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Entre Angola e Moçambique: um projeto português de ligação terrestre entre as

duas costas da África e suas fontes europeias e africanas*


Junia Ferreira Furtado
Professora Titular de História Moderna
Dep. De História/Universidade Federal de Minas Gerais
Avenida Antônio Carlos, 6627
Belo Horizonte/MG/31.270-901
juniaf@ufmg.br

1. A proposta de ligação terrestre entre Angola e Moçambique


O ano de 1725 começara mal para o embaixador português dom Luís da Cunha,
que por esta época se encontrava servindo em Paris. Um incidente diplomático ocorrido
com o então recém-nomeado representante francês em Lisboa, o abade de Livry
estremecera as relações diplomáticas entre as duas nações, ameaçava sua permanência
na cidade, tirava-lhe a tranquilidade e o fazia sofrer de severa insônia.1 Sem conseguir
dormir e com “obstinados achaques” que enfraqueciam-lhe a cabeça e o privavam “do
útil e gostoso hábito que tinha feito da leitura”,2 colocou seus criados para que, em voz
alta, “ainda que mal”, lessem para ele durante as longas noites passadas em vigília. Com
o intuito de que tarefa não se tornasse penosa demais para seus serviçais, pareceu-lhe
que devia dar a eles livros que fossem “proporcionados à sua curta compreensão, [e]
também lhes inspirasse uma certa curiosidade”. Por estas razões, escolheu o tema “de
viagens, e entre estas as de Ásia e de África, porque estando mais cheias de sucessos e
descobrimentos de que menos ouviram falar, o desejo de os saber não os deixariam
dormir”.3
Ao contrário do que deixava entrever o astuto e frequentemente dissimulado
embaixador, esta não era uma leitura inocente ou casual. O avanço da colonização da
África meridional, que vinha até pouco tempo sendo monopolizada pelos portugueses,

*
Este artigo é parte da pesquisa intitulada “Oráculos da geografia iluminista: dom Luís da Cunha e Jean
Baptiste Bourguignon d’Anville na construção da cartografia do Brasil”, financiada pelo CNPq, Capes e
Fapemig. O texto final desta pesquisa foi apresentado como Tese de Titular em História Moderna do
Departamento de História da UFMG, em 2009, e atualmente encontra-se no prelo: FURTADO, Júnia
Ferreira. Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste Bourguignon D’Anville
na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2011. Ver especialmente o capítulo 7.
1
Contrariando o protocolo diplomático, o embaixador, o abade de Livry, recusou-se a seguir o ritual
oficial de visitas de apresentação da embaixada na Corte portuguesa, o que levou dom João V a romper
formalmente as relações diplomáticas com a França. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ).
Manuscritos. I-14,04,017. Correspondência de Paris de 1725. Carta para Diogo de Mendonça, 22 de
janeiro de 1725.
2
CUNHA, Dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas. (Edição de
Abílio Diniz Silva). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
2001, p.375.
3
CUNHA, Dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.375.
era-lhe de particular interesse desde que, alguns anos antes, começaram a lhe chegar
notícias das investidas dos holandeses, atraídos especialmente pelo comércio de ouro e
marfim produzidos no interior dessa região.4 Desde fins do século XVII, os holandeses
haviam se estabelecido na costa, junto ao Cabo da Boa Esperança e, no alvorecer do
XVIII, começaram a intentar descobrir vias de penetração para o continente, o que
ameaçava os então frágeis laços que os portugueses ainda mantinham com os nativos
locais.5 A reconstituição do império africano do Monomotapa, no interior sudeste do
continente, por volta de 1690, sob o comando do chefe Roswi, fizera decrescer as
relações comerciais dos portugueses na área, pois acarretara na destruição das inúmeras
feiras que os portugueses, a partir de Sofala e Moçambique, haviam estabelecido na
região e, estes últimos tiveram que contar, a partir de então, com tribos intermediárias
para a manutenção desse comércio. No alvorecer do século XVIII, os estabelecimentos
portugueses estavam reduzidos aos rios Sena e Tete.6 Mas não foram somente os
flamengos que despertaram os temores de dom Luís da Cunha em relação ao
predomínio luso. Segundo ele, também os ingleses cobiçavam estas terras, “pois (...)
não lhes é nova essa ideia [de invadí-las], atraídos uns e outros do muito ouro e marfim
que esperam tirar daquela região, por meio de suas mercadorias que mandarão em maior
quantidade e em melhor conta”.7
A primeira notícia concreta de ameaça às pretensões portuguesas chegou-lhe em
1722, quando seu amigo, o 5º conde da Ericeira, passou por Paris, depois de ter sido
resgatado das mãos de piratas que o tinham aprisionado quando retornava ao reino, após
servir como vice-rei da Índia.8 O conde foi encontrado na ilha de Bourbon, sendo
trazido à França em navios pertencentes à Companhia das Índias Francesas, sob o
comando do seu diretor, o chevalier Jean-Baptiste Garnier de Fougeray.9 Este

4
Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Ministério dos Negócios Exteriores (MNE). Livro
792, f.70-79, carta de 11 de março de 1723.
5
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África. Lisboa:
Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1978, p.132-133.
6
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.132-
133.
7
ANTT. MNE. Livro 792, f.70-79, Versalhes, 11 de março de 1723.
8
CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.341.
9
Pelos serviços prestados por Fougeray no resgate do conde da Ericeira, dom Luís recomendou-o a dom
João V e este acabou agraciado com a comenda da Ordem de Cristo. CUNHA, D. Luís da. Instruções
políticas, p.341; Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC). Cartório de Dom Luís da Cunha (CDLC).
Doc.76, Haia, 30 de junho de 1729. Durante os anos 1720, uma das atividades do embaixador na França
consistira em monitorar as expedições piratas francesas que, de Saint Malot, partiam em direção ao
Brasil. Valia-se de um informante local, que bem poderia ser o Cavaleiro Fougeray, de quem se
aproximou nesta época e que, conforme ele mesmo conta, residia na cidade. CUNHA, D. Luís da.
Instruções políticas, p.341.
confirmou as notícias anunciadas por Ericiera e contou a dom Luís da Cunha que, desde
1721, os holandeses haviam estabelecido uma feitoria em Lourenço Marques10 e “que
determinavam fazer um estabelecimento perto dos rios Guama (sic)”.11 As notícias não
eram precisas e havia dúvidas se, com tal ação, os flamengos “intentavam abrir por terra
o caminho para se comunicar com o Cabo da Boa Esperança”.12 Se tal ligação pelo
interior do continente, na altura das conquistas portuguesas de Moçambique e Angola,
se concretizasse os holandeses seriam capazes de conectar toda a África meridional. O
embaixador, então, fez Fougeray lhe prometer “fazer vir o mapa de Van Keulen (...),
para ir tirando dele o mais que pudesse saber sobre este particular”.13 Gerard Van
Keulen era herdeiro de uma dinastia de livreiros/editores de Amsterdam, especialista em
mapas, especialmente os marítimos, que assumiu os negócios da família em 1704.14
Apesar do embaixador acreditar “que estes mapas não ser[iam] melhores do que os que
[já tinham os portugueses] pois há tantos anos que freqüentamos a região”, não deixou
de ficar interessado nos mesmos.15
Em 1723, pouco antes de partir da França, o conde da Ericeira informou-lhe de
novas investidas intentadas pelos holandeses na costa oriental da África, onde “se
haviam apoderado de um porto, 15 ou 20 léguas a sul de Moçambique”.16 Esta notícia
fez os temores de dom Luís da Cunha se acentuarem ainda mais porque, conforme os
alertas anteriores de Fougeray, com esta invasão, a Companhia de Comércio Holandesa
conseguiu efetivar o comércio com os chefes africanos da baía de Inhambane, em
17
Moçambique, o que configurava uma séria ameaça aos interesses dos portugueses.
Estas constantes ameaças flamengas levaram o embaixador a conjeturar “que se não
deve exitar em os mandar lançar fora do dito lugar, porque se ali fizerem algum
estabelecimento, logo os ingleses quererão ter outro”.18 De fato, a invasão não perdurou,

10
Atual Maputo, Moçambique.
11
Certamente rio Quanza, ou Cuanza, em Angola.
12
AUC. CDLC. Doc.75, Haia, junho de 1729.
13
AUC. CDLC. Doc.67, Haia, abril de 1729, ou ANTT. MNE. Livro 795, f.79-80, 14 de abril de 1729.
14
Seu arquivo, hoje pertencente à Universidade de Leiden, inclui cerca de 500 cartas manuscritas.
“Grande parte delas, desenhadas (...) entre 1704 e 1726, foram elaboradas a uma escala bastante [menor],
e devem ser consideradas cartas para serem utilizadas na aproximação dos portos”. KOEMAN, Cornelis.
Cartas manuscritas do estreito de Magalhães de Gerard Van Keulen (1711-1724). In: DOMINGUES,
Francisco Contente e BARRETO, Luís Filipe. A abertura do mundo: estudos de História dos
descobrimentos europeus. Lisboa, Editorial Presença, 1987, v.2, p.219-226.
15
AUC. CDLC. Doc.75, Haia, junho de 1729.
16
ANTT. MNE. Livro 792, f.70-79, Versalhes, 11 de março de 1723.
17
RODRIGUES, Eugénia. D. Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville: das representações
da África Austral aos projetos de reconfiguração do império português. Actas do III Encontro
Internacional de História de Angola. Luanda, 2007, p.3.
18
ANTT. MNE. Livro 792, f.70-79, Versalhes, 11 de março de 1723.
sendo os flamengos, conforme aconselhara dom Luís da Cunha, posteriormente
expulsos por um navio enviado de Goa19 (as possessões portuguesas do sudeste da
África - Moçambique e adjacências - ficavam sob a jurisdição do vice-reinado da Índia).
Foi então, nos primeiros meses de 1725, à luz das notícias que lhe chegaram nos
anos anteriores, que dom Luís da Cunha se dedicou a esboçar uma política com vistas a
restaurar o vigor dos interesses lusos na África meridional, e para isso se pôs a
desvendar a geografia local. Ainda que fazendo parecer que tudo era inocente fruto das
“relações que naquele tempo fazia seus criados lerem, não podendo dormir”,20 na
verdade, misturava o interesse despertado pelo avanço dos holandeses na África
meridional e o recuo da presença portuguesa, colocando-se no papel de que mais
gostava, qual seja o de oráculo do rei de Portugal em sua política externa e, dessa forma,
amainava as preocupações com o destino de sua carreira diplomática e mostrava-se útil
aos olhos do monarca.21 Conforme suas palavras, no entanto, as relações que pôs seus
criados a ler sobre a região deixaram-lhe “espécies confusas, que me ficavam de ouvir
os estabelecimentos que fizemos daquela parte da África, assim meridional como
setentrional, situada ao sul da linha equinocial”. Sem saber exatamente o
posicionamento das possessões lusas e com o intuito de tentar desvendar a geografia
local, passou então a “dissipar algumas horas da manhã, examinando-os no mapa”.22
Este era um hábito rotineiro de dom Luís da Cunha, adquirido nas contínuas
negociações diplomáticas que se envolvera a partir da Guerra da Sucessão Espanhola.
Desde as negociações em Utrecht (1711-1715), acostumara-se a utilizar a cartografia
para dar a ver territórios em disputa, exortando a Coroa portuguesa a que produzisse
sempre os melhores e mais fidedignos mapas de suas possessões, especialmente as cujo
domínio estivesse ameaçado por outras Cortes européias, como era o caso nesse
momento da região da África meridional.23
Com vistas a garantir o domínio luso sobre esta área, impedir o avanço dos
flamengos ou o interesse dos ingleses e reativar o comércio com as tribos do interior,
conjeturou a ideia de que deveriam ser os portugueses a realizar a interiorização do
território sudeste africano, estabelecendo uma passagem terrestre entre Angola, na costa
oeste, e Moçambique, na costa leste, antes que os primeiros o fizessem. De acordo com

19
RODRIGUES, Eugénia. D. Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville, p.3.
20
AUC. CDLC. Doc.67, Haia, abril de 1729.
21
FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da Geografia iluminista. Ver especialmente cap. 1.
22
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.375.
23
FURTADO, Júnia Ferreira. Diplomacia e cartografia das Luzes. In: Oráculos da Geografia iluminista.
ele, uma ligação terrestre pelo interior do continente entre estas duas possessões
portuguesas, seria proveitosa para o comércio, como também “se pouparia a perigosa
navegação de dobrar o Cabo da Boa Esperança”, região onde os inúmeros naufrágios
recheavam os relatos da História Trágica Marítima. Um projeto de ligação terrestre
entre Angola-Benguella e Moçambique-Sofala-Sena viabilizaria ainda a retirada do
ouro e do marfim que abundavam na região interior entre as duas possessões
portuguesas, especialmente no império do Monomotapa e na Butua.24 Entre as noites
insones e os dias carregados de ansiedade, nos primeiros meses de 1725, esboçou,
juntamente com o geógrafo francês Jean Baptiste Bourguignon D’Anville, a quem a
ideia “pareceu não ser impossível”,25 este projeto de ligação terrestre entre Angola e
Moçambique. Intitulado: Projeto de um caminho para ligar estabelecimentos
portugueses da África, vinha acompanhado de um mapa de autoria de D’Anville.26 Este
último era um jovem geógrafo, de apenas 28 anos, a quem recentemente o embaixador
recrutara ao serviço de dom João V, para ajuda-lo a organizar as compras que o
monarca ordenara que se fizessem em Paris para prover a Biblioteca régia de uma
coleção de estampas (que incluíam os mapas) e de instrumentos matemáticos utilizados
para as observações celestes e terrestres necessárias à construção de uma nova
cartografia do império.27
O projeto de travessia da África e o mapa que o acompanha, de autoria do
embaixador e do geógrafo francês, serão objeto desse artigo. Interessa-me investigar as
transformações na representação geográfica da região meridional do continente africano
introduzidas, ao longo dos anos, por D’Anville, que modificou a maneira como o
continente africano vinha sendo representado tradicionalmente na cartografia da época.
Também de que forma estas inovações influenciaram os mapas que, a seguir, foram
produzidos por outros autores. Outra natureza de questões a serem discutidas diz
respeito às fontes utilizadas por D’Anville, particularmente as produzidas pelos
portugueses, holandeses e também pelos jesuítas e, em que medida, a construção que as
populações nativas tinham de seu próprio espaço serviu-lhes de informação.

24
CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.340.
25
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.375.
26
MOTA, Avelino Teixeira da. Dom Luis da Cunha e a carta da África Meridional de Bourguignon
d’Anville (1725). Separata da Revista Portuguesa de História, tomo X, 1962, 16p.
27
Sobre esta colaboração e estas compras ver FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da Geografia
iluminista; e FURTADO, Júnia F. Colecionismo e gosto. As compras portuguesas de livros e estampas
nos Países Baixos meridionais. In: THOMAS, Werner en STOLS, Eddy. (eds.) Un mundo sobre papel.
Libros, grabados y mapas de Flandres en los impérios español y portugués (siglos XVI-XVIII). Lovaina:
Acco, 2009, p.411-425. (A edição brasileira encontra-se no prelo pela EDUSP/ED.UFMG).
2. O projeto, a memória e o mapa sobre o caminho para ligar estabelecimentos
portugueses da África
As reflexões de dom Luís da Cunha nos primeiros meses de 1725 levou-o a
esboçar o Projeto de um caminho para ligar estabelecimentos portugueses da África,
em colaboração com D’Anville. Sempre prolixo em suas cartas, o embaixador relatou o
processo de feitura e de envio do documento ao reino. Quando à etapa de produção,
houve uma divisão das tarefas e é o próprio dom Luís da Cunha quem as descreve:
Trabalhei com mr. D’Anville sobre um projeto para nos facilitarmos um caminho por
onde poderemos estabelecer a comunicação entre Angola e Sofalla (...). M. D’Anville
fez dele um mapa muito curioso que remeti (...) com o dito projeto e uma descrição das
mesmas terras que medeiam entre Sofala e Angola feita pelo mesmo D’Anville.28
Em outro trecho reafirma que “D’Anville fez com grande cuidado o tal mapa,
com uma relação do dito país e eu o projeto”.29 Observa-se, então, nesses dois trechos
que se tratavam na verdade, não de dois, mas de três documentos: o projeto, o mapa e
uma memória ou relação que continha “uma descrição das mesmas terras que medeiam
entre Sofala e Angola”, sendo que na memória discorreram “sobre a extensão daquele
país”.30 O projeto saiu da pena de dom Luís da Cunha e os dois últimos – o mapa e a
memória - foram de autoria de D’Anville.
O Projeto de um caminho para ligar estabelecimentos portugueses da África
elaborado pelo embaixador, ao que tudo indica, parece ser o texto que, sob o título de
Carta de 1725, se encontra apenso às suas famosas Instruções Políticas, de 1736,
escritas inicialmente com o intuito de aconselhar seu dileto amigo, Marco Antônio de
Azevedo Coutinho, que fora nomeado Secretário dos Negócios Estrangeiros por dom
João V.31 A Sociedade Geográfica de Lisboa tem sob sua guarda, sob o título geral de
Description Geographique de l’Afrique,32 dois manuscritos, que não são idênticos entre
si, sendo que um deles parece ser o original e o outro uma cópia.33 Um dos documentos,
que é claramente a cópia, todo escrito em francês, compõe-se de 3 partes: uma Memória

28
AUC. CDLC. Doc 67, Haia, abril de 1729.
29
AUC. CDLC. Doc.67, Haia, abril de 1729.
30
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.375.
31
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.375-378.
32
O título completo é Description Geographique de la partie de l’Afrique, qui est au sud de la ligne
Equinoxiale que est au sud de la Ligne Equinoxiale, representée dans une Carteque j’ai dressée par
l’ordre et confornement au dessein de Son Excellence Monseigneur Dom Louis da Cunha. Sociedade
Geográfica de Lisboa (SGL). Manuscritos. Res 3-C-16 e Res 3-C-17.
33
Segundo Eugénia Rodrigues, a cópia, teria sido realizada depois de 1875, mas a autora não esclarece
como chegou a esta conclusão. RODRIGUES, Eugénia. D. Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon
D’Anville, p.7.
ou l’on traite de la communication d’um cote de l’Afrique à l’autre, de 6 páginas, onde
é esboçado o projeto de travessia, cujo conteúdo não é idêntico, mas se assemelha em
algumas partes do da Carta de 1725, de dom Luís da Cunha;34 segue-se a Description
Geographique de la partie de l’Afrique, qui est au sud de la ligne Equinoxiale..., que se
estende por 86 páginas, descrevendo a Geografia da região; e finaliza um anexo, de 3
páginas, intitulado Remarques de M. D’Anville sur le project géographique,35
“contendo indicações de distâncias e de minas de ouro e de prata, e conselhos sobre a
maneira de efectuar a travessia”,36 além da bibliografia com a relação das obras
utilizadas na sua confecção.37 No segundo documento, que não apresenta nem o
preâmbulo inicial, nem o final, restringindo-se à Description Geographique, é
inconteste a letra ser de D’Anville, como seu aspecto formal é o mesmo de outros
documentos congêneres do geógrafo, além de ostentar a sua assinatura, seguida do seu
título de “geógrafo ordinário do rei”, que alcançara desde 1719.38 O número 510, que se
encontra escrito no alto desse documento, na margem esquerda da primeira folha, é
característico da classificação dos documentos textuais de D’Anville, tanto os que
utilizava como fonte de informação para a produção de seus mapas, quanto as memórias
escritas sobre os mesmos. A Description, de natureza geográfica, tinha por objetivo dar
“maior clareza” ao projeto elaborado pelo embaixador e “mostra[r] que os
estabelecimentos portugueses da parte de Angola e do Monomotapa o poderiam
facilitar” o empreendimento.39
Quanto ao mapa de 1725, este ainda não foi encontrado, a despeito dos esforços
de vários pesquisadores.40 Segundo observação de dom Luís da Cunha era o “mais
correto, de ponto mais largo, e mais compreensível para o nosso objeto”, e constituía
um instrumento fundamental para “se entender o que o dito D’Anville diz no princípio

34
MOTA, Avelino Teixeira da. Dom Luis da Cunha e a carta da África Meridional de Bourguignon
d’Anville, p.10-11. O autor encontrou ainda uma versão dessa documentação no Arquivo da Casa de
Palmela.
35
SGL. Description Geographique de la partie de l’Afrique, Manuscritos. Res 3-C-16.
36
MOTA, Avelino Teixeira da. Dom Luis da Cunha e a carta da África Meridional de Bourguignon
d’Anville, p.11.
37
As obras referenciadas, retiradas dos fundos da Académie des Inscriptions et Belles Lettres de Paris,
são 2 manuscritos de D’Anville, a carta de dom Luís da Cunha, a Relation Historique de l’Ethiopie
Ocidental, de Labat (1732), e uma descrição da mesma região, de autoria de D.M. Dapper, publicada em
Amsterdam em 1687, que serão comentadas mais adiante.
38
SGL. Description Geographique de la partie de l’Afrique, Manuscritos. Res 3-C-17. No preâmbulo
desse documento aparece a referência de ter sido parte do espólio documental de Gago Coutinho que o
adquiriu do leilão de J. Chagas em dezembro de 1927.
39
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1735. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.376.
40
MOTA, Avelino Teixeira da. Dom Luis da Cunha e a carta da África Meridional de Bourguignon
d’Anville, p.12.
da sua carta”, pois permitia “vermos se se poderia fazer uma comunicação desde Angola
até o rio de Sena”. 41 Segundo seu autor, tudo foi feito às expensas do rei de Portugal.42
O patronato de dom João V, intermediado por dom Luís da Cunha, não só tornava
público a importância desse monarca para o desenvolvimento das ciências, como
adquire um aspecto simbólico para o conjunto da produção geográfica de D’Anville,
pois era a primeira vez que o mesmo se aventurava num empreendimento de peso sobre
geografia moderna. Para mostrar seu apreço pelo embaixador e sua gratidão ao
mecenato régio, no fim do texto D’Anville afirma:
Serei feliz se, tendo trabalhado por ordem dum grande e hábil ministro [dom Luís da
Cunha], fui bem sucedido numa ocasião em que me animou o poderoso estímulo de
agradar a um grande rei, infinitamente esclarecido e que tanto contribui para o progresso
das ciências, pela proteção com que as honra.43
Ao se enveredar pela primeira vez no campo da cartografia moderna, D’Anville,
que até então se distinguia por sua habilidade na construção de uma geografia histórica,
decidiu apresentar o mapa na Academia Real de Ciências de Paris, que era a principal
instituição na França que patrocinava tudo que dissesse respeito ao avanço e
modernização do conhecimento científico da terra, especialmente das regiões ainda
pouco exploradas do globo. Era comum que os geógrafos franceses submetessem seus
mapas a esta instituição que, depois de examiná-los por comissão designada a dar seu
parecer, aprovava ou não os mesmos. Era forma de imprimir um estatuto de qualidade
às cartas geográficas, ancorado-as no prestígio e na autoridade que a Academia
gozava.44 Assim, nesse mesmo ano, D’Anville apresentou, na sua seção de 1º de
setembro, o que é provavelmente uma cópia do mapa de 1725 que, segundo ele,
“continha toda a África meridional, abaixo do Equador”.45 Vinha acompanhado de uma
memória sobre o mesmo, que leu em seguida para os acadêmicos. A produção de
memórias explicativas sobre o processo de produção dos mapas era expediente
fundamental à cartografia de gabinete da época e visava explicitar o processo de seleção
e crítica das fontes utilizadas pelo geógrafo, com vistas a validar a representação
41
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1735. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.376.
42
AASP. Process verbaux, 1725, 1º de setembro de 1725. Importante destacar que na Biblioteca da
Academia não se encontra catalogada nem a Memória nem o mapa de 1725.
43
Apud: MOTA, Avelino Teixeira da. A cartografia antiga da África central e a travessia entre Angola e
Moçambique (1500-1860). Lourenço Marques: Sociedade de Estudos de Moçambique, 1964, p.90.
44
D’Anville vai realizar o mesmo a respeito da sua Carte de la France, em 27 de novembro de 1726. A
Academia vai nomear Maraldi e Chevallier para examiná-la. Eles concluíram que “ela nos pareceu
conforme as observações para a determinação das latitudes e longitudes observadas tanto que pode ser
uma carta geral. Ela é corretamente e propriamente desenhada e os detalhes das costas precisos, a escolha
das posições feitas com conhecimento e julgamento/acerto”. Archives de la Académie Royale des
Sciences de Paris (AASP). Process verbaux, 1726, 4 decémbre 1726.
45
Infelizmente, nem na biblioteca, nem no arquivo da Academia consta o registro do mapa.
espacial por ele produzida.
O mapa de 1725, na visão de dom Luís da Cunha, era “um mapa muito curioso”,46
e o “mais correto, de ponto mais largo, e mais compreensível para o nosso objeto”.47
Ainda que o mesmo esteja desaparecido, podemos ter ideia de como estava configurado
a partir do texto da Description Geographique de la partie de l’Afrique, qui est au sud
de la ligne Equinoxiale, já que os mapas e as memórias escritas sobre o mesmo
guardam íntima conexão. Outra fonte de informação sobre a sua configuração pode ser
alcançada a partir da análise de 4 mapas manuscritos existentes no acervo da coleção
D’Anville, sita na Bibliotèque Nacionale de France.48 Ao que tudo indica, tratam-se de
mapas primitivos que, somados, deram origem ao mapa consolidado de 1725. São eles a
Carta dos Royaumes de Loando, Congo, Angola, Benguela (Mapa 1),49 Carte
manuscrite de la côte d'Afrique depuis le cap Negro jusqu'à celui de Bonne Espérance
et de là jusqu'à la rivière de Pescaria,50 e a Carte du canal de Mozambique de la côte
occidentale de l'Isle de Madagascar et des états du Monomotapa, dividida em duas
folhas: o sul (Mapa 2),51 e o norte.52
D’Anville conta que, a partir das memórias portuguesas a que teve acesso (as
que dom Luís pôs seus criados a ler), “elaborou uma carta, da qual me servi para traçar
parte da minha”.53 Nesse trecho, primeiramente, esse geógrafo aponta para uma de suas
principais especialidades: transformar relações históricas em mapas; que, por sua vez,
também podiam servir para ilustra-las. Em segundo lugar, é provavelmente a este mapa
primitivo que dom Luís da Cunha se refere quando conta que, pela manhã, cotejava as
histórias com um mapa da região. A partir do mesmo, D’Anville produziu o seu próprio
mapa, modificando as informações geográficas à luz de outros documentos,
especialmente das observações e cartas mais recentes do território que pôde conseguir, a
maioria por meio do embaixador. Essas fontes serão analisadas mais a frente.
A partir de então, a Carte de l’Afrique conheceu novas edições e correções

46
AUC. Cartório de dom Luís da Cunha. Doc 67, Haia, abril de 1729.
47
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1735. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.376.
48
MOTA, Avelino Teixeira da. Dom Luis da Cunha e a carta da África Meridional de Bourguignon
d’Anville, 16p.
49
Bibliotéque Nationale de France (BNF). Departement des Cartes et Plans (DCP). Ge DD 2987 (8255).
Royaumes de Loando, Congo, Angola, Benguela &, 49 x 64,5 cm. Grande parte da Coleção D’Anville
encontra-se catalogada sob a cota Ge DD 2987. BNF. DCP.
50
BNF. DCP. Ge DD 2987 (8269).
51
BNF. DCP. Ge DD 2987 (8322).
52
BNF. DCP. Ge DD 2987 (8323).
53
Apud: MOTA, Avelino Teixeira da. A cartografia antiga da África central e a travessia entre Angola e
Moçambique, p.90.
sucessivas. Era comum que mapas apresentassem novas versões, onde pequenos
acrescentamentos ou correções geográficas eram realizadas pelos autores, à partir das
novas observações realizadas no território em questão. Em 1727, D’Anville produziu
então uma nova edição,54 cuja parte da costa ocidental da África apresentou para exame
e aprovação da Academia Real de Ciências de Paris em janeiro do mesmo ano. Os
acadêmicos Maraldi e Chevalier,55 que haviam examinado seu mapa da França no ano
anterior, foram designados para a tarefa.56 Nele, segundo D’Anville, fez “uma
combinação do antigo e do moderno”, reunindo os novos conhecimentos sobre o
continente, mas não deixando de mostrar “o que interessava à antiguidade”.57 O
geógrafo utilizou para isso, tanto as informações fornecidas por viajantes que haviam
percorrido mais recentemente o território, muitos deles portugueses, quanto as oriundas
das autoridades da antiguidade, como Plínio ou Estrabão. Essa mistura de fontes
modernas e antigas era parte instituinte da sua metodologia, a qual empregará com
bastante sucesso em toda a sua cartografia.
Quanto ao processo de envio do mapa a Lisboa, dom Luís da Cunha conta que,
quando o filho do conde de Tarouca, Manuel Teles da Silva, passou por Paris,
encontrou-o “nesta ocupação, ou para mim divertimento” de projetar a ligação entre as
duas costas do continente africano. O rapaz gostou da ideia e “desejou encarregar-se de
apresentar tudo a s.m.”. Apesar desse trecho transparecer que foi o jovem Tarouca que
levou o mapa e a maioria dos estudiosos sustentarem essa ideia, ele o fez por meio de
“Pedro Norberto Padilha [que foi quem] mandou o dito mapa e relação”.58 Pedro
Norberto de Sousa Padilha Seixas de Haucourt, fidalgo da Casa Real, savant português,
foi autor prolífico. Escreveu um relato dessa viagem entre Paris e Lisboa, o primeiro em
português que se conhece sobre o tema.59
Em Lisboa, o projeto ficou esquecido por algum tempo, apesar do secretário de
Estado, Diogo de Mendonça Corte Real, ter mostrado “o dito mapa a alguns geógrafos”

54
Carte de l’Afrique. BNF. DCP. Ge DD 2987 (7772).
55
Giacomo Filippo Maraldi era um matemático italiano, que desenvolveu carreira na França, tendo
trabalhado no Observatório de Paris, e com Cassini na triangulação para estabelecer o meridiano de Paris,
foi admitido na Real Academia de Ciências em 1699.
56
AASP. Process verbaux, 1727, 21 Janvier.
57
ANVILLE, Jean-Baptiste Bourguigon d’. Considération générales sur l’étude et les connoissances que
demande la composition des ouvrages de Géographie, p.63-64.
58
AUC. Cartório de dom Luís da Cunha. Doc.67, Haia, abril de 1729.
59
Também é autor das Raridades da natureza e da arte, de 1759, recheado de “bizarrias e curiosidades ao
gosto do século XVIII” e de um tratado escrito no contexto do terremoto de Lisboa. PRIORI, Mary del.
Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e íbero-americano (séculos XVI - XVIII). São Paulo:
Companhia das Letras: 2000, p.109. D’ESCRAGNOLLE-TAUNAY, A. Monstros e monstrengos do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.156-157. (organização de Mary del Priore)
e ter pedido a dom Luís da Cunha que o mesmo “tinha que escrever-[lhe] sobre ele”.
Em 1729, dom Luís da Cunha voltou a pressionar a Coroa a que se interessasse pelo
projeto e estudasse sua viabilização. Nessa ocasião, encontrava-se servindo em Haia,
negociando com a Companhia de Comércio holandesa a questão do tráfico de escravos
nas costas africanas,60 e percebeu a importância dos portugueses se apoderarem de áreas
estratégicas no interior do continente para restabelecer seu papel no comércio atlântico
de cativos. Por esta razão, queixou-se ao secretário “que até agora me não respondeu” e
pediu ao rei “que suposto se s.m. se dignar de o querer ver com a sua relação, se lhe
poderá pedir, pois este foi o fim com que fizemos uma e outra coisa e o com que o dito
conde de Tarouca [moço] desejou que se lhe mandasse”.61

3. Antecedentes do Projeto de um caminho para ligar estabelecimentos portugueses


da África
Dom Luís da Cunha confessou que a ideia dessa ligação terrestre entre Angola e
Moçambique não era totalmente nova, pois a “achei em uma relação impressa daquele
país”.62 Tratava-se de uma das memórias que fizera seus criados lerem em voz alta, na
qual “seu autor diz que só os senhores reis de Portugal podiam empreender aquele
descobrimento, visto que os seus vassalos tinham já penetrado no interior do país,
afastando-se igualmente assim da costa oriental como da ocidental”. A memória
acentuava não só que os portugueses de ambas as costas já “se encaminhavam ao
mesmo fim”, mas que o posicionamento das suas conquistas na região era totalmente
propício à execução da ligação terrestre do sudeste africano, visto que os
“estabelecimentos [Angola e Moçambique], ficando quase defronte uns dos outros,
parece que lhes não falta mais que darem-se as mãos para ajuntarem as duas
63
extremidades”. Qual seria essa memória que inspirou os sonhos do embaixador?
Antes de tentar responder a esta questão, por hora, vamos analisar o avanço dos
portugueses no interior do sudeste africano.
Na costa ocidental, a interiorização dos portugueses a partir de Luanda deu-se a
partir da penetração pelo rio Cuanza, que desagua pouco ao sul desse povoado, e a
60
No contexto da União Ibérica (1580-1640), os holandeses haviam invadido possessões portuguesas na
América, Ásia e África, o que representou um significativo golpe no papel que tinham no tráfico
atlântico. Somente Angola foi libertada, com o envio de uma armada pelo governador do Rio de Janeiro,
Salvador Correa de Sá. BOXER, Charles R. Salvador Correa de Sá e a luta pelo Brasil e Angola (1602-
1686). Rio de Janeiro: Ed. Nacional, 1973.
61
AUC. Cartório de dom Luís da Cunha. Doc.67, Haia, abril de 1729.
62
AUC. CDLC. Doc.67, Haia, abril de 1729.
63
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.375-376.
mesma foi resultante de sucessivas investidas militares lusas contra os chefes africanos
locais, especialmente a rainha Ginga. Da foz do Cuanza, ainda no século XVII,
expedições atingiram o rio Cambambe, e interiorizaram-se cada vez mais em direção
leste, tomando o seu leito como a principal via de penetração. Também exploraram um
de seus afluentes, o Lucala, a partir de Ambaca, e, seguindo seu curso, atingiram
Matamba – reino da rainha Ginga – e Imbangala, quando então chegaram ao rio
Cuango. Logo perceberam que este último, cujo curso tomava o rumo sudeste até sua
nascente, seria o trajeto mais propício para a interiorização, mas o reino africano de
Caçanje impediu-lhes o avanço durante mais de 200 anos.64
Outras tentativas foram realizadas a partir de Benguela e, ainda no século XVII,
os portugueses atingiram a nascente do rio Cunene, (1638) situada mais para o interior,
na mesma altura do estabelecimento situado na costa. Começaram então a explorar o
seu leito em direção à foz, mas o trajeto desse rio, que se acreditava ser outra via
propícia à penetração cada vez mais para o interior, permaneceu um mistério até o
século XIX. Pensava-se que a partir deste rio atingir-se-ia as cabeceiras do rio Zambeze,
que, por sua vez, desaguava na costa oriental, em Quilimane, um pouco ao norte de
Sofala. Como as nascentes do Cunene e o trecho já explorado do Zambeze estavam
quase na mesma latitude, acreditou-se, equivocadamente, que os leitos de ambos situar-
se-iam muito próximos no coração do sudeste africano, ou até que o primeiro fosse um
afluente do segundo, o que criaria uma passagem natural entre as duas costas. Na
verdade, o Cunene, a partir da nascente, toma inicialmente o sentido sul, mas depois
flexiona-se para o sudoeste, desaguando na própria costa oeste, e em nenhum de seus
trechos ruma para o leste como se acreditava. Sua foz está situada ao sul de Benguela,
abaixo do Cabo Negro, e por ser extremamente rasa, coberta por bancos de areia, custou
a ser identificada.65
Na costa oriental, o avanço dos portugueses para o interior, a partir de
Moçambique, deu-se a partir do século XVII, penetrando os rios de Sena e Tete, e dali
até o rio Zambeze, que, tomando o sentido oeste, se configurava como uma via ideal
para a interiorização do território. No sentindo noroeste, pelo rio Chire, chegaram à
parte sul do lago Niassa, começando sua navegação. Dessa forma atingiram os reinos de

64
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.135-
137.
65
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.138-
141.
Maravi, Monomotapa e Butua, a oeste de Sofala e Quilimane.66
As observações geográficas resultantes dessas expedições, temperadas pelas
informações conseguidas junto às populações nativas de que as distâncias que faltavam
percorrer no interior não seriam significativas e também devido às dificuldades técnicas
para medir e estabelecer as longitudes das regiões alcançadas levaram a que se
subestimasse a real dimensão da largura do território da África meridional. O resultado
é que se acreditava que Angola e Benguela eram regiões vizinhas aos impérios da Butua
e do Monomotapa, situados na direção interior, estando o reino de Sofala, Moçambique
e Quilimane contíguos a estes impérios, já na costa leste. A cartografia do início do
século XVIII espelha esta expansão para o interior a partir das e entre as duas costas e o
progressivo domínio dessa geografia. Da cartografia portuguesa, esta forma de
representação do interior se reproduzirá em diversas cartas da época.
Um dos mais ilustrativos foi o mapa da L’Afrique, de Delisle, de 1700, que
consolida o que se acreditava serem os cursos dos rios Cuango, Lucala, Cunenne e
Zambeze e a conformação dos reinos africanos avizinhados, bem como a projeção,
muitas vezes irreal, que se fazia deles, como se fossem muito próximos uns dos outros,
pois, como se disse, se subestimava a verdadeira extensão do território africano no
sentido leste-oeste.67 (Mapa 3) Os reinos da Butua e do Monomotapa são representados
como os que se situam no interior entre as duas costas, como se fossem contíguos à
Angola/Benguela, de um lado, e Sofala, de outro. Delisle foi o primeiro a abandonar a
representação do Monomotapa como uma ilha, a fazer desaparecer as fontes do Nilo, a
abandonar a nomenclatura abexim ao sul do Equador, a representar o Congo, Angola e
Benguela.68 Toda esta região meridional recebe a denominação de País dos Cafres,
como era frequentemente intitulada. Sua conformação no mapa é exatamente a mesma
com que Raphael Bluteau descreve a Cafraria, que “é a costa dos cafres, na parte mais
meridional da Etiópia, habitada por aqueles a que antigamente chamavam Antropophagi
Æthiopes. Segundo alguns, começa a Cafraria pelo Cabo Negro, da banda do Congo e
acaba no rio de Cuama, que separa a Cafraria do Zauguebar. Querem outros que tenha o
seu princípio no Trópico de Capricórnio. (...) Tem por limites uma grande cordilheira de

66
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.130-
131.
67
BETZ, Richard L. The mapping of Africa: a Cartobibliography of printed maps of the African continent
to 1700. Utrecht: Hes & De Grafff, 2007, p.495-497.
68
MOTA, Avelino Teixeira da. Os portugueses e a cartografia da África central (1550-1800). Separata
do Boletim da Academia de Ciências de Lisboa, v.XXXV, p.14-15, 1963
montes, em que se encerram os estados do Manomotapa”.69 O curso superior do Cunene
(o trecho inferior é apenas sugerido, desaguando no Cabo Negro) e todo o curso do
Zambeze são desenhados na carta e aparecem praticamente se encontrando a meio do
sudeste africano, distanciados a apenas 6 graus de distância, refletindo a crença da
extrema proximidade entre os dois. Certamente, esta representação só pôde ter sido feita
a partir do conhecimento das mais recentes expedições de exploração, especialmente de
portugueses e holandeses.
As possessões portuguesas nas duas costas aparecem como portas de entrada
para se usufruir das riquezas dos impérios do interior, contíguas a elas, riquezas que se
acreditava serem enormes. “Sofala era para os portugueses um éden de riquezas, o país
de Ofir da Bíblia, de onde esperavam riquezas semelhantes as que a rainha de Sabá
ofereceu ao rei Salomão”.70 De fato, a partir de Sofala, os comerciantes lusos tiveram
acesso à produção de ouro do interior africano, provindo de Manica, Massapa e Butua,
que inicialmente era intermediado pelos mercadores árabes. Dessa forma, o império do
Monomotapa passou, cada vez mais, a corresponder ao mito das minas do rei Salomão,
principalmente depois de 1607, quando os portugueses o conquistaram e conseguiram
do Estado o monopólio sobre todas as suas minas, eliminando os intermediários
árabes.71 Mas, no início do século XVIII, Portugal viu recuar significativamente seu
domínio sobre a região, que passou a ser restrito aos rios de Sena e Tete.
Dom Luís da Cunha acreditava que seu projeto permitiria voltar a retirar com
facilidade “aquela abundância de ouro”, de onde se lamentava “hoje recebemos tão
pouco”, mas mais “ainda de outras minas que, conforme as relações, se acham no
interior do país”.72 Novamente eram as relações que lera que ancoravam a sua crença da
abundância metalífera da região, fazendo-o também associa-la às minas bíblicas.
Descreve o reino da Butua como o que “se estende desde os confins de Angola até aos
de Monomotapa, e que nele há muito gado e minas de ouro”. Acreditava que ingleses e
holandeses estavam “atraídos uns e outros do muito ouro e marfim que esperam tirar
daquela região”.73 Salienta então que a riqueza em ouro do interior africano “mais

69
E cafre “é o nome que os árabes dão a todos os que negam a unidade de um Deus”. BLUTEAU,
Raphael. Dicionário da língua portuguesa. Ampliado por Antônio de Morais. Lisboa: Oficina de Simão
Thadeo Ferreira, 1739, v.2, p.36.
70
SANTOS, Corcino Medeiros. Moçambique como centro de articulação do comércio português no
Índico Afro-Asiático. X Congresso da ALADAA, Rio de Janeiro, 2000, p.1.
71
SANTOS, Corcino Medeiros. Moçambique como centro de articulação do comércio português no
Índico Afro-Asiático, p.2.
72
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.377.
73
ANTT. MNE. Livro 792, f.70-79, Versalhes, 11 de março de 1723.
largamente se vê na memória de mr. D’Anville”.74 De fato, o geógrafo informa, em
vários trechos, a existência de “minas de ouro e prata”, situando-as em Manica, 2º ao sul
do trópico de Capricórnio, “entre as montanhas de Isupata e o rio Zambeze; no
Monomotapa”, próximo ao lago Chicova, onde se encontravam as minas de Quiticut; e
nos reinos de Buri e da Butua.75 A associação desses reinos com sua riqueza metalífera
se refletia, segundo ele, no termo mani, título pelo qual eram conhecidos muitos dos
chefes locais, pois significa rei ou príncipe de ouro e o rio Cuama seria a porta de
entrada do mais considerável ouro conhecido.76 Na Carte du canal de Mozambique de
la côte occidentale de l'Isle de Madagascar et des états du Monomotapa registra que as
“montanhas de Fura [são] muito abundantes em ouro, e que muitos acreditavam serem
Ophir” e que no reino de Manica “abunda o ouro que os portugueses vem buscar”.

4. A cartografia de D’Anville sobre a África meridional


Para a defesa do projeto de ligação terrestre entre Angola e Moçambique, era
necessário ter certeza da distância que separavam as duas costas e D’Anville tomou por
“ponto capital [o] de buscar a verdadeira largura daquela parte da África. Coube ao
geógrafo realizar os estudos “sobre a extensão daquele país” e, “depois de empregar
todas as operações que podiam contribuir para este efeito”, concluiu “que [esta] era
muito menor que a que lhe davam os mais geógrafos”.77 Calculou que a distância total
deveria ser de 350 léguas. Assim, segundo ele, como “os portugueses já teriam
penetrado 100 léguas para o interior pelo Quanza (até às ilhas Quidangas) e 150 léguas
78
pelo Zambeze (até o reino de Sacumbe, acima dos rápidos de Caborabaça), o que
79
faltava percorrer “não pode exceder 100 léguas”.
Na verdade, as contas realizadas pelo geógrafo consolidavam muitas das
estimativas que já vinham sendo feitas pelos portugueses que percorreram a região
desde o século XVI e já previam que a distância a percorrer não seria muito extensa. A
ideia de que a distância entre o Alto Lucala e o Monomotapa era de 100 léguas foi feita
primeiramente, em 1592, por Domingos de Abreu e Brito, que estimou a largura da

74
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.378.
75
SGL. Mines d’or e d’argent. In: Description Geographique de la partie de l’Afrique, Manuscritos. Res
3-C-16, p.94-95.
76
SGL. Description Geographique de la partie de l’Afrique, Manuscritos. Res 3-C-17, p.48.
77
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.375.
78
MOTA, Avelino Teixeira da. A cartografia antiga da África central e a travessia entre Angola e
Moçambique, p.89.
79
CUNHA, dom Luís da. Carta de 1725. Apud: CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.377.
África em 450 léguas, muito próxima da realidade.80 No século seguinte, em 1616,
partindo da mesma premissa, o governador de Angola, Luís Mendes de Vasconcelos,
propôs realizar a expedição e conquistar o Monomotapa.81 Em 1661, foi a vez de
Antônio Álvares Pereira, “capitão de uma feira portuguesa no Monomotapa”, que fez
previsão de idêntica.82 Na mesma corrente, seguia a cartografia portuguesa e, por
extensão, a européia que representava as regiões de Angola-Benguela-Butua, a oeste, e
Monomotapa-Zambézia-Sofala, a leste, como se fossem áreas contíguas, e ocupando um
espaço muito maior do que se estendiam na realidade, , induzindo ao cálculo de que a
distância que faltava percorrer no interior era muito pequena.83
Os mapas de 1727, ao dividirem a região meridional em quatro partes, cada um
constituindo uma carta separada, refletem a representação que D’Anville vai imprimir
aos reinos locais como sendo constituído, a partir das duas costas, de dois blocos
descontínuos entre si. Dessa forma, um espaço vazio de conhecimentos geográficos
abre-se no interior do continente. Na carta dos Royaumes de Loando, Congo, Angola,
Benguela (Mapa 1), estes 4 reinos costeiros são contíguos aos de Matamba e às Terras
do Giaga Casangi. O rio Guneni serve como o grande marco divisor entre estes
territórios conhecidos, a oeste, e as terras não conhecidas do interior, a leste, que se
apresentam como um grande vazio. O leito do rio Cuanza é representado a partir da foz,
interiorizando-se, de forma quase retilínea, sempre no sentido leste, até um texto que
afirma ser sua nascente desconhecida. O Cuango é desenhado em toda a sua extensão,
cujas nascentes estão ao norte de Casangi, “residência da rainha Ginga”. Na Carte
manuscrite de la côte d'Afrique depuis le cap Negro jusqu'à celui de Bonne Espérance
et de là jusqu'à la rivière de Pescaria, dois pequeníssimos trechos do leito do Cuneni e
do Zambezi aparecem traçados, ambos correndo no sentido norte-sul, sugerindo como
era o costume a proximidade entre os dois, mas textos anexos afirmam que não se
conhece nem a foz do primeiro, nem a nascente do segundo. Como nos demais, este
mapa mostra um espaço descontínuo entre a costa sudoeste do continente e o restante do
território interior, que está em branco. Na folha sul da Carte du canal de Mozambique
de la côte occidentale de l'Isle de Madagascar et des états du Monomotapa (Mapa 2),
os reinos de Sofala e de Mauruca medeiam a Manamotapa (sic), que se estende do
litoral até o interior, onde faz fronteira com a Butua. A norte do Monomotapa

80
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.120.
81
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.123.
82
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.121.
83
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.123.
localizam-se o país dos Zimbas e o Maravi, estando a parte sul do lago Niassa
representado nesse reino; ao sul, fica o reino de Manica. Esses reinos da costa oriental
são representados como contíguos entre si, mas descontínuos em relação aos situados na
costa ocidental, pois entre eles emerge novamente um interior vazio. Suas fronteiras
naturais são os rios Cuneni e Zambeze, que têm trechos representados também nessa
carta, sugerindo que os leitos dos dois rios se estendem do oeste ao leste, tornando-os
meios preferenciais de circulação entre as duas costas. De maneira geral, em relação a
Delisle, “melhorou a representação da Zambézia, (...) passou a Huila para oeste do rio
Cunene e colocou as terras do Cassange entre os extremos do Cunene e do Cuango, pelo
que deixou de haver contigüidade entre elas e os reinos de Chicoa e Butua”.84
Porém, como era bem afeito a seu método, nos anos que se seguiram, D’Anville
produziu novos mapas das regiões meridionais da África, introduzindo modificações a
partir da incorporação de fontes recém-reveladas aos savants europeus. Assim, em 1727
imprime uma Carte de l'Ethiopie orientale.85 Esta deve ser certamente a que, como já se
disse, apresentou à Academia Real de Ciências de Paris, em janeiro desse ano. Ela cobre
a costa oriental desde a Abissínia, passando por Moçambique até o Cabo da Boa
Esperança. Na cartela, o autor destaca que o mapa havia sido desenhado a partir das
melhores memórias, especialmente as portuguesas.Vários reinos são representados. O
Manamotapa (sic), Sofala, Manica Chicanga, Sabia e Inhanbane, uns contíguos aos
outros, que têm como fronteira norte os rios de Tete, Sena e o Zambeze. Esses reinos
são distanciados da Butua, do país dos Mumbos, do império dos Bororos e do país dos
Zimbas. Dessa maneira, a tradicional representação do Caçanje, a ocidente, e da Butua,
a oriente, como áreas contíguas, é abandonada.86
A capacidade crítica de D’Anville fica evidente nesse mapa, que inaugurou uma
forma toda nova de representar o continente, pois até então, como foi o caso da carta de
Delisle, a maior parte dos mapas se limitava a reproduzir, com poucas alterações, o
mapa de Jacobo Gastaldi, de 1664. “Este, por sua vez, derivava da Geographical
Description, do mouro do século XVI, conhecido como Leo Africanus”.87 A Carte de
l’Afrique, de D’Anville, era o típico produto do século XVIII, onde o geógrafo, de posse

84
MOTA, Avelino Teixeira da. Os portugueses e a cartografia da África central (1550-1800, p.16, 1963.
85
BNF. DCP. GE DD 2987 (8302). Carte de l'Ethiopie orientale située sur la mer des Indes entre le cap
Guardafouin & le cap de Bonne-Espérance, dressée sur les meilleurs mémoires principalement sur ceux
des portugais par le Sr d’Anville géographe ordre du roi, Delahaye sculpsit, 1727.
86
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.145.
87
Sobre esse cartógrafo ver: DAVIS, Natalie Zemon. Trickster travels: a sixteenth-century Muslim
between worlds. New York: Hill and Wang, 2006.
de fontes oriundas da antiguidade e de outras recentes (muitas delas portuguesas, graças
a dom Luís da Cunha), a partir do rigor de sua crítica, era capaz de inovar na sua
configuração. No caso do rio Nilo, por exemplo, “D’Anville foi muito além de Delisle,
removendo a convencional e largamente fictícia topografia (…). Tomou a correta
configuração do Nilo Azul, surgindo nos planaltos da Abissínia, o qual não era afluente
do Nilo. Numa nota, D’Anville afirma que havia razões para presumir que,
contrariamente à opinião comum, o grande rio corria de oeste para leste”, como
realmente ocorre em seu trecho inicial. No entanto, algumas das representações de seu
traçado, herdadas da antiguidade, permaneceram, e “se recusando a romper
completamente com as ideias de Ptolomeu, desenhou o rio principal saindo de dois
lagos nas Montanhas da Lua”.88 As duas grandes novidades cartográficas são a ilha de
Madagasgar e o lago Niassa desenhados em toda a sua extensão. O Niassa ou lago
Maravi aparece alongando-se no sentido norte-sul, se estendendo de 17º sul até abaixo
de 10º sul.89 D’Anville destaca esta inovação registrando numa cartela de texto que
nenhuma carta precedente o dera a ver.
Em setembro de 1731 vem a luz, impressa, a Carte particulière du Royaume de
Congo;90 em novembro do mesmo ano, a Carte particulière des Royaumes d’Angola, de
Matamba et Benguela91 e, finalmente, em janeiro de 1732, a carta L'Ethiopie
occidentale, que consolida as duas primeiras. Este último mapa, a despeito do título, não
mostra apenas os reinos desta costa, mas também os da margem oriental do sudeste do
continente africano, separando-os está um vazio interior, que o autor cobre de inscrições
textuais.92 Nela aparece representado boa parte do lago Niassa. A confrontação dos
mapas de D’Anville de 1725 com estes do início da década de 1730 permite perceber
que sua representação da África meridional sofreu algumas modificações. A principal é
que, nesses mapas mais recentes, refez seus cálculos sobre a distância entre as duas
costas e passou a estimar que faltavam ainda 160 léguas para ligar as duas rotas já
percorridas pelos portugueses nas expedições anteriores93 e o vazio interior da carta
L'Ethiopie occidentale tem exatamente essa medida. “D’Anville melhorou a
representação do Congo-Angola-Benguella (...), dando já corretamente as origens e a
88
CRONE, C.R. Maps and their makers: an introduction to the history of cartography, p.90.
89
CRONE, C.R. Maps and their makers, p.90
90
BNF. DCP. GE BB – 565 (14, 61). Carte particuliere du Royaume de Congo et de ce qui précède
depuis le cap de Lopo, Septembre 1731, d’Anville, 26 X 34 cm.
91
BNF. DCP. GE BB – 565 (14, 63). Carte particulière des Royaumes d’Angola, de Matamba et
Benguela, Novembre 1731, d’Anville, 26 X 34 cm.
92
BNF. DCP. GE DD 2987 (8252). L'Ethiopie occidentale, 1732 d’Anville, 30 X 40cm.
93
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.145.
foz do Cunene”.94 Dessa maneira, encerra a tradicional representação do Cunene
correndo para leste e tendo parte do seu leito nas proximidades do Zambese. Estes três
mapas foram reproduzidos na Relation historique de l’Ethiopie Occidentale, do padre
J.B. Labat, que saiu à luz em 1732. O livro continha a descrição dos reinos do Congo,
Angola e Matamba, a partir do relato de autoria do padre Cavazzi, um capuchinho
italiano que missionara em Angola entre 1654 e 1667. Como era o costume, a edição
produzida por Labat não era uma tradução literal do original, mas incluía observações
retiradas de novas e melhores relações dos autores portugueses.95 A inclusão dos mapas
tinha o objetivo de ilustrar a leitura de forma a que o leitor pudesse se orientar e
desvendar a geografia dos locais descritos no livro.96
Uma nova, mais acabada e mais completa versão da carta d’Afrique, que
representa o continente na sua totalidade, foi impressa por D’Anville em 1749,97 (Mapa
4) sendo considerada por estudiosos como importante marco na cartografia da África,
pelo fato do geógrafo ter, ao contrário de seus predecessores, “removido a topografia
convencional do continente, largamente fictícia”. Por esta razão, “sua representação
permaneceu válida até que as grandes viagens de exploração do século XIX
inauguraram uma nova era na cartografia africana”.98 Mais tarde, D’Anville referenciou
todas as fontes que utilizou e a maneira como foram submetidas ao rigor de sua crítica
nas Memórias da Académie des Incriptions et Belles Lettres, que publicava os textos
produzidos por seus membros, já que o geógrafo acabou por entrar na instituição em
1773. Todas as inovações geográficas que introduziu ao longo do tempo na
representação do continente aparecem consolidadas nessa carta: a representação do Nilo
Azul, as possessões portuguesas nas duas costas da África meridional como
descontínuas e guardando entre si uma relativa distância, a presença do lago Niassa, a
ilha de Moçambique repleta de detalhes geográficos, entre outras.
Mas o que mais chama a atenção ao observador que se debruça sobre esse mapa
é que, “exceto no norte, o detalhe é quase inteiramente confinado às áreas costeiras”.99

94
MOTA, Avelino Teixeira da. Os portugueses e a cartografia da África central, p.16.
95
LABAT, J.B. Relation historique de l’Ethiopie Occidentale: contenant la description des Royaumes de
Congo, Angolle, & Matamba, traduite de l’Italien du P. Cavazzi, & augmentée de plusieurs Relations
Portugaises des meilleurs auters, avex des notes, des cartes géographiques, & un grand nombre de
figures en tailledouce. Paris: Chez Charles Jean Baptiste Delespine, 1732.
96
MOTA, Avelino Teixeira da. A cartografia antiga da África central e a travessia entre Angola e
Moçambique, p.95.
97
BNF. DCP. Ge DD 2987 (7779B) ou GE BB- 102 (D).
98
CRONE, C.R. Maps and their makers: an introduction to the history of cartography. Kent/England:
Dawson/Archon Books, 1978, p.90.
99
CRONE, C.R. Maps and their makers: an introduction to the history of cartography, p.90.
Isto é, o interior de continente africano, com exceção do Egito, vale do Niger, Abissínia,
Angola e Moçambique, se configura como um grande espaço vazio. D’Anville, como
nenhum outro geógrafo, foi dos primeiros geógrafos que “baniu de suas cartas todas as
maravilhas decorativas e não exit[ou] em deixar os ‘brancos’”.100 De maneira geral, seu
mapa da África, por falta de informações confiáveis que chegassem por essa época à
Europa - a grande exploração do interior do continente só se dará no século seguinte -
continuou a apresentar grandes espaços em branco no interior. As exceções, além do
Egito, são as regiões exploradas pelos portugueses. Este predomínio absoluto da
ausência de informações cartográficas não contrastaria com a impressão generalizada de
que se tratava de um avanço na representação do continente? Para D’Anville, sua Carte
de l’Afrique foi a primeira a refletir uma nova concepção cartográfica de matiz racional,
iluminista que não teme descartar representações mitológicas ou não comprovadas,
optando por deixar inúmeros espaços em branco. Por esta razão, ele justifica que,
comparada com as de outros geógrafos, ela “aparece com muitos vazios em qualquer
dos lugares, [mais] do que nas demais cartas”.101 Seu objetivo é que o mapa reflita “os
limites dos conhecimentos positivos em geografia” e que seus vazios desnudem onde se
encontravam esses limites.102 Em um trecho de seu livro Considérations générales sur
l’étude et les connoissances que demande la composition des ouvrages de Géographie,
no qual reuniu suas orientações para a prática da geografia, justifica esses vazios não
apenas pela ausência, mas pela possível futura presença: “Se, todavia restam ainda
muitos brancos, eles são reservados a outras ocasiões de adquirir novos conhecimentos,
o que não acontece tão frequentemente como se desejaria”.103 De um lado, deixar a carta
em branco nos espaços onde a geografia era desconhecida, facilitava o processo de
correção da mesma numa futura reimpressão. Dessa maneira, para incluir um novo
acidente geográfico num trecho específico, bastava acrescentar na placa de cobre, a
partir da qual o mapa era impresso, o objeto desejado. Mas, de outro, o vazio também
podia se configurar como um “objeto novo”. Este é o caso paradigmático das 160 léguas
de espaço em branco que surge a meio do caminho entre as possessões portuguesas nas
costas orientais e ocidentais da África meridional. Nesse caso, esse vazio não era um
100
BROC, Numa La Geographie des Philosophes: géographes et voyages français au XVIIIe. Siècle.
Paris: Edition Ophrys, 1975, p.35.
101
ANVILLE, Jean-Baptiste Bourguigon d’. Considération générales sur l’étude et les connoissances
que demande la composition des ouvrages de Géographie. Paris: Imprierie de Lambert, 1777, p.63.
102
ANVILLE, Jean-Baptiste Bourguigon d’. Considération générales sur l’étude et les connoissances
que demande la composition des ouvrages de Géographie, p.32.
103
ANVILLE, Jean-Baptiste Bourguigon d’. Considérations générales sur l’étude et les connoissances
que demande la composition des ouvrages de Géographie, p.66.
defeito, nem D’Anville o considerava uma ausência, mas um dos grandes acréscimos ao
território africano que ele, e somente ele, fora capaz de revelar. Nesta perspectiva, o
vazio se transmudava em presença. Como se verá na próxima seção, o acesso a novas
fontes, especialmente as portuguesas fornecidas por dom Luís da Cunha, serão
fundamentais para que D’Anville introduza, ao longo do tempo, estas modificações em
sua cartografia da África, que se tornou referência para a representação do continente.

5. As fontes do mapa e do Projeto de ligação terrestre entre Angola e Moçambique


As fontes que D’Anville utilizou para a confecção do projeto e do mapa foram
várias, muitas delas listadas na Description Geographique de la partie de l’Afrique, qui
est au sud de la ligne Equinoxiale,104 onde descreveu os “conhecimentos necessários
para tornar tal obra mais perfeita e mais útil”.105 Elas eram basicamente de dois tipos: os
mapas e as memórias ou relações de viagem.
Do total de 10.502 mapas que contém sua coleção na Bibliothèque Nationale,
740 referem-se à África,106 representando 7,1% do total. De fato, os mapas que recolheu
durante sua vida, foram fontes fundamentais para a produção de sua própria cartografia.
Para a parte meridional da costa africana, entre outras, afirmou que se valeu de cartas
hidrográficas holandesas da época: as de Van Keulen, fornecidas por dom Luís da
Cunha; a de João Teixeira I, de 1649; a da Abissínia, do padre Manuel de Almeida,
sendo que as duas últimas foram publicadas na Relations de divers voyages curieux, de
M. Thévenot de 1663, que deve ter sido um dos livros de viagens que embalara as
noites insones do embaixador; e a que Dapper incluiu na sua Description de l’Afrique,
de 1686. De fato, estes mapas aparecem em sua coleção, sendo que, de Van Keulen,
possuía cópias de cartas que retratavam a baía de Algoa, Manumbagh em Madagascar e
Suaquem na costa de Abexim, no mar Vermelho. Para representar a região entre o Cabo
Negro e o Cabo da Boa Esperança, também valeu-se de várias cartas holandesas, como
a de Pieter-Goos (Amsterdam, 1616 – 1675).107 Não poderia ser de outra forma visto
que, após se estabelecerem no Cabo da Boa Esperança, os holandeses realizaram várias
incursões à norte e consolidaram certo conhecimento da geografia local. Do Cabo
possuía uma de Reinir Ottens, duas anônimas - uma que retrata as colônias holandesas

104
RODRIGUES, Eugénia. D. Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville, p.8-17.
105
MOTA, Avelino Teixeira da. A cartografia antiga da África central e a travessia entre Angola e
Moçambique, p.90.
106
DU BUS, C. Les collections d'Anville à la Biblioteque nationale. Extrait du bulletin de la Section de
Geógraphie, 1926. Paris: Imprimerie Nationale, 1927, p.21.
107
SGL. Description Geographique de la partie de l’Afrique, Manuscritos. Res 3-C-17.
de Drakensteen e Waveren e outra da costa oriental que se estende desde Moçambique -
e uma francesa intitulada Carte de pays et des peuples du cap de Bonne Esperance
nouvellement découverts par les hollandois, todas do início do século XVIII. Das
produzidas nos ateliês de Pierre Mortier, em Amsterdan, consultou, entre outras, a Carte
des costes de l’Afrique depuis cap de Lopo; além de uma carta da costa do Congo, de
d’Ablancour (1700); e de um mapa da África, segundo as mais recentes observações dos
membros da Academia Real de Ciências, de Pierre Vander AA, de Leiden, (ca.1715).
No entanto, apesar do acesso à cartografia flamenga, e das incursões que estes fizeram
pelo continente, em seus próprios mapas, D’Anville optou pela toponímia conferida
pelos portugueses aos acidentes geográficos, o que se torna indício de que era a essa
Coroa que conferia o direito a estes territórios.
Cartas portuguesas aparecem em menor número na sua coleção, mas lá estão
dois planos anônimos, um da baía de Lourenço Marques, atual Maputo (c.1700) e outro
da baía de São Lourenço, em Madagascar; uma carta do porto de Maçua, de João de
Castro (1542); um plano da baía Hermosa, na costa de Melinde, e um da ilha Zanzibar,
ambos de autoria do cosmógrafo-mor de Portugal, Manoel Pimentel. De João Teixeira
Albernaz I existem duas cartas náuticas, uma do Oceano Ìndico, que abrange desde a
Índia até Moçambique e Sofala, na África, e uma Carte portugaise de la mer des Indes
entre le Cap de Bonne Eseperance et le Cap Comorin, ambas de1649, que retrata toda a
costa oriental. D’Anville valeu-se dessas cartas para representar as ilhas e baixios do
Índico.108 Também utilizou o Atlas da África de João Teixeira Albernaz II, de 1665.109
(A Coroa portuguesa buscou manter este Atlas em segredo, mas, durante a União
Ibérica, foi copiado, por instâncias de um embaixador francês a serviço em Madrid. Esta
cópia foi levada para a França onde serviu de importante fonte para os trabalhos de
vários geógrafos, especialmente Jaillot e Coronelli.110) Seguindo cartas portuguesas,
especialmente a de Albernaz, D’Anville se refere ao reino da Butua, “que se estenderia
até os confins de Angola, e percorrê-la-ia um grande rio”, que ele julgava ser o
Cunene.111
Mas D’Anville não consultava apenas mapas, anotações geográficas, relatos e
memórias de viagem constituíam importantes fontes para estabelecer sua cartografia.

108
MOTA, Avelino Teixeira da. A cartografia antiga da África central e a travessia entre Angola e
Moçambique, p.90.
109
SGL. Description Geographique de la partie de l’Afrique, Manuscritos. Res 3-C-17.
110
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.125.
111
MOTA, Avelino Teixeira da. A cartografia antiga da África central e a travessia entre Angola e
Moçambique, p.90.
Entre seus papeis havia, por exemplo, “notas e extratos diversos relativos à geografia
Antiga e Moderna da Armênia, da Grécia, da Turquia, da Europa e da Ásia (Síria,
Palestina e Arábia), do Egito e da Etiópia”, que incluíam, entre tantos outros, anotações
de “viagens de Granger e de Noir du Roule, extratos de memórias de m. de Maillet”;112
e “Notas manuscritas relativas à África, exceto Egito e Abissínia”, pois estes últimos
estavam organizados em rol separado.113 De fato, ele fazia uma recolha sistemática de
relações de viagens, extratos de livros, apontamentos geográficos, que numerava
conforme a região geográfica a que se referiam e eram constantemente utilizadas para a
confrontação com os mapas de que dispunha. Para o estabelecimento da África
meridional, entre os antigos, utilizou particularmente mapas e relatos de Ptolomeu,114
Plínio e Estrabão; já entre os modernos, valeu-se dos missionários jesuítas e dos
viajantes, geógrafos e administradores portugueses. Quanto aos primeiros, consultou o
livro de frei João dos Santos, Etiópia Oriental,115 e, dos segundos, apoiou-se nas tábuas
de Manoel Pimentel, cosmógrafo da Coroa, referentes a localidades das costas da
África116 e numa memória portuguesa, que deveria ser apresentada à Academia
Portuguesa da História, a qual “identificava a lendária Ofir com o Monte Fura (atual Mt.
Darwin, Rodésia do Sul)”.117 Esta observação é conforme a crença de dom Luís da
Cunha que identificava a região com as lendárias minas do rei Salomão. Tudo foi
fornecido a D’Anville.
A configuração do lago Niassa se deveu especialmente a partir do acesso que
teve às informações geográficas reunidas pelos jesuítas que atuavam na região e
defendiam sua navegação. Alguns destes missionários quiseram navegar por esse lago
até a Etiópia e consultaram o padre Francisco Sousa que foi dos primeiros que afirmou
que o reino de Maravi, ficava entre um lago de mesmo nome e o rio Zambeze.118 A
configuração da extensão do lago Maravi que o padre Francisco Sousa forneceu em seu

112
BNF. NAF 6502-6503. d'Anville – Papiers geographiques.
113
DE MANNE, Louis-Charles-Joseph de. Mélanges géographiques de d ‘Anville. In: Catalogue des
livres de feu M. de Manne... Suivi de manuscrits, lettres autographes, et autres documents provenant du
cabinet de m. d’Anville. Paris: François, 1863, p.244.
114
SGL. Description Geographique de la partie de l’Afrique, Manuscritos. Res 3-C-17.
115
SANTOS, João Fr. Etiópia Oriental e Vária História de Cousas Notáveis do Oriente [1609]. Lisboa:
Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1999.
116
BNF. NAF 6502-6503. d'Anville – Papiers geographiques.
117
MOTA, Avelino Teixeira da. Dom Luis da Cunha e a carta da África Meridional de Bourguignon
d’Anville, p.8-9. MOTA, Avelino Teixeira da. A cartografia antiga da África central e a travessia entre
Angola e Moçambique, p.89-90.
118
ANDRADE, António Alberto Banha. Antecedentes da travessia da África. Anais da Academia
Portuguesa da História, Lisboa, série II, v.27, p.351-352, 1982.
relato, intitulado O oriente conquistado,119 publicado em 1710, o primeiro a descreve-
lo, foi a mesma que D’Anville imprimiu em seu mapa, tendo sido seu livro uma fonte
inconteste. O embaixador acreditava que a memória de D’Anville “convidará aos
portugueses a empreenderam a navegação do grande lago, que começa junto de Maravi,
60 léguas de Tete, (...) e é evidente que, pelo lago, se poderia abrir uma comunicação
com todas as partes que estão no coração da África”.120
Outra fonte jesuítica importante foi a Voyage Historique d’Abissinie, do padre
português Jerome (ou Jerônimo) Lobo.121 Este jesuíta foi dos precursores na tentativa de
abrir o caminho até o interior do continente partindo da Etiópia. Em 1625 tentou a
empreitada, mas teve que desistir devido a sua dificuldade.122 Curiosamente, seu livro
foi traduzido e impresso em Paris, em 1728, por Joaquim Le Grand, que estivera em
Portugal a serviço do então embaixador francês, o abbé d’Estrees. LeGrand afirma, no
seu preâmbulo, que foi na biblioteca de ninguém menos que o conde da Ericeira, a qual
teve o privilégio de freqüentar em Lisboa, onde encontrou os manuscritos do relato do
padre Jerônimo Lobo. Esta versão do relato do padre Lobo era, segundo o autor, a mais
completa publicada até então e ele chamava a atenção para o fato de que o padre vira
com seus próprios olhos as nascentes do Nilo. Outro manuscrito que veio da biblioteca
do conde da Ericeira foi uma descrição dos reinos de Congo, Angola e Benguela,
composta em Angola, e que continha uma História de Ginga, Reino de Matamba. Já a
relação da Ilha do Ceilão “encontr[ou] na casa de dom Luís da Cunha”.123 Articula-se
aqui, sem sombra de dúvida, a colaboração do conde da Ericeira, de dom Luís da
Cunha, preocupados com a perda da hegemonia portuguesa e o avanço dos holandeses
na área, e de D’Anville no sentido de promover o maior conhecimento da geografia da
África meridional.
Para além do relato, o livro continha 15 dissertações diversas e muitas cartas
sobre a Abissínia e o Nilo, que Le Grand, o conde da Ericeira e dom Luís da Cunha se
empenhavam por essa época em reunir, formando um conjunto de relatos mais recentes
e fidedignos. Entre inúmeros outros, havia um relato de viagem ao Congo, dos padres

119
SOUSA, Padre Francisco de. Oriente conquistado a Jesus Christo pelos padres da Companhia de Jesu
da Província de Goa. Lisboa: Valentim da Costa Deslandes, 1710.
120
MOTA, Avelino Teixeira da. A cartografia antiga da África central e a travessia entre Angola e
Moçambique, p.90.
121
LE GRAND. Voyage Historique d’Abissinie, du R.P. Jerome Lobo de la Compagnie de Jesus.
Paris/La Haye: P. Gosse e J. Neaulme, 1728. O jesuíta nasceu em 1593 e, em 1622 chegou a Goa, de onde
embarcou em 1624 para a conversão da Abissínia.
122
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.111.
123
LE GRAND. Preface. In: Voyage Historique d’Abissinie, p.aij.
capuchinhos Michel-Ange e Carli; um jornal de viagem de um piloto português a ilha
de São Thomé em 1624.124 Le Grand comprou ou teve acesso a muitos documentos, que
foram então incorporados à edição: Os escritos e manuscritos que pertenceram ao padre
Damião Vieira, jesuíta que viveu na Índia, sendo que, entre esses papeis, havia vários de
autores árabes. Um substantivo manuscrito sobre a descoberta das Índias, mais
completo que o de João de Barros, que retirou da biblioteca do marquês de Fontes. Uma
tradução de Ramuzio, que lera em francês arcaico e em italiano; uma relação de
Francisco Alvarez Aumonier de Rodrigues de Lima, que foi embaixador do rei dom
Manuel na Abissínia; e uma outra que descrevia o que se passou a Cristóvão da Gama,
quando chegou neste reino, que lhe forneceu o patriarca Jean Bermude. Cartas, relações
e memórias de missionários jesuítas na Abissínia, Síria e Egito e de representantes
diplomáticos no Egito, entre as quais destacam-se as cartas de Enoch, cônsul na
Abissínia em 1705, escritas de Moça, em junho de 1718.125
Sem sombra de dúvidas, o conjunto desses documentos foram determinantes
para a reconfiguração na cartografia de D’Anville das nascentes do Nilo, bem como da
inclusão do lago Niassa. Mas, a publicação da Voyage Historique d’Abissinie revela-se
não só como uma das fontes importantes utilizadas pelo geógrafo para a confecção do
mapa, como constitui-se ela mesma num projeto conjunto encetado por Le Grand, dom
Luís da Cunha, o conde da Ericeira e D’Anville para desvendar a geografia dessa parte
do continente africano, base para estabelecer o Projeto de ligação terrestre entre
Angola e Moçambique.
De fato, a partir de então, ocorre uma inflexão na forma com que D’Anville
passou a representar esta parte da África e o conjunto de relatos reunidos Voyage
Historique d’Abissinie foi o primeiro contributo importante para essa transformação.
Avelino Teixeira da Mota especula que estas novidades introduzidas em sua cartografia
na década de 1730 devem ter ocorrido “utilizando possivelmente qualquer carta
portuguesa hoje desconhecida”.126 Mas não creio que esta mudança tenha ocorrido
devido a um único mapa misterioso, mas sim a um conjunto de fontes, particularmente
relatos de viagem, que lhe foram fornecidos por dom Luís da Cunha, em conjunto com
sua entourage,127 que por esta época retomou o esforço de contribuir para a produção de

124
LE GRAND. Voyage Historique de L’Ethiopie Occidentale, v.5.
125
LE GRAND. Preface. In: Voyage Historique d’Abissinie, p.ij-xiv.
126
MOTA, Avelino Teixeira da. Os portugueses e a cartografia da África central, p.16.
127
Venho chamando este grupo de funcionários régios portugueses de Emboabas Ilustrados. Ver:
FURTADO, Júnia F. “O oráculo que Sua Majestade foi buscar”: Dom Luís da Cunha e a geopolítica do
uma cartografia da África para municiar suas funções diplomáticas em Haia, onde se
encontrava, desde 1728, encarregado de negociar com os holandeses os conflitos
resultantes da atuação da Companhia Ocidental Holandesa junto à costa ocidental desse
continente. Nessa época, o embaixador se mostrou, novamente, extremamente sensível
às investidas mais recentes dos flamengos, especialmente na costa oeste, o que poderia
privar os portugueses do tráfico negreiro.128 Escreveu ao reino, informando que
Foujeray lhe informara das novas pretensões dos holandeses no rio Cuanza e voltou a
insistir no seu projeto de ligação terrestre que enviara em 1725 e que, juntamente com o
“mapa muito curioso” de D’Anville, jazia enterrado em alguma gaveta da administração
reinol.129 Como resposta, recebeu ordens para que insistisse junto a Fougeray para que o
lhe fornecesse mapas mais modernos da região, os quais, havia alguns anos “que [já] lhe
pedira, sem porém [este] lho dar”. Ao secretário dos Negócios Estrangeiros, Diogo de
Mendonça Corte Real informou que, sobre esta “demanda, eu lhe escreverei e não
duvido que me dê os mapas que se lhe pediram daquela parte da costa de África”.130 De
fato, Fougeray, que se encontrava a caminho da Inglaterra, respondeu-lhe “que logo que
se recolhesse a sua casa em Saint Mallot os remetr[ia]”.131 Das mãos de Fougerey deve,
então, ter recebido cartas da região, como as de Van Keulen e outras de origem
flamenga que se encontram em sua coleção. Como diretor da Companhia das Índias
Francesa e viajante habitual destas paragens, era necessário a Van Keulen possuir
atualizada coleção de mapas.132
Por esta época, dom Luís da Cunha também esteve particularmente empenhado
nas compras régias ligadas a formação da Biblioteca Real, que reuniria livros, mapas,
gravuras e objetos científicos necessários ao desenvolvimento do conhecimento nas
mais diversas áreas. Para satisfazer todos os pedidos, passou a visitar sistematicamente

novo império luso-brasileiro”. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs.) Na trama das
redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 2010, p.373-400.
128
Se, no século XVII, as principais rendas provenientes de Moçambique eram resultantes do comércio
de marfim e ouro, no seguinte, o tráfico de escravos tornara-se a atividade mais rendosa, o que se
acentuou ainda mais na segunda metade do século, durante a era pombalina. SANTOS, Corcino
Medeiros. Moçambique como centro de articulação do comércio português no Índico Afro-Asiático.
129
AUC. CDLC. Doc 67, Haia, abril de 1729
130
AUC. CDLC. Doc 75, Haia, junho de 1729.
131
AUC. CDLC. Doc 76, Haia, 30 de junho de 1729.
132
Pouco antes de 1729, Foujeray fizera uma viagem a China e, em 1737, estava para ir ao mar do Sul
(oceano Pacífico) em busca das ilhas Salomão, que “estava[m] cheia[s] de ouro”, em missão da
Companhia das Índias francesas, que estava “trabalhando sobre outras memórias” para definir a exata
localização do arquipélago. Tudo comunicou a dom Luís da Cunha por sua fidelidade e por estar a serviço
da Coroa portuguesa de quem recebera a Ordem de Cristo. ANTT. MNE. Livro 795, f.52 e AUC. CDLC.
Doc 408, 5 de julho de 1737. Também se ofereceu para, sob a bandeira portuguesa, ir descobrir as terras
austrais. CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.341.
vários livreiros na cidade e em Utrecht, e também frequentou leilões em Delft e
Rotterdam. Uma das compras de livros que realizou nessa época foi a Relazione del
Primo Viaggio Intorno al Mondo, notizie del Mondo Nuovo, de Antonio Pigafetta,
italiano que viajou na expedição de Fernão de Magalhães e depois escreveu este
relato,133 demonstrando seu interesse e o da corte portuguesa no tema das viagens e
descrições geográficas dos novos mundos. Os livros e mapas que o embaixador ia
adquirindo foram certamente disponibilizados a D’Anville para que o mesmo
aprimorasse as representações geográficas que produzia a serviço de dom João V.
Dois outros fatores, ocorridos em fins dos anos 1720, impactaram a cartografia
de D’Anville sobre a África meridional e certamente contribuíram para modificá-la
sensivelmente. O primeiro ocorreu nesse mesmo ano de 1728, quando o jesuíta R. P. Du
Halde, representante da Companhia de Jesus em Paris, o convidou para produzir uma
obra sobre a China e a Tartária, reunindo as descrições de 27 jesuítas que ali estiveram,
que foi intitulada Description géographique, historique, chronologique, politique et
physique de l'Empire de la Chine et de la Tartarie chinoise.134 Este trabalho colocou
D’Anville em contato com os jesuítas, que eram os maiores produtores de conhecimento
astronômico, cartográfico e de ciências naturais das regiões onde atuavam, inclusive a
África, e vários foram os escritos e mapas jesuíticos utilizados pelo geógrafo para o
refinamento de sua cartografia desse continente. .
Em segundo lugar, foi o acesso que dom Luís da Cunha lhe facultou a Pedro
Nolasco Convay, judeu português, residente na França, e que foi o grande financiador
das despesas do rei de Portugal nesse país. Enquanto dom Luís da Cunha residiu na
cidade, Convay fez parte de seu círculo social e intelectual.135 Como gratidão pelos seus
serviços em favor dos interesses portugueses na França, o rei lhe concedeu o hábito da
Ordem de Cristo136 e Dom Luís da Cunha ainda recomendou que o mesmo fosse

133
PIGAFETTA, Antonio. Relazione del Primo Viaggio Intorno al Mondo, notizie del Mondo Nuovo.
Paris: se, 1525.
134
DU HALDE, Jean-Baptiste. Description géographique, historique, chronologique, politique et
physique de l'Empire de la Chine et de la Tartarie chinoise, enrichie des cartes generales & particulières
de ces pays, de la carte générale & des cartes particulières du Thibet & de la Corée & ornée d’un grand
nombre de figures & de vignettes gravées en taille-douce. Paris: P.G. Lemercier, 1735.
135
“A casa de [Pedro Nolasco] Convay tem maior reputação”. ANTT. MNE. Livro 793, f.407, 6 de
agosto de 1724. Nesse ano, Convay foi a Portugal, fazer contatos, pensando em talvez se estabelecer em
Lisboa, ou ali abrir uma casa comercial, no que foi muito recomendado por dom Luís da Cunha, que
então servia como embaixador em Paris. ANTT. MNE. Correspondência entre diplomatas portugueses e
secretários de Estado. Dom Luís da Cunha. Livro 793, f.447, 28 de agosto de 1724.
136
ANTT. MNE. Livro 59, f.74v, 19 de agosto de 1721.
nomeado cônsul geral de Portugal,137 o que de fato acabou ocorrendo. Mas não se
tratava de um simples financista, “Convay era renomado por suas grandes riquezas, seu
espírito, seu gosto e suas luzes”,138 sendo que o embaixador dizia ser seu intelecto
elevado e o considerava “muito inteligente”.139 Era um savant,140 conhecido “por seu
gosto pela literatura que lhe deu lugar de formar uma biblioteca”, na qual dispunha de
141
uma coleção “considerável de livros espanhois e portugueses” e “manuscritos os
mais curiosos” e mapas que fazia dela “única na Europa”.142 O acervo da biblioteca de
Convay totalizava 3.731 obras. Seu catálogo, publicado após sua morte, dá bem a
extensão e abrangência da sua cultura. Foi parte dessa coleção que Convay, por
instâncias do embaixador, disponibilizou a D’Anville e ajudou-o a reformular sua
configuração do continente africano.
Em 1732, vinha a luz, como já foi dito, a Voyage Historique de L’Ethiopie
Occidentale, do padre Labat, que continha mapas de D’Anville, especialmente sua nova
Carte de l’Ethiopie Oriental.143 O livro reeditava a colaboração estabelecida entre o
geógrafo, o embaixador e sua entourage. Além da viagem do padre Cavazzi, reunia um
conjunto de relatos que permitiam reconfigurar geograficamente a África meridional.
As informações do relato de Cavazzi foram completadas, segundo Labat, também a
partir de um conjunto dos melhores historiadores espanhóis e portugueses que teve
acesso na excelente biblioteca de M. Convay, “secretário do rei e cavaleiro da Ordem de
Cristo”.144 O catálogo da biblioteca de Convay não fornece muitas pistas do conjunto de
mapas que a mesma continha, pois a maioria deles foi catalogada sem discriminar seus
títulos. Há um Atlas, em 13 volumes, composto de cartas de diversos autores e umas
Cartas de diversos autores. Sobre a África há um conjunto de cartas de Sanson

137
ANTT. MNE. Livro 790, f.394.
138
Avertissement. In: Catalogue des livres de la bibliothèque de feu Mr. de Couvay, chevalier des ordres
du Roi de Portugal. Paris: Chez Damonneyville, 1755, f.iv.
139
ANTT. MNE. Correspondência entre diplomatas portugueses e secretários de Estado. Dom Luís da
Cunha. livro 790, f.395, 27 de outubro de 1721.
140
“Poderei ajuntar que o dito Pedro Nolasco Convay é muito inteligente”. ANTT. MNE.
Correspondência entre diplomatas portugueses e secretários de Estado. Dom Luís da Cunha. Livro 790,
f.395.
141
RB. n.539 (2). Second Mémoire concernant l’Amérique méridionale, d’Anville, 31 Aout 1779, f.13-
14. “Sr. Pierre Nolasque Couvay, secretário do rei, cavaleiro das ordens do Rei de Portugal, nascido a
Lisboa & morto à Paris em 1751 com 65 anos, viveu 40 anos nesta cidade & ele é renomado por suas
grandes riquezas, seu espírito, seu gosto & suas luzes”. Catalogue des livres de la bibliothèque de feu Mr.
de Couvay, p.v.
142
Catalogue des livres de la bibliothèque de feu Mr. de Couvay, p.v.
143
Carte de l’Ethiopie Oriental située sur la Mer des Indes entre le Cap Gaudafouin & le Cap de Bonne
Espereance, dressée sur les meilleurs Mémoires, principalment sur ceux des Portugais. Apud: LE
GRAND. Voyage Historique de L’Ethiopie Occidentale.
144
LE GRAND. Voyage Historique de L’Ethiopie Occidentale, v.1. p.7-8.
d’Abbeville, além de um Atlas de Blaeu, outro de Asserden e um globo de Coronelli.145
Também nada se sabe sobre os inúmeros manuscritos que ela continha. Já entre os
livros é possível encontrar várias pistas do que certamente serviu de fonte de
informação geográfica sobre o continente. Há a Descrição da África, de Luís Marmol,
de 1573; a África Portuguesa, de Manuel de Faria, de 1681; um Recueil d’observations
curieuses sur les moeurs, costumes, etc de l’Asie, de l’Afrique e America, publicado em
Paris em 1749; a Voyage de la rédemption des captifs, de Comelin, de 1721; Les
Voyages du sieur de Champlain de Saintonges Capitaine em la Marine, de 1634; a
Relação do Novo Caminho que fez por Terra e Mar vindo da Índia para Portugal no
ano de 1663, por Manuel Godino.146 Especificamente sobre a Etiópia há um conjunto de
histórias de autores diversos, como F. Alvarez (1557), Padre Manoel de Almeida
(1656), e Luís Urreta (1620). Aparecem ainda Memoires des Cafres, publicada em
Amsterdam em 1718; e a Description du Cap de Bonne Esperance, de Pierre Kolbe, de
1741.147 Mas estas fontes européias, especialmente as portuguesas ou as jesuíticas, se
serviam, como se verá a seguir, de informações colhidas junto aos nativos,
fundamentais para configurar a geografia dos territórios do interior da África.

5.1. As fontes africanas


“Desde meados do século XVI, (...) os portugueses procuravam encontrar, no
limite de suas viagens para o interior, vestígios de ligações feitas pelos próprios negros
entre as duas costas”.148 De fato, o desvelar da geografia do interior do continente
africano e a viabilização do projeto de conexão das duas costas meridionais do
continente não seria possível sem que as populações nativas, indispensáveis como guias
para a penetração em seus territórios, se tornassem também grandes fontes de
informação sobre a geografia. Os europeus rapidamente descobriram que para
sobreviverem em territórios desconhecidos, como era o caso da África, era necessário
interagir com as populações locais, e frequentemente apropriar-se de seu conhecimento,
especialmente o geográfico, indispensável ao conhecimento do território interior. O que
nos interessa nessa seção é acentuar que, por “meio desses registros europeus, circulava
informação oral fornecida pelos africanos” e que D’Anville fartamente “se apoiou na

145
Catalogue des livres de la bibliothèque de feu Mr. de Couvay, p.97.
146
Catalogue des livres de la bibliothèque de feu Mr. de Couvay, p.102 e 160.
147
Catalogue des livres de la bibliothèque de feu Mr. de Couvay, p.172
148
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.119.
oralidade e nas informações veiculadas” por eles.149
Trata-se então de investigar de que forma os nativos serviram de fontes de
informações sobre a África. Nesse sentido, todas as versões de seus mapas da África são
ilustrativos de como grande parte do que representava era fruto desse processo de
apropriação de um saber geográfico local. Cabia aos europeus que se aventuravam pela
região, como os jesuítas que ali missionavam, ou os viajantes, funcionários e
comerciantes portugueses ou holandeses, conseguir em primeira mão estas informações
que, em seguida, registravam nos relatos que escreviam. Cabia aos geógrafos europeus,
como D’Anville, trabalhando em seus gabinetes, transformar as informações
geográficas contidas nesses textos em linguagem cartográfica. Ao reconfigurarem o
território africano nos mapas que produziam, transformavam o saber nativo em
conhecimento erudito. São vários os exemplos de como esse conhecimento circulava
nessas três esferas: A estimativa de 100 léguas, adotada inicialmente por D’Anville em
suas cartas de 1727 como a distância que faltava para realizar a ligação entre as colônias
portuguesas das duas costas africanas, foi feita primeiramente por Antonio Álvares
Pereira que, “para chegar a essa conclusão inquiria os nativos e forasteiros, [e] pedira o
auxilio de pilotos que mediam a latitude pela carta de marear”.150
Em pequenas legendas textuais, escritas nas bordas ou nos espaços em branco
dos seus mapas, D’Anville se refere aos conhecimentos geográficos que os europeus
adquiriam no contato com os africanos, não raro de regiões por eles não visitadas.
Confere-lhes inclusive o estatuto de autoridade e a certos povos atribui desenvolvido
domínio da geografia. De acordo com o padre Francisco de Sousa, em O Oriente
conquistado, uma de suas fontes, os mercadores da Zambézia “não se cansavam de
levar os astrolábios para medir o sol, nem cartas para marcar as alturas”.151 No canto
superior esquerdo do Mapa do Royaumes de Loando, Congo, Angola, Benguela, por
exemplo, afirma que “os mercadores negros de Pombo, do Congo, que realizavam
várias jornadas de caminho do seu país até um grande lago a leste”, transitavam pelo
interior do continente e garantiam realizar por terra a travessia para o que despediam 60
dias de viagem. O mapa também revela algumas das formas de contato entre os nativos
africanos e europeus, por meio do qual as informações geográficas circulavam. No reino
de Fungero, os portugueses compravam tecidos, utilizando a moeda corrente no reino de

149
RODRIGUES Eugénia. D. Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville, p.25
150
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, f.121
151
SOUSA, Padre Francisco de. Oriente conquistado. Lisboa:1710, p.835.
Angola. E na memória ele conta que, por sua vez, ali se fabricava, a partir de uma
árvore de matombe, um tipo de palmeira, a moeda que os portugueses transportavam a
São Paulo de Luanda para realizar o comercio negreiro. Na Carte manuscrite de la côte
d'Afrique depuis le cap Negro jusqu'à celui de Bonne Espérance informa que foram os
“cafres” que deram o nome do rio de Zambeze e, na memória, escreve que são eles que
afirmam “que atravessa grande parte da África”.152 Também aparece no mapa que,
segundo “o padre João dos Santos, no seu Etiópia Oriental, os cafres dizem que ele
deságua num grande lago, contendo muitas ilhas”. De fato, este autor credita à tradição
oral passada entre as gerações as notícias geográficas sobre a conformação do rio
Cuama e do Zambeze.153 Referência nesse mapa da viabilidade da travessia é a
informação de que os namaquas, por vezes, viajam até o Monomotapa e que, segundo
eles, este primeiro reino dista cerca de 150 léguas do reino dos Hotentots do Cabo da
Boa Esperança. Na folha da Carte du canal de Mozambique de la côte occidentale de
l'Isle de Madagascar et des états du Monomotapa, D’Anville posiciona, no império dos
Bororos, “as montanhas que os cafres chamam Lupata ou esquina do mundo”. Na carta
norte registra que o lago maravi, que aparece desenhado também em vários mapas, sua
localização é segundo o “relato dos negros”. Noutra cartela, informa que os jesuítas o
haviam navegado até a Abissínia, até onde se estendia, e que o mesmo era repleto de
pequenas ilhotas, e é dessa forma que ele o desenha. Nesses dois textos fica evidente
como uma informação geográfica, originária dos nativos, chega aos europeus
intermediada pelos jesuítas, aparecendo configurada em vários mapas.
No entanto, os mapas, ainda que fossem instrumentos eficientes para dar
visibilidade a um conjunto de informações etnográficas que os exploradores europeus
recolhiam, apresentavam um limite concreto à fidedignidade dessas informações. A
cartografia resultava numa representação imagética fixa de populações que, na maioria
das vezes, eram errantes, pois tinham no nomadismo uma característica importante de
sua cultura. Nesse sentido, D’Anville afirma que os hotentots são cafres errantes.
Mas os nativos não foram apenas informantes. Dentro de um espírito iluminista,
uma etnologia nascente tornou-os objetos de estudos dos savants europeus e a

152
SGL. Description Geographique de la partie de l’Afrique, Manuscritos. Res 3-C-17.
153
Segundo o padre, “a este rio Cuama, tão célebre, e conhecido por suas riquezas, chamam os cafres
Zambeze; nace póla terra dentro tão longe que não há quem tenha notícia de seu princípio. Dizem os
cafres, que têm por tradição de seus antepassados, que este rio nace de ua grande lagoa, que está no
meio desta Etiópia, da qual nacem outros rios muito grandes, que correm por diversas partes, cada um de
diferente nome e que pólo meio desta lagoa há muitas ilhas”. SANTOS, João Fr. Etiópia Oriental e Vária
História de Cousas Notáveis do Oriente [1609], p.178. (grifo meu)
cartografia foi um dos suportes materiais que cristalizaram as informações e as visões
que os europeus construíram sobre esses povos, como os heusaquas, que D’Anville
informa que “não ignoram totalmente a agricultura”; e, enquanto os de Angola são
descritos como altivos, os dos Congo eram de tamanho medíocre, mas mais bem feitos e
menos preguiçosos que os da Guiné. As disputas e rivalidades intertribais também
transpareciam na cartografia e D’Anville, por vezes, assume o discurso que um povo
tinha sobre o outro, como é o caso dos mercadores de Pombo, que descreviam que entre
seu país e o tal lago do leste, se interpunham os jagas “que são antropófagos, grandes
ladrões e comedores de homens”; ou o dos nomaquas, que informam que os “brigoudis
são uma nação poderosa e rica”.

6. Oráculos da travessia da África


Como bem afeito a seu caráter profético, o embaixador incluiu nas Instruções
Políticas a Marco Antônio de Azevedo, uma cópia da Carta de 1725, onde apresentava
seu projeto de ligação entre as duas costas do continente africano, o qual viabilizaria o
estabelecimento de uma Companhia de Comércio para explorar as riquezas em marfim e
ouro da região.154 Várias foram as tentativas de viabilização do projeto por parte dos
portugueses ainda no século XVIII e mesmo no seguinte. A historiadora portuguesa
Eugénia Rodrigues encontrou, em documentos inéditos, informações uma primeira
tentativa idealizada pelo 5º conde de Assumar, cujo pai era amigo dileto de dom Luís da
Cunha, na época em que foi vice-rei da Índia, entre 1744-1750. Como Moçambique
fazia parte da sua administração não é de se estranhar que os planos tenham partido
dele. A expedição não chegou a se realizar, pois o navio que trazia os encarregados da
missão naufragou na travessia entre Goa a Moçambique.155
Nova tentativa foi realizada quando o sobrinho de dom Luís da Cunha, Antônio
Álvares da Cunha, foi governador de Angola, na segunda metade do século. Na direção
oposta a que encetara Assumar, ele deu início a um plano de ligação até Moçambique,
confessando ter se inspirado nas ideias do tio embaixador. Sob os auspícios do então
ministro dos Negócios Estrangeiros, Diogo de Mendonça Corte Real filho - outro
protegido de dom Luís da Cunha - e do Conselho Ultramarino, a 4 de dezembro de
1754, Antônio Álvares da Cunha enviou o sargento-mor Manuel Correia Leitão e o

154
CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.340, 373. CUNHA, dom Luís da. Carta de 1725. Apud:
CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, p.375-378.
155
Eugénia Rodrigues. Informação oral.
piloto Antônio Francisco Grizante, para navegarem o Cuango e chegarem aos rios de
Sena. O último tinha como missão estabelecer as latitudes da região percorrida e por
isso levava os instrumentos necessários.156 Seguindo o plano original de D’Anville, a
expedição foi instruída que, para atingir o Cuango, deveria dirigir-se pelo Cuanza.157
Em 1772, dom Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho foi nomeado governador
de Angola, com instruções de tentar viabilizar a ligação entre as duas costas. Por esta
razão, no ano seguinte, escreveu um projeto sugerindo como esta deveria ser
executada,158 onde defendeu que a expedição deveria partir de Angola em direção a
Moçambique. A união visava constituir uma única unidade giovernativa na África
meridional, promover o comércio e evitar a penetração dos holandeses.159 Mas somente
em 1797, um ano depois que Lacerda e Almeida foi nomeado governador dos rios de
Sena e Tete, o plano foi finalmente posto em execução, pois suas instruções de
nomeação já previam a realização da expedição. A mesma foi organizada pela
Academia Real de Ciências de Lisboa e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros dom
Rodrigo de Sousa Coutinho, filho de dom Francisco Inocêncio, admirador confesso de
dom Luís da Cunha.160 Lacerda e Almeida liderou a expedição, mas que partiu no
sentido oposto, isto é, de Moçambique para Angola. Os expedicionários subiram pelos
rios Sena e Tete, atingido o rio Zamzebe e, a partir daí, seguiram cada vez mais para o
interior, tomando a direção noroeste. Apesar da expedição ter se tornado lendária,
Lacerda e Almeida morreu durante o trajeto, sem alcançar seu objetivo.161
Nas conferências de Berlim, em 1886, França e Alemanha reconheceram a
soberania portuguesa sobre os territórios do interior da África meridional entre
Moçambique e Angola. Essa reivindicação se expressou no Rose-colored map, que foi
anexado ao tratado então assinado entre estas nações. Tudo parecia finalmente caminhar
para a concretização do projeto estabelecido por dom Luís da Cunha, mas o sonho será
frustrado pelos ingleses que, se recusaram a endossar o acordo, e efetivamente

156
MOTA, A. Teixeira. A cartografia antiga da África central e a travessia entre Angola e Moçambique,
p.99-100.
157
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.150-
151.
158
GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder, justiça e soberania no império colonial português, 1750-1822.
Leituras, Revista da Biblioteca Nacional de Lisboa, v.3, n.6, p.113, out.2000.
159
GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder, justiça e soberania no império colonial português, 1750-1822,
p.113.
160
EÇA, Filipe Gastão de Moura e Coutinho Almeida de. Lacerda e Almeida, escravo do dever e mártir
da ciência (1753-1798). Lisboa, sl, 1951. ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Travessia da África.
Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1936. (introdução de Manuel Múrias)
161
SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em África, p.194-
195.
conseguiram dominar estes territórios.

Mapa 1: Royaumes de Loando, Congo, Angola, Benguela. D’Anville, 1725. Fonte: BNF. DCP.
Ge DD 2987 (8255)

Mapa 2: Carte du canal de Mozambique de la côte occidentale de l'Isle de Madagascar et des


états du Monomotapa. D’Anville, 1725. Fonte: BNF. DCP. Ge DD 2987 (8322).
Mapa 3: Detalhe da parte meridional de L’Afrique. Guillaume Delisle, 1700. Fonte: BETZ,
Richard L. The mapping of Africa, p.495-497.

Mapa 4: Afrique. D’Anville, 1749. Fonte: BNF. DCP. Ge DD 2987 (7779B).

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