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2017­5­5 A verdade cisgênero – Blogueiras Feministas

A verdade cisgênero

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Texto de Jaqueline Gomes de Jesus.

Tentarei escrever da maneira mais didática possível.

Foi uma sacada excelente a de quem, lá pelos anos 2000, resolveu utilizar a
palavra “cisgênero” para se referir a pessoas não-trans. Logo foi adotada, às
vezes como “cissexual” (dizem que o primeiro a cunhá-la foi o sexólogo, físico
e sociólogo alemão Volkmar Sigusch), por autoras como Julia Serano, além de
militantes — especialmente as transfeministas — e acadêmicos anglófonos.

Para as pessoas transgênero bem informadas, sempre soou estranho, por


exemplo, chamar pessoas não-trans de “heterossexuais”, óbvia analogia a
“homossexuais” (rea韺�rmando a confusão comum entre orientação sexual e

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gênero). Nem toda pessoa trans é homossexual, e nem toda pessoa que não é
trans é heterossexual.

Representação de Maat, deusa egípcia da verdade.

Particularmente para as pessoas trans transfeministas (não estou sendo


redundante), sua experiência de vida, e o conhecimento que tinham de como o
termo “transgênero” — originalmente criado por pessoas cisgênero que
objetivavam o controle sobre corpos — ou “trans” era usado, mostravam-lhes
que, no dia-a-dia, mais que ser tão-somente uma marca aplicada às pessoas
que não se identi韺�cam com o gênero que lhes era imposto socialmente; por
parte das pessoas que não são trans, ao se reconhecerem como tais, a de韺�nição
do outro como trans não era acompanhada de um posicionamento grupal frente
a essa construção social chamada “gênero”.

Quero dizer, as pessoas não-trans não percebiam que também tinham


identidade de gênero; e que detinham privilégios em função disso.

Constatou-se que era politicamente necessário, para a humanização das pessoas


trans e para a aproximação das pessoas não-trans com os debates em pauta,
que estas pudessem ser nomeadas positivamente (isto é, que se vissem além de
um “não”).

Trans signi韺�ca além. Logo, sabendo-se que o seu antônimo “cis” signi韺�ca
“deste lado”, criou-se, por contraposição, a palavra “cisgênero”, aplicada às

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pessoas que se identi韺�cam com o gênero que lhes foi imposto socialmente.

Eis uma ideia que se insurge contra saber aceito e compartilhado acerca das
identidades de gênero. Mais que uma palavra, cisgênero é um posicionamento. E
ressalte-se, quando falamos em “cisgeneridade” estamos nos referindo a uma
identidade social, e não apenas a uma expressão de gênero.

No Brasil, ele vem sendo progressivamente utilizado, não apenas por


transfeministas, e com uma surpreendente velocidade de apropriação. Nesse
ritmo, notam-se algumas reações contrárias à sua adoção, que por vezes são
emotivas e chegam ao rechaço.

Se parte das críticas advém de grupos que advogam a abolição de identidades,


sob a in韺�uências daS TeoriaS Queer, e temem que se possam estar marcando
novos estigmas (discordo, conhecendo os estudos feitos no campo dos estigmas
desde Erving Go韞�man. As palavras estigmatizantes decorrem de estigmas que
as antecederam na estrutura social, e não vice-versa); e outra de quem não se
sente incluído nessa categoria (poderá vir a se sentir, quem sabe); uma parcela,
sinceramente, aporta de quem duvida que pessoas trans possam dizer verdades
ou encarná-las.

Posso estar enganada, mas compreendo que estamos em uma fase de repúdio da
verdade cisgênero.

O 韺�lósofo alemão Arthur Schopenhauer escreveu que toda nova verdade passa
por três estágios: (1º) ridicularização, (2º) rejeição e, por 韺�m, aceitação.

“Isso é um absurdo”! A verdade da cisgeneridade não é mais tida como trivial, o


que leva à ridicularização. Essa etapa ocorreu, quando era ideia era alvo de
críticas super韺�ciais e costumeiramente mal-educadas por parte de usuários da
internet, alguns militantes sociais.

Suponho que certas pessoas discordam do termo “cisgênero” ou “cis” por


pensarem que ser trans é apenas uma questão de aparência, e não percebem que
ser cis é, igualmente, apresentar uma aparência, mas que essas aparências são
oriundas de formas de se colocar no mundo e de ser (ou não) reconhecidas.

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Foi superado esse momento (sou otimista). Quem critica hoje argumenta, não
apenas vocifera ou defende o senso comum preconceituoso.

“Isso é verdadeiro, porém perverso ou desnecessário”! Assim, a verdade


cisgênero é questionada, tida como anti-dogmática frente às concepções
cientí韺�cas prevalecentes sobre gênero. Um paradoxo para a pós-modernidade,
não? Existem bíblias para além da Bíblia…

Parece-me uma transição rápida, entre ridicularização e rejeição. Os defensores


do uso do termo seguem lutando pelo seu reconhecimento, e se a suposição de
Schopenhauer estiver correta, em breve leremos e ouviremos, até mesmo por
quem se opôs, que “transgênero” e “cisgênero” — apesar das sombras e
borrões que existem entre eles — são verdades auto-evidentes: “Isso sempre foi
verdade, eu sempre disse que era uma boa ideia”!

No dia em que pessoas trans tiverem os mesmos privilégios das cis, aí sim esses
termos não terão mais sentido. Por enquanto, isso está bem longe de acontecer.

 Autora

Jaqueline Gomes de Jesus é psicóloga, com doutorado em Psicologia Social, do Trabalho


e das Organizações pela Universidade de Brasília. Escreve no blog Jaqueline J.

Esse texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo Dia da Visibilidade Trans,
organizada pelo site Transfeminismo.

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Autor: Autoras Convidadas


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jaqueline jesus, mulher trans, transexualidade, transfeminismo

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