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A primeira edição do festival EIMAS, em 2010, explorou o complexo e abrangente tema

da arte sonora pela primeira vez em Juiz de Fora, em um evento de âmbito


internacional, que teve o apoio da Pró-Reitoria de Cultura e do Instituto de Artes e
Design (IAD) da UFJF, possibilitando aos estudantes universitários e ao público em
geral o acesso a debates atualizados sobre música, teoria, estética, tecnologias e arte
digital.

Esse evento anual tem como objetivo incluir trabalhos artísticos, acadêmicos, cursos,
palestras e oficinas. Os trabalhos acadêmicos selecionados tiveram a representação de
professores e artistas do Brasil, Argentina, Suécia, Espanha, Alemanha, Portugal,
México, Chile, Estados Unidos, Inglaterra e França.

Ao longo de quatro dias tivemos concertos com obras instrumentais, mistas,


performances das mais variadas indo do âmbito audiovisual até obras de net-art.
Esperamos que os textos deste volume fomentem a realização de novas pesquisas acerca
da arte sonora e da música de maneira geral no Brasil.
Prof. Dr. Daniel Quaranta UFJF
Prof. Pedro Bittencourt UFRJ
Organizadores do EIMAS
EIMAS 2010

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Desenvolvimento  de  Instrumentos  Musicais  Digitais  como  atividade  composicional  

Eduardo  Luís  B.  Patrício  


UFPR  

Resumo:   O  desenvolvimento   de  instrumentos   musicais   digitais,  com   seus   vastos   recursos   de  controle   e  
geração   de  som,   podem   ser   entendidos,   a  partir  da   poética  musical   aberta,  como   obras   musicais   em   si;  
obras-­‐processo.   A   compreensão   desses   instrumentos   como   tal  pode   conduzir   a   uma  postura   analítico-­‐
composicional   que   venha   a   auxiliar   a   própria   tarefa   de   luteria   digital   e   o   alcance   de   seus   objetivos  
estético-­‐musicais.    

Palavras  chave:  instrumentos  musicais  digitais,  composição  musical,  luteria  digital  

Introdução  

Este   artigo   faz   parte   da   pesquisa   que   venho   conduzindo   no   Mestrado   em   Música   da  
UFPR   e   que   trata,   de   modo   geral,   da   criação/composição   de   instrumentos   musicais  
digitais.   Principalmente  nas  últimas  duas   décadas   o   desenvolvimento   de  instrumentos  
musicais   digitais   não   comerciais   e   personalizados   (aqui   referenciados   como   IMD)  
cresceu   consideravelmente   e   tornou-­‐se   foco   de   inúmeros   estudos   em  Universidades   e  
centros   de   pesquisa   em   todo   o   mundo.   Este   texto   irá,   inicialmente,   destacar   algumas  
características   dos   IMDs,   e   em  seguida,   expor   de  maneira  breve  os  conceitos   de  “obra  
aberta”   (ECO,   2008)   e   “obra-­‐processo”   (AIRA,   1998),   e,   a   partir   deles,   propor   uma  
metáfora   através   da   qual   instrumentos   musicais   digitais   podem  compreendidos   como  
obras  musicais  em  si.

Instrumentos  Musicais  Digitais

É  possível   pensar  os  IMD  a  partir  de  uma  estrutura  tripartite,  (1)  interface   gestual  -­‐   ou  

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dispositivo   de   entrada,   (2)   mapeamento   e   (3)   software.   A   interface   gestual   seria  
qualquer  dispositivo  Xísico  capaz   de  realizar   a   transdução  de   gestos,   ações  humanas  em  
informação  digital   a  ser  utilizada  para  controlar  o   sistema.   O  mapeamento  (FIG.  1),  por  
sua  vez,   é   um   elemento  fundamental   em  um   IMD,   pois  é   responsável   pelas  estratégias,  
mais   ou   menos   complexas,   de   conexão   entre   a   atuação   humana   e   o   controle   da  
produção   sonora.   O   terceiro   componente   de   um   IMD,   o   software,   é   responsável   pela  
geração  e  processamento  sonoros.

Figura  1.  Estratégias  de  mapeamento.

Nesse   ponto,   antes   de   abordar   questões   mais   especíXicas,   é   preciso   observar   uma  
peculiaridade  fundamental  dos   IMD,   a  não   conexão   direta  entre   cada   ação   do  músico  e  
um  evento  sonoro  especíXico.  Ou  seja,

Nos   instrumentos   musicais   acústicos   o   dispositivo   de   geração   sonora   é  


inseparável   do   dispositivo   de   controle   humano   (...).   No   entanto,   no   caso   dos  
instrumentos   musicais   eletrônicos   (onde     o   dispositivo   de   interação   –   ou  
entrada   –  é   independente  do   dispositivo   de   síntese   sonora)   não   há   qualquer  
mapeamento  implícito  de  um  para  o  outro.  [ 1]  (HUNT,  2000:  p.  1)  (FIG.  2)

Figura   2.  Exemplo  comparativo  de  estratégias  de  mapeamento  entre  um  instrumento  musical  tradicional  
e  um  instrumento  musical  digital.

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A   partir  dessa   colocação   de  Hunt  é  possível   apontar  duas  implicações,  (1)  em  um   IMD  
qualquer   ação   humana   pode   ser   direcionada   a   qualquer   tipo   de   geração   ou  
processamento   sonoros,  várias  ações  podem  conduzir  a  um  só  evento,  ou  ainda,  uma   só  
ação  pode  desencadear  diversos   processos;  tudo  isso  em  função  da  estruturação  lógica  
de   cada  IMD,   deXinida  sobretudo  no   estágio   de  mapeamento.  (2)  Teoricamente,   não   há  
limites  nem  para   os   modos  de  execução   de  cada  instrumento  (em  função  da  variedade  
de   dispositivos   de   entrada),   nem   para   o   tipo   de   som   que   será   gerado,   em   função   da    
possibilidade  do  uso  de  qualquer  técnica  de  síntese  e  processamento  de  som.    
Além  disso,  IMDs  podem  se   assemelhar  a   sistemas  musicais  interativos  (ROWE,  1993,  p.  
6)  (WINKLER,   1998,   p.   7),   indo   além   da   relação   ação   do   performer-­‐nota,   incluindo   o  
controle  de   processos   e  estruturas   musicais   pré-­‐compostas  Xixas,   ou  ainda,   com   graus  
diferentes   de   Xlexibilidade   e   imprevisibilidade,   através   de   algorítmos   executados   em  
tempo   real.   Ou   seja,   um   IMD   pode   possuir   uma   partitura   digital   interna   que   se  
desenvolva   ao   longo   do   tempo,   de   forma   Xixa,   executando   e   controlando   eventos   e  
processamentos   sonoros;   ou   implementações   algorítmicas   mais   ou   menos   complexas  
que   executem   “decisões”   em   tempo   real   em   resposta   a   diferentes   ações   de   cada  
performance,  criando   situações  interativas.   Segundo  Jordá,  esse  aspecto   faz   com  que   os  
IMDs   aproximem-­‐se   da   composição   musical,   pois   “eles   podem   lidar   com   tempo,   com  
linhas   musicais   múltiplas   e   simultâneas   que,   de   outra   forma,   não   seriam   tocáveis   de  

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maneira   convencional,   com   forma,   eles   podem   reagir   aos   performers   de   modos  
complexos,  nem  sempre  totalmente  previsíveis.”  [2]  (2005,  p.  26)

Obra  Aberta  e  Obra  Processo

O   conceito   de   obra   aberta   foi   introduzido   por   Umberto   Eco   em   livro   homônimo   e   se  
propõe   a   explicar   modos   não   tradicionais   de   compreensão   e   produção   artísticas  
(literatura,   música   etc.)   no   século   XX.   De   modo   geral,   segundo   Eco,   uma   obra   aberta  
apresenta   algumas   características   peculiares,   tais   como:   ambiguidade   intencional;  
estruturação   não   completamente   deXinida;   espaço   para  reinterpretação;   completude  a  
cada   performance/fruição   de   acordo   com   a   leitura   de   cada   intérprete/fruidor;   é  
passível  de  reconhecimento  apesar  de  sua  possível  ambiguidade  e  mutabilidade.  
Já  o  escritor  César  Aira,   também  tratando   do   fazer  artístico  contemporâneo,  aXirma  que  
não   há   mais   sentido   em   insistir   na  feitura   de   obras   a   partir   de   modelos   tradicionais,  
pois  não   há  possibilidade  de  novidade  dessa   forma.  Aira  sugere  que  o   principal  papel   de  
um   autor   na   realidade   contemporânea   seria   a   criação   de   novos   modelos,   novos  
processos   para   criação   de   obras.   Ou   seja,   um   autor   dedicar-­‐se-­‐ia,   principalmente   à  
elaboração  e  divulgação  de  novos  processos  criativos.  A  isso   ele  nomeia  “obra-­‐processo”.  
Seguindo   esse   linha   de   raciocínio,   Aira   chama   de   “obras-­‐apêndice”   àquelas   obras  
geradas  a  partir  de  um  novo  processo.  (AIRA,  1998)

Instrumento  Musical  Digital  /  Obra-­processo

A   ideia   de   que   o   desenvolvimento   de   um   instrumento   digital   pode   assemelhar-­‐se   à  


feitura  de   uma  composição  em  si   não   é  incomum,   e   foi  levantada  de  modos   diferentes  
por   diversos   autores.   Cook   (2001),   por   exemplo,   elenca   como   um   dos   princípios  
norteadores   na   criação   de   IDMs   a   compreensão   de   cada   um   deles   como   uma   peça  
musical  especíXica  e  não  como  um  instrumento  ou  um  controlador.  Já  para  Iazzetta,

“O  trabalho   experimental  de  associação   entre   gestos   musicais   e  instrumentos  


eletrônicos  fez  com   que   o  compositor  fosse   obrigado  a   investigar,  ele  mesmo,  o  
funcionamento   e   as   conexões   entre   esses   elementos.   Mesmo   porque,   muitas  
vezes,   o   trabalho   de   composição   se   confunde   com   o   trabalho   de   criação   dos  

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instrumentos  que  serão  usados  na  composição.”  [3]  (2009,  p.  209)

Schnell   e   Battier   (2002)  introduzem   a   ideia   de   “composed   instruments”,   instrumentos  


eletrônicos  –  em  que  o   dispositivo   de  controle  gestual  é  separado  daquele  que  produz   o  
som  –  que  possibilitam   um  ambiente  de  interação  durante   a   performance   situado  entre  
dois  extremos  a  saber,   (1)  o  performer  é  responsável  somente  por  apertar   um  botão  que  
excuta   uma   peça   completa   pré-­‐composta;   e   (2)   cabe   ao   performer  o   controle   de   cada  
pequeno  evento  sonoro  de  modo  semelhante  à  execução  de  um  violino.  (p.  3).

Neste  texto,  propõe-­‐se  uma  visão   consciente  e   intencional   dos   IDMs  como   obras,   mais  
especiXicamente   obras-­‐processo,   pois   sua   criação   demanda   escolhas   referentes   a  
timbre,  forma,  articulação,   estrutura   frasal,  textura  (homofônica,   polifônica)  e  dinâmica  
que   podem   ser   compreendidas   como   escolhas   composicionais.   Grosso   modo,   cabe   ao  
luthier  digital  /  compositor   a   deXinição  do  material  sonoro  a  ser  explorado,  conjunto   de  
ações   possíveis   pelo   performer,   processamentos   de   áudio   disponíveis,   estruturas  
musicais   pré-­‐deXinidas   na   programação   e   disponibilidade   de   controle   de   parâmetros  
antes  e  durante  cada  performance.  Dessa   forma,  cada  IMD  traz  em  sua  própria  estrutura  
uma  série  de  deXinições,   limites   musicais  que  podem   ser   estabelecidos   a  partir  de   um  
ponto   de   vista   composicional   e   que   resultam   em   um   resultado   estético-­‐musical  
característico.  Isto  é  coerente  com  a  poética  aberta  de  Eco,  na  qual  o  autor  elenca   alguns  
elementos   estruturais   e   deixa   outros   em   aberto   para   que   sejam   completados   a   cada  
performance.   Um   IMD   também   pode   ser   compreendido   como   um   modelo,   algo   que  
reúne   diversas   diretrizes,   caracterizando   um   processo;   e   cada   conjunto   de   escolhas  
dentro   de   uma   performance   se   concretizariam   como   uma   obra   derivada,   uma   obra-­‐
apêndice.        

Conclusão  
Diante   do   aqui   exposto,   conclui-­‐se   que,   sem   dúvida,   a   criação   de   novos   instrumentos  
digitais   se   revela   um   desaaio   que   pode  ser   encarado   de  maneira   cuidadosa,   uma   vez   que  
envolve   um  grande   número   de  escolhas.   A  respeito   disso,   Cook   faz  a   seguinte  aXirmação,  
“(...)   a   música   que  criamos   e   possibilitamos   com  nossos  novos   instrumentos   pode  ser  

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(...)   fortemente   inXluenciada   por   nossas   decisões   iniciais   técnicas   e   de   design”   [4]  
(COOK,   2001,   p.   1).   Tal   aXirmação  parece  não   estabelecer  uma  relação   necessária   entre  
as  escolhas   de  design  e  o   resultado  sonoro;  no   entanto,  é  plausível   imaginar  que  aquele  
que   desenvolve   um   IMD,   e   busque   um   determinado   resultado   estético   musical,   deve  
conscientemente  direcionar  suas   escolhas  para  a  construção  de  seu   instrumento.   Sendo  
assim,   a   compreensão   de   tais   dispositivos   como   obras   em   si,   geradoras   de   outras   obras  
pode   conduzir   a   uma   postura   analítico-­‐composicional   útil   para   tornar   tal   tarefa   mais  
objetiva  e  proaícua.    

Notas  

[1]  “In   acoustic   musical   instruments   the   sound   generation   device   is   inseparable  from   the   human   control  
device  (…).  However,  in  the  case   of  electronic  musical  instruments  (where  the  interaction   -­  or  input  -­   device  
is  independent  of  the  sound  synthesis  device)  there  is  no  implicit  mapping  of  one  to  the  other”.

[2]   “(…)   they   can   deal   with   tempo,   with   multiple   and   otherwise   conventionally   unplayable   concurrent  
musical  lines,  with  form,  they  can  respond  to  performers  in  complex,  not  always  entirely  predictable  ways”.

[3]  Grifo  do  autor.  

[4]  “(…)   the  music   we  create  and   enable  with   our   new   instruments   can   be  (…)  greatly   inEluenced   by  our  
initial  design  decisions  and  techniques.  Through  designing  and  constructing  controllers”.

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Referências  

AIRA,  César.  (1998)  Reinventar  el  arte.  Trespuntos.  vol  10.  p.  70-­‐73,  nov.  1998.

COOK,  P.  (2001),  Principles  for  designing  computer  music  controllers,  National  University   of  
Singapore,   Singapore.   Disponível   em:   <http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?
doi=10.1.1.20.1044&rep=rep1&type=pdf>.  Acesso  em:  15  abr.  2010.

ECO,  Umberto.  (2008)  Obra  aberta,  Perspectiva,  São  Paulo.

HUNT,   A.   WANDERLEY,   Marcelo   M.   KIRK,   Ross.   (2000),   Towards   a   Model   for  


Instrumental   mapping   in   Expert   Musical   Interaction.   Disponível   em:   <http://
re c h e rc h e . i rc a m . f r / e q u i p e s / a n a ly s e -­‐ s y n t h e s e / wa n d e r l e / G e s t e s / E x t e r n e /
Hunt_Towards.pd>  Acesso  em:  8  abr.  2010.

IAZZETTA,  Fernando.  (2009)  Música  e  mediação  tecnológica,  Perspectiva,  São  Paulo.

JORDÀ,   Sergi.   (2005),   Digital   Luthieri:   crafting   musical   computers   for   new   music’s  
performance  and  improvisation.  Tese.  Universitat  Pompeu  Fabra.  Barcelona.

SCHNELL,   N.   BATTIER,   M.   (2002).   Introducing   composed   instruments,   technical   and  


musicological   implications.   National   University   of   Singapore,   Singapore.   Disponível   em:  
<http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?
doi=10.1.1.20.1586&rep=rep1&type=pdf>.  Acesso  em:  19  maio  2010.

Agradecimentos  
À  pessoas  e  à  instituições.  

Eduardo  Patrício  (nascido  em  1980,  São  Luís)  Graduado  em  Psicologia  pela  Universidade  Federal  do  

Maranhão  e  em  Produção  Sonora  pela  Universidade  Federal  do  Paraná,  atualmente  cursa  o  Mestrado  em  

Música  (DeArtes  /  UFPR).  Atua  como  músico,  compositor  e  performer  de  música  eletroacústica,  e  

professor  de  áudio  e  tecnologia  musical  na  cidade  de  Curitiba.

http://www.eduardopatricio.com.br

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epatricio@yahoo.com  

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