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A referência à loucura na primeira meditação à luz da leitura foucaultiana1

Dante Andrade Santos (mestrando, UNICAMP)


GT – Estudos Cartesianos

Resumo: O objetivo deste trabalho é explorar o papel filosófico da referência à loucura na


Primeira Meditação cartesiana à luz da leitura foucaultiana. Antes de introduzir o argumento
do sonho, Descartes faz alusão ao pensamento dos loucos. A questão é entender por que, no
percurso da dúvida, Descartes não desenvolve a hipótese da loucura e a esgota como
argumento, tal como faz com o sonho. Será que essa passagem caracteriza a exclusão da
loucura da ordem do conhecimento, como sustenta Foucault? Se confirmada, tal exclusão
compromete em alguma medida a empresa cartesiana? Entendemos que a questão acerca da
loucura constitui uma importante chave de acesso ao problema do conhecimento no contexto
do projeto cartesiano de fundamentação e reorganização do saber.

Palavras-chave: dúvida, sentidos, loucura, sonho.

1
Este trabalho é fruto de uma pesquisa que conta com apoio da FAPESP.
Descartes escreveu as Meditações em meados do século XVII. Desde então, essa obra
é analisada por diversos autores das mais diversas vertentes filosóficas. A Primeira
Meditação, sobretudo, tem sido objeto privilegiado de discussões.
No terceiro parágrafo da Primeira Meditação, Descartes nota que os sentidos às vezes
são enganosos e é prudente nunca confiar inteiramente em quem já nos enganou alguma vez.
Todavia, essa primeira razão de duvidar é insuficiente para rejeitar completamente a realidade
sensível:

Mas, talvez, apesar de os sentidos nos enganarem às vezes acerca de certas coisas miúdas e
muito afastadas, muitas outras coisas haja, contudo, sobre as quais não se pode de modo
algum duvidar, não obstante hauridas dos sentidos. Por exemplo, que agora estou aqui,
sentado junto ao fogo, vestindo esta roupa de inverno, tendo este papel às mãos e coisas
semelhantes. Em verdade, qual a razão para que possa negar essas próprias mãos e todo o
meu corpo? (DESCARTES, 2004, Primeira Meditação, p. 23).

Apesar de ter afirmado que bastava o menor motivo de dúvida para rejeitar todo um
gênero de opiniões e apesar dos sentidos em algumas situações já terem se revelado
enganosos, Descartes diz que há coisas sobre as quais não se pode razoavelmente duvidar,
embora tenham sua origem nos sentidos. Quer dizer, mesmo que nossa percepção sensível não
forneça um conhecimento confiável da realidade, mesmo equivocada, uma percepção sensível
pressupõe um sujeito que percebe e objetos que o afetam.
O argumento do erro dos sentidos chega, assim, ao seu limite. Afinal, por que colocar
sob suspeita uma crença tão manifesta como a de que possuo sentidos – eles me enganem ou
não; que os sentidos, por sua vez, pressupõem um corpo – o qual percebe e interage com
outros corpos; que estes corpos ocupam um lugar no espaço e outras coisas dessa natureza? A
não ser talvez:

(...) que me compare a não sei quais insanos, cujo cérebro foi a tal ponto afetado pelo negro
vapor da bílis que constantemente asseveram ou que são reis, sendo paupérrimos, ou que se
vestem de púrpura, estando nus, ou que têm a cabeça feita de barro, ou que são inteiramente
cabaças ou confeccionados em vidro. Mas eles são dementes e não pareceria menos
demente do que eles, se neles buscasse algo como exemplo para mim (ibidem. pp. 23 e 24).

Eis aqui o ponto que nos interessa, a controversa referência aos insanos 2. Eles são
caracterizados como pessoas doentes, cujo cérebro e, por consequência, algumas aptidões,
estão comprometidas “pelo negro vapor da bílis”. Comprometimento que se observa quando

2
Em latim “insanis” e “demens”. Em Francês “fous”.
elaboram certas representações, sem correspondência com a realidade tal como experimentada
pela maioria das pessoas. Descartes não explora o tema, não o faz agora nem ao longo das
meditações seguintes. O tema não reaparece nem mesmo quando Descartes retoma em revisão
o percurso traçado pela dúvida na Primeira Meditação.
Logo após a referência aos insanos é introduzido o argumento do sonho. O desafio que
ele levanta é basicamente o seguinte: se, quando sonhamos, a mente humana é capaz de
reproduzir o mundo exterior sem o intermédio dos sentidos, isso que supomos ser a nossa
experiência real não poderia talvez ser apenas uma criação da mente humana? Uma criação,
no entanto, tão sofisticada que é vivenciada como a experiência real de um sujeito desperto.
A questão que gostaríamos de investigar é se, antes de evocar a hipótese de um sujeito
sonhador, Descartes não poderia ter evocado a hipótese de um sujeito delirante para colocar
em dúvida o estatuto da realidade? Se ao delirar que está em outro planeta, um sujeito é capaz
de imaginar com cores vivas que lá se encontra e ter plena convicção disso, a loucura não
seria um bom argumento para problematizar o estatuto da realidade exterior?

***

Esse problema ganha relevância especialmente a partir de um debate travado entre


Michel Foucault e Jacques Derrida. Até então, a referência aos insanos esteve à margem dos
círculos de debates cartesianos. Se eventualmente fora lembrada, permaneceu, todavia, na
condição de um tema marginal3. Nesta ocasião, privilegiaremos o diálogo com a interpretação
foucaultiana, tal como apresentada em História da Loucura4, uma vez que ela corresponde ao
primeiro episódio dessa polêmica e representa o ato intelectual, senão pioneiro, aquele que
põe o problema em questão em um lugar de destaque.
A tese central5 da interpretação foucaultiana é que na Primeira Meditação Descartes
3
Segundo Derrida, Foucault é o primeiro a problematizar o tema da loucura na primeira meditação e tomá-lo em
um sentido filosófico isolado do sonho. Cf. DERRIDA, Jaques (2009). Cogito e História da Loucura. Em: A
escritura e a diferença. Tradução: Maria Beatriz M. Nizza da Silva, Pedro L. Lopes e Pérola de Carvalho. SP:
Perspectiva, 4ª ed.
4
FOUCAULT, Michel (1978). História da Loucura na Idade Clássica. Tradução: José Teixeira Coelho Neto. SP:
Perspectiva, 8ª ed.
5
Em História da Loucura Foucault associa outras teses a essa tese central: (i) a exclusão da loucura configura um
corte epistêmico entre Montaigne e Descartes que marca o advento de uma nova ratio no século XVII; (ii) o
resgate da loucura dessa zona de exclusão na qual fora lançada só será feito, mesmo assim parcialmente, na
Fenomenologia do Espírito de Hegel. No prefácio da primeira edição (Folie et Déraison: Histoire de la folie à
l'âge classique, 1961), que desaparece nas reedições da obra, observa-se ainda uma terceira tese, também
associada à problemática da historicidade da relação entre razão e loucura: (iii) o logos grego não tinha contrário,
exclui a loucura do exercício racional, exclusão que a manterá em silêncio ao longo de todo o
século XVII:

Descartes não evita o perigo da loucura do mesmo modo como contorna a eventualidade do
sonho ou do erro. (...) Na economia da dúvida, há um desequilíbrio fundamental entre a
loucura, de um lado, e o sonho e o erro, de outro. A situação deles é diferente com relação à
verdade e àquele que a procura; sonhos ou ilusões são superados na própria estrutura da
verdade, mas a loucura é excluída pelo sujeito que duvida. Como em breve será excluído o
fato de que ele não pensa, que ele não existe (FOUCAULT, 1978, pp. 52 e 53).

Segundo Foucault, as hipóteses que surgem no percurso da dúvida são tratadas de


modo desigual e isso gera uma espécie de desequilíbrio na sequência da Primeira Meditação.
Para explicar essa tese, é conveniente recuperar rapidamente a sequência da meditação: o
primeiro passo no processo de derrubada das antigas opiniões é a suspensão de todo
conhecimento obtido através dos sentidos, já que em algumas situações se revelam enganosos.
Remanescem, porém, coisas “sobre as quais”, aparentemente, “não se pode duvidar, não
obstante oriundas dos sentidos”. Duas provas surgem, então, para completar o desafio. A
primeira é a loucura. A segunda é o sonho. A possibilidade da loucura é imediatamente
recusada pelo sujeito que medita. A experiência do sonho, ao contrário, é explorada e leva
adiante o ataque aos sentidos. Aqui estaria o desequilíbrio que Foucault denuncia: duas
provas, mas apenas uma solução.
Na medida em que não aceita se pautar pelos insanos, no quarto parágrafo da Primeira
Meditação o filósofo teria banido a ameaça da loucura do interior do exercício racional.
Seguindo a trilha dessa tese, Foucault conclui que antes de a dúvida atingir seu ápice,
Descartes já possui uma certeza: a certeza de que ele próprio,“enquanto filósofo, tendo por
objetivo duvidar, com firme propósito, não pode ser um desses insensatos” (ibidem, p. 377).
Embora Foucault não se detenha por muito tempo sobre a análise do texto cartesiano 6,
o seu comentário reacende importantes debates em torno da Primeira Meditação. Sobretudo,
parece-nos que ele pretende apontar, de maneira mais ou menos explícita, uma fragilidade na
argumentação cartesiana. A análise de Foucault abre precedentes para que se questione por
que, antes de introduzir o argumento do sonho, Descartes não invocou a hipótese da loucura,

ou seja, no exercício racional grego não havia separação entre razão e loucura. Esta última tese reforça o papel
central que, de acordo com Foucault, Descartes assume na história da relação entre razão e loucura.
6
Foucault não está interessado em História da Loucura em fazer uma interpretação exaustiva do texto cartesiano,
pois, do seu ponto de vista, o seu objeto não se esgota na análise teórica dos textos que constituem a História da
Filosofia. O comentário do texto cartesiano é breve e introdutório. Antecipa, no segundo capítulo do livro, a
análise de acontecimentos históricos que são prioridade do seu trabalho.
uma vez que a referência textual aos insanos é anterior e parece prestar-se à mesma finalidade
que o sonho. Afinal, será que uma vez sugerida a hipótese da loucura, explorá-la enquanto
argumento não seria mesmo uma necessidade lógica e, portanto, a sua ausência configuraria
uma fragilidade teórica no percurso da dúvida?
Tendo em vista que Foucault aponta a exclusão da loucura no texto cartesiano como o
antecedente, no plano epistemológico, do processo de exclusão social do qual os loucos
viriam a se tornar vítimas, ele deixa subentendido que a exclusão da loucura na Primeira
Meditação é conduzida por razões exteriores ao texto, configurando uma espécie de rejeição
ideológica da loucura.

***

Julgamos que, de fato, Foucault tem razão ao dizer que há uma recusa da loucura na
Primeira Meditação. Porém, julgamos que essa recusa não compromete a coerência e a
legitimidade do projeto cartesiano, tão-pouco seria ela ideológica. Se Foucault subentende que
a recusa da loucura é arbitrária, voluntariosa ou mesmo ideológica, parece-nos que é porque
ele formula mal o problema que a referência aos insanos levanta. Foucault coloca o problema
nos seguintes termos:

Quando creio ter um corpo, posso ter a certeza de possuir uma verdade mais sólida do que
aquele que supõe ter um corpo de vidro? [Foucault responde com o texto cartesiano] Sem
dúvida, pois “são loucos, e eu não seria menos extravagante se seguisse o exemplo deles”
(ibidem, p. 53).

Entendemos que não se trata de comparar a força da crença do sujeito que medita com
a força da suposição do louco para avaliar quem possui “uma verdade mais sólida”. Não se
trata de comparar a intensidade das respectivas crenças. Se fosse essa a questão, seria razoável
concluir, em consonância com Foucault, que a recusa da loucura é ideológica. Porém, a
questão é outra. Quando Descartes se refere à loucura, observa-se que ele se refere a “esses
insanos” - Descartes diz: “A não ser talvez que me compare a não sei quais insanos” - ou seja,
a um certo grupo, um grupo específico, de pessoas. Por outro lado, quando se refere ao sonho,
Descartes recorre à sua condição geral enquanto “homem” - Ele diz: “devo aqui considerar
que sou homem7” - quer dizer, um indivíduo pertencente à espécie humana. Dito de outro
7
Neste trecho optamos por utilizar a tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Jr em: DESCARTES. Obra
Escolhida. RJ: Bertrand Brasil, 1994, 3ª ed.
modo, o sonho é uma experiência universal, compartilhada por todos os homens, ao passo que
a loucura é uma experiência restrita, vivida apenas por um certo grupo de pessoas.
Nesse sentido, enquanto o sonho é vivenciado diretamente por todos os homens, a
loucura é uma experiência que não está acessível àqueles que não compõem esse grupo
específico, a não ser através de relatos – Descartes diz se referindo aos insano:
“constantemente asseveram ou que são reis... ou que se vestem de púrpura...”. Trata-se, desse
modo, de uma situação diretamente acessada por todos os homens, em oposição a uma
experiência cuja maior parte dos homens só tem acesso através de relatos.
Portanto, o argumento do sonho atende a condições que a experiência da loucura
fatalmente não pode atender. Isso torna o sonho uma razão de duvidar preferível, em
detrimento de um possível argumento da loucura. Em todo caso, se a loucura é recusada como
razão para duvidar, os loucos, entretanto, não estão excluídos, pois, assim como qualquer
homem, na medida em que sonham, também estão contemplados pelo argumento do sonho.
Apesar do papel da vontade na primeira meditação, a dúvida cartesiana não é
voluntariosa, ou seja, ela não é guiada por caprichos. Quando declara sua intenção de se
desfazer das antigas opiniões, Descartes previne o leitor de que não será preciso demostrar
que todas elas, uma por uma, são falsas, pois: “(...) bastará que encontre, em cada uma,
alguma razão de duvidar para que as rejeite todas” (DESCARTES, 2004, Primeira
Meditação, p. 23). Em poucas palavras, Descartes precisa de razões para duvidar, de firmes
razões.
Curiosamente é o próprio Foucault quem apresenta a chave interpretativa que elucida
o problema e põe abaixo a ideia de uma exclusão ideológica ou arbitrária da loucura. É
Foucault quem destaca que Descartes “enquanto filósofo, tendo por objetivo duvidar, com
firme propósito, não pode ser um desses insensatos”. Ora, que significa “duvidar com firme
propósito”, nesta altura da Primeira Meditação, senão ter uma razão de duvidar capaz de
abalar a confiança na percepção sensível?
Esse papel a loucura não pode desempenhar. Além de se tratar de uma experiência
restrita a um certo número de indivíduos, à qual só temos acesso indiretamente, através de
relatos, é fundamental notar o modo como Descartes caracteriza os insanos: pessoas cujo
cérebro foi afetado “pelo negro vapor da bílis”. Antes de ser apresentado como uma pessoa de
pensamento bizarro, o louco é caracterizado como um indivíduo cujo cérebro se encontra
comprometido por uma doença. Trata-se de uma experiência de desajuste no pensamento, mas
que resulta de um mal funcionamento da estrutura biológica. De tal sorte que, aliada às razões
apresentadas acima, mais um motivo obriga Descartes a recusar a loucura: ela, tal como
Descartes a descreve, pressupõe o corpo em um estado específico. Se ela implica a existência
do corpo, não pode radicalizar o ataque aos sentidos.
Para desferir esse ataque, Descartes precisa de uma experiência racional capaz de
representar a realidade exterior de corpos sensíveis, mas que prescinda dessa mesma
realidade. Na Sexta Meditação, ao retomar a problemática da primeira, Descartes afirma:

(…) Apesar de as percepções dos sentidos não dependerem da minha vontade, não julgava
devesse por isso concluir que elas procediam de coisas diversas de mim, pois talvez
pudesse haver em mim, a causá-las, uma faculdade ainda não conhecida (DESCARTES,
2004, Sexta Meditação, p. 167).

O argumento do sonho é a realização dessa possibilidade. Ele atua como uma espécie
de experimento racional que ameaça a relação entre imagem e sensibilidade. Se quando
sonhamos somos capazes de elaborar imagens dos objetos exteriores, sem a participação deles
e sem a mediação dos sentidos, ou seja, em um nível puramente ideal, talvez sequer haja uma
realidade sensível. Talvez, por exemplo, uma faculdade até então desconhecida seja, sozinha,
responsável pela produção das imagens sensíveis.
Entendemos, assim, que a recusa da loucura no quarto parágrafo da Primeira
Meditação, de modo algum compromete a engenhosidade da empresa cartesiana. Tão longe
quanto podemos ver, a loucura, tal como descrita no texto em questão, consistiria mais em um
problema neurofisiológico do que propriamente metafísico. Antes de um problema para a
filosofia, um problema para a medicina.
BIBLIOGRAFIA:

DERRIDA, Jaques (2009). Cogito e História da Loucura. Em: A escritura e a diferença.


Tradução: Maria Beatriz M. Nizza da Silva, Pedro L. Lopes e Pérola de Carvalho. SP:
Perspectiva, 4ª ed.

DESCARTES, René (2004). Meditações sobre Filosofia Primeira. Tradução: Fausto Castilho,
Ed. bilíngüe em latim e português. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.

______ (1994). Obra Escolhida. Tradução: J. Guinsburg e Bento Prado Jr. Prefácio e Notas:
Gérard Lebrun. RJ: Bertrand Brasil, 3ª ed.

FOUCAULT, Michel (1978). História da Loucura na Idade Clássica. Tradução: José Teixeira
Coelho Neto. SP: Perspectiva, 8ª ed.

______ (2006). Prefácio (Folie et déraison). Em: Problematização do sujeito: psicologia,


psiquiatria e psicanálise. Tradução: Vera Lúcia A. Ribeiro. Organização e seleção de textos:
Manoel Barros da Motta. RJ: Editora Florense Universitária, 2ª ed.

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