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Todos os direitos da obra reservados a Felipe Melo

Autor: Felipe Melo

Ilustrações: Carolina Mancini


Projeto gráfico: Marcelo Amado

Revisão: Celly Borges

Editor responsável: Marcelo Amado

Melo, Felipe

Ele precisava ir
ilustrações de Carolina Mancini. – São José dos Pinhais, PR: Página 42 Editora, 2014.
90 pg.

ISBN: 978-85-64590-71-7
1. Ficção brasileira. I. Melo, Felipe. II. Mancini, Carolina
CDD-813

Índice para catálogo sistemático:


1. Romance: Literatura Brasileira

São José dos Pinhais, PR


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Àquelas que me encorajam e sabem quem são.
O SINAL 11
CONTATOS, IMPRESSÕES 13
CONSEQUÊNCIAS DO TEMOR AO ÓDIO 19
A PONTA DO ICEBERG 21
ACULTURAÇÃO 26
AGRADECIMENTO AO APRENDIZ HEROICO 29
FIM DO MEIO 31
ESPECULAÇÕES: uma primeira intervenção 32
INTERVENÇÕES A SI PRÓPRIO 33
CANAIS 35
CONFRONTAÇÃO 38
DAS PRIMEIRAS APARÊNCIAS DAS NOVAS APARÊNCIAS 41
CORTINAS 44
A OUTRA FONTE 48
O CONTEXTO DO TROCO 53
A TRADUÇÃO 57
NOVOS PASSOS 59
AGORA 60
EFEITOS 61
EI EO 62
APÓS 64
65 DAS BENESSES DAS INTERVENÇÕES
70 FRACTAIS
71 COTIDIANO
72 PROBLEMAS NA INFRA
73 DAS AINDA OBSERVAÇÕES COTIDIANAS
74 PREPARAÇÃO PARA AS INTERIORIDADES
75 ATÉ QUEM ENFIM, ELAS
76 REAÇÕES À ESSÊNCIA DAS INTERIORIDADES
80 DA DESCOBERTA E DO RETORNO
82 APLICAÇÕES
83 AGRADECIMENTOS
87 É
89 DE LÁ
91 LÁ
92 ÚLTIMO JÁ
O SINAL

E le precisava ir. Não sabia por que ou para onde, mas precisava
ir. Aquela sensação de aperto que apenas se extinguiria com o
movimento da partida tornava-se mais intensa a cada dia, a ponto de
fazer com que as noites se tornassem masturbações mentais onde as
cenas de volúpia eram compostas por paisagens móveis vistas através
da janela de um ônibus. Era manhã de uma quinta-feira, mais precisa-
mente 5h2min, quando ele finalmente sucumbiu à pressão.
À medida que o sol crescia forte no horizonte, porém, uma sen-
sação de desconforto foi-se assomando, e quando o cobrador veio
exercer seu ofício, ouviu que o destino seria a cidade mais próxima.
Trinta e cinco minutos depois, lá estava ele.
Apesar da proximidade entre as cidades de origem e destino, o
viajante jamais ouvira qualquer menção a essa última, e aproveitou a
sede de movimento para guiá-lo em uma pequena expedição turística.
Enquanto caminhava, tentava buscar na memória seu último so-
nho, o sonho que o motivara a partir naquela manhã. No sonho ele
avistava a partir da janela de sua casa, um pequeno cão, de costas, me-
neando agitadamente a cabeça, como se destruísse vorazmente com

Ele precisava ir. . | 11


seus caninos algo bastante duro. De repente o cão se virou e permitiu
ao observador descobrir que o objeto sendo destruído era um frasco
cheio de desodorante antitranspirante. A boca do animal estava com-
pletamente branca e espumosa em razão do conteúdo. O cão tentou
latir, porém nenhum som foi emitido. Ao invés disso, uma bolha sur-
giu de sua boca e foi até o observador, estacionando em frente ao seu
rosto. O observador a estourou com o dedo indicador direito e ouviu
uma doce, porém autoritária, voz feminina instruindo:
Vá! Acorde agora e vá. Mas saiba que apenas ao entardecer você será apre-
sentado às interioridades. Acorde e vá.
O sonhador despertou assustado, e, após alguns segundos neces-
sários para espantar o torpor do sono, conferiu a hora. Eram 3h58min,
e ele sabia que os ônibus começavam a circular às 5h, a partir da estação
rodoviária. Como sua casa ficava aproximadamente quarenta minutos
à pé da estação, se começasse a se aprontar imediatamente, conseguiria
partir no primeiro ônibus. Levantou-se, colocou na mochila cinco cue-
cas, três pares de meias, duas camisas e duas bermudas. Apanhou na
cozinha uma cenoura e uma beterraba que foram também guardadas,
e partiu em direção ao terminal rodoviário.

12 | Felipe Melo
CONTATOS, IMPRESSÕES

V oltando sua atenção para o percurso, percebia que a cidadezi-


nha nada tinha de interessante. Era uma típica cidade de interior,
com pouco movimento, pessoas a cavalo e reuniões à porta das casas logo
cedo, a fim de discorrer sobre a vida alheia. Sendo assim, era natural que
todos que o vissem se pusessem imediatamente a indagar a si mesmos,
porém em voz alta, qual seria a procedência do rapaz. Um senhor, cuja
filha estava grávida de um pai desconhecido, logo disparou: conheço esse tipo,
deve ter vindo para essas bandas a fim de bulir com as meninas daqui. Seu amigo, que
possuía uma quitanda falida por excesso de inadimplência, comentou: acho
que não, pelo jeito deve ser um ladrão que veio fugido da cidade grande. Passando em
frente a um bar que acabara de abrir e espantar três homens alcoolizados
de sua porta, a suposição foi a seguinte por parte do dono do recinto: deve
ser mais um Zé ninguém alcoólatra procurando mais um otário para vender cachaça
fiada. Já os três bêbados imediatamente comemoraram a chegada daquele
que seguramente pagaria uma rodada de conhaque para cada um, a fim
de alegrar a manhã. Porém nenhum deles foi corajoso o suficiente para
abordar o estranho, a não ser um homem que vinha a cavalo e de pronto
teve certeza de que era, aquele desconhecido, um adestrador de potros que
apresentavam problemas no parto.

Ele precisava ir. . | 13


Sem mais demora o homem do cavalo se apresentou ao viajante
e perguntou a respeito do valor de sua hora de trabalho e se poderia
começar logo, posto que sua égua já estava, havia mais de um mês, em
trabalho de parto. O abordado não entendeu. O homem do cavalo
explicou sua necessidade com relação aos filhos de égua, rebeldes. O
viajante disse que algum engano deveria estar em curso, dado que ele
nada entendia de éguas ou potros, seu negócio era outro. O homem
sobre o cavalo respondeu que não tinha tempo para detalhes e que o
adestramento deveria começar já. O viajante então se agachou.
Imaginando não ter começado bem a negociação, o homem des-
ceu do cavalo para verificar a razão do agachamento e averiguou que
o viajante havia se abaixado para amarrar os cadarços. Mais calmo,
perguntou novamente o valor da hora de trabalho do agachado, que
imediatamente tapou os ouvidos com os dedos indicadores a fim de
mostrar que não estava mentindo, o que fez com que o dono da égua
finalmente se desse por vencido.
Após se virar e fazer montaria, o homem já se preparava para
partir quando repentinamente voltou-se para o viajante e, desta vez,
com um tom inquisitivo que era quase sonoro a partir de sua expressão
facial. Fitou o rapaz não nos olhos, mas no tórax e disparou:
– Se não adestra potros, mostre-nos algo então.

14 | Felipe Melo
Após dizer isso, fez um sinal no ar com o dedo mínimo e no
instante seguinte todos os moradores da cidade dirigiam-se apressa-
damente ao local. Vieram duas senhoras, mãe e filha, segurando uma
panela cheia de feijão preto e uma vassoura de palha, respectivamente.
Vieram também um senhor segurando a calça larga para que não caís-
se, um homem com um chicote, açoitando o chão e emitindo um solu-
ço a cada açoite e até o prefeito, que veio correndo ao mesmo tempo
em que vestia sua faixa de autoridade, seguido por dois assessores que
traziam sua cadeira. Quando avistaram o prefeito, todos os presentes
sentaram-se no chão – à exceção do homem que trazia o chicote, que
utilizou o artefato para amarrar-se a um poste.
Os assessores colocaram a cadeira em frente ao viajante. Após sen-
tar-se, confiante, o prefeito lançou um sorriso desafiador para a figura de
mochila à sua frente e disparou em tom de deboche: vamos, mostre-nos algo
então, senhor não adestrador de potros. O viajante sentiu uma leve apreensão.
Precisava mostrar àquela gente, precisava provar que não adestrava potros.
Mas a natureza de seu negócio era outra, e não permitia grandes demons-
trações, principalmente para plateias. Então, após pensar durante quatro
segundos teve uma ideia que sem dúvida provaria a todos que potros não
figuravam entre suas especialidades. Calmamente, deixou cair sua mochila,
e retirou de lá a beterraba que havia pegado na cozinha de sua casa antes

Ele precisava ir. . | 15


de partir. Ao defrontar-se com a leguminosa o homem do bar rapidamen-
te pôs-se de quatro e foi ligeiro buscar uma faca. Após sua saída, todos
se puseram a esperar e para tanto se sentaram de costas para o viajante, à
exceção do prefeito, que começou a brincar com os próprios cadarços, e o
homem com o chicote, que começou a morder a língua.
Tão logo o homem do bar retornou, todos se viraram novamente,
efusivos, alguns esfregando as mãos de excitação, algumas mães tam-
pando os olhos das filhas, pois, alguns casais, não resistindo às provo-
cações da cena, puseram-se a copular ali mesmo. O homem do chicote
uivava desesperadamente. O clímax se aproximava. O viajante tomou
a faca da boca do homem do bar e em seguida retirou um pedaço da
beterraba que estava em suas mãos. O prefeito então se colocou de jo-
elhos e começou a bater a testa violentamente contra o chão, enquanto
gritava com uma voz que lembrava o sacrifício de um suíno: Vai! Vai!
Vai! Sem mais delongas o viajante ofereceu a prova cabal. Colocou na
boca o pedaço da beterraba e após oito mastigações exibiu sua língua,
que estava completamente roxa. Vendo aquilo o prefeito deixou-se
cair, completamente exaurido, e foi seguido por todos os presentes,
exceto o homem com o chicote, que continuou uivando, porém agora
cada vez mais baixo. E todos ficaram ali, deitados com a barriga para
baixo e o rosto virado para a esquerda, suspirando.

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Exatos quinze segundos se passaram – era o tempo padrão – até
que todos se recobrassem. Após esse intervalo, todos se levantaram
ao mesmo tempo e foram embora, cada grupo seguindo uma direção.
O homem do bar entrou em seu estabelecimento e de trás do balcão
atirou com toda força três tabletes de chocolate no rosto do viajante
e concluiu: é isso. O atacado apanhou os tabletes e colocou-os em sua
mochila.

Ele precisava ir. . | 17


CONSEQUÊNCIAS
DO TEMOR AO TÉDIO

C omo ainda estava muito cedo e o viajante não nutria pelo calor
grande apreço, imaginou que talvez onde se encontrasse a égua
em trabalho de parto houvesse também sombra. Gritou ao homem que
ia a cavalo e, após este retornar, ouviu que todos aqueles acontecimentos
fizeram o calorento bastante interessado nos mistérios do mundo equi-
no. O homem sobre o cavalo pediu ao viajante que o acompanhasse,
pois teria o maior prazer em apresentar a questão. O viajante fez mon-
taria e o cavalo, apesar de ter esboçado uma quase imperceptível reação
de ciúmes, aceitou o peso extra.
Ao chegarem à fazenda, o homem do cavalo emitiu um assobio
agudo. Três segundos depois surgiu de dentro da fazenda uma mulher
de aparência bastante desgastada, usando um avental e uma roupa pe-
luda por baixo. Reparando melhor, o viajante percebeu que a mulher
trajava algo que a dignificava enquanto representante dos equinos. A
mulher se aproximou e após retirar o avental, apoiou a mão esquerda
em uma árvore próxima e com a mão direita abaixou a própria cabeça.
O homem do cavalo desceu da montaria e com o mesmo chicote que

Ele precisava ir. . | 19


usava para cavalgar começou a açoitar a mulher, que relinchava a cada
três açoites. Após doze açoites o homem disse que iria até o estábulo
verificar a situação e voltaria para chamar o viajante. Pediu que en-
quanto isso, o abismado continuasse sua tarefa, e para tanto entregou
o chicote, ordenando que a mulher trocasse a mão de apoio. Em se-
guida partiu em direção ao estábulo. O viajante não conseguiu desfe-
rir os golpes. Cinco minutos depois o homem retornou e perguntou
quantas haviam sido, e quando o viajante disse não ter tido coragem,
o homem fitou-o com raiva e em seguida deu um salto mortal para
trás, enquanto começava a dizer: não é possível! E agora? Serão três dias
ou quatro? Por que pelo menos não fez as contas? Desgraçou meus próximos sete
minutos. E terminada a demonstração circense de ira, ordenou à mulher
que recolhesse o avental e retornasse a seus afazeres. Subitamente, a
expressão de descontentamento desanuviou-se e o homem apertou
calorosamente a mão do viajante com suas duas mãos, e disse em um
tom de terna excitação: vamos, está tudo ali.

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A PONTA DO ICEBERG

E ntraram os dois no estábulo. O viajante rapidamente identifi-


cou o ambiente. Havia ali uma égua de estatura mediana, em
pé, um calendário rabiscado e diversas fotografias de paisagens euro-
peias. O homem explicou que os riscos no calendário representavam o
número de dias pelos quais o trabalho de parto se estendia.
Após folhear o calendário, o analítico averiguou que exatos trinta
e oito dias já se haviam passado desde o início. O homem disse que
precisava urgentemente do adestramento do potro para que saísse, e
que para tanto havia colocado ali as fotos de paisagens, mas salien-
tou que algumas delas também serviam de estímulo à égua. Tão logo
terminou de explicar, saiu correndo e dizendo que ia averiguar como
estavam indo as coisas, e que o viajante ficasse à vontade.
Onze segundos após a saída do homem, o viajante que observava
a égua sentiu gélido todo seu corpo, quando a ouviu perguntando:
– Ele já foi?
O assustado foi até a porteira do estábulo e avistou o homem en-
trando em casa. Logo, respondeu à égua que sim, o homem já havia ido.
A égua então levantou a pata dianteira direita e permitiu mostrar-se um
cigarro. Suas patas tornaram-se repentinamente absurdamente maleáveis,

Ele precisava ir. . | 21


o que permitiu apanhar o cigarro, colocá-lo na boca e após levantar a pata
direita traseira e recolher uma caixa de fósforos, acendê-lo. A fumaça ti-
nha um odor bastante peculiar, irreconhecível para o observador, logo, o
mesmo foi forçado a perguntar que substância era aquela, ao que a égua
respondeu tratar-se de folha de bananeira com café amargo.
Passados alguns instantes de degustação esfumaçada, a égua per-
guntou se o viajante sabia cantar. Ao ouvir a resposta negativa, pergun-
tou se ele possuía algo que produzisse som. Após vasculhar a mochila,
descobriu ali um walkman. A égua pediu para usá-lo enquanto fumava
e o viajante consentiu. Tão logo apertou o botão de início da reprodu-
ção, a égua exclamou:
– Adoro Frank Sinatra! – e começou a cantar a toda altura, mas
com distinta afinação, New York, New York.
A peculiaridade vocal da égua instigou no voluptuoso, algo de
pulsões sexuais, o que fez com que fitasse a equina com uma malícia
desproporcional. Acontece que seus olhares foram correspondidos, e
em uma torrente de romantismo as bocas se encontraram. Era um bei-
jo quente, porém terno: o romântico de fato sentia apreço pela égua.
Durante o beijo, pensou até mesmo em presenteá-la com o aparelho.
O solo de metais teve início juntamente com a fusão momentânea das
almas das duas criaturas em incandescência interna. Foi sem dúvida o
beijo mais profundo da vida de ambos.
22 | Felipe Melo
A música terminou e teve início uma canção romântica do início
da década de 80, que o viajante havia gravado por engano. Rapidamen-
te ele retirou a fita e colocou-a sob a pata dianteira esquerda da égua,
que a estraçalhou com uma só pisada.
O curioso perguntou à égua sobre sua gravidez e a razão de não
dar à luz sua cria, considerando que estavam na presença de tão belas
paisagens europeias. A égua deitou-se e permaneceu em silêncio por
cinco longos segundos antes de responder:
– Eu vou parir. Não por causa da pressão externa. Farei-o por você e seu
walkman. Isso significará sua partida, mas antes tenho pontos iniciais de interio-
ridade a comunicar.
Dizendo isto, retirou de seu dente mais interno, à direita, uma
goma de mascar já bastante gasta e começou a mastigá-la. Fez uma
bola e um sinal com a pata dianteira esquerda para que o apreensivo
a estourasse. Após pressionar a goma com o dedo indicador direito, a
bolha estourou e o viajante escutou o seguinte:
– Embarque no final da luz noturna. Primeiro as paisagens naturais, depois
as urbanas. Suas próximas instruções virão do centro da razão.
Proferida a profecia, a égua instruiu:
– Chame-o e diga que ele não mais precisará riscar o calendário.

24 | Felipe Melo
O mensageiro correu até a casa, a fim de dizer ao homem que o
adestramento havia sido realizado, mas quando chegou à porta depa-
rou-se com o homem montado sobre a mulher, que estava de quatro ao
chão. Com a mão direita açoitava-a com força e com a esquerda enfiava
o dedo indicador em sua boca, como se fosse um arreio. Ao deparar-se
com o atônito viajante, o homem sorriu e pediu por boas notícias. O
viajante meneou a cabeça positivamente, ao que homem respondeu:
– Veja, esposa, eu não havia dito? Acene para ele em agradecimento.
A mulher tentou acenar, mas não suportando o peso com apenas
uma das mãos, deixou cair o homem. O viajante teve sua respiração
suspensa temendo pelo futuro da mulher: e o castigo de fato foi ime-
diato e terrível. Com fúria sonora nos olhos, o homem disse à sua
esposa: agora! E ela com os olhos marejados foi receber sua punição.
Sentou-se vagarosamente à mesa e começou a ingerir colheres cheias
de angu, uma após a outra, com profunda tristeza nos olhos, enquan-
to ouvia seu marido dizer que com aquilo esperava que ela houvesse
aprendido a lição. Depois da oitava colher, o marido disse que já era o
bastante e saiu da casa, regozijante, em direção ao estábulo, em com-
panhia do viajante.

Ele precisava ir. . | 25


ACULTURAÇÃO

C hegando ao estábulo os dois se depararam com a égua em


pé, exibindo a região lombar direcionada para a porteira do
estábulo. O fazendeiro dava fortes socos de excitação no próprio es-
tômago. Sem mais demora o viajante foi até a égua e acariciando sua
cabeça disse:
– Vamos iniciar.
Em seguida, com um olhar terno, começou a dar leves puxões na
orelha esquerda da égua. Cada puxão dava origem a uma cria parida. O
homem observava a cena, estático. Os potros caíam um a um. E qual
não foi a emoção do homem ao perceber que não se tratavam de potros
comuns. Muito pelo contrário, eram exemplares da espécie mais nobre.
Potros com cabeça equina, mas com corpo de livro de etiqueta. Dezoito
ao todo. Ao final da décima oitava puxada de orelha, a égua disse baixi-
nho, próximo ao ouvido direito do viajante:
– Por favor, já é o bastante, não quero mais.
Ao término do trabalho de parto, o viajante virou-se e pôde ob-
servar a alegria transcendental do homem. Pegava, um a um, todos os
potros e enquanto acariciava suas cabeças, lia em gritos, seu conteúdo.

26 | Felipe Melo
De um deles leu gritando “nunca encher totalmente um copo com
água”, do outro “nunca ingerir alface pura”, e de um terceiro, “utilizar
os garfos corretamente é sinônimo de cultura”, e assim por diante, a
plenos pulmões ia saudando cada um dos novos habitantes do planeta.
Ao término da pequena cerimônia, o homem deitou-se extasiado, com
as veias do pescoço estufadas dada a intensidade dos gritos.

Ele precisava ir. . | 27


AGRADECIMENTOS AO
APRENDIZ HEROICO

A pós dez minutos de repouso, o fazendeiro levantou-se, ar-


redou com o pé, três potros que dele se aproximavam, e di-
rigiu-se ao viajante. Levava no rosto uma expressão que esperneava
gratidão. O viajante realmente sentiu-se enaltecido com aquele olhar
e antes que pudesse dizer que aquilo nada custaria ao fazendeiro –
pressentindo que era este o próximo assunto –, viu o mesmo dirigir-se
até um monte de palha que estava atrás dele e de lá retirar uma caixa
vermelha com um botão azul. Aproximou-se e com os olhos baixos,
pediu ao viajante que apertasse o botão e fizesse silêncio. Ele obede-
ceu e o homem pediu que se mantivesse naquela posição por alguns
instantes. Depois de três minutos, um som que lembrava um motor
começou a se aproximar do estábulo. Mais um minuto e o som estava
exatamente do lado de fora. O fazendeiro, com um sorriso imenso
disse ao viajante:
– Vamos, ele chegou.
Ao saírem do estábulo, o viajante deparou-se com um helicóptero
e descendo dele um homem trajando um terno com paletó vermelho

Ele precisava ir. . | 29


e calças amarelas. O duvidoso levou alguns segundos até perceber que
aquele que se aproximava era o presidente.
A autoridade aproximou-se dos dois homens, portando uma cai-
xa azul aveludada contendo uma medalha com dizeres em outro idio-
ma, do qual o duvidoso apenas pôde entender a última palavra, potro,
desde que não fosse um falso cognato. O presidente fez sinal para que
os fotógrafos e jornalistas que o acompanhavam, se movessem. Tão
logo tomaram posto, o presidente disse ao honrado:
– Meus parabéns, agradecemos tamanha destreza no lido com nossos equinos
letrados e nos engrandecemos com tão vultosa contribuição.
Em seguida entregou a caixa ao homem e partiu correndo, di-
zendo que estava atrasado para prestigiar um pescador. O presidente
e os repórteres subiram ao helicóptero e sinalizaram com raiva para a
dupla de pilotos que se atrasara, pois estavam atirando pedras, com um
estilingue, na esposa do fazendeiro. Os pilotos tomaram seus postos e
o helicóptero partiu.

30 | Felipe Melo
FIM DO MEIO

O fazendeiro não tinha ações para agradecer ao viajante. Ofe-


receu dinheiro, sua casa e até mesmo açoites em sua esposa,
mas o apaixonado não podia aceitar. Não passara aqueles momentos
com a égua simplesmente em troca de um pagamento. Disse apenas
que queria um lugar com sombra, para ficar até o final da tarde, porém
longe da égua, que estava a resguardar-se. O fazendeiro ofereceu a
sombra da árvore sob a qual a mulher havia inicialmente recebido as
chibatadas, ao que o viajante aceitou de muito bom grado. Sendo isso
combinado, o fazendeiro disse que sua dívida estava paga e que já po-
dia retornar às suas atividades. O satisfeito consentiu e retirou-se para
a outorgada sombra.

Ele precisava ir. . | 31


ESPECULAÇÕES
Uma primeira intervenção

E ra início para meio da tarde e o estafado dirigia-se para a árvo-


re, onde estava a tão desejada sombra. Ao chegar, o viajante
fez o movimento para deitar-se, mas logo percebeu que seria uma tare-
fa difícil, pois que a sombra não o aceitava. A cada tentativa de aproxi-
mar-se da parte do solo onde ela estava, era seguido um preciso desvio
e o sol mostrava-se àquele lugar. Após disputados quinze minutos o
homem entregou-se à sua incapacidade de dominar a projetada ausên-
cia de luz e, dentro do seu direito, foi reclamar. Ao ouvir o ocorrido, o
fazendeiro, que estava a fazer abdominais sob o sol, soltou uma gosto-
sa gargalhada e deixou saber ao indignado que bastava atirar sobre ela
algo sólido, pois que era fraca e não conseguiria sair.
Retornando à luta, o guerreiro aproximou-se da sombra com
olhar decidido. Retirou rapidamente seu walkman e atirou-o sobre ela.
Surpreso pela eficácia do método, deixou-se cair relaxadamente sob a
penumbra que se debatia violentamente em vão, pois por mais que se
esticasse, não conseguia deixar exposto ao sol, o atrevido.

32 | Felipe Melo
INTERVENÇÕES
A SI PRÓPRIO

F inalmente o exausto conseguira um lugar para deixar traba-


lhar seu processador de estímulos, e isso incluía a solidão. O
dia não era tão atípico, porém qualquer evento ocorrido fora de sua
cidade merecia considerações mais detalhadas.
O quasi-assertivo concluiu como fortuitos todos os acontecimen-
tos, exceto dois: a sombra rebelde e as mensagens circulares. Não havia
nada em especial contra círculos, mas algumas experiências na infância
não o deixavam confortável com tal fonte emissora. Por ordenações
prioritárias, decidiu concluir primeiro a respeito da sombra.
Objetos semi-inanimados sempre figuraram entre as simpatias do
bem relacionado. Sempre se dera bem com bules com água em ebulição,
formações congeladas expostas ao calor e quaisquer objetos que se en-
contrassem em estado inercial, logo não podia compreender a atitude
da sombra. Por que se apresentara tão arisca? Por que não o aceitara de
bom grado? Nem o sol nem a árvore manifestaram qualquer antipatia,
assim apenas a sombra era culpada pelo ocorrido. O que se passara?
Indo à essência da descrição, talvez a explicação estivesse no semi.
Por indução o pensador concluía que a natureza gregária da maioria
Ele precisava ir. . | 33
dos seres vivos poderia estar incluída na explicação. A sombra irrita-
ra-se com algo conflitante a este fato. E rapidamente o investigativo
encontrara a única resposta possível: seu relacionamento com a égua.
O distraído não havia atribuído importância, mas no momento em que
tentou pela primeira vez fundir-se à sombra, a égua tinha sua cabeça
totalmente para fora do estábulo, completamente exposta ao sol. A
completa imersão à sombra de antes, que a aproximava da classe da
mesma agora era quebrada, e por iniciativa da própria égua, sendo o
viajante o agente estimulante. A sombra se zangara com a interrupção
da paz. O status quo havia sido assaltado e a evolução não é fenômeno
comum. A ideia de contra argumentar a sombra foi imediata, mas dado
que ela mal se movia, mesmo com os movimentos da árvore, o desis-
tente imaginou ser melhor ensinar a pescar.
Os fantasmas do homem têm sempre que ver com as dúvidas. Se
todas as certezas fossem conhecidas, ou pelo menos as mais impor-
tantes, assombrações talvez fossem comuns apenas em cavernas, mas
acontece que assim não o é, então, o autopsicólogo teve que confron-
tar seus monstros a fim de compreender as mensagens circulares. Co-
meçou a construir abstrações no mesmo formato, buscando em suas
memórias mais distantes quaisquer tensões entre ele e as tais formas
geométricas, mas nem um minuto havia se passado quando o sonolen-
to enfim adormeceu.

34 | Felipe Melo
CANAIS

E le estava completamente adormecido, mas completamente


consciente, logo podia tornar-se interlocutor da geometria. Po-
rém, para tanto, precisaria de um compasso e de um esquadro. Retirou
o primeiro de dentro de seu calção e o segundo de dentro de seu sapato
calçado ao pé esquerdo. Com o compasso e com a mão direita desenhou
um círculo no ar, e com a mão esquerda fê-lo rolar para que pudesse se
comunicar. Mas neste momento o círculo atirou-se e se chocou com
toda força contra a cabeça do desenhista, o que fez com que o compasso
caísse, e também o esquadro. Tão logo as ferramentas caíram, o círculo
lançou-se sobre elas e as incorporou, de maneira que quando se levantou
fez com que as pontas de ambos estivessem voltadas para o dolorido.
Imediatamente o círculo tentou redesenhar-se, porém, como não con-
seguia tornar-se oval como desejava, atirou para longe o compasso e re-
fez-se como a soma de duas meias-luas, com a figura inferior tendo sua
origem esquerda iniciando-se no meio da figura superior. Criou-se ainda
dois braços também em formato de meia-lua, com os quais constante-
mente ameaçava o temeroso. Ao final do renascimento, colocou ao chão
o esquadro e disparou palavras ao adormecido, que sentiu a frase como
se fosse um conjunto de peças de dominó com a mesma configuração
caindo-lhe sobre a fronte: pois é, agora...
Ele precisava ir. . | 35
O atônito não sabia como contornar. Agora não poderia ser, es-
pécie de geometria complicada não podia deixar de procrastinar, os
deixadores de hematomas que esperassem. Mas a geometria circular
não era tão complexa, não precisava adiar a caverna, poderia estabele-
cer o início quando bem entendesse, e assim foi.
– Você nem era tão moço... – disparou o essencialmente círculo.
– Pare, não suportarei! – retrucou o atormentado.
– Mas já me redesenhei, veja como estou de bom grado – trouxe à luz o
sonhadamente oval.
– Isso lá não se nega, mas veja, e eu? – perguntou o em processo de
conformação.
– O que vai então? – lançou o já impaciente.
– Um retângulo já abranda – devolveu o agora conformado.
Dito isso, o círculo apanhou o esquadro e ordenou ao viajante
que fosse apanhar o compasso enquanto ele preparava o invólucro.
O solícito deu prontamente três passos e meio, e apanhou a ordem.
Quando retornou, encontrou desenhado um retângulo – com algu-
mas imperfeições, não se podia negar –, mas um bom retângulo afinal.
Entregou o compasso ao círculo que rapidamente desenhou sobre o
retângulo um dos seus, com diâmetro igual ao de um dedo mínimo de

36 | Felipe Melo
uma criança de quatro anos, e sem mais demora, avançou em direção
ao resignado. Com seus braços de meia-lua o círculo picou o viajante
em diversos pedaços quadrados. A cada golpe, um som parecido à
nota ré bemol retirada de um piano de cauda podia ser visto, porém
em um formato um pouco mais triangular.
Ao término do decepamento, o círculo sorveu cada um dos pe-
daços e ao final, colocou ao chão o retângulo previamente desenhado
e deitou-se sobre ele. Em seguida desenhou em si próprio algo como
um olho, próximo à extremidade direita da meia-lua inferior, e fez en-
caixar esse novo membro à circunferência já presente no retângulo.
Feito isso, o círculo pôs-se a chorar com violência, enquanto um fluido
azul fluorescente descia de seu olho e adentrava o retângulo. O pranto
durou exatas três horas.

Ele precisava ir. . | 37


CONFRONTAÇÃO

A o final do derramamento do líquido, o círculo tocou o retân-


gulo com o esquadro e este último imediatamente despertou.
O viajante estava bastante satisfeito com sua nova roupagem, apesar
de temer não conseguir fazê-la valer por completo desta vez, dadas as
pequenas imperfeições. Mas com sorte tudo sairia a contento.
O círculo aguardava o período de adaptação e quando percebeu
que os primeiros raciocínios exatos já podiam ser realizados, iniciou as
interpelações.
– E então? – perguntou o círculo já esperando pela assertividade
matemática.
– Estou aguardando a formação do contexto – respondeu o retangular
viajante.
– Quer que eu achate as pontas? – devolveu o apressado círculo.
– Já vai bem, aguarde o sinal – finalizou o decidido viajante.
Quatro segundos se passaram até que o viajante fez movimentar
sua ponta superior direita – referente à visão dos interlocutores. O
círculo sem demora pôs-se a indagar.
– Quando?
– Oito anos.

38 | Felipe Melo
– Por quê?
– Afogamento.
– Onde?
– Praia.
– Argumentos?
– Piscina infantil circular azul, doravante copos com abertura triangular, fecha-
mento inconsciente e imperceptível dos olhos à circunferência em qualquer lugar – con-
cluiu o emocionado retângulo.
O círculo deu dois saltos para trás e assumiu uma posição que
mesmo para um círculo deslocado, comunicava a impressão de intros-
pecção. Intermináveis oito segundos após, o círculo iniciou o processo
de reversão.
– Percebe que não sou mau? Já bem diz isso o que estou a fazer. Ou não?
– É fato.
– Então o quê?
– Foi andar de bêbado.
– Concluído. Ótimo.
– Vou continuar.
– Fico lisonjeado. E te aceito.
Ao terminar de dizer a última frase, o círculo começou a acertar
lentamente as meias-luas que o formavam, enquanto com a pequena cir-
cunferência interna à meia-lua inferior fitava ansioso o retangular. Podia
Ele precisava ir. . | 39
ver a transformação. À medida que ia se tornando um círculo perfeito,
também o fazia o viajante. Ao término do processo, ambos eram circun-
ferências perfeitas. O círculo original girou cento e oitenta graus para a
esquerda de maneira a trazer seu olho para a parte de cima e disse ao
agora circular viajante:
– Vá então, e me leva.

E permitiu-se ficar assim por mais de um minuto, quando final-


mente reajustou sua visão de maneira a ver o que realmente era. Mas
apesar de tudo, sentiu-se extremamente grato pela existência das cir-
cunferências perfeitas.

40 | Felipe Melo
DAS PRIMEIRAS APARÊNCIAS
DAS NOVAS APARÊNCIAS

A pressou-se em ficar de pé e ir ter com o novo mundo que se ha-


via desanuviado. Tirou a poeira do corpo e observou a sombra
que o havia rejeitado. Já não havia mais mágoa quanto a isso. Dirigiu-se
até seu walkman que servira de fixação para que a sombra o recebesse. Ao
tentar retirá-lo percebeu que a sombra fez menção de encolher-se, como
se não quisesse ser tocada. Porém, agora o revelado percebia o que se pas-
sava. A sombra não o considerava mais que um quadrado, e tudo que ele
precisava fazer era mostrar a ela que nada podia haver mais longe da ver-
dade. Com o dedo anelar esquerdo desenhou um círculo no ar ao mesmo
tempo em que fitava a sombra com um sorriso meigo. Porém a sombra
ainda se mostrava desconfiada, no entanto cedera algo e já desencolhera
um pouco. O tenaz aproveitou o canal e desenhou um círculo ainda maior,
e depois outro, e mais outro, com os dedos médio e polegar, respectiva-
mente, antes de finalmente deitar-se ao chão tal qual o homem vitruviano,
e pôs-se a abrir e fechar as pernas e também os braços, acima da cabeça.
Continuou nesse movimento por dezessete segundos, e ao levantar pôde
observar, regozijante, a sombra pendendo completamente para ele, quase

Ele precisava ir. . | 41


como um sorriso, porém não um sorriso comum. Ao observar melhor,
percebeu um sorriso de volúpia, quase como se a sombra estivesse a pas-
sar a língua pelos lábios enquanto apontava para seu próprio centro. No
entanto, o ator se fez de desentendido, dirigiu-se até o walkman, recolheu-o
e saudou em despedida a sombra, que ao perceber-se ignorada não pôde
conter uma lágrima.
A mesma lágrima brotou no coração do comovido, pois afinal de
contas, tratava-se de uma forma deveras e naturalmente versátil que
reconhecera um igual aos seus acessos de circularidade. Porém, infe-
lizmente, naquele raio de quilômetro, o fiel já havia presenteado seu
coração à égua, que saíra voluntariamente do trabalho de parto já em
curso havia mais de um mês, apenas em homenagem a tal entrega. Se-
ria uma canalhice enorme da parte do orgulhoso, estabelecer qualquer
outro relacionamento naquelas cercanias.
Partiu resoluto, rumo à casa, a fim de informar ao fazendeiro sobre
sua partida, mas descuidadamente olhou para trás, talvez como se para
ter certeza de que a sombra havia aceitado bem a situação. Qual não
foi a surpresa do estático ao observar a sombra, que além de não ter
aceitado o desprezo, fazia agora uma série de gestos obscenos e convi-
dativos, escancarando-se àquele que mostrara a ela ser o único capaz de
circularidades. E os gestos foram tomando proporções exageradas até

42 | Felipe Melo
o atônito perceber que a sombra estivera se masturbando sofregamente
e agora estava próxima de um orgasmo. Ele não conseguiu conter uma
ereção. Ao perceber esse efeito, a sombra mostrou-se ainda mais excita-
da e ansiosa, e uivava ao chamar o excitado para perto de si. Queria tê-lo
de novo em seu círculo. Mas estavam próximos demais do estábulo. A
égua poderia chegar-se à porta a qualquer momento. E como poderia
reagir? Poderia rasgar os próprios filhos em um ataque de ciúmes. Ou
pior, poderia, cruelmente, retirar apenas algumas páginas, o que elimi-
naria completamente o contexto. E o que seriam livros de etiqueta sem
contexto? Não, ele não podia deixar-se levar pelo comportamento ardil
da sombra. Resolutamente virou as costas e marchou rápido em direção
à casa, decidido a não incorrer no mesmo erro.

Ele precisava ir. . | 43


CORTINAS

A o aproximar-se da porta da cozinha da casa, o caminhante


ouviu o som de um trompete que tocava uma nota bastante
aguda. Quando já estava bem perto da porta, diminuiu o passo, e per-
cebeu também um uivo emitido quase que com a mesma duração da
nota tocada no trompete. Cuidadosa e silenciosamente chegou até a
porta, e pôde ver o que se passava no interior.
Da porta da cozinha, era possível ver um dos cantos da sala de estar.
Foi possível ver um pequeno armário de vidro, decorado com madeira
marrom escura, quase negra, e um ambiente avermelhado por conta das
cortinas rubras que cobriam o sol forte que tentava entrar pelas janelas.
No outro canto – esquerdo para quem está de frente para a parede – a mu-
lher do fazendeiro ajoelhada, com a mão esquerda repousada às costas e a
cabeça voltada para a parede, que estava toda rabiscada de giz azul. Atrás
dela, sentado em uma cadeira com estofado azul claro e encosto de metal
meio enferrujado, estava o fazendeiro, segurando um trompete. A saída do
instrumento estava colocada bem próxima à cabeça da mulher, e a cada
nota que o fazendeiro tocava, a mulher emitia um uivo e ao terminar fazia
um risco na parede. A parede estava muito riscada, pelo que o lógico con-
cluiu que se todos foram feitos no dia corrente, os dois já deveriam estar
ali por um bom tempo.

44 | Felipe Melo
O curioso tentou aproximar-se ainda mais, mas tropeçou no
degrau do desnível da porta e foi ouvido pelos dois, que se viraram
instantaneamente. Porém, o fazendeiro lançou um olhar firme para
a esposa, que continuou emitindo uivos de um segundo de duração a
cada três segundos, e fazendo os riscos de giz na parede. Seguiu inin-
terruptamente com a sequência.
O fazendeiro levantou-se e caminhou até o homem, com um
olhar fixo em seu nariz. Continuou até que os narizes de ambos se
chocaram, pelo que o fazendeiro desculpou-se.
– Vim para me despedir – disse aquele que partia.
– Pois bem, mas é – respondeu compreensivo o fazendeiro.
– Pois está. Até – devolveu aquele que se virava de costas.
– Antes me diz, vai um si ou um ré? – inquiriu o fazendeiro.
– Pois que sou afeito às diminutas – delineou o musical.
– Si ou ré, só – repetiu impaciente o fazendeiro.
– Então adeus – disse o de partida, virando-se de costas. Mas in-
correu no erro de antes e olhou para trás. Viu que o homem voltara
correndo para a posição anterior, mas agora o perceptivo via uma rea-
lidade diferente. Via não mais o fazendeiro e sua esposa, mas sim duas
formas côncavas se encaixando. Partiu com a devida compreensão.
Olhou de relance a sombra que ainda estava a acariciar-se convi-
dativa, mas seguiu firme em direção à saída da fazenda.

Ele precisava ir. . | 45


A OUTRA FONTE

A fazenda era limitada por uma cerca de madeira que em toda


sua extensão comportava duas porteiras. O de saída escolheu
a porteira da direita e foi em direção a ela.
Quando estava próximo, não pôde deixar de perceber, jogado em
um ponto à direita da porteira, um livro com a capa bastante des-
gastada. Porém, mesmo ao longe, era possível perceber que tal livro
continha suas folhas quase intactas, novas, como se acabassem de sair
da prensa. Seguiu em direção ao livro e apanhou-o. Começou a cuida-
dosamente verificar a capa, mas nada conseguia ler. Nem ao menos
era possível saber do que se tratava a obra. Abriu-a mais ou menos na
metade. Deparou-se com um rosto desenhado pelas letras que estavam
contidas na página em questão. E tal rosto não se esforçava por escon-
der uma expressão de ódio.
O leitor-a-ser começou a folhear o que estava em suas mãos, mas
o desenho da face o acompanhava em cada página visualizada. As de-
mais letras também caminhavam juntamente com o folhear, até que
após a oitava página todas as letras se juntaram, formando uma adaga,
que se descolou do livro e apontou para o ameaçado, que instantanea-
mente emitiu um ruído de susto.

48 | Felipe Melo
– Por que isso? – questionou o indignado.
– Ainda pergunta. Despessático – organizaram-se as letras e escreve-
ram na página aberta.
– Obviamente que sim, pois não sei a razão. Por que me ameaças? Por que
se mostra tão arredio? – indagou o desentendido.
Após essa pergunta as páginas se reorganizaram e o livro ganhou
novamente sua forma original. Era um livro sobre etiqueta, boas ma-
neiras e o politicamente correto. Tudo estava claro agora. Aquele livro
era o pai dos filhotes da égua a quem o coração do entendedor tanto se
associou. Estava claro como as letras agora deixavam ser: aquela obra
de capa rota e conteúdo ileso estava preenchida pelo ciúme.
– Mas eu não sabia nada a seu respeito. Ela não mencionou qualquer pala-
vra – lançou o defensivo.
As letras formaram uma caricatura cuja boca em movimentou
lançou a seguinte frase na mesma página:
– Nem eu conhecia você.
– Então, como se irritar comigo? – disparou o atônito. – Ela estava em
trabalho de parto havia um mês. Como seria possível que eu, tendo as condições,
não a ajudasse? Além do mais, por que você não estava lá oferecendo a ela o devido
suporte emocional? – arrematou o que agora começava a se zangar.

Ele precisava ir. . | 49


– Não importa. O que sei é que você é mais um daqueles que acha que livros
e éguas não podem se amar. É o mesmo tipinho que vemos nas revistas de fofoca.
A égua era minha, e eu também pertencia a ela. A ela eu havia entregado parte de
mim – disparou o entristecido e saudoso livro, antes de deixar mostrar
suas últimas páginas que estavam completamente em branco. – Aqueles
potros são meus, e não do fazendeiro. Quando eles não mais tiverem serventia para
ele, serão sumariamente sacrificados, provavelmente como simples pedaços de papel
de agenda. Eles me completam, mas você me despedaçou. Não tenho mais contexto,
e em algum tempo eles também não terão.
– Certo… – respondeu o pensativo, concluindo que já que os po-
tros não possuíam contexto, ele perdera muito desprezando a sombra.
– Agora me coloque onde me encontrou e desapareça da minha frente – or-
denou a entristecida obra.
– Mas ainda há saída. Para tudo há uma – despejou o esperançoso.
– Não quero conversa – finalizou o livro antes de ter todas as suas
letras embaralhadas em todas as páginas.
O afoito até procurou, mas não pôde encontrar qualquer outra pá-
gina com conteúdo inteligível. Todas estavam embaralhadas, indecifráveis.
O confiante tinha certeza de que poderia ajudar, se o livro quisesse. Mas
preferiu não insistir, uma vez que lidava com uma forma historicamente

Ele precisava ir. . | 51


retangular. Posto isso, atendeu ao último pedido do moribundo descon-
textualizado e depositou-o novamente no lugar onde o havia encontrado.
Seguiu rápido para a cerca, puxou-a com força e passou rapidamente antes
que ela se fechasse.

52 | Felipe Melo
O CONTEXTO DO TROCO

O apressado já havia se retirado do espaço pertencente à fazen-


da quando sentiu uma dor aguda na panturrilha. Ao parar e
voltar-se para ver o que era, viu passar um pequeno vulto e na sequ-
ência sentiu dor semelhante no meio das costas. E depois passou a ver
uma sequência de vultos. Ao voltar a cabeça ainda mais para trás para
verificar a fonte dos vultos, deparou-se com uma cena de guerra: as le-
tras haviam abandonado o livro e agora em grupos de vinte formavam
mãos, que apanhavam pedras no chão e a lançavam com força contra
o apedrejado.
– Parem com isso. Já não resolvemos nossas diferenças? – questionava o
atacado.
– Pode ter sido. Mas agora não temos mais contexto, logo não somos obriga-
das a ser coerentes – retrucavam as letras que incessantemente buscavam
pedras e as arremessavam rapidamente tão logo as encontravam.
– Mas a falta de contexto não é desculpa para não ser conclusivo – articu-
lou o argumentador.
– Quando o tínhamos, nossas primeiras páginas nos ensinaram o contrário –
devolveram as letras. – E essa foi uma lição que aprendemos muito bem.

Ele precisava ir. . | 53


Ao terminarem a última frase formaram uma enorme boca que
gritou de maneira impressionantemente alta: “agora”, e em seguida
todas as letras se juntaram e formaram uma mão densa de aproxi-
madamente trinta e um centímetros, e se dirigiram com velocidade
assustadora em direção ao acuado, no intuito claro de atacá-lo com um
soco. Quando estavam a dezenove centímetros dele ouviram uma voz
rouca vinda do portão: “parem”. O tom exclamativo da voz era tão
preciso que fez com que a mão letrada parasse, voltando-se de maneira
a identificar a origem da ordem.
As letras buscaram um pouco até identificarem, jogada aos pés do
portão, aquilo que podia ser considerado seu porto seguro: sua capa.
Ela havia se arrastado até ali com dificuldade e não podia ocultar uma
expressão de cansaço, mas nem por isso mostrava menos gravidade
no olhar.
– Mas casa, ele nos arrancou o contexto – afirmaram em tom choroso
as letras.
– Mas não devemos esquecer nossa essência. Somos um livro de etiqueta,
e sempre seremos. É muito mal educado o que estão fazendo considerando um
passado tão significativo e contextualizado – disparou em tom professoral a
capa rota.
– Mas…

54 | Felipe Melo
– Voltem para casa.
O tom da última frase foi tão afirmativo que as letras abaixaram
suas cabeças e retornaram obedientemente. Mas antes que todas re-
tornassem, um grupo de aproximadamente vinte letras se voltou com
olhar de extremo rancor e formaram três palavras para o leitor.
– Parem suas pífias, façam como suas irmãs – disse em tom quase pu-
nitivo a capa.
– Ele é um iletrado, não nos vai entender – disseram com olhar de vin-
gança as vinte letras.
– Assassinas! Voltem já!
– Que seja, mas o contexto não pertencerá a quem quer que seja.
Ao chegarem à capa as vinte letras foram recebidas com golpes
forte das pontas da capa, que agora as olhava com olhar lacrimejado
de profunda tristeza.

Ele precisava ir. . | 55


A TRADUÇÃO

O aliviado observou o livro arrastar-se com pequenos pulos


novamente para dentro da fazenda e assegurou-se de que não
mais seria apanhado de surpresa, esperando a obra desaparecer com-
pletamente porteira adentro.
Voltou-se para a direção que seguia antes do incidente e recome-
çou a caminhada. Começaria a murmurar alguma praga quando perce-
beu uma súbita dificuldade para pronunciar as palavras. Tentava falar,
mas as palavras saiam pela metade. E quanto mais se esforçava, mais
dificuldades experimentava.
O desentendido começou a pensar sobre o que poderia estar cau-
sando aqueles problemas, mas as palavras também não podiam ser
formadas em sua mente para tal raciocínio. E ao começar a sentir certo
pânico, um processo ainda pior desencadeou-se. Por seus ouvidos, na-
riz e boca começaram a cair letras, algumas moribundas, mas a maioria
caía morta ao chão. O desesperado tentava tapar as cavidades, mas ao
tapar a boca terminou por se engasgar e ao tossir despejou ao chão
milhares de letras. E no que parecia ser a última remessa de letras exis-
tentes em sua cabeça, conseguiu finalmente formar uma ideia do que

Ele precisava ir. . | 57


poderia estar ocorrendo: as palavras formadas pelas letras rebeldes que
antes o estavam a atacar com pedras era algo como um sinal para que
suas irmãs abandonassem o iletrado. Agora as últimas palavras daque-
las letras faziam sentido.
Tão logo chegou a essa conclusão, o quase analfabeto sentiu uma
pressão forte por trás dos olhos. A pressão começou a descer e chegou
até as narinas, que o esvaziado sentiu inflar e na sequência três jorradas
de letras saíram. Mas essas já não eram moribundas ou mortas. Não
eram mesmo letras normais. Eram em itálico, sublinhadas e negrito –
esse último tipo estava em maior número. Tão logo as letras diferentes
chegaram ao solo, partiram correndo em direção à fazenda. O indeciso
pensou em bloquear seu caminho ou até mesmo pisoteá-las, mas não
sabia se aquelas eram suas únicas letras restantes, e optou por simples-
mente segui-las, de maneira a tentar resolver o problema de maneira
amistosa.
Esperou até que elas chegassem à porteira – o que demorou onze
minutos, pois eram letras gordas, adornadas e que precisavam levar
peso extra – e tão logo elas chegaram ao seu destino, o seguidor deu
oito passos e chegou ele também até lá para poder ver que elas foram
diretamente em direção ao livro, que levantou uma das capas deixan-
do-as entrar, fechando-se em seguida.

58 | Felipe Melo
NOVOS PASSOS

A pós presenciar a cena da entrada no livro, o desletrado apro-


ximou-se também da obra a fim de ter com ela e tentar reaver
suas letras. No entanto, ao tentar se pronunciar percebeu que não mais
podia se expressar com palavras, uma vez que lhe faltavam as letras. O
angustiado tentava de todas as formas encontrar as palavras, mas nada
mais conseguia emitir além de sons guturais. Insistia obstinadamente,
mas de nada adiantava.
Ao ouvir o som das tentativas, a capa do livro se abriu e deixou
mostrar algumas palavras, que provavelmente eram de escárnio, mas
o observador nada entendeu, pois não mais podia ler. As letras, após
se lembrarem desse detalhe, se juntaram e formaram um rosto que
expressava um sorriso maligno e vingativo, indicando que o antes-em-
-vantagem tinha agora seu castigo. O castigado não pôde deixar de
perceber que a capa por sua vez também demonstrava seus sentimen-
tos por meio da forma de uma face entristecida pela – agora sim –
perda total de qualquer contexto e sentido. As letras estavam vingadas.

Ele precisava ir. . | 59


AGORA

O agora-vítima começou a sentir-se desamparado, mas não podia


descrever exatamente como se sentia, pois faltavam as palavras.

60 | Felipe Melo
EFEITOS

O transtornado lutava para encontrar alguma solução para si-


tuação tão difícil, mas nada podia visualizar além de formas e
cores. Seu desespero era tão grande que ele, involuntariamente, viu-se
chorando copiosamente enquanto em sua cabeça imagens de gotas sa-
ídas de losangos caíam suavemente sobre folhas pautadas, que tinham
pequenas manchas borradas, provavelmente, letras que antes o em
prantos podia reconhecer. Era tamanho o desalento que o fraquejado
desmaiou. Algumas letras ainda tentaram deixar o livro para ir uma vez
mais atacar o desabado, mas a capa bloqueou o caminho envergando-
-se e formando algo como uma trouxa, de maneira que qualquer letra
teria que escalá-la para visualizar o que estava fora.
Nem bem tinha caído, o desmaiado começou a se contorcer vio-
lentamente, levando constantemente as mãos sobre o rosto com os
braços esticados.

Ele precisava ir. . | 61


EI EO

O desacordado estava consumido pelo ódio, um ódio tão pul-


sante que chegava a tirá-lo do chão. Levantou-se e partiu, com
ira no olhar, em direção ao livro. Sua ideia era pisotear a obra e atear
fogo em seguida. Mas a mesma, ao perceber que o zangado tinha ex-
pressão de ataque, pôs-se a bater suas capas e levantou voo, rapida-
mente ganhando altitude. O energizado irritou-se ainda mais e utilizou
a propulsão do ódio para também rumar em direção às nuvens.
O voador perseguia o livro com determinação, tal qual um pássa-
ro tentando arrancar do outro o alimento logrado. Quando já estavam
aonde normalmente só chegaria um avião, o livro fez uma manobra
ligeira e começou a descer. O perseguidor tentou imitar a manobra,
mas ao subir um pouco mais a fim de fazer o contorno e descer, bateu
com toda força sua cabeça contra o céu. O impacto foi tamanho que o
mesmo apresentou imediatamente uma rachadura, que começou a se
abrir até deixar jorrar em abundância um líquido azul.
Com a violência do impacto o desastrado perdeu as forças, mas
não a consciência, o que lhe permitiu ver, ainda em queda livre, o céu
se esvaziando. Ao chegar ao solo, viu também seus membros se se-

62 | Felipe Melo
pararem do tronco e da cabeça, pelo efeito do impacto. Contudo, se
manteve consciente todo o tempo, e pôde ver o céu vazio, que nessa
condição não passava de um espaço branco cheio de borrões verme-
lhos com uma rachadura de aproximadamente três metros e vinte e
seis centímetros. Percebeu ainda que tudo começara a flutuar no lí-
quido azul que havia vazado, inclusive o livro, que jazia de cabeça para
baixo, enquanto as letras – a maioria morta – lutavam para sobreviver
agarrando-se à capa, que visivelmente já não se encontrava entre os
seres vivos. Viu por fim suas pernas, braços e tronco flutuando inertes
sobre o líquido.
Aproximadamente sete segundos se passaram até que o desmem-
brado começou a perceber-se como que flutuando ainda mais suave-
mente. Repentinamente sentiu que começara outra vez a ganhar alti-
tude. Ao virar sua cabeça para checar se ainda estava repousado sobre
o líquido azul, viu que já estava a pelo menos vinte metros de altura e
notou que tanto seus membros e tronco quanto o livro e as letras co-
meçavam também a flutuar. Pensou em se desesperar, mas como não
podia se expressar, desistiu da ideia.

Ele precisava ir. . | 63


APÓS

Q uarenta e nove minutos se passaram até que o elevado chegas-


se ao céu. E o que fosse que o estivesse levando para lá sofria
de problemas com a precisão das ações, pois o nas alturas colidiu con-
tra o céu duas vezes antes de conseguir passar pela rachadura.
Ao chegar, foi arremessado ao chão e uma vez estabilizado pôde
olhar para baixo e ter a impressão de estar levitando, uma vez que
tudo estava transparente. Da posição em que estava conseguiu ver seus
membros e os componentes do livro colidindo algumas vezes antes de
conseguirem vencer a rachadura.
Assim que seus membros e o livro foram arremessados ao solo,
os demais apareceram. Não eram visíveis o tempo todo, apenas quando
se comunicavam. E quando isso ocorria, borrões vermelhos apareciam,
cessando sua visibilidade tão logo a mensagem fosse compreendida.

64 | Felipe Melo
DAS BENESSES
DAS INTERVENÇÕES

O s demais, na verdade, eram trezentos e quinze, basicamen-


te ocupando trinta centímetros quadrados exatos no espaço
quando se comunicavam, e distantes quatorze centímetros um do outro.
Aquele que parecia ser o líder manifestou-se primeiro, piscando quatro
vezes, o que era um sinal claro de que algo sério seria comunicado.
Os demais se manifestaram ligeiramente, o que foi percebido por
meio de formas quase transparentes girando no sentido horário. Um de-
les ainda tentou dizer algo mais, quase aparecendo inteiramente, mas o
líder mostrou-se mais nítido, causando o silêncio daquele que se atrevia.
O líder começou seu discurso com os apaziguamentos rotinei-
ros, defendendo que independente da natureza letrada ou sanguínea,
todos eram igualmente atômicos, logo deveriam viver em paz. Nesse
momento o separado tentou intervir, dizendo que concordava plena-
mente, mas como não tinha mais palavras, teve que girar e bater o nariz
no chão uma vez e fazer o movimento indicando futura nova colisão,
porém, detendo-se antes do fim, o que podia ser entendido como um
sinal de concordância.

Ele precisava ir. . | 65


Nem bem havia terminado sua demonstração de concordância,
o obsequioso foi forçado a ver as letras ressuscitando e exibindo uma
mensagem que apesar de não poder ser lida, apresentava um claro sinal
de desaprovação. Mais do que isso, algumas delas – cento e dezenove
– formaram uma pilha, em obsceno sinal de defesa à posição de que o
picotado havia começado tudo quando se relacionou com a égua a fim
de interferir no parto dos potros, filhos do próprio livro. Nove borrões
apareceram com forte brilho em sinal de aceitação do argumento das
letras. Mas a cabeça não aceitou calada, tamanha mentira. Decidida a
dar uma resposta definitiva àquela questão, balançou forte três vezes
para a direita e uma para a esquerda, fazendo um movimento brusco
para trás em sequência. A mensagem foi tão forte que todos os demais
se ascenderam e o monte de letras se desfez. Com essa mensagem o
comunicador sustentava firmemente que apenas estivera com a égua,
porque o próprio livro não estava, logo no momento em que ela mais
precisava. Além disso, apresentou a novidade de que havia sido a égua,
e não ele, quem havia iniciado a relação.
Após a última declaração, o líder apresentou um brilho mediano,
e as letras se revoltaram formando um símbolo que parecia o número
dois. O distraído levou quatro segundos até perceber que ainda podia
reconhecer números. Talvez aquela fosse sua salvação.

66 | Felipe Melo
Após tal constatação, o matemático pôs-se a fazer cálculos e mais
cálculos, até que uma das equações revelou o caminho: os números eram
inimigos de longa data das letras. Ali estaria sua vingança e salvação.
O calculador começou a realizar mentalmente cálculos cada vez
mais complexos, até que números passaram a escorrer de seu nariz,
boca e ouvidos. E tão logo tocavam o chão, partiam furiosamente em
direção às letras. Os presentes – cabeça, tronco, membro, capa e os
demais – observaram atônitos a uma guerra brutal entre as duas re-
presentações, e puderam ver também a vitória sofrida – mas por isso
mesmo mais valorosa – dos números, após quarenta e um segundos
de batalha. A capa estava em prantos em decorrência do horror que
por ali fizera leito, e o compreensivo chegou a sentir pena dela, mas
infelizmente, nada podia fazer.
A guerra estava terminada e os números eram soberanos. Porém,
sem as letras, o esperançoso ainda não poderia ler. Surpreendentemen-
te, em tom de alento, o número nove sinalizou para ele que o problema
estava resolvido. Após essa sinalização, convocou os números sobrevi-
ventes para retornarem ao até-então-desnumerado. Em debandada eles
entraram pelas narinas, ouvidos e boca do agora-enumerado que re-
pentinamente conseguiu se expressar com letras novamente. Ao tentar
entender o que se passara, uma mensagem foi formada em sua cabeça

Ele precisava ir. . | 67


com a semântica da solução. Como apenas números existiriam agora,
os mesmos adotariam formações estratégicas e constituiriam letras, de
maneira que o novamente letrado poderia se comunicar normalmente.
Sua alegria foi tamanha que seus membros se juntaram novamente,
possibilitando ao remembrado colocar-se facilmente de pé. No entan-
to o excesso de pressão em um só ponto fez com que o céu sofresse
nova rachadura e ruísse, recolocando o voador em queda livre.

68 | Felipe Melo
FRACTAIS

A velocidade da queda era maior que o normal, o que fez com


que o acelerado chegasse ao chão mais rapidamente. O impac-
to fez com que o sonolento despertasse do sono, deitado na relva. Já
desperto, sentiu-se profundamente aliviado por tudo não ter passado de
um sonho. Porém ao olhar para o lado direito deparou-se com o livro,
também estendido com expressão de tranquilidade. De maneira a ga-
rantir que o mal entendido seria finalizado definitivamente, partiu com
agressividade em direção à obra, no intuito óbvio de rasgá-la. Mas na
metade do terceiro passo sofreu um tropeção e deitou o peito ao chão,
o que fez com que o 2-adormecido despertasse novamente, vendo-se
agora na fazenda. Sentiu uma segunda leva de alívio, mas ao virar-se para
o lado direito viu novamente o livro, e com o mesmo intuito do último
sonho partiu para cima dele, tropeçando e despertando novamente, ven-
do o livro à sua direita e seguindo esse rumo de ação mais setenta e oito
vezes, finalmente despertando em seu quarto e cama, segurando sobre o
peito esse mesmo livro que você está lendo.

70 | Felipe Melo
COTIDIANO

A gora desperto, de volta à sua vida normal, olhou para o lado


preguiçosamente a fim de verificar que horas eram, pois a
impressão que o semipreguiçoso tinha, era de que haviam se passado
mais de vinte minutos desde que pegara no sono. O relógio marcava
5h8min, o que significava que ele não havia dormido muito mais que
dez minutos. Decidiu que era hora de levantar, pois o dia prometia ser
longo, ou pelo menos era essa a impressão que ficara antes do cochilo.
Levantou-se e não pôde conter um grande bocejo enquanto es-
preguiçava. Abaixou-se e colocou a mão direita sobre a boca enquanto
o bocejo ocorria. Caminhou em direção ao banheiro. Passou dentifrí-
cio na escova, se agachou e escovou os dentes. Ao terminar, levantou o
braço e agarrou o enxaguante bucal. Derramou um pouco sobre o pé
direito, gargarejou por nove segundos, cuspiu e levantou-se. Encheu
um copo com água e em seguida deixou-a cair sobre o mesmo pé.
Retornando ao quarto, retirou seu melhor terno do guarda-roupa
– um terno de cor marrom com listras brancas – e vestiu-se rapida-
mente. Rumou apressadamente em direção ao centro da cidade.

Ele precisava ir. . | 71


PROBLEMAS NA INFRA

T ão logo chegou à rua, após três passos apressados, não pôde


evitar pisar firmemente em uma poça que se formara por cau-
sa de um desnível na calçada, o que fez jorrar água com barro em sua
boca. Abaixou-se e retirou do bolso esquerdo um lenço com o qual
limpou a citada cavidade. Levantou-se e seguiu caminho sem conse-
guir evitar a rogação de pragas ao fato da natureza humana ser tão
imperfeita, forçando todos a exporem seus pés às diversas intempéries.

72 | Felipe Melo
DAS AINDA
OBSERVAÇÕES COTIDIANAS

E mbora caminhasse em marcha acelerada, o apressado não po-


dia deixar de notar a afeição dos demais entre eles mesmos. A
cada esquina via casais apaixonados levando cada qual seu pé direito até
a testa do outro, oferecendo beijos ternos e reconfortantes.
Após observar um dos casais, o atrasado resolveu verificar as ho-
ras e concluiu que à pé não chegaria ao destino, no horário adequado.
Aproveitou que passava em frente a um ponto de ônibus e resolveu
esperar, pois sabia que dali até seu destino não existiam muitos empe-
cilhos no trânsito. Um ônibus apareceu três minutos e dois segundos
após a iniciativa do resoluto.

Ele precisava ir. . | 73


PREPARAÇÃO PARA
AS INTERIORIDADES

O mal-educado subiu rapidamente no ônibus passando à frente


das outras pessoas que por ali já estavam antes de ele che-
gar, o que gerou certa insatisfação. Uma dessas pessoas, um homem
com apenas quatro dentes até chegou a levantar o pé direito, dando a
entender que não permitiria que tal grosseria passasse em branco, no
entanto, como ele também estava com pressa, preferiu deixar para uma
próxima oportunidade.
O agora-um-pouco-mais-aliviado buscou um lugar mais à frente
de maneira que pudesse ser também o primeiro a descer quando o ôni-
bus chegasse ao destino. Encontrou um lugar logo atrás de um senhor
careca e sentou-se sofregamente. A poltrona onde estava o senhor era
um pouco mais baixa, de maneira que o afobado pôde contemplar
com detalhes não só as laterais, como também o centro da cabeça ca-
reca do homem à sua frente. Todos os passageiros subiram e o ônibus
continuou sua rota.

74 | Felipe Melo
ATÉ QUE ENFIM, ELAS

O distraído reparava alguns detalhes das ruas por onde o ônibus


passava quando subitamente uma boca surgiu no meio da par-
te de trás da cabeça do homem careca. Era uma boca carnuda, com os
dentes da frente bastante sujos e os molares faltantes. A boca começou
a dizer alguma coisa em ritmo acelerado, como se tivesse pouco tempo
para transmitir sua mensagem. O assustado tentou assimilar tanto o que
acabara de acontecer quanto a mensagem que a boca tentava sem sucesso
transmitir. A falta de efetividade na comunicação devia-se à localização da
boca, que salivava incessantemente e tentava constantemente reter essa
saliva com contra-assobios. Contudo, tais tentativas infrutíferas não pas-
saram despercebidas, pois outra boca surgiu exatamente no meio da parte
de cima da cabeça do homem, que de nada suspeitava até o momento. A
segunda boca era idêntica à primeira, exceto pelo fato de que seus dentes
eram azuis piscina. A segunda boca conseguia falar mais alto, mas mesmo
assim o que por ela era proferido era indecifrável. Ao perceber que tam-
bém não conseguiria transmitir as mensagens necessárias, a segunda boca
começou a gritar, o que fez com que grandes gotas de saliva saltassem
por entre seus dentes azuis e fossem encontrar solo no nariz do dono da
cabeça, que continuava impassível. No entanto os demais passageiros não
se encontravam no mesmo estado.
Ele precisava ir. . | 75
REAÇÕES À ESSÊNCIA
DAS INTERIORIDADES

Aos poucos todos foram se levantando e se aproximando lenta


e curiosamente das bocas. O constrangido teve a sensação de
também estar sendo observado e sentiu-se até mesmo um pouco cul-
pado, como se fora ele quem tivesse descoberto aquelas bocas.
Em vinte e um segundos todos os passageiros do ônibus amontoa-
vam-se em apenas uma pequena parte do veículo, o que fez com que até
mesmo o motorista parasse o ônibus no meio da rua a fim de ir ver o que
se passava. O homem, dono da cabeça onde estavam as bocas, continua-
va impassível, apenas virando-se vez ou outra para cumprimentar algum
dos passageiros que, ao redor dele, curiosamente se aglomeravam. O não
mais constrangido agora se sentia também membro daquela horda. Porém
deixou de se ver enquadrado no mesmo estado de espírito dos demais
quando viu um passageiro – aquele mesmo que no momento do embar-
que fizera menção de reprimenda à indelicadeza do afoito – levantar o pé
direito e berrar, agora sim, de maneira bem compreensível: monstro!
Nem bem terminou de pronunciar sua conclusão e todos os de-
mais já estavam com os pés direitos descalços erguidos e bradando

76 | Felipe Melo
em uníssono: monstro! Mas o homem careca continuava tranquilamente
observando o movimento do lado de fora do ônibus, o que fez com
que a multidão tivesse ainda mais certeza do que dizia. Ao perceber
que os brados por si só não renderiam grandes frutos, o homem que
incitou a balburdia abaixou a perna e apanhou em sua bolsa uma barra
de metal de trinta centímetros. Empunhou-a firmemente com o braço
esquerdo e após dois passos desferiu um violento golpe contra a ca-
beça do homem careca, que dessa vez foi ao chão e de lá lançava um
olhar de extrema incredulidade e dúvida, enquanto deixava principiar
um choro de impotência e desespero. Isso não fez com que os outros
– menos o agora incrédulo e discordante – retirassem também seus
bastões e partissem em direção ao homem indefeso que tentava em
vão proteger a cabeça contra os golpes cada vez mais violentos. As
pancadas provocaram tanta dor que o homem, não conseguindo cho-
rar e gritar mais alto, transformou-se em uma grande boca, que antes
de morrer esbravejou a frase: percebam o tempo.
A frase não encontrou recepção entre os agressores, mas a encon-
trou de maneira assertiva no agora perplexo, que percebera a barbárie
que por ali se passara. Levantou o pé direito e tentou explicar aos de-
mais que o local da boca pouco importava. Se era na cabeça – como
era o caso do homem assassinado – ou no pé como era o caso os

78 | Felipe Melo
demais, quando o tempo era colocado em perspectiva, essa diferença
se diluía, deixando apenas a heterogeneidade. Tal afirmação teve efeito
contrário e foi compreendida pela multidão como sendo um suporte
explícito à monstruosidade, pelo que todos aproveitaram os bastões
que já se encontravam empunhados e partiram em direção ao ataca-
do. Foram todos pulando – uma vez que mantinham os pés direitos
ao alto a fim de fazerem soar mais alto a impressão da unanimidade:
defensor de monstro. A primeira pancada foi dada e a orelha do agredido
foi imediatamente arrancada. A segunda pancada foi dada e o ferido
lançou-se à quarta janela do ônibus contando-se a partir da porta tra-
seira do lado direito de quem vai em direção à cabine de direção. O
impacto fez com que a janela se quebrasse e deixasse sair do ônibus,
em queda livre, o violentamente assaltado. Nem bem encontrou o solo,
foi atropelado por um carro que vinha em alta velocidade. Despertou.

Ele precisava ir. . | 79


DA DESCOBERTA
E DO RETORNO

A gora desperto em um divã de veludo azul, podia ver ao seu


lado o psicólogo que o havia induzido ao transe hipnótico
para que pudesse descobrir a verdade por trás da imensa incerteza, que
agora se mostrava mais óbvia e certa do que nunca. O esclarecido não
podia deixar de sentir genuína gratidão pela cabeça e suas bocas, que
lhe haviam apresentado o que havia tanto tempo procurava.
– Achou? – perguntou o psicólogo enquanto agitava sua mamadeira.
– Sim. Finalmente – respondeu o aliviado e iluminado.
O psicólogo ouviu lisonjeado e, orgulhosamente, deu um enorme
trago no mingau que estava em sua mamadeira. O agora iluminado e
também faminto, tateou o chão ao lado do divã e encontrou sua ma-
madeira, cujo mingau já estava frio. Decidiu não tomá-lo.
– Pois bem, trabalho concluído – finalizou o psicólogo. – Agora se me dá
licença, tenho que trocar minhas fraldas – após dizer isso tocou uma sineta
em plástico azul.
– Muito obrigado. Realmente era o que eu precisava – respondeu o agra-
decido.
80 | Felipe Melo
– Se assim é, alegro-me – respondeu em tom de leve superioridade o
psicólogo, enquanto Alice entrava na sala.
O anjo caminhou até o psicólogo e ergueu-o ternamente, enquan-
to brincava carinhosamente: quem é o doutorzinho lindo da Alice, que sujou a
fraldinha? Em seguida soprou sua barriga. O psicólogo não pôde con-
ter uma deliciosa gargalhada e respondeu ainda risonho: fui eu, fui eu, fui
eu. Após responder ao anjo, virou-se seriamente para o recém-revelado
e perguntou se ele gostaria que Alice chamasse seu anjo que estava a
esperar pelo término da sessão na portaria. O obsequiado fez que sim
com a cabeça e em seguida o psicólogo retirou-se da sala nos braços
de Alice. Quatorze segundos depois, chegou à porta da sala o anjo do
agora-faminto. Era idêntica a Alice, exceto pela cor dos cabelos. Nem
bem adentrou o recinto já foi logo disparando: conseguiu, meu bem, achou?
O revelado balançou positiva e efusivamente a cabeça, pelo que o anjo
abriu um enorme sorriso. Em seguida, ao ver a mamadeira ainda cheia,
especulou que seu protegido deveria estar faminto, e retirou-o deli-
cadamente do divã enquanto prometia: vou fazer o papá mais gostoso do
mundo para meu agorinha-reveladinho. Saíram ambos da sala.

Ele precisava ir. . | 81


APLICAÇÕES

A o saírem da clínica e chegarem ao espaço público, o esclare-


cido sentia-se diferente. Sentia-se como se nada mais tivesse
importância, exceto o que tinha importância para cada um. Via cen-
tenas de pessoas de todos os cinco sexos, cada qual carregada por seu
anjo, com quem se comunicavam com intenso carinho e consideração
para, em seguida, lançarem olhares de seriedade, julgamento e até mes-
mo censura contra os demais. Aquilo que antes fazia sentido como
reação instintiva à natureza parecia agora desperdício de tempo.
Subitamente o anjo disse ao observador: vamos agradecer por seu
sucesso, para que muitos outros venham. Aquela ideia era uma das mais des-
prezíveis que se podia conceber de acordo com o julgamento do novo
interiorizado, mas ele, o agora conhecedor dos pontos de interiorida-
de, compreendeu que para o anjo aquilo tinha valor. De toda forma,
considerou que alguma discussão sobre o tema seria válida para talhar
os dias vindouros, contudo, por agora apenas iria tratar de satisfazer
seu anjo. Assim, respondeu com um sorriso brando, mas sincero: sim.

82 | Felipe Melo
AGRADECIMENTOS

O anjo, regozijante com o consentimento de seu protegido no


que tangia às futuras ações, apertou o passo em direção ao
centro de agradecimento mais próximo, que ficava a apenas duzentos
metros de onde estavam agora. Seis minutos e dezoito segundos de-
pois estavam os dois à porta do centro.
O centro era na verdade um ginásio de esportes tradicional. No
centro da quadra de futebol havia um altar de quatro metros quadrados
e vinte centímetros de altura. No centro do altar estava uma mulher de
trinta e cinco anos, calçando chinelos vermelhos e trajando um vestido
amarelo que deixava descobertas suas costas, braços e panturrilhas. A
mulher equilibrava um cigarro no canto direito da boca e nove garrafas
vermelhas de café estavam dispostas em forma de círculo sobre uma
mesa de madeira à sua frente, juntamente com um pote transparente
com sal que ficava no centro do círculo formado pelas garrafas.
Havia uma fila de aproximadamente doze pessoas também desejosas
por oferecer agradecimentos, provavelmente em decorrência de eventos
tão fortuitos quanto aquele que acabara de se passar na vida do agora-a-
gradecido. Ele e seu anjo entraram no ginásio e se colocaram no último

Ele precisava ir. . | 83


lugar da fila. Nem bem tomaram sua posição e mais quatro anjos chega-
ram segurando seus protegidos, duas meninas, um menino e um gemino.
O agradecimento ocorria de acordo com a seguinte praxe: o casal,
anjo e protegido, dirigia-se até o altar e o anjo se ajoelhava na direção
da próxima garrafa sucedendo em sentido horário a última utilizada,
sendo que o protegido era mantido no colo do anjo. A mulher sobre o
altar retirava então dois dedos de café da garrafa em alinhamento com
o casal ajoelhado, derramando a bebida em uma caneca de alumínio, já
bastante gasta. Em seguida, a mesma mulher arremessava com força o
café em direção ao casal. Quando do arremesso, o anjo deveria abaixar
a cabeça para que a maior quantidade de café possível fosse derramada
sobre seus cabelos. Quanto mais café incidisse sobre a cabeça do anjo,
mais agradecido o casal estaria. Em seguida, a mulher sobre o altar
retirava um pouco de sal de dentro do pote localizado no centro do
círculo formado pelas garrafas de café, segurava-o com a mão direita
e aproximava-se do casal. Após proferir a palavra puft, assoprava o sal
sobre os cabelos do anjo. Como último ato, o protegido saía do colo
do anjo e dirigia-se às costas do mesmo, no intuito de sugar o café
salgado de seus cabelos. Essa sucção era uma confirmação da gratidão.
Após a ingestão do café salgado o casal se retirava do lugar e o agrade-
cimento era considerado completo.

84 | Felipe Melo
O resignado-a-agradar-o-anjo e o anjo esperaram quarenta e sete
minutos até que pudessem passar pelo ritual de agradecimento. Fi-
nalmente chegada sua vez, o empenhado estava tão determinado a
agradar seu anjo que demorou seis minutos sorvendo a bebida salgada,
o que fez com que os demais – que aguardavam impacientes na fila –
começassem a atirar objetos diversos sobre os dois. Porém, tal ação era
estéril, uma vez que o anjo estava em transe, tamanha era a demonstra-
ção de gratidão por parte de seu protegido.
Ao término, o casal se retirou do ginásio sob fortes vaias que,
dada a alegria do momento, eram completamente inaudíveis. Ao ga-
nharem novamente as ruas, caminharam como se estivessem sobre
nuvens. Ao passar por outro centro de agradecimento que ficava a
trezentos metros daquele de onde acabaram de sair – nove minutos
e vinte segundos depois –, o anjo pensou em agradecer novamente.
Sentiu um quase orgasmo quando o concordante consentiu. Entraram
no ginásio e lá estava a mesma mulher no mesmo altar, no entanto a
fila tinha agora cem pessoas, o que desestimulou o casal. Seguiram
então até outro ginásio que ficava a seiscentos metros do primeiro. Lá
chegando – doze minutos e dois segundos depois – viram novamente
a mesma mulher ao centro do altar, mas viram também, frustradamen-
te, que a fila tinha duzentas pessoas. Dada essa dificuldade, decidiram
convencer-se mutuamente de que o agradecimento já havia sido feito a
contento, logo, poderiam rumar despreocupadamente para casa.

Ele precisava ir. . | 85


É

A caminhada iniciou-se tranquila, rumo ao lar. Ambos estavam


leves, ela por tão ardoroso ato de agradecimento e ele por vê-la
tão regozijante. Nesse estado de torpor afetivo ambos caminharam – ele
ao colo dela – por vinte e nove passos quando o cansaço começou a dei-
xar-se perceber por parte dela e a fome por parte dele. A isso seguiu-se
a ação costumeira: ela lançou-o com força ao chão e aplicou um forte
chute às costas. A esse ato seguiu-se o contra-ataque, com o lançado ao
chão virando-se rapidamente e metendo a boca com força no tornozelo
do anjo, arrancando um pedaço do mesmo. Ao final dessa reação o anjo
concluiu – e teve plena anuência da outra parte – que seria preciso recor-
rer aos serviços de um táxi.
O anjo esticou a mão requisitando atenção e três segundos depois,
um dos táxis que por ali passavam parou. Cada táxi tinha sua cor depen-
dente do sexo de seu motorista. O táxi em questão tinha cor magenta, o
que significava que seu condutor era do sexo timirino. O faminto entrou
no veículo rapidamente enquanto seu anjo posicionou-se na parte de
trás do mesmo. Diferentemente dos outros carrinhos de criança, o táxi
dos timirinos não tinha pedais, pelo que era necessário que os anjos des-
pendessem mais energia para colocá-los em movimento.

Ele precisava ir. . | 87


Uma vez que já estavam, agora sim, de maneira mais cômoda di-
rigindo-se para casa, retornaram ao estado emocional anterior. O anjo
afagou sorridente os cabelos do agora calmo e recebeu em retribuição
um beijo gentil na fronte, que se sujou de sangue, uma vez que a boca
do carinhoso encontrava-se bastante suja do citado líquido em decor-
rência da mordida que havia ocorrido segundos atrás.

88 | Felipe Melo
DE LÁ

U m minuto e treze segundos após pegarem o táxi, o mesmo já


estava em frente à casa do casal, que ficava a vinte e um pas-
sos de onde tomaram a condução. O anjo pediu que todos esperassem
enquanto ele iria buscar o pagamento dentro de casa, pois que nada
levava consigo. Um minuto e três segundos após, retornou com um
biscoito salgado e um copo d’água. Entregou o biscoito ao condutor e
derramou metade da água sobre a cabeça de seu anjo, entregando em
seguida o copo com o resto da água, que também foi derramada sobre
a cabeça do anjo do condutor, porém, agora por ela mesma. A essa
altura o apressado já se havia retirado engatinhando, do veículo. Não
restando nada mais a pagar, o casal do táxi agradeceu e partiu.

Ele precisava ir. . | 89


O anjo recolheu rudemente seu protegido, pois que agora o


cansaço já principiara a reassomar-se. O agora no colo, em
resposta, enfiou o dedo indicador direito no olho do anjo, cegando-a.
A essa altura já estavam dentro de casa. O anjo atirou o faminto sobre
a pia, que não foi suficiente para segurá-lo, o que fez com que ele ca-
ísse, quebrando uma perna. O anjo dirigiu-se à geladeira, apanhou um
pote de mingau, foi até o fogão, acendeu o fogo e colocou o mingau
em aquecimento. O fraturado aproveitou que o arremesso havia feito
cair também uma faca próxima a sua cabeça, apanhou-a e arrastou-se
em direção às pernas do anjo, começando a desferir profundos golpes
enquanto o mesmo esperava até que o mingau atingisse temperatura
aceitável para ingestão. A fíbula do anjo já estava exposta quando o
mingau atingiu a temperatura desejada. O anjo rapidamente colocou o
líquido viscoso em um copo e entregou-o ao agora feliz, que ingeriu a
pasta em um só gole. O anjo assistiu à cena com instinto e expressão
maternais. Em seguida, tomou o saciado nos braços e arrastou-se com
ele até o sofá, onde começou a oferecer gentis golpes às costas, bus-
cando a eructação, que veio após vinte e cinco segundos, em volume
tão alto que ensurdeceu o anjo e

Ele precisava ir. . | 91


ÚLTIMO JÁ

despertou o acidentado, que se encontrava com os dois braços


fraturados e uma perna em carne viva, estirado sobre o asfal-
to. Ao seu lado, a moto verde que pilotava a cento e cinquenta e quatro
quilômetros por hora momentos antes do acidente, juntamente com
duas dezenas de curiosos. O atônito buscava em volta por seu anjo,
mas não a encontrava. Tentou gritar, mas tinha a garganta como que
coberta por areia. Verificou se alguém mais havia participado do aci-
dente e concluiu que era o único infeliz no local. Percebeu que estava
sobre uma ponte, e ouviu também o som de um trem que se aproxi-
mava. Não teve dúvida: seu anjo estava naquele trem. Arrastou-se até
a beirada da ponte em meio aos gritos de coação e desespero tentando
contê-lo. Esperou que o trem começasse a passar por sob a ponte e
atirou-se decididamente ao encontro de seu anjo.

92 | Felipe Melo
Impresso em papel Avena 90g,
com tipologia Garamond 12/15

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