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Melo, Felipe
Ele precisava ir
ilustrações de Carolina Mancini. – São José dos Pinhais, PR: Página 42 Editora, 2014.
90 pg.
ISBN: 978-85-64590-71-7
1. Ficção brasileira. I. Melo, Felipe. II. Mancini, Carolina
CDD-813
E le precisava ir. Não sabia por que ou para onde, mas precisava
ir. Aquela sensação de aperto que apenas se extinguiria com o
movimento da partida tornava-se mais intensa a cada dia, a ponto de
fazer com que as noites se tornassem masturbações mentais onde as
cenas de volúpia eram compostas por paisagens móveis vistas através
da janela de um ônibus. Era manhã de uma quinta-feira, mais precisa-
mente 5h2min, quando ele finalmente sucumbiu à pressão.
À medida que o sol crescia forte no horizonte, porém, uma sen-
sação de desconforto foi-se assomando, e quando o cobrador veio
exercer seu ofício, ouviu que o destino seria a cidade mais próxima.
Trinta e cinco minutos depois, lá estava ele.
Apesar da proximidade entre as cidades de origem e destino, o
viajante jamais ouvira qualquer menção a essa última, e aproveitou a
sede de movimento para guiá-lo em uma pequena expedição turística.
Enquanto caminhava, tentava buscar na memória seu último so-
nho, o sonho que o motivara a partir naquela manhã. No sonho ele
avistava a partir da janela de sua casa, um pequeno cão, de costas, me-
neando agitadamente a cabeça, como se destruísse vorazmente com
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CONTATOS, IMPRESSÕES
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Após dizer isso, fez um sinal no ar com o dedo mínimo e no
instante seguinte todos os moradores da cidade dirigiam-se apressa-
damente ao local. Vieram duas senhoras, mãe e filha, segurando uma
panela cheia de feijão preto e uma vassoura de palha, respectivamente.
Vieram também um senhor segurando a calça larga para que não caís-
se, um homem com um chicote, açoitando o chão e emitindo um solu-
ço a cada açoite e até o prefeito, que veio correndo ao mesmo tempo
em que vestia sua faixa de autoridade, seguido por dois assessores que
traziam sua cadeira. Quando avistaram o prefeito, todos os presentes
sentaram-se no chão – à exceção do homem que trazia o chicote, que
utilizou o artefato para amarrar-se a um poste.
Os assessores colocaram a cadeira em frente ao viajante. Após sen-
tar-se, confiante, o prefeito lançou um sorriso desafiador para a figura de
mochila à sua frente e disparou em tom de deboche: vamos, mostre-nos algo
então, senhor não adestrador de potros. O viajante sentiu uma leve apreensão.
Precisava mostrar àquela gente, precisava provar que não adestrava potros.
Mas a natureza de seu negócio era outra, e não permitia grandes demons-
trações, principalmente para plateias. Então, após pensar durante quatro
segundos teve uma ideia que sem dúvida provaria a todos que potros não
figuravam entre suas especialidades. Calmamente, deixou cair sua mochila,
e retirou de lá a beterraba que havia pegado na cozinha de sua casa antes
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Exatos quinze segundos se passaram – era o tempo padrão – até
que todos se recobrassem. Após esse intervalo, todos se levantaram
ao mesmo tempo e foram embora, cada grupo seguindo uma direção.
O homem do bar entrou em seu estabelecimento e de trás do balcão
atirou com toda força três tabletes de chocolate no rosto do viajante
e concluiu: é isso. O atacado apanhou os tabletes e colocou-os em sua
mochila.
C omo ainda estava muito cedo e o viajante não nutria pelo calor
grande apreço, imaginou que talvez onde se encontrasse a égua
em trabalho de parto houvesse também sombra. Gritou ao homem que
ia a cavalo e, após este retornar, ouviu que todos aqueles acontecimentos
fizeram o calorento bastante interessado nos mistérios do mundo equi-
no. O homem sobre o cavalo pediu ao viajante que o acompanhasse,
pois teria o maior prazer em apresentar a questão. O viajante fez mon-
taria e o cavalo, apesar de ter esboçado uma quase imperceptível reação
de ciúmes, aceitou o peso extra.
Ao chegarem à fazenda, o homem do cavalo emitiu um assobio
agudo. Três segundos depois surgiu de dentro da fazenda uma mulher
de aparência bastante desgastada, usando um avental e uma roupa pe-
luda por baixo. Reparando melhor, o viajante percebeu que a mulher
trajava algo que a dignificava enquanto representante dos equinos. A
mulher se aproximou e após retirar o avental, apoiou a mão esquerda
em uma árvore próxima e com a mão direita abaixou a própria cabeça.
O homem do cavalo desceu da montaria e com o mesmo chicote que
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A PONTA DO ICEBERG
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O mensageiro correu até a casa, a fim de dizer ao homem que o
adestramento havia sido realizado, mas quando chegou à porta depa-
rou-se com o homem montado sobre a mulher, que estava de quatro ao
chão. Com a mão direita açoitava-a com força e com a esquerda enfiava
o dedo indicador em sua boca, como se fosse um arreio. Ao deparar-se
com o atônito viajante, o homem sorriu e pediu por boas notícias. O
viajante meneou a cabeça positivamente, ao que homem respondeu:
– Veja, esposa, eu não havia dito? Acene para ele em agradecimento.
A mulher tentou acenar, mas não suportando o peso com apenas
uma das mãos, deixou cair o homem. O viajante teve sua respiração
suspensa temendo pelo futuro da mulher: e o castigo de fato foi ime-
diato e terrível. Com fúria sonora nos olhos, o homem disse à sua
esposa: agora! E ela com os olhos marejados foi receber sua punição.
Sentou-se vagarosamente à mesa e começou a ingerir colheres cheias
de angu, uma após a outra, com profunda tristeza nos olhos, enquan-
to ouvia seu marido dizer que com aquilo esperava que ela houvesse
aprendido a lição. Depois da oitava colher, o marido disse que já era o
bastante e saiu da casa, regozijante, em direção ao estábulo, em com-
panhia do viajante.
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De um deles leu gritando “nunca encher totalmente um copo com
água”, do outro “nunca ingerir alface pura”, e de um terceiro, “utilizar
os garfos corretamente é sinônimo de cultura”, e assim por diante, a
plenos pulmões ia saudando cada um dos novos habitantes do planeta.
Ao término da pequena cerimônia, o homem deitou-se extasiado, com
as veias do pescoço estufadas dada a intensidade dos gritos.
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FIM DO MEIO
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INTERVENÇÕES
A SI PRÓPRIO
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CANAIS
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uma criança de quatro anos, e sem mais demora, avançou em direção
ao resignado. Com seus braços de meia-lua o círculo picou o viajante
em diversos pedaços quadrados. A cada golpe, um som parecido à
nota ré bemol retirada de um piano de cauda podia ser visto, porém
em um formato um pouco mais triangular.
Ao término do decepamento, o círculo sorveu cada um dos pe-
daços e ao final, colocou ao chão o retângulo previamente desenhado
e deitou-se sobre ele. Em seguida desenhou em si próprio algo como
um olho, próximo à extremidade direita da meia-lua inferior, e fez en-
caixar esse novo membro à circunferência já presente no retângulo.
Feito isso, o círculo pôs-se a chorar com violência, enquanto um fluido
azul fluorescente descia de seu olho e adentrava o retângulo. O pranto
durou exatas três horas.
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– Por quê?
– Afogamento.
– Onde?
– Praia.
– Argumentos?
– Piscina infantil circular azul, doravante copos com abertura triangular, fecha-
mento inconsciente e imperceptível dos olhos à circunferência em qualquer lugar – con-
cluiu o emocionado retângulo.
O círculo deu dois saltos para trás e assumiu uma posição que
mesmo para um círculo deslocado, comunicava a impressão de intros-
pecção. Intermináveis oito segundos após, o círculo iniciou o processo
de reversão.
– Percebe que não sou mau? Já bem diz isso o que estou a fazer. Ou não?
– É fato.
– Então o quê?
– Foi andar de bêbado.
– Concluído. Ótimo.
– Vou continuar.
– Fico lisonjeado. E te aceito.
Ao terminar de dizer a última frase, o círculo começou a acertar
lentamente as meias-luas que o formavam, enquanto com a pequena cir-
cunferência interna à meia-lua inferior fitava ansioso o retangular. Podia
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ver a transformação. À medida que ia se tornando um círculo perfeito,
também o fazia o viajante. Ao término do processo, ambos eram circun-
ferências perfeitas. O círculo original girou cento e oitenta graus para a
esquerda de maneira a trazer seu olho para a parte de cima e disse ao
agora circular viajante:
– Vá então, e me leva.
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DAS PRIMEIRAS APARÊNCIAS
DAS NOVAS APARÊNCIAS
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o atônito perceber que a sombra estivera se masturbando sofregamente
e agora estava próxima de um orgasmo. Ele não conseguiu conter uma
ereção. Ao perceber esse efeito, a sombra mostrou-se ainda mais excita-
da e ansiosa, e uivava ao chamar o excitado para perto de si. Queria tê-lo
de novo em seu círculo. Mas estavam próximos demais do estábulo. A
égua poderia chegar-se à porta a qualquer momento. E como poderia
reagir? Poderia rasgar os próprios filhos em um ataque de ciúmes. Ou
pior, poderia, cruelmente, retirar apenas algumas páginas, o que elimi-
naria completamente o contexto. E o que seriam livros de etiqueta sem
contexto? Não, ele não podia deixar-se levar pelo comportamento ardil
da sombra. Resolutamente virou as costas e marchou rápido em direção
à casa, decidido a não incorrer no mesmo erro.
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O curioso tentou aproximar-se ainda mais, mas tropeçou no
degrau do desnível da porta e foi ouvido pelos dois, que se viraram
instantaneamente. Porém, o fazendeiro lançou um olhar firme para
a esposa, que continuou emitindo uivos de um segundo de duração a
cada três segundos, e fazendo os riscos de giz na parede. Seguiu inin-
terruptamente com a sequência.
O fazendeiro levantou-se e caminhou até o homem, com um
olhar fixo em seu nariz. Continuou até que os narizes de ambos se
chocaram, pelo que o fazendeiro desculpou-se.
– Vim para me despedir – disse aquele que partia.
– Pois bem, mas é – respondeu compreensivo o fazendeiro.
– Pois está. Até – devolveu aquele que se virava de costas.
– Antes me diz, vai um si ou um ré? – inquiriu o fazendeiro.
– Pois que sou afeito às diminutas – delineou o musical.
– Si ou ré, só – repetiu impaciente o fazendeiro.
– Então adeus – disse o de partida, virando-se de costas. Mas in-
correu no erro de antes e olhou para trás. Viu que o homem voltara
correndo para a posição anterior, mas agora o perceptivo via uma rea-
lidade diferente. Via não mais o fazendeiro e sua esposa, mas sim duas
formas côncavas se encaixando. Partiu com a devida compreensão.
Olhou de relance a sombra que ainda estava a acariciar-se convi-
dativa, mas seguiu firme em direção à saída da fazenda.
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– Por que isso? – questionou o indignado.
– Ainda pergunta. Despessático – organizaram-se as letras e escreve-
ram na página aberta.
– Obviamente que sim, pois não sei a razão. Por que me ameaças? Por que
se mostra tão arredio? – indagou o desentendido.
Após essa pergunta as páginas se reorganizaram e o livro ganhou
novamente sua forma original. Era um livro sobre etiqueta, boas ma-
neiras e o politicamente correto. Tudo estava claro agora. Aquele livro
era o pai dos filhotes da égua a quem o coração do entendedor tanto se
associou. Estava claro como as letras agora deixavam ser: aquela obra
de capa rota e conteúdo ileso estava preenchida pelo ciúme.
– Mas eu não sabia nada a seu respeito. Ela não mencionou qualquer pala-
vra – lançou o defensivo.
As letras formaram uma caricatura cuja boca em movimentou
lançou a seguinte frase na mesma página:
– Nem eu conhecia você.
– Então, como se irritar comigo? – disparou o atônito. – Ela estava em
trabalho de parto havia um mês. Como seria possível que eu, tendo as condições,
não a ajudasse? Além do mais, por que você não estava lá oferecendo a ela o devido
suporte emocional? – arrematou o que agora começava a se zangar.
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O CONTEXTO DO TROCO
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– Voltem para casa.
O tom da última frase foi tão afirmativo que as letras abaixaram
suas cabeças e retornaram obedientemente. Mas antes que todas re-
tornassem, um grupo de aproximadamente vinte letras se voltou com
olhar de extremo rancor e formaram três palavras para o leitor.
– Parem suas pífias, façam como suas irmãs – disse em tom quase pu-
nitivo a capa.
– Ele é um iletrado, não nos vai entender – disseram com olhar de vin-
gança as vinte letras.
– Assassinas! Voltem já!
– Que seja, mas o contexto não pertencerá a quem quer que seja.
Ao chegarem à capa as vinte letras foram recebidas com golpes
forte das pontas da capa, que agora as olhava com olhar lacrimejado
de profunda tristeza.
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NOVOS PASSOS
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EFEITOS
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pararem do tronco e da cabeça, pelo efeito do impacto. Contudo, se
manteve consciente todo o tempo, e pôde ver o céu vazio, que nessa
condição não passava de um espaço branco cheio de borrões verme-
lhos com uma rachadura de aproximadamente três metros e vinte e
seis centímetros. Percebeu ainda que tudo começara a flutuar no lí-
quido azul que havia vazado, inclusive o livro, que jazia de cabeça para
baixo, enquanto as letras – a maioria morta – lutavam para sobreviver
agarrando-se à capa, que visivelmente já não se encontrava entre os
seres vivos. Viu por fim suas pernas, braços e tronco flutuando inertes
sobre o líquido.
Aproximadamente sete segundos se passaram até que o desmem-
brado começou a perceber-se como que flutuando ainda mais suave-
mente. Repentinamente sentiu que começara outra vez a ganhar alti-
tude. Ao virar sua cabeça para checar se ainda estava repousado sobre
o líquido azul, viu que já estava a pelo menos vinte metros de altura e
notou que tanto seus membros e tronco quanto o livro e as letras co-
meçavam também a flutuar. Pensou em se desesperar, mas como não
podia se expressar, desistiu da ideia.
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DAS BENESSES
DAS INTERVENÇÕES
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Após tal constatação, o matemático pôs-se a fazer cálculos e mais
cálculos, até que uma das equações revelou o caminho: os números eram
inimigos de longa data das letras. Ali estaria sua vingança e salvação.
O calculador começou a realizar mentalmente cálculos cada vez
mais complexos, até que números passaram a escorrer de seu nariz,
boca e ouvidos. E tão logo tocavam o chão, partiam furiosamente em
direção às letras. Os presentes – cabeça, tronco, membro, capa e os
demais – observaram atônitos a uma guerra brutal entre as duas re-
presentações, e puderam ver também a vitória sofrida – mas por isso
mesmo mais valorosa – dos números, após quarenta e um segundos
de batalha. A capa estava em prantos em decorrência do horror que
por ali fizera leito, e o compreensivo chegou a sentir pena dela, mas
infelizmente, nada podia fazer.
A guerra estava terminada e os números eram soberanos. Porém,
sem as letras, o esperançoso ainda não poderia ler. Surpreendentemen-
te, em tom de alento, o número nove sinalizou para ele que o problema
estava resolvido. Após essa sinalização, convocou os números sobrevi-
ventes para retornarem ao até-então-desnumerado. Em debandada eles
entraram pelas narinas, ouvidos e boca do agora-enumerado que re-
pentinamente conseguiu se expressar com letras novamente. Ao tentar
entender o que se passara, uma mensagem foi formada em sua cabeça
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FRACTAIS
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COTIDIANO
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DAS AINDA
OBSERVAÇÕES COTIDIANAS
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ATÉ QUE ENFIM, ELAS
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em uníssono: monstro! Mas o homem careca continuava tranquilamente
observando o movimento do lado de fora do ônibus, o que fez com
que a multidão tivesse ainda mais certeza do que dizia. Ao perceber
que os brados por si só não renderiam grandes frutos, o homem que
incitou a balburdia abaixou a perna e apanhou em sua bolsa uma barra
de metal de trinta centímetros. Empunhou-a firmemente com o braço
esquerdo e após dois passos desferiu um violento golpe contra a ca-
beça do homem careca, que dessa vez foi ao chão e de lá lançava um
olhar de extrema incredulidade e dúvida, enquanto deixava principiar
um choro de impotência e desespero. Isso não fez com que os outros
– menos o agora incrédulo e discordante – retirassem também seus
bastões e partissem em direção ao homem indefeso que tentava em
vão proteger a cabeça contra os golpes cada vez mais violentos. As
pancadas provocaram tanta dor que o homem, não conseguindo cho-
rar e gritar mais alto, transformou-se em uma grande boca, que antes
de morrer esbravejou a frase: percebam o tempo.
A frase não encontrou recepção entre os agressores, mas a encon-
trou de maneira assertiva no agora perplexo, que percebera a barbárie
que por ali se passara. Levantou o pé direito e tentou explicar aos de-
mais que o local da boca pouco importava. Se era na cabeça – como
era o caso do homem assassinado – ou no pé como era o caso os
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demais, quando o tempo era colocado em perspectiva, essa diferença
se diluía, deixando apenas a heterogeneidade. Tal afirmação teve efeito
contrário e foi compreendida pela multidão como sendo um suporte
explícito à monstruosidade, pelo que todos aproveitaram os bastões
que já se encontravam empunhados e partiram em direção ao ataca-
do. Foram todos pulando – uma vez que mantinham os pés direitos
ao alto a fim de fazerem soar mais alto a impressão da unanimidade:
defensor de monstro. A primeira pancada foi dada e a orelha do agredido
foi imediatamente arrancada. A segunda pancada foi dada e o ferido
lançou-se à quarta janela do ônibus contando-se a partir da porta tra-
seira do lado direito de quem vai em direção à cabine de direção. O
impacto fez com que a janela se quebrasse e deixasse sair do ônibus,
em queda livre, o violentamente assaltado. Nem bem encontrou o solo,
foi atropelado por um carro que vinha em alta velocidade. Despertou.
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AGRADECIMENTOS
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O resignado-a-agradar-o-anjo e o anjo esperaram quarenta e sete
minutos até que pudessem passar pelo ritual de agradecimento. Fi-
nalmente chegada sua vez, o empenhado estava tão determinado a
agradar seu anjo que demorou seis minutos sorvendo a bebida salgada,
o que fez com que os demais – que aguardavam impacientes na fila –
começassem a atirar objetos diversos sobre os dois. Porém, tal ação era
estéril, uma vez que o anjo estava em transe, tamanha era a demonstra-
ção de gratidão por parte de seu protegido.
Ao término, o casal se retirou do ginásio sob fortes vaias que,
dada a alegria do momento, eram completamente inaudíveis. Ao ga-
nharem novamente as ruas, caminharam como se estivessem sobre
nuvens. Ao passar por outro centro de agradecimento que ficava a
trezentos metros daquele de onde acabaram de sair – nove minutos
e vinte segundos depois –, o anjo pensou em agradecer novamente.
Sentiu um quase orgasmo quando o concordante consentiu. Entraram
no ginásio e lá estava a mesma mulher no mesmo altar, no entanto a
fila tinha agora cem pessoas, o que desestimulou o casal. Seguiram
então até outro ginásio que ficava a seiscentos metros do primeiro. Lá
chegando – doze minutos e dois segundos depois – viram novamente
a mesma mulher ao centro do altar, mas viram também, frustradamen-
te, que a fila tinha duzentas pessoas. Dada essa dificuldade, decidiram
convencer-se mutuamente de que o agradecimento já havia sido feito a
contento, logo, poderiam rumar despreocupadamente para casa.
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DE LÁ
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com tipologia Garamond 12/15