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Punitivismo, impunidade e impostura

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Por Leonardo Giardin de Souza.

O grande Percival Puggina, em recente


publicação (1), trouxe à colação alguns
excertos ilustrativos do pensamento da
corrente ideológica hegemônica no
Brasil em matéria de criminologia, direito
penal e segurança pública. Alguns dos
soi disant arautos da “tolerância”, da
“democracia” e da “liberdade” foram
acolherados em um único artigo, com o
perceptível objetivo de que seu discurso de proveta, uniformizado e reproduzido em
intermináveis operações de clonagem, adquirisse a aparência externa de um consenso
dogmático revestido da mais absoluta cientificidade, fruto de sincera busca dialética da
verdade, liberto de quaisquer ranços ideológicos. Malgrado, no entanto, esse verniz
“científico”, a “disposição” para o debate desses “tolerantes” denuncia-se no título
autoexplicativo do artigo: “A sanha punitivista e/ou a boçalidade do discurso da
impunidade” (2).

Quem quer que leia o texto, assinado por Leonardo Yarochewsky, será imediatamente
tomado pela sensação de que alguém está substituindo realidade por discurso: ou há uma
“sanha punitivista” irracional e despropositada, movida por um mórbido e um tanto sádico
“desejo” de jogar pobres e desvalidos em calabouços, ou tenta-se soterrar a realidade sob
um sem-número de palavras-gatilho, clichês e chavões, a fim de gerar uma confusão dos
demônios, desqualificar os pensadores antagonistas e desviar o foco do coitado do
assunto.

Com acuidade e finíssima ironia, o professor Puggina limitou-se a transcrever, para nosso
“deleite”, alguns cacos desse latão pseudocientífico banhado no ouro de tolo de títulos
acadêmicos. Permite, assim, que o leitor julgue por si o conteúdo. Entretanto, permito-me
tecer algumas considerações sobre o material generosamente trazido pelo brilhante
escritor gaúcho ao conhecimento do público em geral. Evito, desse modo, ser confundido
com os que, olimpicamente, passam ao largo do pensamento alheio, substituindo-o
convenientemente por rótulos e etiquetas, calculados para inibir o incauto leitor de travar
qualquer tipo de contato substancial com o que querem proibir.

Em sua compilação, Yarochewsky, advogado criminalista e doutor em Ciências Penais,


“denuncia” algo que nomeia “criminologia midiática”. Para ele, o “discurso” da impunidade
contribui “para o avanço do Estado autoritário e para a cólera do punitivismo”, o que
geraria uma “tendência” à proposição de leis “com viés autoritário, conservador e
reacionário.” Yarochewski, confiante no impacto a ser causado por conta do costume

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arraigado no nosso mainstream de torcer o nariz para o termo “conservador”, coloca o
maltratado epíteto convenientemente ao lado de termos aterrorizantes como “reacionário”
e “autoritário”.

Na monumental obra “A Corrupção da Inteligência”, Flávio Gordon explica – por meio de


uma analogia com o conceito de “marcação” da linguística estrutural – como a classe
falante brasileira “normaliza” sua própria visão sobre determinados assuntos, dando ares
de logos dogmático a perspectivas francamente minoritárias em comparação com o que
pensa o cidadão comum. Este, sem meios de expressar coletivamente seu pensamento,
acaba por sentir-se um fragmento “anormal” que boia caoticamente em um oceano de
unanimidade. Os pontos de vista “não marcados” são o “padrão”, referenciados de forma
neutra, e os pontos de vista “marcados” passam por específicos e parciais. Eis o
estratagema utilizado por Yarochewsky: “marcar” quem não comunga de seu ideário como
“conservador”, “autoritário”, “reacionário”, “punitivista” e “colérico” para, em seguida, valer-
se de um velho e surrado clichê, dado como pressuposto científico indiscutível: a prisão se
destina aos “criminalizados” por um “processo de estigmatização, segundo a ideologia e o
sistema dominante”. Reverbera o discurso pueril da criminologia crítica marxista – todo ele
baseado em inversão de causa e efeito e sua confusão com condições e influências.

Yarochewski cita Ricardo Genelhú, que, brandindo o título de pós-doutor em Criminologia,


afirma que “o discurso contra a impunidade tem servido de motivo para uma suposta
restauração da ‘segurança social’”, mas não passa de “desculpa para a perseguição ao
“outro” (…) com seu ensaio neurótico promovido por pessoas com onipotência de
pensamento”, servindo mais “para ‘justificar’, ‘ratificar’ ou ‘manter’ a exclusão dos
‘invisíveis sociais’, tragicamente culpados e, por isso, incluídos por aproximação com os
‘inimigos’ (parecença), do que para demonstrar a falibilidade seletiva e estrutural do
sistema penal antes e depois que um ‘crime’ é praticado, ou enquanto se mantiver uma
reserva delacional publicizante, seja porque inafetadora do cotidiano privado, seja porque
indespertadora da cobiça midiática.” A primeira ideia que me veio à mente ao travar
contato com esse estilo intragável, pedante e de pouca inteligibilidade ao vulgo, foi o
indefectível diagnóstico de Roger Scruton, para quem “o jargão afetado e sem sentido é
muito mais eficaz na propagação das opiniões de esquerda e progressistas do que os
argumentos bem fundamentados”, em razão de que “quando afirmadas explicitamente,
expõem-se à ameaça de refutação, algo a que elas nem sempre sobrevivem”(3) . Quando
ao jargão afetado une-se o manjadíssimo truque “xingue-o do que você é, acuse-o do que
você faz”, a coisa assume ares de escandaloso golpe contra o debate racional. É até
ofensiva a desfaçatez de alguém que, arrogando-se a condição de dono da verdade e
demonstrando verdadeiro horror à divergência, aponte no outro, e não em si, “neurose” e
“onipotência de pensamento”. Acresce-se a isso a audácia de falar em “perseguição ao
outro”, embutida em um sujeito que demite o delinquente de sua própria condição humana,
ao negar-lhe capacidade decisória fundada na autoconsciência e na liberdade individual.
Ao mesmo tempo, objetifica a vítima como instrumento de busca de bens materiais pelo
“excluído social” que ele mesmo, ao fingir defender, despersonaliza e equipara a um
animal que age movido apenas por instintos e reflexos condicionados. Dividir o mundo
entre “nós” e “eles”, prática indissociável dos intelectuais marxistas, implica assumir a visão

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de um mundo de objetos, sem sujeitos, cuja consequência necessária é falta generalizada
de empatia com o próximo. Eis o perfil real de certos intelectuais que denunciam atentados
à “outridade”, e que, quando convém, utilizam a palavra crime entre aspas.

Yarochewski prossegue invocando Salo de Carvalho, advogado e professor, que diz haver
um “sintoma contemporâneo” que denomina “vontade de punir”. Nada pode ser mais
projetivo: ao medir o outro com sua própria régua, o citado jurista não faz nada além de
criar um espantalho com quem brigar, de pronto decalcando-lhe na testa o oposto de seu
ideário laxista (a vontade férrea de não punir bandidos que não respeitam nenhuma
“outridade”). Por meio dessa variante da cosmovisão “nós x eles”, retira providencialmente
o debate do campo da discussão sobre a necessidade de punição para a seara da
voluntariedade. Note-se que é exatamente essa a condição mental na qual surge a decisão
de cometer um crime. Carvalho parece identificar-se com esse voluntarismo, para o qual
quer atrair, na base de um tu quoque invertido, os que defendem resposta adequada e
proporcional à conduta de um malfeitor. Essa postura intelectual abre campo a uma
discussão que resultará inexoravelmente na escolha do tipo de arbítrio que deve
prevalecer. Daí porque o próprio Salo nos impõe um dilema, sem notá-lo, entre dois tipos
de arbítrio: o da “democracia substancial” (marcação “neutra” ou com aparência científica),
que blinda a decisão de delinquir sob uma carapaça causal-determinista, ou o “das
macropolíticas punitivistas (populismo punitivo), dos movimentos políticos-criminais
encarceradores (lei e ordem e tolerância zero) e das teorias criminológicas
neoconservadoras”, marcados com rótulos de intenção de significado infamante, que nem
de longe refletem o apelo à justa retribuição que embasa o pensamento “analisado”.

Por fim, Marildo Menegat, pós-doutor em Filosofia, sob aplausos efusivos de Gramsci e
Alinsky desde algum círculo profundo do inferno, clama pela “politização” do debate, “o
único caminho para pôr termo, quem sabe aos martírios e sacrifícios desde sempre
praticados” pela “espécie” humana. Não se sabe em que sentido a politização da potência
de fazer o mal poderia servir para corrigir essa tara inata dos indivíduos humanos, que se
atualiza pari passu com seu tratamento “politizado”. Mas por que não buscar reduzir os
“martírios e sacrifícios” provocados por tantos criminosos “empoderados” pelo discurso
justificador e pela cultura da bandidolatria, de cuja conduta resulta o sacrifício de 60.000
brasileiros por ano? Pois, alheio a isso, Menegat propõe que “é hora de nos entregarmos à
realização da liberdade e, para isso, o fim das prisões torna-se imperativo”, sem esclarecer
a liberdade de quem seria “realizada” com o fim das prisões e a consequente libertação de
toda sorte de assassinos, assaltantes, traficantes e estupradores. No entanto, há algo a
comemorar no discurso, que encerra, com chave de ouro, o trailer do inferno coletado com
luvas de laboratorista pelo mestre Puggina: a confissão espontânea, compartilhada pelos
desencarceramentistas, da mais descarada apologia do abolicionismo penal. É evidente
que convém a esse grupo ideológico travestido de científico, em sua “sanha” laxista e seu
abolicionismo “colérico”, que as prisões sejam lugares cada vez mais inabitáveis, para que
possam berrar neuroticamente, aos quatro ventos, a “falência” do sistema e exigir de modo
autoritário sua extinção. Quando um porta-voz dessa ideologia afirma que o sistema
carcerário “faliu”, é algo como Caim avisar candidamente que Abel “morreu”.

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Para esses intelectuais orgânicos, apontar racionalmente a necessidade de uma punição
adequada aos crimes cometidos voluntariamente por agentes individuais – abordando do
ponto de vista empírico a chaga da impunidade – torna-se, num grotesco truque de
mágica, “desejo” de punição, “cólera” e “sanha” persecutórias, “neurose” e delírio de
onipotência. Exclui-se da esfera do pensamento racional a argumentação do oponente de
ideias para jogá-la indevidamente na seara da psicopatologia. Sobre isso, diria Pirandello:
ma non è uma cosa seria! Nesse campo, quanto mais a vítima da artimanha maliciosa se
defende, mais louca parece aos desavisados. Ante tamanho grau de impostura com verniz
de pseudociência, só resta render-me à “metodologia” desses doutos ilusionistas e
desmascará-los: “é golpe!”.

Sempre desconfiei que esses senhores julgassem idiotas todos os demais membros da
humanidade, à exceção dos iniciados nos ritos de sua igrejinha acadêmica. Mas não
imaginava que fizessem tão pouco da inteligência alheia, ignorando ao mesmo tempo a
catastrófica situação de sua própria. Esse paradoxo é muito bem observado e descrito por
Flávio Gordon, para quem esses intelectuais são as primeiras vítimas do fenômeno que
ele denomina, em seu extraordinário livro homônimo, “a corrupção da inteligência”, espécie
de corrupção não criminalizável porque não se refere a um fenômeno causal, mas é fruto
de uma alteração substancial do ser que afeta de forma trágica o intelecto e a
personalidade do agente-vítima. Quem quer que pretenda nunca mais entender coisa
alguma, que ingresse resoluto nessa prisão mental e jogue a chave fora, como fazem
esses homens. Sendo essa uma decisão livre, de nada adianta buscar culpados que não
sejam as próprias vítimas desse longo e doloroso processo de suicídio intelectual.

Essas observações aparentemente irreverentes não constituem de maneira alguma


insultos ou adjetivações gratuitas. Busca-se uma descrição que só adquire contornos
ácidos justamente por respeitar o objeto, descrevendo-o com fidelidade. Vimos que esses
intelectuais ousam sugerir, senão afirmar, que impunidade não existe neste paraíso
perdido. Não passaria de um “discurso midiático” forjado para gerar “autoritarismo” e
“criminalizar” os “excluídos”. É perceptível que, não dispondo de meios racionais para
refutar uma realidade indesmentível e brigar com os fatos (4), somente resta-lhes um apelo
emotivo: imputar intenções malignas e soturnas, temperadas de estupidez e ignorância,
àqueles que ousam descrever o que qualquer um vê com os olhos da cara. Arrogam-se a
condição de defensores de uma humanidade que só amam em abstrato. A impunidade
real cuja ostensividade e feiúra estampada em seus frutos cotidianos é insuportável à
visão daqueles que se comportam ao modo avestruz, deve ser, juntamente com a
humanidade de carne e osso que sofre com a criminalidade, convenientemente posta de
lado e excluída do debate. Em seu lugar, entra em cena uma “impunidade” prêt-a-porter,
mistificada, retórica e evanescente, moldada como espantalho para uso dos “defensores”
de um humanismo sem humanidade, abstrato, insípido, inodoro, incolor e sem sangue.
Assim, esperam tornar politicamente incorreto o uso da própria palavra “impunidade” e
estigmatizar quem dela se vale como instrumento de descrição dos fatos.

É preciso estar demasiado fora da realidade para crer haver “punitivistas encolerizados” à
mancheia, como lobos perseguidores, prontos a devorar pobres cordeirinhos
marginalizados (5) pela sociedade e empurrados inexoravelmente para a criminalidade por
culpa de entidades etéreas como “capitalismo tardio” e “sistema burguês”. De fato,
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parafraseando o professor Percival Puggina, a imagem do restante da biblioteca deve ser
imprópria para menores, e aqueles que sustentam nossas universidades com o suor do
próprio rosto, na vã ilusão de estar investindo em conhecimento e ensino “superior”, devem
atentar para esse tipo de conteúdo nefasto e imbecilizante, a ser neutralizado não
mediante censura, mas pela persistente exposição dessas ideias, por si aptas a causar
repulsa, e pela contínua análise crítica desse pensamento destrutivo. Somente assim
serão criados anticorpos intelectuais para defesa de mentes incautas, expostas ao fluxo
torrencial desse ideário maligno nas artes, nos meios de comunicação e nos ambientes
acadêmicos.

Referências:

(1)
http://www.puggina.org/artigo/puggina/conheca-o-pensamento-dos-defensores-da-impuni/1
0951

(2)
http://emporiododireito.com.br/backup/a-sanha-punitivista-eou-a-bocalidade-do-discurso-da
-impunidade-por-leonardo-isaac-yarochewsky/

(3) ROGER SCRUTON, “Uma Filosofia Política: Argumentos para o Conservadorismo”. É


Realizações, p. 137.

(4) Vivemos em um país cujos níveis de elucidação de homicídios atinge até 8% (ainda
assim superior à taxa de esclarecimento dos crimes em geral), que registra mais de
1.700.000 roubos por ano (dos quais um Estado como o Rio de Janeiro consegue apurar
menos de dois por cento dos autores), em que há cerca de 700.000 mandados de prisão
em aberto (o número de foragidos supera o de encarcerados em nosso país “autoritário”),
e onde a punição efetivamente aplicada dilui-se em progressões de regime carcerário cuja
velocidade é turbinada com remições, “prisões” domiciliares, monitoramento eletrônico,
fugas etc.

(5) Uma dessas “vítimas do sistema” é o hoje “jurista” Marcinho VP, líder da facção
criminosa Comando Vermelho. Recentemente, VP anunciou que irá lançar um livro sobre o
que entende por “direito penal do inimigo”, que muito bem poderia ser prefaciado por
qualquer um dos doutos aqui citados: as ideias defendidas pelo novel “doutrinador”,
atualmente hóspede da Penitenciária Federal de Mossoró, RN, muito se assemelham aos
excertos analisados no presente texto.

Leonardo Giardin de Souza, promotor de justiça, é, juntamente com Diego Pessi, autor
do livro ‘Bandidolatria e Democídio‘.

Publicado no site de Percival Puggina, escritor e colunista do Mídia Sem Máscara.

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