos chamar acreditar, valorar e querer, e que
podem também ser ditos dóxicos, páticos e práxicos. Muito seria omitido se
permanecêssemos com Cairns e nos limitássemos à perceção sensorial e às
coisas físicas.
6.—Nas análises de Cairns, as coisas físicas, animadas ou não, são
abstraídas do que encontramos como objetos culturais concretos. Estes são
objetos que, enquanto culturais, incluem necessariamente usos como fins
e/ou meios, valores intrínsecos e/ou extrínsecos, e características de crença,
todas correlativas ao tipo de posicionar pertinente nos encontros delas.
Deste modo, o que é concretamente recordado são os encontros que,
tecnicamente falando, são intentivos às coisas e – no sentido lato em que
43

tudo pode ser uma coisa – às coisas-enquanto-encontradas. E, se


refletirmos sobre a recordação de algo enquanto recordado, reconhecemos
que também este é um encontro e que a coisa recordada é uma coisa-
enquanto-encontrada-na-recordação. No que se segue, os encontros serão
tipicamente distinguidos pelo tipo de experiência que os funda, isto é,
pensado em termos latos, como perceção, recordação ou antecipação, que
incluem a perceção de coisas animadas ou a dita “empatia”, assim como a
observação reflexiva; mas a totalidade dos encontros que estes tipos de
experiência especificam está sempre implícita nestas expressões
simplificadas. O meu professor tinha perfeita noção de tudo aquilo que eu
aqui tento agrupar com a expressão “encontros” (por exemplo, 013065),
mas não sugere ele próprio uma palavra, a não ser que tomemos “intentar”
como tal, mas nunca achei que ele clarificasse essa palavra nesse sentido.
7.—Voltando à receção que o Skipper me fez há já tanto tempo, é
certo que ele me percecionou visualmente enquanto corria na minha
direção, mas também foi movido por uma valoração positiva para se
comportar daquela maneira. Também recordo o meu prazer à medida que
ele se aproximava e como ele era correlativamente prazeroso para mim.
Adicionalmente, quando me recordo do que aconteceu naquela tarde numa
rua de São Francisco há tanto tempo, é certo que acredito no que aconteceu,
mas o que predomina no meu recordar é o meu prazer, isto é, uma intensa
valoração positiva. Em resumo, há um encontro recordado do antigo
encontro com o Skipper, e daqui para a frente, quando falar de recordação,
ela e aquilo que é recordado nela devem ser compreendidos implicitamente
como uma questão de encontros e coisas-enquanto-encontradas. Não
acredito que o meu professor discordasse disto, mas também não conheço
que o tenha feito de forma clara, tal como acho que deva ser à partida.
(Aquilo de que nos recordamos (recollected) não pode ser chamado uma
“recordado” (recollect), tal como o que é percebido é chamado um
“perceto”, mas se for necessário podemos falar deselegantemente de
“recollecta” e “recollectum”).
8.—No final, o significado desta explicação irá revelar-se
epistemológico, mas, na sua maioria, é uma série de distinções verificáveis
que formam uma análise. Porém, para preparar o terreno, é preciso
primeiro confrontar aquela a que chamo uma teoria zombie. Trata-se da
teoria das chamadas imagens de memória, as quais são um tipo do
representacionalismo que há séculos contamina a filosofia moderna e a
44

psicologia. Segundo esta teoria, há uma imagem ou representação que


ocorre ao mesmo tempo que o ato de recordar e que simboliza o evento
passado. É evidente que existe o que se pode chamar uma experiência
representacional, como por exemplo a experiência que tenho do meu cão
quando olho para uma fotografia dele, e também podem existir recordações
de casos de experiências representacionais, mas acreditar que toda a
experiência é representacional é um erro grave.
9.—Não consigo explicar qual é a atração desta teoria falsa tão
comummente adotada, mas suspeito que a motivação tenha origem em
aceitar que uma expressão verbal, uma imagem ou outro tipo de
representação são capazes de se referir a coisas distantes no espaço e no
tempo, mas os processos mentais nos quais os fenomenólogos se focam não
podem ser intentivos a essas coisas, convicção esta que é um erro. Talvez
seja porque se baseia muito no “pensamento coisal”, enquanto os processos
mentais se confundem com os processos somáticos que os acompanham
intimamente na perceção sensorial e a referência seja de alguma forma
reduzida a uma conexão causal, apesar de que, curiosamente, a recordação
não é corporal da mesma maneira que a perceção sensorial. E talvez a
imagem da memória surja de uma alegada compatibilidade entre as coisas
enquanto percebidas e as coisas enquanto compreendidas matematicamente
na física, estas últimas recebendo prioridade4.
10.—O problema com esta teoria, que já foi morta e ressuscitada
tantas vezes, é antes de mais aquele que diz respeito a como se poderia
saber se a imagem da memória corresponde fielmente ao evento passado ou
não, quando não se tem um acesso independente a esse mesmo evento. Por
outro lado, quando me recordo daquele encontro afetuoso com o Skipper há
65 anos e 5000 quilómetros de distância de onde estou agora a escrever,
não se passa nada como um pequeno filme “na minha cabeça”, como
algumas pessoas dizem, em simultâneo com o ato de recordar.
Fenomenologicamente, não consigo encontrar no agora nenhumas imagens
de memória, nem na minha cabeça nem em qualquer outro lugar.

ANALISANDO REFLEXIVAMENTE

                                                                                                                         
4
  Provavelmente, também está em jogo a preocupação de muitos colegas com a linguagem. Claro que
podemos recordar operações de expressão e compreensão, assim como muitos tipos de operações
sintáticas que estão nelas envolvidas, mas explorar este tema desenvolveria demasiado a presente análise.
Deixemos, assim, essa tarefa para outro dia e/ou outros investigadores.
45

11.—As explicações fenomenológicas não são explicações lógicas


com premissas e conclusões, tal como o método fenomenológico não é
argumentativo mas antes descritivo. Isto quer dizer que é clarificada uma
série de distinções a respeito de algo de que inicialmente tínhamos uma
compreensão de senso comum que expandimos e, se necessário,
corrigimos, para que no final tivéssemos uma compreensão mais
aprofundada dessa coisa ou coisas em questão.
12.—Em primeiro lugar, recordar pode ser simples ou reflexivo. Se é
simples, observa-se o que foi previamente encontrado, ou seja, o Skipper a
correr pela rua abaixo na minha direção, e ignora-se o encontro e como este
é enquanto-encontrado. Contudo, no recordar reflexivo, inclui-se no tema
não só o encontro anterior, mas também aquilo que é encontrado enquanto-
encontrado, e neste caso há muito para analisar e descrever; por exemplo, o
modo como a aparência visual do cão aumentou de tamanho e os eventos
sonoros dos seus sons alegres se tornaram mais audíveis à medida que ele
se aproximava do meu “si” corpóreo, assim como a simples existência e
valor intenso que ele tinha para mim enquanto o encontrava. Os
husserlianos falam de uma análise noético-noemática a propósito desta
conexão, e é particularmente a este respeito que a presente análise foi
inicialmente ilustrada na clarificação dos conceitos de encontro e coisas-
enquanto-encontradas, e que ainda pode ser alargada com mais detalhe. A
propósito, enquanto pode ser factualmente impossível recordar algo que foi
encontrado num tempo anterior, é idealmente possível fazê-lo. Mantendo-
se sempre presente a possibilidade da reflexão, é conveniente enfatizar o
recordar simples.
13.—Em segundo lugar, recordar, tal como qualquer encontro de
realidades, pode ser sério ou ficcional (de acordo com Cairns, é preferível
usar o termo “intentar ficcional” em vez de “imaginação”, porque naquele
não se faz nenhuma alusão a imagens)5. Eu recordo seriamente o meu
encontro com o Skipper, mas também posso facilmente simular um
vizinho, de quem na verdade não me recordo, a ver o que se passa do outro
lado da rua e, assim, a partir de uma posição diferente da minha, com outra
perspetiva, e através de outras aparências; ou, então, alguém que me vê a
partir de dentro de um carro e que tem uma aparência que se vai alterando.
Também posso modificar ou exagerar ficcionalmente aquilo que é
                                                                                                                         
5
 No que diz respeito a objetos ideais, sendo estes atemporais, e uma vez que não podem ser recordados
de modo simples, os processos que lhes são intentivos, incluindo o evidenciar, estão no tempo e podem
ser recordados repetidamente.
46

seriamente recordado: por exemplo, fazer de conta que o Skipper usava um


sininho ao pescoço que tinia à medida que ele se aproximava.
14.—Em terceiro lugar, se podemos dizer, metaforicamente, que as
coisas no passado se vão desvanecendo à medida que se tornam “mais
passadas”, podemos também dizer que as coisas antecipadas do futuro se
tornam “mais iminentes” antes de acontecerem. Há uma diferença no que
Husserl chama “o modo de doação” entre as coisas no passado e no futuro,
e esta diferença é reflexivamente discernível. É possível continuar a
observar por alguns momentos qualquer coisa logo após ter deixado de
acontecer, isto é, algo que foi “impressional” e começou a ser do passado,
mas recordar é o que acontece depois de descartar a coisa previamente
encontrada e o seu encontro, e então se pega neles outra vez, como eu fiz
tantas vezes com a receção que tive por parte do Skipper. Assim, nos
termos de Husserl, a recordação não é memória primária mas secundária.
Como regra geral, o que é recordado primeiro é mais nítido e mais extenso
do que será mais tarde (016486).
15.—Em quarto lugar, Husserl distinguiu entre passividade primária
e secundária e atos mentais, isto é, que tenham ou não o ego ou o “eu”
incluído neles. Cairns preferiu chamar “automaticidade” à passividade, e
eu vou ainda mais longe e falo de “operações” em vez de atos, o que torna
a distinção posterior entre operações ativas e recetivas mais fácil de fazer.
Na recordação, há sempre muita coisa que já lá está automaticamente, e as
semelhanças e contrastes com o que é automaticamente retido podem afetar
as operações de recordação (037277), assim como o pode fazer a
importância original do evento (037280). Tome-se, por exemplo, o
encontro com o Skipper, e podemos aprender muito com a observação
experiencial a este respeito. A minha tentativa de me recordar quando e
como teria adquirido os vários automóveis que já tive desde os meus 15
anos, e o que lhes aconteceu, foi uma operação ativa de recordação. Há,
portanto, uma diferença entre o recordar, que é uma procura ou uma
exploração do passado, e as memórias que nos surgem na mente e que às
vezes estimulam operações.
16.—Em quinto lugar, o que se recorda é recordado num
enquadramento cultural, com dimensões espaciais, temporais e causais, tal
como o enquadramento do que é antecipado e percebido, que é mundano e,
assim, mais do que a natureza. Experienciamos coisas não só como coisas
que se presentam, mas também como a-presentando muito mais, incluindo
47

tempo, lugares e causas que estão para lá do que foi previamente


encontrado e que assim não pode ser recordado, assim como o tato e os
sons de coisas que foram apenas ouvidas. Não tendo em conta outras
variantes, há uma semelhança entre as coisas mais anteriores no passado na
recordação e aquelas mais distantes na perceção. Adicionalmente, há uma
semelhança entre localizar coisas em relação a outras coisas e datar coisas
em relação ao que é recordado como simultâneo, anterior e posterior,
imediata e mediatamente, e transcendente assim como imanente na vida
mental.
17.—Em sexto lugar, Cairns defende que a sequência de eventos só
pode ser recordada na ordem concreta em que ocorreu originalmente, e não,
por exemplo, em ordem inversa, apesar de ser possível recordar partes fora
da sua ordem original (037279), como por exemplo recordar primeiro o
Skipper a saltar para mim e só depois recordar ele a reconhecer-me e
começando a correr. Eu acrescentaria que vale muitas vezes a pena
comparar o que é recordado com o que é antecipado, e que uma série de
eventos antecipada (por exemplo, subir uma escada) pode ser
concretamente antecipada em qualquer uma das ordens, especialmente se
for uma simulação (embora seja possível antecipar cegamente, mas ainda
de modo sério, ou não ficcional). O passado, contudo, pode ser simulado
em ambas as direções. A antecipação espelha frequentemente a recordação
– ou seja, há antecipação primária e secundária –, mas nem sempre, isto é,
o que é antecipado pode ser projetado tanto para a frente como para trás.
Além do mais, podemos recordar antecipando, antecipar recordando,
antecipar antecipando, recordar recordando, simular recordar uma perceção
não ficcional, etc., etc. De facto, com cada operação de recordar há sempre
um horizonte composto daquilo que foi previamente atualizado, e no
atualizável futuro há recordares e outros encontros do mesmo
“recollectum”.
18.—Em sétimo lugar, enquanto não podemos empenhar-nos nos
processos principalmente automáticos e podemos envolver-nos nos
processos habituais ou tradicionais secundariamente automáticos, mas não
temos de o fazer, as operações como a recordação são ativas e/ou recetivas,
e têm, de facto, o “eu” empenhado nelas de modo ativo ou recetivo. O “eu”
é transcendente à vida mental, mas do lado de dentro em vez do lado de
fora. Podemos dizer de alguém que pode ser recordado de modo sério,
48

assim como de modo ficcional. Cairns escreveu (traduzindo Erlebnis por


“awareness”):
«A identidade do ego não é meramente uma identidade em retenção,
um caso de evidência habitual. Na medida em que uma “awareness”
passada é recordada, ela é dada numa “awareness” presente que é
evidentemente uma “awareness” na qual um ego, agora dado como
“passado”, viveu atualmente ou potencialmente na altura em que a
“awareness” recordada estava a ser impressionada. A recordação
presente é intrinsecamente uma “awareness” que pertence a um ego,
ao ego “presente” ou dado impressionalmente. Na “awareness”
presente, o ego dado impressionalmente e o ego dado em recordação,
o ego retido, são um par que forma uma síntese evidente de
identificação. O “eu” que agora se lembra é o mesmo “eu” que na
altura percecionava. Este ego idêntico, persistente e fundado pode ser
apreendido reflexivamente em evidência»6.
Toda a área de recordação é estruturada, em termos husserlianos, como
ego-cogito-cogitatum.
RELEVÂNCIA EPISTEMOLÓGICA

19.—A definição de Dorion Cairns, com a qual concordo, contém


epistemologia acerca de crenças criticamente justificadas em coisas (teorias
de valor e ética são disciplinas paralelas que se dedicam, respetivamente,
ao valorar e ao querer (023095). A questão da justificação pressupõe uma
compreensão do tipo de crença envolvida, neste caso, a recordação, e talvez
a análise precedente seja suficiente para começar. Os breves comentários
dispersos de Cairns também são muitas vezes úteis ao compararem e
contrastarem – em termos completos – encontros da recordação com
encontros percetivos. Deste modo, ambos incluem a experiência direta das
coisas intentadas neles, mas na perceção é original, enquanto na recordação
é derivada (031518). Adicionalmente, ambos são “protodóxicos”, ou seja,
tal como percecionar é acreditar, recordar também é acreditar. Por outras
palavras, a “awareness” do que aparece imediatamente funda e motiva
crenças simples e positivas, que se mantêm a não ser que sejam
modalizadas em dúvida ou descrença.

                                                                                                                         
6
 (018091). Sobre síntese de identificação, ver Dorion Cairns, ed. Lester Embree, Fred Kersten and
Richard M. Zaner: “The Theory of Intentionality in Husserl”, Journal of the British Society for
Phenomenology: Critical Concepts in Philosophy, 5 vols., London: Routledge, 2004, I, pp. 184-192.
49

20.—Para ir mais além de uma justificação prima facie, isto é, para


mostrar a justificação ou injustificabilidade de algo recordado, podemos
apelar a mais e melhores recordações e/ou, em alguns casos, à perceção
(011151). Há sempre um esforço contínuo de tornar o obscuro mais claro.
Uma recordação repetida, mesmo anos mais tarde, é confirmatória. Isto
revela-se semelhante a como o que é antecipado é confirmado ou cancelado
quando a coisa antecipada se torna uma impressão ou é nitidamente
recordada. Quando uma crença no passado é cancelada, acredita-se que
algo foi diferente. Em caso de conflito, o que é originariamente presente na
perceção pesa mais do que o que é recordado, mas o recordado parece
pesar mais do que o que é a-presentado (010946).
21.—É possível ter ilusões ao recordar tal como ao percecionar
(011336), mas as coisas são inicialmente aceites como verídicas e só depois
reconhecidas como ilusórias na base de mais recordações e talvez até de
encontros percetivos. Nesta última condição, o Skipper podia ter sido
inicialmente encontrado a vir ao meu encontro, mas no final ter-me
ultrapassado para ir ao encontro do seu antigo dono, que estaria atrás de
mim. Quanto a uma ilusão na recordação, não sou capaz de descobrir uma
que envolva a receção que tive por parte do Skipper, mas se alguém se
recordasse de ter posto uma nota de 100 dólares na bolsa do cinto que
usava sempre, e depois não a encontrasse lá quando mais ninguém teria
tido acesso ao cinto, a recordação teria de ser denunciada como uma ilusão.
No caso de ilusões ausentes e outros problemas, as recordações são
justificadas criticamente por mais e mais recordações confirmatórias, e em
alguns casos até intersubjetivamente e depois objetivamente justificadas.
22.—As recordações não ficcionais justificam crenças em
particularidades previamente atuais, como por exemplo o comportamento
do Skipper naquela ocasião inesquecível, e a recordação ficcional (por
exemplo, a da testemunha simulada na pessoa do vizinho do lado oposto da
rua) justifica a crença numa possibilidade, sendo que a atualidade
recordada também justifica a possibilidade da coisa passada atual. Assim,
recordações nítidas e distintas, quer ficcionais quer sérias, são evidências
da atualidade e/ou possibilidade das coisas intentadas nelas e, nesta base,
podemos ter verdades proposicionais acerca delas.
50

VI.
Simulando

«Por todo o universo de processos mentais possíveis, há um


tipo de processos ficcionais (processos-fantasia, processos
como-se) que correspondem a cada tipo particular de
processos não ficcionais. Assim: as perceções ficcionais
correspondem a perceções; as recordações ficcionais a
recordações; os processos de figuração-ficcional a processos
de figuração. De igual modo: os gostares ficcionais
correspondem ao gostar; e os quereres ficcionais ao querer.»
(Dorion Cairns, 15 de dezembro, 1959)

1.—Este não é um trabalho académico sobre outros textos, mas


baseia-se antes numa investigação sobre algumas coisas em si mesmas.
Provavelmente, o discernimento sobre a qual se baseia pode ser encontrado
em Husserl, mas, como ficou expresso na epígrafe acima, eu colhi-a das
palestras de Dorion Cairns na New School. A partir da análise reflexiva, o
leitor é convidado a ver por si mesmo se as coisas em questão são como as
proponho aqui. Isto não é filologia mas fenomenologia.
2.—Voltarei para defender a tese contida na epígrafe, mas, antes de
mais, quero clarificar alguns termos. Muitos diriam que esta investigação é
sobre “imaginação”, mas eu oponho-me ao uso técnico desse termo,
porque, apesar de parecer conter uma metáfora morta, e a coisa mais
importante acerca de metáforas mortas é estarem mortas, não estou nada
certo de que esta esteja morta. A razão para tal é por suspeitar que muitas
pessoas acreditam que o objeto imediato deste tipo de processo mental ou
intentivo é sempre uma imagem, e claro que as imagens representam ou
figuram outras coisas. Certamente, podemos simular uma imagem: por
exemplo, a fotografia de uma pessoa famosa; neste caso, a imagem
simulada é uma representação, e há algo que é representado por ela, isto é,
a pessoa famosa. Mas será que não podemos simplesmente simular a
pessoa diretamente, ou seja, sem envolver a intervenção de uma
representação?
3.—Alguns pensadores também usam a palavra “figurar” em vez de
“imaginar”, mas isto é, quando muito, ainda mais obviamente
representacional. O motivo principal para estes termos enganadores é o
51

representacionalismo que por vezes é chamado “o caminho das ideias” na


epistemologia moderna que data de Locke e Descartes. Segundo este
representacionalismo, há sempre “ideias” entre os processos intentivos ou
mentais e os seus objetos. Esta doutrina foi refutada por Hume em 1739,
mas foram poucos os que o reconheceram, e depois, no começo do século
XX, a teoria foi mais uma vez refutada por Husserl. Ela defende uma
posição impossível simplesmente porque, se não temos acesso direto à
própria coisa representada, acesso este que é impedido pela teoria de que
todos os processos intentivos são representacionais, não há nenhuma
perspetiva que permita avaliar se e como é que uma representação
representa uma coisa representada. Contudo, repito mais uma vez, alguns
tipos de processos intentivos, como por exemplo aqueles envolvendo
fotografias, são representacionais; mas nesses casos, pelo menos em
princípio, existe a possibilidade de um acesso direto ou presencial à coisa
representada com a qual a representação pode ser comparada.
4.—Se os termos “imaginação” e “figuração” enganam, há outros
termos que felizmente são mais aceitáveis. Podemos usar “simulação”,
“simular” em todas as suas formas, e “fição(ccionar)”, mas,
adicionalmente, o verbo “fingir”, o nome “fingido”7 e o qualificativo
“quase-“ parecem escolhas seguras, e o facto de disporem de múltiplas
expressões equivalentes permite alguma variação estilística numa
exposição. Deste modo, posso simular visualmente um gato sentado na
minha secretária, ou seja, fingir que ele está lá, e continuar a focar-me na
cor ficcional deste gato a fingir, do qual podemos dizer que não é uma
realidade mas antes uma quase-realidade. E, enquanto o simulo, posso
alterar-lhe a cor, simular que anda daqui para ali, etc., tal “como se” ele
estivesse mesmo, ou a sério, aqui.
5.—Quanto ao oposto do ficcional, pode ser chamado “real”, para
contrastar com o “quase-real” no que diz respeito ao objeto ficcional, à
“fição” ou “fictum”. E talvez a expressão “factual” também pudesse servir,
mas essa deve ser reservada, em fenomenologia, para contrastar com
“eidética”. Muitas vezes, é suficiente acrescentar o qualificativo “não-”, tal

                                                                                                                         
7
  Às vezes, tanto “simular” como “fingir” incluem uma intenção de iludir, por exemplo, se fingimos
gostar de um patrão que desprezamos, mas aqui excluimos a significação que inclui essa intenção.
“Simular” nesta significação não-ilusória aparece na forma de adjectivo no artigo de Dorion Cairns,
“Perceiving, Remembering, Image-Awareness, Feigning Awareness”, em F. Kersten e R. Zaner, eds.,
Phenomenology: Continuation and Criticism: Essays in Memory of Dorion Cairns (The Hague: Martinus
Nijhoff, 1973)
52

como se viu na epígrafe acima, mas “sério” parece funcionar bem na maior
parte dos contextos.
6.—Na psicologia académica tradicional, e em linguagem comum,
considera-se a imaginação como uma capacidade ou faculdade mental entre
outras e, de facto, uma que está em igualdade de condições com os
sentidos, a memória, o juízo, as emoções, a vontade, etc. No entanto, a tese
aqui presente, assim como na passagem citada no início do capítulo a partir
de uma palestra do meu professor Cairns, é a de que isto não é correto e
que há antes uma versão ficcional para cada tipo de intentar sério. Assim,
por exemplo, posso fingir que Marilyn Monroe foi o meu par no baile de
finalistas do liceu, o que quer dizer que recordo ficcionalmente algo que
não posso realmente, ou melhor, seriamente recordar.
7.—Para apoiar esta tese, descreverei uma série de exemplos de tipos
de simulação e objetos-enquanto-simulados, e convidarei o leitor ou
ouvinte desta exposição a verificar as minhas descrições.
Metodologicamente, pretendo análises reflexivas e, além disso, que o meu
leitor ou ouvinte se enquadre no que se chama em termos técnicos “epoché
fenomenológica-psicológica, redução e purificação”. Em termos simples,
podemos acreditar, por exemplo, em fotões, ondas de som, processos
neurológicos, etc., e nas formas como estes afetam pelo menos a perceção
sensorial, mas para nos focarmos de modo eficaz nos vários tipos de
simular ou fingir, e nos seus correlatos ficcionais ou quase-reais, é melhor
abstrair-nos provisoriamente de tais fatores.
8.—OS SENTIDOS. Aceitemos para os objetivos presentes que há
cinco sentidos; e, porque os seres humanos são “animais visuais”, vamos
começar com a VISÃO, mas focando-nos no processo intentivo, ou seja, no
ver, em vez de na faculdade. Muitas pessoas parecem pensar que todo o
fingir é uma questão de simulação visual, o que é um grande erro. Será
possível para alguém simular visualmente um gato sentado em cima de um
livro do lado oposto da secretária em que está sentado? Muitos chamariam
ao que é simulado neste caso uma “imagem visual”, mas nós já não
cometemos esse erro porque sabemos que o que é simulado não representa
outra coisa; por isso, vou antes chamar-lhe uma coisa ficcional, a fingir ou
quase-real, e – uma vez mais – reconheço que ela não figura outra coisa. É
porventura interessante que, se o gato for simulado como estando quieto, e
fingirmos inclinarmo-nos para a frente e depois para trás, o gato não se
altera no seu tamanho, mas a sua aparência, simulada, torna-se maior e
53

depois mais pequena. Será então possível simular não apenas objetos mas
também as suas aparências visuais?
9.—AUDIÇÃO. De seguida, imagine que simula um gato ficcional a
ronronar. Agora, podemos focar-nos na “simulação auditiva”, talvez de
olhos fechados e, mais uma vez, fingir que nos inclinamos para a frente e
para trás. Não será então possível encontrar aparências ficcionais auditivas
que aumentam e diminuem de volume enquanto o próprio ronronar se
mantém igual? E talvez encontremos algo de semelhante no cheiro
simulado do gato. Quanto ao gosto e ao tato, é necessário haver contacto, e
para mim é tão difícil dizer qual é o sabor de um gato como qual é o seu
cheiro. Mas consigo facilmente simular o TATO ficcional se fingir afagar
tatilmente o seu dorso peludo. Os sons e tatos ficcionais são claramente
diferentes das visões ficcionais e, deste modo, é evidente que nem toda a
simulação é visual.
10.—RECORDAÇÃO. Se disséssemos que ver, ouvir, cheirar,
saborear e tocar são tipos de perceção, talvez fosse mais fácil reconhecer a
possibilidade da recordação ficcional não só de objetos percebidos
ficcionais passados, mas também de perceções passadas simuladas, tal
como o exemplo já mencionado do meu ver simulado do meu par simulado
no baile de finalistas. Hoje, posso fingir recordar o meu deleite naquele
encontro ficcional.
11.—ANTECIPAÇÃO. Provavelmente mais comuns do que as
recordações ficcionais são as simulações de processos futuros e do que é
intentado ficcionalmente neles. Não será possível simular antecipadamente
o sabor que algo terá na nossa próxima refeição, talvez enquanto decidimos
num restaurante, e também antecipar o futuro saborear simulado? Não
haverá, assim, versões ficcionais de tipos sérios de recordação e de
antecipação, assim como de perceção, que poderão ainda ser especificados
em relação aos mencionados cinco sentidos?
12.—REFLEXÃO. Ao mesmo tempo, aquilo que podemos chamar
reflexão, ou melhor, “perceção reflexiva séria de processos intentivos”, não
é sensorial e já foi indicada em casos de perceção passada e futura, séria ou
ficcional. Por outras palavras, há perceção não sensorial. Talvez já
tenhamos dito o suficiente para incentivar observações e análises reflexivas
de vários tipos de simulação correspondentes a processos intentivos sérios
que tenham a ver com os sentidos e com a reflexão sobre eles. Não será
também possível percecionar ficcionalmente processos intentivos?
54

13.—Há muito mais para além de perceção na vida mental. Se já


perguntámos o suficiente acerca dos processos não representacionais, ou
melhor, “processos intentivos presentacionais”, isto é, perceção, recordação
e antecipação, para que o leitor ou ouvinte consiga ver por si mesmo e,
assim, procure compreender como são as coisas em questão, podemos
então considerar a seguir as “experiências representacionais”. Estas podem
envolver indicações, imagens ou textos. Não parece haver uma designação
determinada na psicologia académica tradicional para a capacidade ou
capacidades aqui em causa. Os processos intentivos envolvidos nestes três
tipos contêm dois estratos.
14.—EXPERIÊNCIA INDICACIONAL. Com base na visão de uma
expressão carrancuda na cara de alguém, podemos apercecionar no Outro o
processo intentivo de reprovação ou desagrado com algo. Porque não há
nenhuma parecença entre a configuração facial vista e um processo
intentivo, a experiência é “indicacional”, ou seja, a expressão carrancuda
indica o processo intentivo de reprovação. Para os propósitos gerais desta
análise, podemos agora simplesmente perguntar se é possível simular uma
expressão carrancuda e o que isso indica no Outro.
15.—EXPERIÊNCIA PICTORAL. No entanto, se houver parecença
entre a representação e a coisa representada, podemos então falar de
“representação pictoral”. Para evitar que se pense que este termo apenas se
refere a casos estritamente visuais, considere-se o exemplo de ouvir alguém
cantar numa gravação ou na rádio e experienciar a-presentativamente a
emoção por detrás da voz do Outro. E, tal como isso pode ocorrer em casos
sérios, não podemos também facilmente simular um som que “retrate” a
emoção do Outro?
16.—EXPERIÊNCIA LINGUÍSTICA. Ao mesmo tempo, podemos
experienciar “expressões linguísticas” de Outros. Às vezes, experienciamos
o pensamento do Outro com base na audição não ficcional de sons, ou na
visão de sinais e marcas, e, com o Braille, no toque em pontos em relevo.
Representações deste tipo podem ser sérias, mas não poderemos também
simulá-las? Especialmente no caso de expressões linguísticas, o modo
como indicam o pensamento e a produção de sons, marcas, sinais e pontos
de Braille é uma coisa, enquanto aquilo a que as expressões se referem, ou
seja, o nome, é outra coisa.
17.—Se preliminarmente já se disse o suficiente acerca de
experiências representacionais e presentacionais, quer ficcionais quer
55

sérias, ainda temos para analisar os tipos ficcionais e sérios daquilo a que
os fenomenólogos chamam “posicionalidade”.
18.—ACREDITAR. Muitas vezes, senão de modo geral, “juízo” na
psicologia académica tradicional é principalmente uma questão de crença.
É possível acreditar em proposições e testemunhas, mas aqui o foco será
posto no “acreditar em” objetos. Parece que normalmente acreditamos séria
e positivamente, mas também é possível não acreditar seriamente que, por
exemplo, a Lua é feita de queijo, e podemos não acreditar ficcionalmente
na cadeira em que estamos sentados. Para reconhecer estas formas de
acreditar sérias e ficcionais, é necessário refletir sobre elas. E isso requer
distinguir, de um lado, o componente de acreditar na experiência
representacional ou presentacional e, do outro, outras formas de posicionar.
No que diz respeito à tese geral desta investigação, a imaginação não é,
digo outra vez, uma capacidade igual ao juízo ou crença, mas há antes
crenças ficcionais em paralelo com crenças sérias, tal como há presentar e
representar ficcional em paralelo com tipos de experiências sérias.
19.—EMOÇÃO. Nas suas palestras, Cairns usava o exemplo da
rapariga da casa ao lado. Será que podemos fingir amá-la, mesmo se,
seriamente, não a amamos? Tal seria uma emoção positiva de um tipo
ficcional. E, mesmo sendo desconfortável, será que também não podemos
fingir que odiamos, por exemplo, a nossa própria mãe? Para além destes
processos positivos e negativos, será que não podemos ser indiferentes, por
exemplo, em relação a candidatos presidenciais?
20.—VOLIÇÃO. Depois, temos as formas positivas, negativas e
neutras, tanto ficcionais como sérias, não só de emoções mas também de
quereres. Deste modo, podemos querer seriamente lavar a louça e querer
queimar o lixo, sendo o caso de lavar a louça de volição positiva e o outro
um querer negativo do lixo queimado. Se estes podem ser casos de volição
séria, não poderemos então simular versões ficcionais? Talvez, para
contrastar, fingir que queremos partir a louça e lavar o lixo! E há também o
movimento dos planetas à volta do Sol, mais um exemplo que recordo das
palestras de Cairns. Aí, podemos ser volitivamente neutros e não querer
nem favorecer nem prejudicar os movimentos planetários.
*
* *
56

21.—Esta análise pode ser ainda mais desenvolvida, talvez


começando com fins e meios ficcionais em relação ao querer, e valores
ficcionais instrínsecos e extrínsecos em relação ao valorar; mas talvez já se
tenha fornecido o suficiente para mostrar que a chamada imaginação não é
uma capacidade ao nível dos sentidos, da crença, da emoção ou da vontade.
Porém, para se concordar com esta posição, é preciso ver por si mesmo e
observar reflexivamente.
57

VII.
A Derivação de “Dever” e “Ter-de” a partir de “É”.

1.—Há muito que a impossibilidade de derivar “deveres”, ou seja,


normas ou, melhor dizendo, proposições valorativas, a partir de como as
coisas “são”, ou seja, de proposições cognitivas ou teóricas, é comummente
aceite. Que um esforço tão intenso tenha, no entanto, sido direcionado
sobre esta questão da derivação sugere que algo foi entrevisto de forma
fosca. Talvez a derivabilidade seja outra que não diretamente lógica.
2.—O modo como Edmund Husserl distinguiu proposições deste tipo
não parece ser amplamente apreciado. No texto que se segue, a sua
explicação das normas ou proposições valorativas será primeiro
suplementada com uma explicação acerca do que pode ser dito um “ter-
de”, isto é, imperativos ou, melhor dizendo, proposições volitivas. De
seguida, num modo reflexivo-analítico, exploraremos a derivação da
justificação de proposições valorativas, e depois volitivas, do que é
cognitivo na nossa vida consciente pre-predicativa.
3.—Creio que será útil munir-nos de um exemplo para ilustrar. Há
anos, o presente escritor ficou convencido pela leitura de um artigo de que
subir sempre que possível um ou outro lanço de escadas promove uma boa
saúde ao coração. Mais tarde, também me ocorreu que fazer isso
representava muitas vezes uma alternativa aos elevadores, e isto,
especialmente se fosse um comportamento adotado por muitas pessoas,
seria uma forma de poupar eletricidade e diminuir a necessidade de
arranjos e substituições de elevadores, ou seja, uma forma de preservar
recursos. Convencido destes benefícios não só cardiovasculares como
ambientais, instituí com sucesso o hábito de escolher as escadas sempre
que fosse adequado. Como será possível mostrar que esta preferência e esta
escolha e o eidos que elas exemplificam estão corretos?
4.—Segundo Husserl, no capítulo 2 dos “Prolegómenos à Lógica
Pura” nas Investigações Lógicas (1900), o que chamamos aqui proposições
valorativas, como, por exemplo,

Deve-se tomar as escadas,

são equivalentes a proposições cognitivas, como, por exemplo,


58

Uma pessoa que tome as escadas é boa.

5.—Apesar de serem chamados tradicionalmente juízos de valor, esta


última frase é tão cognitiva como, por exemplo,

O Thomas toma as escadas.

6.—Neste último caso, o todo, “Thomas”, é captado com o termo do


sujeito, e uma parte (por exemplo, uma atividade numa situação) é captada
com o termo predicado e predicada ao sujeito. O que é distintivo num juízo
de valor é que um valor é predicado, ou seja, afirmado ou negado.
7.—Indo para além do que é dito explicitamente, mas não do espírito
de Husserl nos “Prolegómenos”, podemos analisar o que se pode chamar
“proposições volitivas”, como, por exemplo,

Tu tens de tomar as escadas,

de modo análogo, devido à semelhança com as “proposições valorativas” e


“cognitivas”. Linguisticamente, “dever” é muitas vezes utilizado em
linguagem comum não apenas para expressar conselhos, mas muitas vezes
para expressar um imperativo de modo educado e indireto; porém, para
sermos claros, as expressões indicativas de querer em vez de valorar podem
ser elaboradas de modo estrito utilizando “ter de”. Não é invulgar ouvir
uma referência à valoração de fundo quando se fala de ação e, assim, de
querer. O que se busca não é, estritamente falando, o bem, mas o propósito
correto, que é correto por ser bom.
8.—O equivalente volitivo de

O Thomas tem de tomar as escadas

é talvez, dito de um modo deselegante,

É útil que o Thomas tome as escadas.

9.—Esta formulação pode parecer estranha, porque o leitor é


conduzido imediatamente a perguntar: “Útil para quê e/ou para quem?”
Talvez o “bem” não nos conduza tanto, por assim dizer, como o “útil”,
59

porque é mais familiar ou se refere prontamente a algo com uma


caracterísitica posicional, isto é, com valor intrínseco; mas, na verdade,
refere-se a algo com valor extrínseco. É preciso reconhecer usos intrínsecos
e extrínsecos, assim como valores intrínsecos e extrínsecos, mesmo que o
seu uso seja pouco familiar e, portanto, estranho.
10.—“É(s)” ou proposições cognitivas, ou seja, proposições do tipo
“S é p”, podem ser comprovadas. Deste modo, só se as coisas forem tal
como são alegadas (por exemplo, só se o Thomas toma as escadas por
motivos de saúde e da conservação do planeta), é que a afirmação é
verdadeira. Esta consideração pode tornar a expressão “proposição
cognitiva” mais atraente. Enquanto os seus equivalentes são meramente
cognitivos, as normas valorativas e os imperativos volitivos não o são,
porque as normas podem afetar a sucessão de acontecimentos quando
aceite ou rejeitada, tal como os imperativos, quando obedecidos ou não.
11.—Parece possível elaborar um quadro de oposições para o ter-de
tal como Husserl construiu um para o dever, mas para obter uma solução
para o problema da derivação é preciso procurar mais fundo que os níveis
lógico e linguístico, e, como ponto de partida, bastam proposições das
formas positivas universais e particulares.
12.—A mim, não me parece nada evidente que a vida consciente
inclua sempre predicação ou até pensamento, embora inclua sempre crença,
valoração e volição. Assim, pode tornar-se temático para nós que o nosso
amigo Thomas toma por rotina as escadas em vez do elevador. (Podemos
começar a refletir a partir de um caso na vida de outrem ou da nossa.) É
difícil duvidar que uma pessoa experiente, ao colocar-se numa situação,
como por exemplo ao entrar num edifício, sabe que tanto as escadas como
o elevador conduzem aos pisos superiores. Excetuando casos onde o piso
desejado é relativamente alto, por exemplo, três andares ou mais acima, o
que é que está envolvido na escolha de tomar as escadas?
13.—Considerado reflexivamente, o encontro escadas vs. elevador
pode ser refletido, de modo sério ou ficcional, noematicamente, ou seja, a
alternativa-encontrada-enquanto-encontrada; e, noeticamente, há o
encontro da alternativa escadas/elevador enquanto intentivo. Apesar de
abordarmos a questão mais adiante, por agora não é relevante se o encontro
é um Akt, ou melhor, uma operação na qual o “eu” está empenhado, ou se é
secundariamente passiva, ou melhor, habitual. Podemos, de qualquer modo,
distinguir abstratamente e perguntar acerca de quatro estratos noéticos e
60

noemáticos no encontro observado reflexivamente: awareness, crença,


valoração e volição.
14.—Aperceber-se, ou melhor, a experiência na qual a alternativa
escadas/elevador é encontrada, é sensorial. Não será preciso relembrar
muito sobre a fenomenologia de perceção sensorial e dos objetos enquanto
percecionados. A crença e o objeto no qual se acredita é um assunto algo
mais interessante. Estando ausente motivação suficiente para acontecer o
contrário, acreditamos no que é sensorialmente percecionado com uma
certeza positiva. Na maior parte dos casos, os elevadores e as escadas são
percecionados por pessoas com experiência como capazes de conduzir do
primeiro andar ou rés do chão para partes não percecionadas do objeto
percecionado, como por exemplo outros andares do edifício, tal como nos
apercebemos de que o edifício tem outros lados quando nos aproximamos
dele pela frente. Ao mesmo tempo, acreditamos que o elevador e a escada
são condutores, isto é, são passagens para outros andares e, assim, para
outras salas e átrios no edifício.
15.—De modo estrito, termos como “elevador”, “escadas”,
“edifícios”, “pisos”, “átrios” e “salas” não devem ser usados para descrever
o que é encontrado enquanto encontrado no estrato abstrato de perceção
sensorial, porque aqueles são nomes de objetos funcionais, de utilidade, ou
melhor, objetos culturais; os quais, falando ainda de modo estrito, indicam
o estrato volitivo, estrato esse que faz parte do que foi abstraído até agora
nesta análise, mas, dito isto, devemos conseguir evitar alguma confusão. Se
fosse necessário ser exato e detalhado, diríamos dos objetos que o que é
percecionado sensorialmente são cores, formas, cheiros, sons, texturas, etc.
16.—O que também é particularmente interessante aqui é como uma
pessoa é capaz de acreditar que subir as escadas em vez de tomar o
elevador pode ter efeitos ambientais e cardíacos, talvez através de uma
confiança em conselhos de especialistas, engenheiros e médicos. Para além
de ultrapassar o temporal e o espacial para incluir as determinações causais
do objeto sensorial complexo que é o edifício no qual a pessoa encontra a
alternativa escadas/elevador como passagens para o piso, átrio e sala para o
qual se dirige, também há os efeitos no organismo da pessoa para a qual o
encontro ocorre. Ademais, parece que seria necessário que houvesse uma
base além da perceção sensorial para acreditar que o elevador utilizaria
menos energia e duraria mais se ao longo dos anos menos pessoas o
usassem para subir um ou dois pisos no edifício, e que o mesmo se
61

aplicaria aos corações humanos nas mesmas circunstâncias. Também


voltaremos a este ponto mais adiante. Por agora, basta notar que é possível
acreditar em mais do que aquilo que é percecionado.
17.—Voltando à valoração, isto é, os componentes de avaliação e
valoração reflexivamente observados de modo abstrato na noése e no
noema correlativos do encontro da alternativa elevador/escada, as escadas
são a passagem preferida para ir do primeiro ao segundo ou terceiro piso;
noutras palavras,

As escadas são melhores do que o elevador.

18.—Apesar da pergunta “Para quem?” que é suscitada poder


parecer estranha na atitude irreflexiva que assumimos tacitamente antes,
aqui é útil e pode ser respondida, reflexivamente, com base nas crenças já
mencionadas: “Pela Terra e pelo Thomas.” Ele, pelo menos, prefere as
escadas ao elevador, e isto porque valoriza um planeta e um coração
saudáveis. Ou, melhor dizendo, um planeta e um coração saudáveis têm
valores positivos intrínsecos, e tomar as escadas sempre que possível para
subir um ou dois andares tem um valor extrínseco mais positivo para ele
em relação àqueles dois primeiros do que tomar o elevador.
19.—A situação é análoga no estrato volitivo observável
abstratamente. A palavra “uso” pode ser usada analogamente a “valor” e,
nesse caso, os meios são objetos com usos extrínsecos relativos a
propósitos, fins ou objetos com usos intrínsecos. Noutros termos, algumas
coisas, como planetas e corações saudáveis, são desejadas por si mesmas,
enquanto o uso de outras coisas, como elevadores e escadas, é desejado em
função das coisas do primeiro tipo, isto é, os fins ou propósitos, as coisas
com uso intrínseco correlativo. A semelhança estrutural do querer e do
querido-enquanto-querido, e do valorar e do valorado-enquanto-valorado,
parece conduzir muitas vezes a confundi-los, mas é possível distingui-los
através de uma reflexão e uma terminologia cuidadas. (A interessante
questão acerca de se haverá características de crença intrínsecas e
extrínsecas nos objetos enquanto encontrados, isto é, se há objetos nos
quais acreditamos por si mesmos e outros nos quais acreditamos em função
de objetos acreditados por si mesmos, como por exemplo efeitos e causas
ou vice-versa, não precisa de ser aqui desenvolvida.)
62

20.—Os usos extrínsecos podem ser imediatos ou mediatos, e


também múltiplos. Deste modo, tomar as escadas (ou o elevador) é, para a
pessoa que entra no edifício, o meio imediato para um piso no edifício, o
átrio é um meio mediato, e a sala para a qual se desloca é mais um meio
mediato quando o fim corresponde à reunião com alguém que se localiza
no edifício. Mas a saúde do visitante e do planeta também são fins. A
questão do derradeiro fim humano não precisa de ser desenvolvida aqui. As
escadas também podem ser caracterizadas como meio para o átrio, o qual
nesse caso é o fim imediato, mas então torna-se muitas vezes necessário
distinguir entre fins últimos e relativos, e perguntar sobre o alcance da
ação, ou seja, a pessoa sobe as escadas para chegar ao átrio ou à sala, ou
para se reunir com alguém? Podemos fazer distinções análogas para valorar
e valores intrínsecos e extrínsecos em vez de querer, e os usos de fins e
meios constituídos no valorar.
21.—Através de certas mudanças de atitude que não é preciso aqui
investigar, a vida não predicativa pode suscitar proposições. Estas podem
ser cognitivas do tipo original, partindo da crença no objeto e nas suas
determinações naturalistas, como a sua forma ou atividade animada, ou
podem ser valorativas, como, por exemplo,

O Thomas deve tomar as escadas,

ou volitivas, como, por exemplo,

O Thomas tem de tomar as escadas.

22.—Estas indicam os encontros e atitudes nos quais predominam o


acreditar, o valorar e o querer. Os ter-de, em particular, dirigem-se para a
criação, destruição, impedimento, preservação ou, pelo menos, para alguma
alteração nas coisas, incluindo vidas humanas.
23.—Os ter-de e os deveres podem ser dirigidos por Thomas a si
mesmo, assim como por outros a ele, e os pronomes podem ser substituídos
pelo nome do sujeito, etc. Como foi mostrado, as proposições valorativas e
volitivas têm os seus equivalentes cognitivos, os quais podem ser
demonstrados, mas isto não nos deve distrair do modo como estas
proposições têm formas originais, que surgem dos encontros pre-
predicativos de objetos nos quais predominam o valorar e o querer, e que
63

não procuram, mais uma vez, o conhecimento, mas antes influenciar,


respetivamente, os eventos e a obediência.
24.—Quando um encontro concreto de um objeto é analisado
noético-noematicamente em componentes abstratos de experiência, crença,
valoração e volição, os psicólogos, sociólogos, historiadores e outros
cientistas culturais tenderão a procurar explicações em termos de causas e
propósitos, enquanto os filósofos tenderão a buscar questões de
justificação. Assim, a crença no edifício com as suas salas, átrios, escadas,
elevadores, etc., pode ser justificada em termos de perceções anteriores, e
presentes, do mesmo edifício ou outros semelhantes. Similarmente, desejar
uma alternativa pode ser justificado por a valoração que podemos
evidenciar reflexivamente estar na sua base e ser a sua motivação; por
exemplo, querer saúde em vez de doença é justificado pela valoração da
saúde acima da doença.
25.—Provavelmente, muitos filósofos irão opor resistência à
sugestão de que acreditar pode justificar valorar, talvez porque os valores e
sistemas de valores parecem ser bastante mais diversos do que as crenças e
sistemas de crenças, algo possivelmente alimentado pela enfâse na ciência
e pela ignorânica na vasta diversidade de sistemas de crença, quer
religiosos quer de senso comum. Mas esta não é a ocasião para justificar
esta afirmação sobre justificação; basta prosseguir hipoteticamente. Apesar
de tudo, se fosse demonstrado de modo estritamente científico que tomar as
escadas em vez do elevador tem, na verdade, efeitos nocivos no coração, a
maior parte das pessoas que soubessem disso começaria a tomar o elevador
com maior frequência, talvez até argumentando que este novo querer era
justificado pela valoração justificada por crenças novas e mais bem
justificadas.
26.—Se a crença de que tomar as escadas em vez do elevador
promove a saúde cardíaca e ambiental justifica o valorar desses efeitos
intrinsecamente e, assim, extrinsicamente a preferência pelas escadas, e se
a valoração justificada justifica o querer, então podemos falar de uma
derivação imediata do querer a partir do valorar, do acreditar
mediatamente, e ultimamente, a partir dos tipos pertinentes de
“awareness”, isto é, de evidência. E se as proposições volitivas e
valorativas surgem de encontros de objetos nos quais predominam o querer
e o valorar, tal como as proposições cognitivas surgem de encontros nos
quais predominam as crenças, então podemos falar de uma derivação de
64

“ter de” (shall) e dever (ought) de é (is-es) a partir de uma reflexão sobre a
vida mental não predicativa. Talvez tenha sido a noção vaga desta
possibilidade que tenha motivado a tentativa de derivar proposições
valorativas e volitivas das cognitivas num modo estritamente lógico em
determinadas tendências filosóficas, nas quais a filosofia é acima de tudo
lógica aplicada.
27.—Podemos acrescentar que a verdade não é justificação, que a
palavra “saúde” tem várias conotações das quais podemos, apesar de tudo,
abstrair-nos, e que podemos distinguir escolha enquanto volitiva da
preferência enquanto valorativa. Vale a pena repetir que pessoas em
posições de autoridade dizem muitas vezes “deve” quando estão, de facto, a
emitir imperativos e querem portanto dizer “tem de”. E apesar de, enquanto
um “eu”, nos podermos empenhar em realizar o que podemos denominar
da melhor maneira como “operações”, a grande parte da vida mental
individual e em grupo é de facto, respetivamente, habitual e tradicional;
assim, pode haver um esforço para alterar o que Husserl chama
“passividade secundária” para que seja mais bem justificada, isto é, que a
nossa cultura seja mais justificada ou racional. Finalmente, podemos
acrescentar que se pode falar de tomar as escadas como sendo igualmente
bom e útil, tal como acertadamente bom e/ou útil para expressar que há
uma justificação que funda essas afirmações, ou podemos conotá-lo com
“dever”.

*
**

28.—Em suma, apesar de não ser possível derivar logicamente


“dever” e “ter-de” a partir de “é”, fenomenologicamente, estas proposições
podem indicar valorares e quereres justificados que são derivados de
crenças justificadas.
65

VIII.
A Justificação das Normas Reflexivamente Analisada

INTRODUÇÃO

1.—Nos seus “Prolegomena zur reinen Logik” (Logische


Untersuchungen [1900]), Edmund Husserl (1859-1938) oferece um
exemplo e uma análise memoráveis do que é uma norma (para aqueles que
não os conhecem, a passagem mais relevante encontra-se no Apêndice I
deste capítulo): “Um guerreiro deve ser corajoso” é equivalente a “Um
guerreiro corajoso é bom”. Claramente, isto transforma uma norma num
juízo de valor. Husserl limita-se a expressar esta equivalência numa atitude
simples, isto é, não analisa nem descreve como as normas são constituídas
e justificadas. Não tenho conhecimento de uma análise reflexiva a respeito
desta tese em outras publicações ocorridas durante a vida de Husserl e, se
existe uma em trabalhos editados a partir da sua Nachlass, também não a
conheço. De qualquer modo, esta exposição não é uma interpretação dos
textos de Husserl, mas uma breve tentativa de elaborar uma fenomenologia
constitutiva ao estilo do último Husserl, ou seja, uma análise reflexiva.
2.—Na primeira seção, que se segue, tentarei desenvolver
vividamente o exemplo de Husserl; na segunda, tomarei um referente
puramente possível das suas proposições como uma pista para os
componentes do encontro no qual um caso como este é constituído; e, na
terceira seção, considerarei brevemente como as normas podem ser
justificadas.

CONDUTA NUMA BATALHA

3.—Não é provável que o leitor ou ouvinte desta análise já tenha


estado em combate, mas é provável que já tenha visto filmagens em
noticiários, ou representações em filmes ficcionais de situações do género
da que descreverei, podendo assim simulá-la facilmente como uma
possibilidade. Numa batalha, há dois grupos de guerreiros ao alcance um
do outro, a dispararem armas de fogo e protegendo-se atrás de rochas e
árvores. Os membros de cada grupo tentam matar membros do outro grupo,
e a sua motivação é, no mínimo, a de “mata ou sê morto”. Para apontar e
atirar com a arma de modo eficaz, um guerreiro tem de expor parte da sua
66

cabeça e, assim, arriscar apanhar um tiro. Fazê-lo é um ato corajoso. Baixar


a cabeça e ou não atirar ou atirar sem fazer pontaria, é covardia. Uma
aparente covardia pode ser compreensível e até desculpável em guerreiros
na sua primeira batalha ou que sofram de alguma lesão física ou mental.
Porém, para guerreiros saudáveis e experientes, não há dúvidas sobre o que
é ser corajoso ou covarde.
4.—Ao referirmo-nos a exemplos como este, focamo-nos em coisas
que são anteriores ao estrato de vida mental no qual as proposições são
formadas e ligadas entre si, mas os tipos relevantes das coisas referidas são
co-intentadas, sendo estes tipos essências universais, ou eidé, não
clarificadas, pelo que um exemplo como este tem uma orientação geral
implícita. Através de uma variação livre de fantasia, as eidé evidenciadas
anteriormente de modo vago podem ser mais clarificadas, mas, para os
nossos objetivos aqui, já parecem suficientemente claras. E, sobre o
fundamento do encontro de uma instância como esta de coragem (ou
covardia) guerreira, podemos pensar e expressar as proposições “Um
guerreiro deve ser corajoso” e “Um guerreiro corajoso é bom”, assim como
pressupor a equivalência. (Também podemos formular “Um guerreiro não
deve ser covarde” e “Um guerreiro covarde é mau”, mas daqui para a frente
daremos prioridade nesta exposição à valoração positiva.)
5.—Para ser capaz de afirmar que “Um guerreiro corajoso é bom”, é
preciso primeiro ser capaz de reconhecer um guerreiro e o tipo de conduta
considerada como corajosa. Proteger-se, disparar e ser alvo de disparos é a
conduta guerreira; expor-se ao fogo inimigo para disparar tiros certeiros é a
conduta guerreira corajosa. Podemos atribuir coragem a um guerreiro e,
então, o que é chamado “guerreiro corajoso” pode ter valor positivo
objetivado ou o respetivo “bem” predicado. Não é difícil ver isto, tal como
não é difícil ver a equivalência dessa estrutura com a proposição “Um
guerreiro deve ser corajoso” como referindo-se ao mesmo tema e sendo
equivalente, mas não idêntico, à primeira proposição; talvez seja por esta
razão que Husserl não tenha continuado a investigar o assunto.
6.—Claro que podemos abstrair-nos do conteúdo e produzir a
combinação das formas proposicionais: “Um S deve ser/fazer/ter p” é
equivalente a “Um S que é/faz/tem p é bom”. A primeira proposição desta
combinação é a forma de uma norma, muitas vezes chamada em filosofia
anglófona um “dever” (ought), que significa uma recomendação feita a um
Outro e/ou a si mesmo, e não um imperativo, ordem ou “ter de” (shall),
67

como por exemplo: “Tens de ser corajoso!” No entanto, ocorre


frequentemente alguma confusão no discurso comum, quando o que é
realmente uma ordem é comunicado “educadamente” como uma
recomendação.

A CONSTITUIÇÃO DE UMA NORMA

7.—Até agora, temos estado a falar na atitude simples ou irreflexiva,


ou seja, as coisas ideais, tal como as reais e ficcionais quando não são
sérias, foram descritas sem referência ao modo como são intentadas,
incluindo as sínteses. O que encontramos quando refletimos são, modo
geral, o que Husserl chama Erlebnisse (e, adicionalmente, e talvez de modo
mais subtil, coisas-enquanto-intentadas). O termo de Husserl, Erlebnis, foi
traduzido para inglês de várias maneiras: por exemplo, como “experiência”
(“experience”) e “processo mental” (“mental process”), e até como
“experiência vivida” (“lived experience”), que parece uma tradução
mecânica e deselegante da expressão francesa “expérience vécue”. Em
alternativa, eu prefiro usar “processo intentivo” e “encontro”, sendo que
ambas estas expressões me parecem mais capazes de incluir os modos de
acreditar, valorar e querer, assim como de pensar e experienciar.
8.—Seguindo fundamentalmente Samuel Alexander, sublinho a
diferença entre palavras “-ing” e palavras “-ed”. Ao refletir, um
fenomenólogo não só observa séria ou ficcionalmente e depois analisa e
descreve encontrares (“encounterings”), mas também as coisas-enquanto-
encontradas (“things-as-encountered”), incluindo guerreiros em combate.
Por outras palavras, é possível praticar o que Husserl chama análise
noético-noemática. No que diz respeito ao noemático, podemos discernir
modos de doação, valores e usos; aqui, contudo, concentrar-me-ei no
aspeto noético, sem apesar de tudo o fazer de modo exclusivo.
9.—Para analisar o constituir de uma coisa, toma-se a coisa
puramente possível encontrada (ou intentada) como uma pista para o modo
como é constituída e, depois, reflete-se sobre encontros dela sérios ou
ficcionais. Se tomarmos as proposições de Husserl como pistas, seremos
conduzidos a uma análise reflexiva do pensamento e juízo correlativos.
Será melhor usar como pista um caso ao qual as proposições se possam
referir: por exemplo, um guerreiro em combate. Assim, haverá pelo menos
um caso reflexivamente simulado de encontrar um guerreiro corajoso (ou
68

covarde). Este encontro pode ser diretamente experienciado por outros


guerreiros que também estejam com ele em combate e veem a conduta do
seu companheiro, ou pode ser indiretamente experienciado por membros de
um comité de medalhas (ou um tribunal militar), o qual depende do
testemunho de outros, assim como de outro tipo de informação, que hoje
em dia poderia incluir vídeos de satélites.
10.—Para uma análise como esta, parece-me suficiente uma
taxonomia algo simplificada dos componentes do processo intentivo. Nesta
taxonomia, incluem-se dois géneros de componentes8. Ao nível do
experienciar, há o experienciar indireto pelo comité de medalhas (ou
tribunal militar), e isso é o que faz o seu experienciar ser indireto. O
encontro pelos companheiros de armas no combate é relativamente direto e,
de facto, exteriormente percetivo, apesar de apenas de modo a-presentativo.
(Hesito em chamar a este experienciar “empatia”, porque tenho visto
muitos husserlianos anglófonos afetados por esta palavra de tal maneira,
que consideram este “experienciar-de-outros”, como eu prefiro chamá-lo,
um processo predominantemente valorativo em vez de experiencial.) O
guerreiro em causa também se encontra a si mesmo através da
autoexperiência, e de modo presentativo.
11.—O segundo tipo de componente discernível numa Erlebnis é
tético ou posicional e, se pusermos de lado o problema dos desejos, há três
tipos, aos quais chamaremos acreditar, valorar e querer. (Dados os nossos
objetivos nesta exposição, vamos também ignorar como é que estas
posicionalidade e experiências podem ser primária e secundariamente
passivas, ou um Akte). Não parece haver dificuldade no que diz respeito ao
acreditar. Se o companheiro de armas for visto a usar a sua arma de uma
maneira, é corajoso (e, se de outra, é covarde). Aqui, o ver justifica prima
facie o acreditar e é Evidenz, que eu prefiro traduzir como “evidenciar”
(“evidencing”), já que “evidência” (“evidence”) significa demasiadas vezes
algo distinto de processos intentivos, principalmente na linguagem comum
e legal. Husserl diz algures que “Evidenz ist Erlebnis”, o que significa, por
exemplo, que não é a faca com as impressões digitais da pessoa acusada e o
sangue da vítima que constitui Evidenz para Husserl, mas o seu ver pelo
técnico de laborátório que irá testemunhar em tribunal.
12.—Também há um componente de querer no caso que estamos a
analisar. O guerreiro pode forçar-se a si mesmo a agir corajosamente, e o
                                                                                                                         
8
 Ver Apêndice II.
69

comandante do pelotão pode ordenar que o faça. Mas, no que diz respeito à
constituição das normas, o fundamental é a valoração envolvida. De modo
pre-predicativo, o guerreiro pode aprovar a sua própria conduta corajosa
(ou reprovar a sua própria covardia), e os seus companheiros, e o comité
que poderá atribuir-lhe uma medalha (ou levá-lo a tribunal militar),
também podem valorar (ou desvalorar) a sua conduta. Valorar é central à
questão de ele poder ter o bem (ou o mal) predicado à sua conduta corajosa
(ou covarde). Por outras palavras, o valor da conduta é constituído em
valorar, e isto é algo que predomina no encontro da conduta do guerreiro.

A QUESTÃO DA JUSTIFICAÇÃO

13.—Se o que foi dito até agora é suficiente para mostrar como a
coragem (e a covardia) é encontrada de modo pre-predicativo, podemos de
seguida alcançar o nível das proposições de Husserl através da formação
categorial do sujeito e da objetivação e predicação do bem e do mal. Mas
isto só dá conta de como é que alguém pode dizer que a conduta de um
guerreiro é boa (ou má) e, de facto, pode ser recomendada (ou não). Esta
análise ainda não abordou a questão da justificação, ou seja, se a coragem é
correta ou racional, e a covardia não.
14.—Segundo a minha compreensão de Husserl, uma
posicionalidade é justificada quando é motivada por, e está fundada em, um
evidenciar. Quer seja um caso de autoexperiência direta, ou de experiência-
de-outro direta ou indireta, há no caso analisado um experienciar que pode
assumir o papel de evidenciar. As pessoas são sempre motivadas por
encontros no passado de modo a se comportarem e avaliarem a si mesmos e
aos outros de várias maneiras. É neste aspeto que o exame crítico precisa
de considerar não só a motivação, mas também o caráter fundador do
componente valorativo no evidenciar e, correlativamente, o valor
reflexivamente discernível e a doação da coisa valorada. Um pacifista
abnegado não tenta matar pessoas, mesmo que elas estejam a tentar matá-
lo. A valoração de se manter vivo a si mesmo pelos outros pode ser uma
motivação forte, e apenas relacionada de modo vago pelo guerreiro com o
evidenciar da necessidade de disparar com máxima eficácia sobre o
inimigo.
15.—Pelo menos igualmente importante nesta conexão é o modo
como os companheiros de pelotão e o comité de medalhas (ou tribunal
70

militar) tem a sua valoração não só motivada pelo evidenciar da conduta do


guerreiro, mas também solidamente fundada nesse evidenciar. Em
linguagem mais coloquial, estes outros podem basear a sua valoração no
ato de “ver realmente”, de modo sério ou ficcional, qual foi a conduta
naquela situação. (Há aqui uma outra norma, que diz respeito ao modo
como aqueles que ajuízam a conduta são obrigados a proceder, que pode
ser analisada de maneira semelhante, mas não o vamos fazer aqui.) E, com
base numa valoração justificada como esta, aqueles que ajuízam podem
prosseguir e expressar proposições de dois tipos, e também a equivalência
entre eles, tal como Husserl fez nos “Prolegomena”. Por outras palavras, é
correto que os guerreiros devam ser corajosos em vez de covardes. E, com
um dever assim justificado, um fenomenólogo constitutivo pode prosseguir
na investigação de um “ter de”, ou seja, um imperativo ou uma ordem. Mas
isto já está fora do alcance desta breve reflexão, que procurou apenas
mostrar como os deveres são constituídos e justificados.
16.—Em suma, a presente análise aceitou de Husserl que um dever
ou uma norma implica um juízo de valor e, a partir daí, prossegue tomando
um referente puramente possível de semelhante juízo como uma pista para
os componentes do encontro no qual esse referente é constituído pre-
predicativamente, incluindo especialmente o evidenciar e o valorar, e,
finalmente, examina como o evidenciar pode justificar o valorar no qual o
valor atribuído é constituído.

APÊNDICE I

«"Um guerreiro deve ser corajoso", quer dizer <54> antes: só um guerreiro
corajoso é um "bom" guerreiro, e isso implica,dado que os predicados bom
e mau dividem entre si a extensão do conceito de guerreiro, que um
guerreiro não corajoso é um "mau" guerreiro. Porque este juízo de valor é
válido, tem razão qualquer um que exija de um guerreiro que seja corajoso;
pelas mesmas razões é também desejável, louvável, etc., que ele o seja. E
do mesmo modo noutros exemplos. "Um homem deve praticar o amor ao
próximo", i.e., quem não o pratica não é um homem "bom" e, então, é eo
ipso um homem (a este respeito) "mau". "Um drama não se deve dividir em
episódios" - senão não é um "bom" drama, uma obra de arte "correcta". Em
todos estes casos fazemos, assim, a nossa apreciação positiva, o
reconhecimento de um predicado de valor positivo, dependente de uma
71

condição a preencher, cujo não preenchimento acarreta o predicado


negativo correspondente. Podemos, em geral, fazer equiparar, ou ao menos
tomar como equivalentes as formas: "um A deve ser B" e "um A que não é
B é um mau A", ou "somente um A que é B é um bom A".»

E. HUSSERL, Investigações Lógicas. Primeiro Volume – “Prolegómanos à


Lógica Pura.” Trad.: Diogo Ferrer. Lisboa: Centro De
Filosofia/Phainomenon - Clássicos de Fenomenologia, pp. 62-63 (<53-
54>).
72
73

IX.
Uma Análise Reflexiva sobre uma Maneira de Compor
Análises Reflexivas

1.—A história por trás da presente análise e de outros textos


relacionados conta-se depressa. Tal como alguns outros, comecei a ficar
preocupado com o facto de que, hoje em dia, muito poucos colegas na
nossa tradição fenomenológica se dedicarem realmente a fazer
investigações fenomenológicas, em vez de trabalho académico sobre obras
escritas. Isto é: agora, a maior parte dos fenomenólogos fala e escreve
principalmente acerca do que outros escreveram previamente na nossa
tradição, e trabalham com métodos indistintos daqueles que foram usados
em estudos de Aristóteles ou Kant. É justo questionar se estes
“fenomenólogos” são, de facto, fenomenólogos.
2.—Como resposta a este estado de coisas, publiquei um pequeno
livro escrito na linguagem mais simples de que fui capaz acerca da
abordagem geral da fenomenologia, segundo a minha compreensão do
assunto, uma abordagem que creio poder denominar-se da forma mais
adequada como “análise reflexiva”. Nessa obra, esta abordagem é aplicada
a si mesma. O livro intitula-se Análise Reflexiva e dirige-se principalmente
a alunos de filosofia avançados na licenciatura, e aos que iniciam os
estudos pós-graduação. No entanto, tenho esperança de que outros com um
nível mais elevado de conhecimento e fora da área da filosofia também o
leiam.
3.—Quando tive uma oportunidade de dar aulas usando esse meu
texto, percebi que os diagramas e as perguntas no final dos capítulos
ajudavam, e que os alunos gostavam da terminologia simples. Apesar disso,
ansiavam por investigações ainda mais concretas que pudessem imitar
quando eles próprios tentassem fazer análises reflexivas, que era o que eu
mais desejava que eles aprendessem a fazer. Esta experência de ensino
levou-me a juntar numa coleção algumas análises reflexivas que tenho
escrito ao longo dos anos, a qual poderá igualmente ser útil no ensino.
4.—Poder-se-ia dizer que estou a promover um certo género para a
escrita fenomenológica. Acima de tudo, este género de escrita evita
referências a figuras, textos, citações, notas de rodapé e outros instrumentos
semelhantes relevantes para o trabalho erudito, e procura, em vez disso,
74

evocar apenas a autoridade das coisas em si. O autor de uma análise


reflexiva apela ao leitor para confirmar, corrigir e/ou desenvolver a análise
através da sua própria reflexão sobre coisas do mesmo tipo.
5.—Adicionalmente, uma análise reflexiva é escrita com a
terminologia técnica mais simples possível, e trata-se de um texto conciso,
normalmente com cerca de 3000 palavras. Um texto deste tamanho pode
não ser estudado pelos alunos antes de uma discussão na aula, como
também pode ser apresentado a colegas em conferências em cerca de trinta
minutos, o que deixa algum tempo para discussão e um breve intervalo
antes da subsequente sessão de uma hora.
6.—Finalmente, enquanto podemos contar com colegas para fazer
perguntas no contexto de uma conferência profissional, semelhante texto
pode ser útil para os professores a dar aulas desenvolverem perguntas e
distribuí-las com antecedência para que os alunos possam preparar as
respostas, e que estas sirvam como base de início para uma discussão na
aula. No meu pequeno livro, incluí perguntas, mas creio que os professores
deveriam preparar as suas próprias perguntas, enquadrando-as nas
respetivas situações pedagógicas. Além disso, os alunos ficam
sensibilizados por análises reflexivas que o seu professor tenha preparado,
pelo que tal prática é igualmente recomendada.
7.—Depois, lembrei-me de abordar cerca de uma dúzia de colegas
que conheciam o meu texto através de leitura, ou de o terem revisto e/ou
traduzido, e convidá-los a conceber análises para outro livro que pudesse
ser usado nas aulas. No entanto, vários destes colegas comunicaram-me
que tinham achado difícil este desafio de se envolverem em investigações
fenomenológicas, e dois deles pediram sugestões acerca de como proceder.
A presente análise é a minha tentativa de responder a esse pedido. Nela,
tentarei descrever como eu próprio construo análises reflexivas, mas
deixem-me sublinhar que esta é apenas a minha maneira, e não a única.
8.—1.º Passo – Descubra um tema! Quando se é formado numa
determinada disciplina, há sempre assuntos que surgem naquela área e
sobre os quais podemos refletir; mas, de modo mais geral, vivemos em
mundos socioculturais que possuem muitos aspetos, maiores e menores,
que também convidam à reflexão. Por exemplo, no que diz respeito à
enfermagem, um tema popular é como cuidar difere de curar, mas este
tema, que noutro contexto seria excelente, é demasiado amplo para os
nossos objetivos. Aqui, procura-se um tema modesto, com o qual os
75

leitores se sintam familiarizados na sua vida quotidiana, sobre o qual


provavelmente não tenham refletido antes e acerca do qual se pode dizer
algo interessante em cerca de dez páginas.
9.—Ocorreu-me que um tema adequado para esta ocasião é o de que
não só encontramos o que pode ser chamado “residências permanentes”,
mas também vários tipos de “residências temporárias”. Tornar-se-á mais
claro a que me refiro com estas expressões à medida que avançarmos. Este
tema surge na vida comum, tem uma denominação metafórica e não parece
específico a uma única disciplina, senão que pode ser relevante para várias.
Um pouco de análise reflexiva acerca de como as coisas são encontradas,
assim como o seu encontro, pode ajudar a ilustrar o modo como desenvolvo
análises reflexivas, e espero que isto incentive e guie outros.
10.—No que diz respeito ao quadro de referência e à terminologia,
uso o termo “encontro” como uma expressão técnica ampla para algo no
qual podemos discernir querer, valorar e acreditar, e vários tipos de
experiências; e uso “coisas-enquanto-encontradas” para incluir o que lhes é
correlativo, ou seja, os usos, valores e características de crença, e os
diferentes modos de doação, como por exemplo os das coisas-enquanto-
antecipadas e das coisas-enquanto-recordadas. Muitos usam “experiência”
ou até “experiência vivida” para expressar a mesma significação, mas às
vezes estes colegas mostram-se relutantes em mencionar os componentes
de querer e valorar nas suas análises, algo que eu tento evitar.
11.—2.º Passo – Descubra um bom exemplo! Os exemplos ou
ilustrações são muitas vezes bons veículos para comunicar as nossas ideias
a outros. Porém, enquanto num dos extremos algumas exposições não têm
um único exemplo e é possível ficar-se sem a certeza do que está a ser
analisado, por outro lado, no extremo oposto, muitas exposições incluem
demasiados exemplos e, nesse caso, as ilustrações acabam por distrair, ou
até substituir a expressão de conceitos. Por exemplo, em dicussões sobre
arte, alguns colegas parecem querer descrever apenas dando exemplos. Ter
um exemplo central ao qual voltamos repetidamente durante a exposição
costuma funcionar para chamar a atenção para aquilo que o exemplo
demonstra melhor. Às vezes, reparo num caso concreto que se torna no
meu exemplo central antes de conceber ou começar a analisar o meu tema.
12.—Assim que tenho um tema, normalmente, não é difícil encontrar
um bom exemplo para acompanhar. Por exemplo, no caso em questão,
viajei muitas vezes para outras cidades e fiquei instalado num hotel, do
76

qual saía para ir a outros sítios com objetivos diferentes, e este é um


comportamento semelhante ao que tenho no lugar onde moro, ou seja,
durmo em casa, saio para outros lugares e depois volto. Podia dizer que a
minha casa é a minha residência permanente e os hotéis onde fico quando
viajo são residências temporárias. No que toca a residências, podemos ter
uma principal e outras secundárias. A principal é provavelmente onde
temos as nossas coisas, como a roupa, onde normalmente tomamos o
pequeno-almoço e o jantar, e onde dormimos a maior parte das noites. A
secundária pode ser o escritório, ou outro sítio onde passamos regularmente
grande parte do nosso dia e do qual também nos aventuramos fora para
depois voltar. É possível ter mais do que uma residência secundária
permanente na nossa vida.
13.—Uma vez, lecionei um curso noutro país durante uma semana, e
o meu hotel foi durante esse tempo a minha residência temporária, de onde
eu saía para vários outros sítios, incluindo vários restaurantes e a sala de
aulas onde me reunia com os alunos. A sala de aulas, mas não os
restaurantes, podia ser considerada uma residência secundária temporária.
As residências, quer sejam temporárias ou permanentes, são lugares
centrais em relação aos outros sítios. Não só é daí que partimos, como
também é para lá que voltamos a casa.
14.—Já ficou claro que “permanente” e “temporário” são termos
relativos. Enquanto nos sentimos confiantes que voltaremos muitas vezes
durante longos períodos de tempo, até possivelmente durante a vida inteira,
a uma residência principal permanente, uma residência temporária, por
outro lado, só é usada durante um curto espaço de tempo, talvez um dia ou
até menos. As residências permanentes tornam-se extremamente familiares,
enquanto as temporárias tendem a ser menos familiares, e pode haver ainda
outras diferenças. De modo mais geral, as residências de vários níveis de
permanência e originalidade pertencem a sistemas de lugares nos quais
estamos e pelos quais passamos ao longo da nossa vida. A forma como
outros sistemas de lugares, se os há, podem ser estruturados não precisa de
ser discutida aqui. O tema da nossa investigação baseia-se nas residências
temporárias e permanentes.
15.—3.º Passo – Desconstrua as metáforas principais! Há muitas
metáforas na linguagem, e seria fútil tentar reduzi-las todas a expressões
literais. Mas devemos, pelo menos, comentar sobre as metáforas principais,
seja porque podem confundir, ou porque servirão os nossos propósitos
77

nesta exposição. Assim, por exemplo, a expressão inglesa “home base”9 foi
emprestada do basebol, que é um dos desportos mais bem conhecidos
internacionalmente. A home base é o sítio no campo de jogo onde o
batedor se posiciona e tenta bater na bola que lhe é atirada; se conseguir,
esse é o lugar de onde o batedor parte para tentar passar pelas outras três
“bases” com o objetivo final de voltar a “casa” e assim marcar um run, ou
um ponto. Na verdade, o começo da análise no 2.º passo já desconstruiu
consideravelmente esta metáfora.
16.—As questões acerca daquilo a que uma metáfora literalmente se
refere podem ser úteis não só para elaborar perguntas destinadas aos
alunos, mas também no desenvolvimento da análise de cada um. Assim,
que tipo de sítios são as posições dos jogadores de basebol quando a equipa
está à defesa, ou seja, quando os membros da equipa rival se sucedem a
bater a bola com o taco, ou que tipo de lugar é o banco onde os jogadores
esperam a sua vez para bater na bola? (Será que o banco é mais uma
“residência” do que aquela que é oficialmente chamada “home base”?) E
como é que estes lugares se relacionam entre si, que mais, para além das
atividades que acontecem neles ou em relação a eles, é que determina o que
eles são, e será que há estruturas semelhantes noutros deportos, por
exemplo, haverá “home bases” no bilhar ou no basquetebol?
17.—4.º Passo. Reflita! Nesta altura, faço o que tendo a chamar não
só “refletir”, mas também “ponderar”, ou até “ruminar nas coisas”. Este é o
passo mais importante e também, infelizmente, aquele em que posso
oferecer menos ajuda. O objetivo é uma descrição dos aspetos principais
que fazem parte das coisas que estamos a tematizar e que o nosso exemplo
demonstra. Na verdade, a reflexão começou quando se escolheu um tema, e
continua até se acabar de escrever, mas, para mim, chega uma altura em
que o meu tema é suficientemente claro para que possa começar a tentar a
escrevê-lo. Não quero dizer com isto que é necessário ter tudo claro antes
de escrever. No caso presente, os comentários acerca de como as
residências temporárias e permanentes são um tipo de lugar foram algo que
não reconheci originalmente e que acrescentei na primeira revisão do texto.
18.—Às vezes, a análise reflexiva é uma resposta a uma questão
obviamente significativa. Numa análise anterior, por exemplo, tentei
responder à questão do que é a tolerância; a conclusão mais importante a
que cheguei depois de ponderar centrava-se na forma como, quando somos
                                                                                                                         
9
A expressão inglesa home base foi aquela que aqui se traduziu por “residência”. (N. T.)
78

tolerantes, não deixamos de desvalorar a pessoa, atitude ou comportamento


que é tolerado, mas, por uma razão ou por outra, deixamos de agir sobre
essa desvaloração. A questão sobre o que poderia dissuadir o nosso querer
face ao que continuamos a valorar negativamente poderia então ser
abordada.
19.—Pelo menos para mim, há três coisas a evitar quando refletimos.
A primeira é considerar extensamente o que outros já disseram sobre o
tema. Claro que já aprendemos muito dos outros e estamos por isso
deliberadamente sob a sua influência, e os eruditos conseguem muitas
vezes distinguir os efeitos dessas influências nas nossas análises. Mas numa
análise reflexiva não devemos usar os nomes de outros (como eu acabei de
fazer!) para convencer o leitor ou ouvinte acerca de algo. Pode não ser
possível evitar completamente a menção de outros, mas, numa análise
reflexiva, o autor fala por si mesmo acerca das coisas em questão em vez
de interpretarem o que outros disseram. Além disso, conduzir os estudantes
a tentarem as suas próprias investigações tem prioridade sobre o desejo de
impressionar colegas profissionais.
20.—Outra coisa que penso ser melhor evitar é procurar uma tese da
qual possamos deduzir consequências de forma lógica. Pelo menos na
minha opinião, uma análise reflexiva não é, sensu strictu, um argumento,
mas antes uma narrativa descritiva no final da qual o leitor não se depara
com uma conclusão deduzida, mas antes ganhou uma maior clareza acerca
das coisas em questão. Evitar o que pode ser chamado “caça às premissas”
e “crítica lógica” pode ir contra a nossa formação, tal como o trabalho
erudito sobre o que outros expressaram, mas eu sugiro que há uma terceira
abordagem na qual nem as opiniões dos outros nem a forma lógica têm um
papel central. Em vez disso, a nossa preocupação pode ser dirigida para as
coisas em questão: por exemplo, a atitude de tolerância ou o encontro de
residências permanentes e temporárias.
21.—A terceira coisa que considero útil evitar na fase da ponderação
é tentar utilizar apressadamente o conjunto de distinções feitas no meu
livro, o que pode parecer uma coisa estranha para o autor de um livro dizer.
Mas eu estou ciente de que os resultados fenomenológicos são, em último
caso, refinados a partir dos encontros quotidianos das coisas no mundo da
vida, que não posso de forma alguma ter reconhecido todas as diferenças
importantes das coisas, que a linguagem técnica é analogamente refinada a
partir da linguagem comum, e que não se deve considerar nenhuma análise
79

como definitiva. Este meu pequeno livro apenas desenha um esboço e serão
sempre necessários traços mais refinados.
22.—5.º Passo – Faça distinções em relação ao exemplo!
Distinções é algo que fazemos desde o início. Pode resultar num esquema,
ou mental (como se diz) ou em papel, no qual se traça a ordem na qual as
coisas devem ser descritas. Eu fiz isso, por exemplo, para distinguir os
passos nesta análise. Há pessoas que nunca o fazem, outras que o fazem
sempre, e eu costumo fazê-lo quanto mais complicadas forem as coisas e
menos avançada seja a minha contemplação (e fazê-lo nem sempre faz as
coisas andarem mais depressa!). Às vezes, a análise fica mais bem
organizada de um modo sistemático, de maneira que se vai do mais geral
ao mais específico; outras vezes, é melhor ir do mais específico ao mais
geral, e são possíveis várias combinações. O que dá a uma análise reflexiva
o título de “análise” é a série de distinções que são clarificadas usando
exemplos com referência a aspetos da coisa em discussão.
23.—Deste modo, para lá da distinção entre residências temporárias
e permanentes, impõe-se a questão do que é um lugar. Como é óbvio, um
lugar é algo situado no tempo e no espaço: por exemplo, nesta ou naquela
rua, entre a altura em que foi estabelecido e a altura em que for
desmantelado. Um lugar também pode ser percebido sensoriamente, por
exemplo, por ter um som distinto, ou pela carpete fofa que tocamos com os
pés quando nos levantamos e andamos sobre ela, mas também pode ser
recordado quando o deixamos temporária ou definitivamente, e pode ser
antecipado quando o visitamos pela primeira vez ou, de modo diferente,
quando lá voltamos. Podemos dizer mais acerca de um lugar a este nível.
Este nível, que podemos chamar “experienciar”, é abstraído do encontro,
que inlcui outros componentes.
24.—Quando temos a perceção de um lugar ou qualquer outra coisa
na espacio-temporalidade, acreditamos nela com firmeza a não ser que haja
motivação para duvidar: por exemplo, até se provar ser uma miragem ou
outro tipo de ilusão. Além disso, as residências são, regra geral, valoradas
positivamente. Mesmo que a residência de alguém seja uma cela de prisão,
ela pode ser valorada positivamente porque é um lugar mais seguro do que
qualquer outro na prisão. Mais importante é que os lugares em geral e,
assim, as residências são, numa significação geral, queridos. Podem ser
queridos de modo ativo quando, por exemplo, escolhemos um hotel, ou
queridos de modo passivo quando, por exemplo, aceitamos o hotel
80

escolhido pelo nosso anfitrião. Além disso, esse querer pode tornar-se
habitual, ou até tradicional. Ao refletir, podemos perceber que a casa onde
vivemos há muito tempo é aceite por rotina.
25.—Para usar um sinónimo interessante, podemos dizer que as
coisas neste sentido geral são “usadas”. Assim, uma residência pode ser
usada para descansar ou, senão, para preparar a próxima saída para outros
lugares. Assim, serve como meio para os fins últimos de um projeto maior,
e também pode ser usada como o fim imediato de um movimento inicial ou
subsequente nosso na sua direção no âmbito desse projeto. A reflexão
revela que as coisas-enquanto-queridas têm características que podem ser
chamadas usos extrínsecos e intrínsecos.
26.—Tal como foi dito, usamos por vezes lugares não só como
residências permanentes, mas também como residências temporárias. Isto
também pode estar relacionado com tecnologia específica. Um navio pode
ter um porto de residência e usar outro porto temporariamente. O caso é
semelhante com aviões e aeroportos e com garagens para os automóveis em
casa e no trabalho. E as residências, senão todos os lugares, implicam rotas
para movimento entre elas. Se analisarmos reflexivamente como
encontramos lugares em geral, e residências permanentes e temporárias
especificamente, podemos encontrar e descrever muito acerca dos
encontros e coisas-enquanto-encontradas que estão envolvidos.

Figura 1.
Lugares

Residências outros lugares

Permanentes
Temporárias

27.—Às vezes, um diagrama no qual se combinem as distinções


pode ajudar não só o leitor a compreender a descrição, mas também o autor
a alargá-la. Podemos descobrir mais aspetos do tema durante a construção
do diagrama. Por exemplo, poderia perguntar-se, a respeito da figura 1, se a
81

diferença entre permanente e temporário se aplica a outros lugares para


além das residências. E, também, como poderíamos modificar este
diagrama para acomodar residências principais e secundárias?
28.—6.º Passo – Reveja a exposição! Aqui, mais uma vez, é preciso
resistir à tentação de mencionar autoridades, citar ou referir textos, ou
envolver-nos de outras formas em erudição. O que é preciso fazer é
descrever o que pode ser observado e analisado reflexivamente. A grande
esperança é de que o leitor ou ouvinte irá verificar reflexivamente por si
mesmo, observar as coisas que estamos a descrever e, assim, ficar
convencido por causa delas e por nada mais. Há residências permanentes e
temporárias e outros lugares onde as pessoas fazem coisas diferentes nas
suas vidas. Isto pode não ser uma ideia avassaladora, mas pelo menos pode
avançar um pouco a nossa compreensão do que é viver num mundo
sociocultural, no que que os fenomenólogos chamam um “mundo da vida”.
29.—Isto não impede que haja novos aspetos das coisas que surjam
para consideração durante o processo de composição. Assim, um mundo da
vida não é só cultural no sentido estrito de que os seus conteúdos têm usos,
valores e caracterísiticas de crença que são aprendidas, mas também é
social. Isto levanta a questão sobre como é que as relações e interações
sociais desempenham um papel, e podem até predominar, no que faz um
lugar ser de um tipo ou de outro. Para continuarmos com o nosso exemplo,
não será possível que a nossa residência seja onde está a nossa família e,
assim, chegar a casa teria mais a ver com reunirmo-nos outra vez com o
nosso parceiro e filhos após ter estado longe do que terá a ver com o ato de
entrar num edifício, mesmo que estar longe queira dizer que estamos na
segunda residência (second base) até ao final da etapa do jogo de basebol e,
assim, não estarmos com a equipa no banco nem no campo? Poderá ser
uma residência se não se partilha com outros, mas se vive sozinho com as
suas coisas mais importantes, tais como os livros, e se pratica as atividades
que mais se gosta nesse lugar, sendo que é não só onde se come e dorme,
mas também onde se vê televisão e se constroem análises reflexivas antes
de ir para a universidade ensinar?
30.—Por outro lado, uma formação militar em movimento pode ser a
residência para uma patrulha que é enviada e regressa com informação
sobre o inimigo; o caso pode ser semelhante para uma frota e os seus
aviões de reconhecimento. Deste modo, uma residência temporária pode ter
um lugar variável em vez de fixo no espaço-tempo experienciado, enquanto
82

a residência permanente seria um quartel ou um porto de registo. Ou será


possível haver residências temporárias que também estão sempre em
movimento?
31.—7.º Passo – Examine o esboço! É neste ponto que espero que o
meu livro seja mais útil. Contudo, mais uma vez, espero que se recordem
que os meus resultados são apenas um mapa em esboço sobre o qual se
pode aprofundar e que outros não devem hesitar em fazê-lo. Permitam-me
oferecer algumas questões derivadas dele que podem ser feitas em relação a
um esboço de uma análise reflexiva. Isto pode ser útil, pelo menos, para
ajudar alguém a tornar-se mais confiante acerca da cobertura geral.
a. A diferença entre, por um lado, posicionar e experienciar e, por
outro, coisas-enquanto-experienciadas e coisas-enquanto-posicionadas é
relevante e ficou explícita no esboço?
b. Sempre que é relevante, a distinção entre experienciar coisas reais,
ou melhor, temporais, e coisas ideais, ou melhor, atemporais, está clara?
c. No que diz respeito a coisas reais, considerou-se a perceção, a
recordação e a antecipação, e as correlativas coisas-enquanto-percebidas,
coisas-enquanto-recordadas e coisas-enquanto-antecipadas e os seus níveis
de importância?
d. Tomou-se em consideração, quando pertinente, a crença, a
valoração e o querer, e os seus correlatos e modalidades?
e. Considera-se o papel da simulação explícita ou implicitamente na
investigação? Ou seja, tem-se noção da diferença entre afirmações acerca
de coisas individuais, sejam elas reais ou ficcionais, e intuições gerais que
se adquiriram tendo-as como exemplo10?
f. Há alguma necessidade de justificação na análise e, se sim, trata-se
dessa necessidade? Se não, porquê?
g. Desenvolveu-se a exposição de tal maneira que o aluno adquire
progressivamente uma maior compreensão à medida que a trabalha?
32.—Os 4.º e 5.º passos parecem-me os mais importantes e, ao
mesmo tempo, os menos metódicos. Não sou capaz de prever quanto tempo
a minha análise de um tema demorará a assentar o suficiente para a
escrever. E as circunstâncias variam. Algumas pessoas têm ideias quando
estão a conduzir para o trabalho, outras enquanto se debatem com insónias,
                                                                                                                         
10
Foi necessário sair e observar residências temporárias e permanentes, ou bastou, para efeitos do
exemplo neste ensaio, recordá-los e, além disso, simular casos particulares em algumas ocasiões? Serão
as afirmações que fazemos aqui acerca de se este ou aquele lugar é uma residência de um tipo ou de
outro, ou acerca do que são os géneros e espécies de residências?
83

ou enquanto lavam os dentes, etc., etc. Talvez a coisa mais importante


acerca da abordagem que eu observo que sigo é que o assentar por escrito e
o exame no que diz respeito às questões no 7.º passo só ajudam quando
basicamente já se terminou a ponderação.
33.—Provavelmente, o vosso modo de proceder será diferente do
meu. Estão tão surpreendidos como eu por quanto é possível dizer em 3000
palavras? É expectável que os alunos dominem um texto dessa envergadura
antes de chegar à aula no dia seguinte para a discussão do tema com os
colegas e o professor. Se conseguirmos providenciar suficiente prática
concreta e estudo metodológico, podemos não só preencher um semestre de
ensino, mas também formar alguns novos fenomenólogos, que se mostrarão
merecedores desse nome construindo as suas próprias análises reflexivas.

COMENTÁRIOS ADICIONAIS

34.—Os que forem mais avançados em fenomenologia já terão


observado que não clarifiquei muitas coisas importantes na análise acima.
A razão para tal é porque estou preocupado em promover o que é mais
básico na nossa abordagem. Deste modo, não dedico uma ou duas páginas
à diferença entre tematização simples e tematização reflexiva, mas confio
antes na capacidade de adultos humanos normais para reconhecer como a
análise do que eu chamo encontros e coisas-enquanto-encontradas é
diferente de como muitas vezes apenas discutimos, de um modo que se
ignora a si mesmo, as ditas “coisas objetivas” sem qualquer preocupação
sobre a forma como elas são encontradas por nós. Porém, distingo os
componentes de acreditar, querer e valorar dos experienciais no contexto
dos encontros, e as características de crença, valores e usos correlativos dos
modos de doação no contexto das coisas-enquanto-encontradas.
35.—Adicionalmente, não levantei a questão de se a análise que
ofereci diz respeito à fenomenologia mundana ou transcendental. Na minha
opinião, as análises reflexivas podem ser especificadas para objetivos
diferentes e há mais de três dúzias de disciplinas com tendências
fenomenológicas. O objetivo pode ser a fundamentação transcendental do
mundo, mas há objetivos diferentes noutras versões de fenomenologia
filosófica, assim como noutras disciplinas para além da filosofia, como por
exemplo a enfermagem fenomenológica. No entanto, dependi tacitamente
pelo menos da epoché, redução e purificação fenomenológicas, porque não
84

fiz qualquer alusão a como o que é experienciado pode ser explicado


recorrendo a fotões, ondas de som e outros fatores de interesse na
psicologia fisiológica e na ciência naturalista.
36.—De modo semelhante, também não levantei a questão sobre a
derivação da fenomenologia egológica a partir da fenomenologia
intersubjetiva, ou sequer aludi ao método Abbau-Aufbau. A não ser por
uma alusão à origem do querer secundariamente passivo em operações
volitivas passivas e ativas, a análise acima também é um exemplo de
fenomenologia estática.
37.—Ao mesmo tempo, a maior parte dos colegas na nossa tradição
dão simplesmente por adquirido que a fenomenologia trata da consciência
humana individual. Não o fiz, mas podia ter analisado a forma como as
vidas individuais se distinguem das de outros nos grupos em que vivemos
originalmente, ou como a vida humana é diferente da vida não humana.
38.—Tanto nesta como noutras análises reflexivas, também dependo
implicitamente do método eidético, mas também não digo muito, se é que
digo alguma coisa, acerca do que isto é. Que realmente dependo deste
método é indicado pela forma como aquilo que tento mostrar não é apenas
acerca de uma coisa particular (por exemplo, este ou aquele hotel numa
determinada cidade), mas, mesmo no nível mais específico, acerca de
qualquer hotel em qualquer lugar para o qual se tenha viajado e onde se
ficou instalado durante um tempo breve. De modo mais geral, há eidé de
residências temporárias e permanentes. A descrição de eidé-ação de
Husserl e do poder clarificador de variação livre de fantasia é a melhor
metodologia que já foi desenvolvida neste contexto até agora. Mas estou
igualmente convencido de que os adultos humanos normais eidéam
espontaneamente com regularidade, e não só expressam conceitos acerca
de essências universais com grande frequência, mas também compreendem
facilmente esses mesmos conceitos. Demorar-nos sobre este assunto
distrair-nos-ia daquilo que é fundamental à abordagem básica que eu
espero que o aluno consiga aprender.
39.—O fundamental é refletir, analisar e descrever em termos
específicos e gerais os encontros e as coisas-enquanto-encontradas
correlativas que sejam pertinentes ao tema escolhido. Depois de se
aprender a fazer isso, pode considerar-se adotar procedimentos adicionais.
85

X.
Uma Forma de Ensinar Análise Reflexiva

INTRODUÇÃO

1.—O título desta investigação é ambíguo. “Análise Reflexiva”


podia referir-se ao meu livro Análise Reflexiva, que foi escrito para ensinar
alunos, apesar de também poder ser estudado por alguém que já não é
estudante mas que está envolvido num esforço de autoinstrução. No
entanto, ao mesmo tempo, a abordagem à qual a expressão e o livro se
referem também se chama “análise reflexiva”. Assim, este projeto pode ser
acerca de um livro, ou pode ser acerca de uma abordagem de pesquisa. De
qualquer modo, o título foi escolhido; este ensaio é acerca do ensino em
relação com a análise reflexiva.
2.—Este ensaio tem duas partes: a primeira é acerca de uma forma
de ensinar prevalecente no que diz respeito à fenomenologia – que é um
nome mais tradicional para análise reflexiva, mas menos obviamente
metodológico – e que, será defendido, não ensina a abordagem muito bem.
A segunda parte é acerca de como ensinar a abordagem. O objetivo não é
produzir mais eruditos em fenomenologia, mas antes mais fenomenólogos,
mais investigadores em fenomenologia, dos quais, hoje em dia, não há
muitos.

ENSINAR SOBRE FENOMENOLOGIA

3.—Apesar de já haver fenomenologia em filosofia há bem mais de


um século, assim como em mais e mais disciplinas para além de filosofia,
com a psiquiatria em primeiro lugar, há quase o mesmo tempo, hoje em dia
existem proporcionalmente menos e menos fenomenólogos no sentido
estrito, algo que não parece ser geralmente reconhecido mas deveria ser.
4.—Com certeza que há muitos livros e artigos dedicados a explicar
o que é a fenomenologia, e muitas conferências onde os colegas falam
deste ou daquele aspeto do que um ou outro gigante fenomenólogo do
passado escreveu ou disse sobre alguma coisa. Infelizmente, algumas
destas reuniões não parecem mais do que grupos de estudo bíblicos nos
quais um ou outro gigante antepassado é visto como se fosse um deus. A
abordagem geral adotada parece ser aquela que se pode chamar,
86

generosamente, “erudição”, e os produtos literários incluem estudos


comparados, edições, interpretações, recensões e traduções. Não há dúvida
de que há uma grande necessidade de trabalho de erudição na tradição
fenomenológica, porque as obras da maior parte dos gigantes do passado
são difíceis de compreender. Isto acontece em parte porque há pouca
terminologia comum, não só a nível das mesmas palavras, mas também dos
mesmos conceitos. Se tomarmos em consideração um problema central, por
exemplo, a experiência de Outros, descobrimos rapidamente que não há
grande base de consenso entre os gigantes do passado e, assim, talvez os
estudos comparados sejam o material mais necessário no que diz respeito a
trabalho erudito. No entanto, para dizer a verdade, os trabalhos de erudição
são apenas contribuições para a literatura secundária. São sobre ou de
fenomenologia, e não nela. Infelizmente, os autores destas obras muitas
vezes não compreendem isso apesar de ser uma das características de
grandeza daqueles que são estudados.
5.—O mais adequado no que diz respeito a alunos de pós-graduação
e académicos iniciantes pode mesmo ser encorajá-los a produzir trabalhos
de erudição. Se eles, como os comuns mortais, estiverem sujeitos aos juízos
dos outros, especialmente de outros de escolas de pensamento não
fenomenológicas, é mais seguro falar sobre o que um gigante credível do
passado pensou, em vez de anunciar abertamente uma posição original na
sua disciplina, ou sobre um tema ou método. Por exemplo, a lógica é
apenas marginalmente significativa no método fenomenológico, mas é
central ao que é investigado por Edmund Husserl; porém, dizer isto a um
filósofo analítico pode levar à perda imediata da sua atenção durante o
resto do tempo para o que se tem a dizer. Ou até mesmo dizer que se
depende fundamentalmente da observação reflexiva de processos mentais,
ou que se está profundamente interessado na forma como os indivíduos
fazem parte de grupos sociais, pode resultar em ser-se classificado como
instropecionista ou sociólogo – é difícil dizer qual dos dois é pior na
opinião da maioria dos filósofos anglófonos. Portanto, o trabalho erudito é
mais seguro quando se é vulnerável. E é mais fácil apreciar bom trabalho
erudito com outros pontos de vista.
6.—Então, naturalmente, pode sobretudo falar-se de fenomenologia
em vez de fazê-la. Por exemplo, pode falar-se da seguinte forma sobre as
Cartesianische Meditationen de Husserl: Como disse algures o último
assistente e colaborador do mestre, isto é uma repetição das Ideen de
87

Husserl, que começou como uma palestra na Sorbonne e foi estruturada


para celebrar o maior filósofo francês. A obra apoiou-se desde o início não
só na epoché, redução e purificação fenomenológica transcendental, mas
também tacitamente na epoché, redução e purificação egológica, enquanto
a epoché, redução e purificação eidética, que foi o tema proeminente da
parte I do primeiro livro das Ideen, é aqui curiosamente relegada para a
“Meditação IV”. Até ao ponto em que Husserl abandonou as Meditações a
favor da Krisis – que se dedica não só ao projeto de Wissenschaftlehre
propriamente dito, mas também aos tempos terríveis dos anos 20 e 30 em
particular na Alemanha pós-guerra –, considerou-as como a sua tese final.
Quanto ao texto no seu todo, ele é composto, na verdade, por dois textos:
um que é uma análise relativamente contínua nas primeiras quatro
“Meditações”, a quarta contendo, como sugeri há pouco, vários apêndices
ao caso proposto nas “Meditações I-III”, e o outro é um tratado sobre a
constituição de Outros. Muitos consideram este trabalho essencialmente
epistemológico e intelectualista, mas se lhe dermos mais atenção
descobrimos alusões a uma teoria fenomenológica dos valores e a uma
teoria de ação.
7.—O parágrafo acima pode ser interessante, mas será que mostra
como fazer fenomenologia? Seguindo o mesmo espírito, podíamos
continuar elaborando sobre os termos metodológicos, como por exemplo a
epoché, a redução e a purificação eidética, dizendo que Husserl manteve
desde o início que podemos, de algum modo, ver essências universais à la
Platão, apesar de esta “visão” estar fundada numa experiência real ou
ficcional de um caso particular que depois serve como exemplo da essência
universal ou eidos. Além do mais, Husserl avançou substancialmente a
metodologia da evidência eidética ao descrever o papel que a chamada
“variação livre de fantasia” desempenha no que poderá assim ser chamado
uma “essência pura”. Mas será que isto mostra como ver uma essência?
8.—Receio que o leitor já ouviu ou leu tantas afirmações como
aquelas que acabei de fazer, que pode ter dificuldade em conceber outro
tipo. Afinal de contas, os devotos a Aristóteles ou Hegel raramente
oferecem explicações aristotélicas ou hegelianas que essas figuras não
ponderaram antes. Será possível ensinar a fazer análises reflexivas em vez
de falar sobre o que elas são?

ALGUMAS QUESTÕES
88

9.—Talvez a forma de ensinar que se segue seja socrática porque


envolve questionar pelo professor e procura desenvolver ideias nos alunos.
No entanto, modo geral, Sócrates também assumiu, creio, que os seus
interlocutores tinham uma compreensão vaga das coisas e pedia-lhes para
as clarificar através de exemplos, e eu verifiquei que este método funciona.
Nesta abordagem, digo aos alunos que vou colocar questões sobre a análise
central em Análise Reflexiva e que espero receber respostas com bons
exemplos, e depois procedo sistematicamente. Para além da lista de
questões, há outras que as procedem que estão inluídas entre parênteses, e
encorajo o instrutor a desenvolver mais. Algumas das questões que se
seguem são “perguntas de rasteira”, isto é, perguntas que agem sobre
premissas falsas, porque os alunos precisam de estar atentos a perguntas
como essas.
#1. O que existe de comum no experienciar de todos os tipos e na
posicionalidade de todos os tipos, e como é que eles diferem
especificamente? (Como é que esta questão é o mesmo que perguntar
acerca de plantas e animais? Mas serão as coisas sobre as quais estamos a
perguntar concretamente diferentes ou apenas abstratamente? Que quero
dizer com esta pergunta? E, à medida que avanço, observo os outros alunos
para ver se estão a concordar ou não com aquele que responde, e pergunto-
lhes muitas vezes em que exemplos é que estão a pensar.)
#2. Há duas espécies de experienciar e três subespécies em cada
espécie, mas, para começar, o que é que as espécies têm em comum e como
é que diferem umas das outras? (O que é inobservável e está envolvido em
ambos? É possível observar estas espécies de alguma maneira nos Outros
ou apenas em nós mesmos? Os nossos exemplos têm de ser sérios ou
podem ser ficcionais?)
#3. Há alguma razão para começar com a experiência direta? E, entre
os três tipos de experienciar, há alguma razão para começar com a
perceção?
#4. De que maneira é que a perceção é diferente da recordação e da
antecipação? (Será que o experienciar só pode ser de coisas físicas? Como
é que os intermediários variam nestes três tipos?)
#5. Serão os intermediários diferentes na experiência indireta e na
experiência direta? (O que é diferente acerca das experiências envolvidas
em experiência indireta comparado com a experiência direta?)
89

#6. Imagine que alguém se recorda de algo duas vezes. A coisa


recordada é a mesma ou haverá antes duas coisas, e como é que elas
diferem, se é que diferem? (Será possível colocar a mesma questão acerca
de uma coisa – ou coisas – no futuro e, se sim, qual é a resposta? Não se
esqueça de dar exemplos tanto quanto possível.)
#7. Será que os objetos dos três tipos de experiência indireta têm de
estar em zonas temporais distintas tal como os objetos da experiência
direta? Aqui, se houver três tipos de experiência da realidade e três zonas
temporais (construa uma classificação cruzada 3x3), que exemplos se
adequam às nove classes bideterminantes? (Serão todos os objetos de
experiência realidades?; se não, então haveria mais três ou seis classes de
exemplos necessários e, se sim, quais é que seriam?)
#8. Será que há níveis de certeza para a crença, tanto negativa e
neutra como positiva? Será que o nível de certeza pode mudar?
#9. As mesmas questões para valorar e querer?
#10. Como é que gostar e amar são semlhantes e diferentes? Haverá
níveis de valoração?
#11. Será possível querer por querer? Tal como acreditar? Que
outros compostos semelhantes existem?
#12. Será possível recordar e percecionar por gostar e querer? Será
possível haver encontros em que essas reflexividades não ocorrem?
#13. Será possível percecionar o nosso próprio organismo de mais de
uma maneira? Visualmente? Como seu autor? Tatilmente? Privadamente?
#14. Que tem de acontecer no organismo para podermos ver e tocar o
nosso próprio pé? É possível percecionar a parte de trás da nossa cabeça?
Como e, se não, porquê?
#15. De que maneira é que tocar a mão de Outro é semelhante e
diferente de tocar a nossa própria mão?
#16. Que acontece a um cheiro quando tapamos o nariz?
#17. De que maneira é que uma cama e uma cadeira são semelhantes
e diferentes? Luvas e sapatos?
#18. Como é que algo pode parecer maior e mais sonoro quando a
distância entre essa coisa e o nosso organismo diminui?
#19. Sem ser através da linguagem, de que outra maneira podemos
saber se um Outro perceciona o mesmo que nós?
#20. De que maneira podemos ter a certeza de que algo não está
vivo? E, se não podemos, porquê?
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Comentários Finais:
A Necessidade de Análises Reflexivas

Ao longo dos últimos quarenta anos, assisti provavelmente a cerca de


quatro conferências de fenomenologia por ano e ouvi, pelo menos, seis
apresentações em cada uma delas. Isto resulta em quase 1000
apresentações, adicionadas a cerca do mesmo número de artigos e capítulos
de livros também considerados fenomenológicos que li nestes anos. Com
base nisto, posso dizer que praticamente todas estas expressões que são
consideradas fenomenonológicas são, na verdade, trabalhos de erudição
nos quais habitualmente encontramos interpretações perspicazes dos
escritos normalmente difíceis dos gigantes do passado da nossa tradição.
Gosto muito de ouvir e ler estes trabalhos de erudição e eu próprio já
contribuí com várias dúzias de itens a respeito de Dorion Cairns, Aaron
Gurwitsch e Alfred Schutz, assim como de Edmund Husserl, Maurice
Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre, e até do protofenomenólogo William
James. Não só participo de boa vontade nesta erudição, como reconheço
que é e será sempre profundamente necessária para nos ajudar a adquirir os
máximos benefícios do nosso passado grandioso. No que diz respeito à
erudição, só gostava que houvesse mais do estilo comparativo de aspetos
das posições dos nossos gigantes, porque creio que isso incentivaria mais
fenomenologia.
Porém, quase tudo o que acabei de referir pertence
fundamentalmente ao tipo de pesquisa que pode ser chamada, mais
adequadamente, erudição. Muitas vezes, uso “filologia” como sinónimo de
“erudição”, porque contrasta bem com “fenomenologia”. Esta filologia ou
erudição é literatura secundária, e não primária. É claro que muitas das
interpretações que ouvi e li indicam compromissos com posições
preestabelecidas, habitualmente do autor do texto interpretado. O que é raro
são objeções a este ou aquele aspeto da posição interpretada, e ainda mais
raras são as alternativas fenomenológicas oferecidas aos aspetos a que se
objetou, ou seja, correções fenomenológicas, já para não falar de
desenvolvimentos aprofundados das descrições das coisas em questão.
Quando é sugerido um acordo com a posição interpretada, também é
raro que esta concordância se afirme baseada na observação reflexiva das
coisas em questão. Já desafiei afavelmente amigos meus na nossa tradição
a este respeito, que por vezes me disseram que veem as coisas em questão
91

mesmo enquanto interpretam os textos escritos por outros. Quando


prossigo perguntando porque não o disseram ou, mais importante, porque
não avançaram com um refinamento da posição que interpretaram, os meus
amigos tipicamente não tiveram resposta. E também não oferecem uma
resposta quando lhes pergunto se têm objeções fenomenológicas, objeções
baseadas na observação das coisas em questão.
Uma interpretação como tal é verdadeira se o que foi afirmado pode
ser encontrado expresso ou implícito nos textos do autor que é interpretado.
(É interessante que pode tratar-se do mesmo autor que aquele que
interpreta: por exemplo, quando um autor interpreta um dos seus próprios
textos anteriores.) Se não é possível encontrar aquilo que é afirmado no
trabalho erudito nos textos do autor interpretado, então a interpretação é
falsa. Pode, apesar de tudo, ser verdadeira com respeito às próprias coisas
em questão, mas isto não é a mesma coisa que ser verdadeira em relação
aos textos.
Em contraste com a erudição ou filologia, que, uma vez mais, é
verdadeira ou falsa em relação a textos que já foram produzidos, os tipos de
temas produzidos no que eu prefiro chamar “investigações” – que, na nossa
tradição, são muitas vezes chamadas “descrições” – são verdadeiros ou
falsos em relação às coisas. É possível que as coisas em questão sejam
textos e, nesse caso, estamos a explorar questões como “O que é um
texto?”, “Como é que textos ou discursos se referem tanto a coisas como a
outros textos e discursos?”, “Como é que um texto é verdadeiro ou falso
em relação a textos ou discursos, assim como em relação a outras coisas?”,
etc., e, assim, desenvolvemos uma fenomenologia da interpretação, ou
hermenêutica. No entanto, normalmente, uma descrição é verdadeira ou
falsa acerca de uma coisa em questão que não é um texto, e a sua verdade
ou falsidade, em fenomenologia, é avaliada segundo a observação reflexiva
das coisas em questão.
A conclusão do que estou a dizer é que muito pouco do que é, ou
seria chamado pelo seu autor, “fenomenologia” nas cerca de 2000
expressões que ouvi ou li ao longo dos anos da minha experiência na nossa
tradição não é realmente fenomenologia, mas antes filologia ou erudição.
Como já disse, também carrego alguma da culpa neste contexto, apesar de
que, desde o meu primeiro ensaio e progressivamente mais ultimamente,
tenho tentado desenvolver textos fenomenológicos num estilo que agora
chamo “análises reflexivas”. Estes textos são acerca das próprias coisas e
92

estão escritos de tal forma, que espero que o leitor ou ouvinte efetivamente
não pergunte “Onde é que uma grande figura do passado expressa o que
está aqui a ser afirmado interpretativamente?”, mas antes se dirija para as
próprias coisas em questão e pergunte se elas são como eu disse que são.
Menções de autoridades importantes, citações e notas de rodapé são
algumas das maneiras pelas quais é possível conduzir o leitor ou ouvinte a
examinar o que se diz como uma peça de trabalho erudito; por outro lado, é
melhor incluir pouco, ou nenhum, “aparato de erudição” numa descrição ou
análise reflexiva baseada nas coisas em questão.
Se me perguntam sobre a audiência dos cerca de 2000 discursos e
textos que procurei compreender ao longo destes anos, a resposta é
simples: tipicamente, são os meus colegas profissionais que são
proficientes nesta erudição técnica; assim, pertencem a uma especialidade,
a uma escola de pensamento ou, pelo menos, a uma disciplina académica.
Se, por contraste, me perguntam a quem se dirigem as investigações em
vez dos textos eruditos, podem incluir-se ouvintes e leitores que não estão
necessariamente familiarizados com aparatos técnicos; assim, podemos
também pensar em colegas profissionais de outras áreas, especialidades ou
escolas de pensamento, e podemos, acima de tudo, pensar em alunos.
Pondo de parte os colegas profissionais, o que é que os alunos aprendem
para além de como produzir trabalho erudito se tudo o que leem e ouvem é
erudição? Será que é algo mais do que simplesmente como produzir mais
trabalho erudito, e não será verdade que o método de erudição é
interpretação de textos em vez da observação reflexiva das coisas em
questão (que, regra geral, não são textos)? Não é surpreendente que alguns
colegas tenham questionado se a nossa magnífica tradição não estaria a
degenerar em algo como um tipo de história da filosofia do século XX
meramente particular. No sentido de evitar esse caminho, defendo que
precisamos de muito ensino, para além de escrita, não em filologia mas em
fenomenologia ou, mais uma vez, análise reflexiva.
Já publiquei um livro que agora existe em dez idiomas, com outros
por vir, sobre aquilo que acredito serem análises reflexivas, e até tenho a
ideia de que se trata de uma análise reflexiva sobre a abordagem de análises
reflexivas. (Promovi traduções para idiomas menos comuns assim como
para os mais comuns, como castelhano, francês, português e russo, porque,
apesar de cada vez mais a comunicação entre profissionais se fazer em
inglês, os meus colegas dizem-me que ensinam maioritariamente nas suas
93

línguas nativas e, para benefício dos seus alunos, usam mais materiais
escritos nessas línguas.) O meu texto reconhece as figuras com quem
aprendi num parágrafo, tem apenas uma nota de rodapé e nem uma única
citação. (Ver a Introdução, acima.)
Com certeza que não sou o primeiro a produzir textos deste género,
já que se encontram muitos na nossa tradição, começando pelo menos com
Princípios de Psicologia (1890), de William James. Já agora, os gigantes
do passado da nossa tradição que tanto idolatramos produziram muito
pouco trabalho erudito.
O que espero que aconteça é que estas descrições desenvolvidas por
mim e por outros sejam ensinadas através da sua distribuição, uma de cada
vez, a alunos avançados na licenciatura, ou a alunos de pós-graduação, para
serem preparados na noite anterior, e que depois haja sessões de seminário
conduzidas de modo socrático pelo instrutor, perguntando coisas como:
“Qual é o tema desta análise reflexiva?”, “Haverá um nome melhor?”, “Já
tinham pensado nisso?”, “Conseguem encontrar na vossa própria vida
mental exemplos reais e ficcionais das coisas discutidas?”, “Esses
exemplos são como se descrevem nesta análise reflexiva?”, “Se não, de que
outra maneira poderiam ser mais bem descritos?”, “Acham que as
correções e refinamentos feitos por outros alunos estão corretos?”, “Se os
acham verdadeiros até ao ponto onde vão, conseguem levá-los mais longe,
ou seja, refiná-los vocês mesmos com descrições baseadas numa análise
reflexiva?” Todos nós temos alguma ideia da nossa vida mental com que
começar e podemos, especialmente se tivermos ajuda, continuar a refiná-la
com uma vasta prática, tornando-a numa competência. Deste modo, espero
que haja mais fenomenólogos que filólogos no futuro. Precisamos de mais
fenomenólogos e as análises reflexivas são um meio para o fim de
providenciar esta necessidade.
Neste momento, não ensino alunos de doutoramento, mas se
ensinasse, antes de tudo, ensinava-os a fazerem análises reflexivas e, deste
modo, a serem fenomenólogos. Mas também os encorajaria principalmente
a publicar trabalhos eruditos quando se graduassem e até terem contrato
efetivo. A razão para tal é que o trabalho erudito é mais fácil de fazer e
pode ser sempre produzido ano após ano, porque é mais fácil para colegas
de outras escolas de pensamento perceberem, e é mais seguro porque se
apoia em trechos escritos por autoridades reconhecidas em vez de se basear
nas análises reflexivas de cada um, que precisam de confirmação através de
94

análises reflexivas de outros. Mas também os aconselharia a lembrarem-se


de produzir mais e mais fenomenologia assim que tivessem um contrato
permanente e, assim, tornarem-se nos fenomenólogos que foram treinados
para ser.
Uma das razões pelas quais os alunos e muitos profissionais já
estabelecidos hesitam em fazer fenomenologia é a de que os gigantes do
passado muitas vezes produziram análises impressionantes do tamanho de
livros, que poucos de nós se sentem capazes de repetir. Mas eu insisto que,
para começar, consideremos refletir em coisas sobre as quais podemos
explorar a compreensão em cerca de uma dúzia de páginas; é o que tenho
tentado fazer. Uma outra razão por que se pode hesitar em tentar fazer
fenomenologia em vez de filologia deve ter a ver com o que nos
habituámos a fazer e também com o que vemos os outros fazer. Mas, se
olharmos uma vez mais para o que os maravilhosos gigantes do passado
fizeram, deparamo-nos com análises reflexivas tanto curtas como
compridas, e então podemos resistir ao conformismo e encontrar a coragem
para combater o hábito através de uma prática continuada e disciplinada. E
não há dúvida de que a análise reflexiva requer prática.
O incentivo a mais fenomenologia e menos filologia não é de modo
algum original. Apenas a minha insistência no tipo de análises reflexivas
concisas e orientadas para as coisas e o seu ensino socrático em turmas
pequenas pode ser invulgar. Sem a aprendizagem e a prática da capacidade
de fazer análises reflexivas na próxima geração, a nossa tradição morrerá.

finis

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