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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E GRADUAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS – PROFLETRAS
DISCIPLINA DE LEITURA DO TEXTO LITERARIO

PANORAMA DO ENSINO DE LITERATURA E DO PROFESSOR DE ENSINO


FUNDAMENTAL DE ESCOLA PÚBLICA EM FORTALEZA

GABRIEL LEITE VASCONCELOS PINTO

Professora Dra. Fernanda Coutinho

Junho 2014
Este trabalho faz parte da disciplina de Leitura do Texto Literário, ministrada
pelas professoras dras. Fernanda Coutinho e Eulália Leurquin. Trata-se de uma panorâmica
do ensino de Literatura no Ensino Fundamental das escolas públicas municipais em
Fortaleza, mas também retrata impressões pessoais experiências vividas como professor de
escola pública. Assim, nosso trabalho será dividido em quatro etapas: primeiro,
destacaremos os nossos alunos, do ponto de vista da família, da relação desta com a escola
e com a Literatura, e a importância da Literatura para a família e para o aluno. Em seguida,
trataremos da escola propriamente: seu papel ideal na Literatura, sua função real, a situação
escolar em torno da Literatura. A terceira parte considera os textos legais que regem e
(des)norteiam o Ensino de Literatura em níveis nacional e local. Por fim, o professor será o
elemento a ser analisado, a partir de sua formação.

1. A função da Literatura para o aluno e para a família

Infelizmente, a família de aluno de escola pública, tratando-se de uma


generalização, não reconhece a Literatura como elemento primordial para a formação de
seus filhos. Isso não é difícil de compreender, se levarmos em conta a situação financeira e
social de cada uma delas. Trata-se de famílias socialmente carentes, que infelizmente não
privilegiam para seus filhos uma educação completa. Para os pais e mães, importa que os
filhos não fiquem em casa, que sejam preparados, mesmo que minimamente, para o
mercado de trabalho e que passem a ser produtivamente ativos. E isso vai de encontro à
Literatura.

Assim, as famílias de nossos alunos sequer entendem a necessidade da


Literatura para a formação integral dos filhos. Ler, para elas, deve atender apenas aos
específicos fins de estudo, e apenas isso. Trata-se de uma visão utilitarista, reducionista e
distorcida de educação. As práticas de letramento no seio familiar, por serem reduzidas,
restritas muitas vezes a eventos que envolvem a religião ou negócios. A família não percebe
que somente a Literatura convida a criança a um novo mundo e permite-lhe o contato com
valores sociais, morais, pessoais, emocionais, afetivos e cognitivos, enfim, somente a
Literatura poderia torná-la completa.

Dizer que a condição social é a principal causadora dessa situação parece


redundante. Mas o problema maior talvez seja mesmo cultural. A família de meus alunos
não resgatou a velha mas saudável atividade de ler para seus filhos antes de estes
dormirem. Essa é uma prática que se perdeu no tempo, assim como a leitura que o chefe da
casa fazia para a família no século XIX. Todavia, deve-se ressaltar que havia, nessa época,
uma via de mão dupla: o veículo de comunicação mais eficiente e acessível às famílias era
o jornal, através do qual circulavam os folhetins; e por outro lado o escritor não dispunha de
muitos meios para veicular sua obra, a não ser os folhetins. A leitura em família era,
portanto, uma prática e uma condição.

Ao contrário, hoje as condições são totalmente desfavoráveis para a leitura em


família. Não há espaço para a prática de leitura em família, mesmo porque a televisão
suplantou a necessidade da Literatura como ferramenta de união familiar e de ampliação
intelectual e imaginativa.

Por fim, ressalte-se que os pais de nossos alunos aferem a escola como o único
espaço destinado à promoção da educação. Para muitos deles, o seio familiar não é espaço
para se educar, numa perspectiva redutora da educação a aprender para se tornar
economicamente ativo. Ignoram, portanto, o próprio valor da educação e impõe à escola um
papel maior do que o que realmente deveria ter. E isso pode ser tanto uma solução quanto
um problema.

2. A escola e o ensino de Literatura

Friedrich Nietzsche, na conferência “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos


de ensino”, proferida em 1872, critica as instituições de ensino, principalmente aquelas que
correspondem hoje ao Ensino básico. Para ele, havia duas tendências danosas ao individuo
presentes nas escolas: uma predispunha à ampliação da cultura; outra, à especialização da
cultura.

A primeira tendência seria danosa por causa de sua intencionalidade; a


educação deveria ser estendida à maior quantidade de pessoas porque o mercado de
trabalho necessitava delas. Por outro lado, havendo uma redução ou especialização da
cultura e do ensino, o ser humano seria adestrado, limitado pela própria escola. as duas
tendências, assim, seriam empecilhos para a formação completa do ser humano.

Esta escola que está aí, que serve a uma classe social mais baixa, faz as duas
coisas. E, nesse caso, sobra para a Literatura um papel secundário, porque o que interessa
é que nossos alunos consigam se sair bem nas provas internas e externas, que sejam
apenas números cujo resultado sejam benéficos apenas ao governo.

Nesse ínterim, a escola seria uma das responsáveis pelo esfacelamento da


Literatura enquanto objeto de ensino. No Ensino Médio, o que fazemos em sala de aula
consiste apenas em uma cronologia dos períodos literários e leitura de retalhos de textos
literários para justificar o que explicamos. E no Ensino Fundamental? Qual a base ensinada
no Ensino Fundamental para justificar ao menos essa didática do Ensino Médio? Simples a
resposta: é porque não há. Se os pais não se preocupam com a Literatura, tampouco a
escola, porque não é isso que os pais esperam que os filhos aprendam. Assim, forma-se um
vício em que escola e família se completam e a Literatura se distancia da comunidade
escolar.

Nas escolas da Prefeitura de Fortaleza, por exemplo, havia, até 2012 um projeto
muito interessante e que deu resultados importantes, do qual fiz parte: o SIMBE, Sistema
Municipal de Biblioteca Escolar. Os professores eram selecionados através de um projeto
que deveriam apresentar, justificando seu plano de trabalho para a biblioteca da escola à
qual ele se candidatava. Havia encontros mensais em que nos eram oferecidas oficinas
sobre contação de histórias, sobre quadrinhos, sobre o uso do dicionário, por exemplo, de
modo que a nós eram fornecidas ferramentas para trabalharmos a leitura do livro literário e
paradidático.

Na escola em que ensinávamos, conseguimos resultados muito bons. Houve um


acréscimo incrível no número de alunos que procuravam a biblioteca para levar livros para a
escola, sem compromisso de o professor cobrar a leitura, e isso é o mais importante. Mais
de 1500 empréstimos de livros em oito meses é um número muito animador, para uma
escola em que a biblioteca permanecia fechada.

Porém, com o fim do projeto, as bibliotecas foram fechadas, e não há mais quem
fique nesse ambiente para que o aluno faça o empréstimo de livros, o que é um crime. E as
escolas não se preocupam com isso, porque não é importante para Secretaria Municipal de
Educação. Isso mesmo, não é importante! Então qual o incentivo que o professor e o aluno
pode encontrar para ler?

Infelizmente não se trata de um caso isolado. É recorrente, é norma, é


contrassenso. Não justifica o fechamento de bibliotecas escolares. a biblioteca deveria ser o
centro da escola, e os próprios PCNs afirmar ser elas fundamentais para o trabalho do
professor. Fechar as bibliotecas escolares é anunciar o fim das escolas enquanto instituição
formadora de cidadãos completos para a sociedade. Nietzsche estaria, assim, prenunciando
a redução da escola a uma mero instrumento político. Eis a escola em que ensinamos.
3. As normas nacionais e locais e o ensino de Literatura

Os PCNs representaram sem dúvida um enorme avanço no tocante ao ensino


de Língua Portuguesa no Brasil. Contudo, ao mesmo tempo, permaneceram algumas
lacunas, ou, pelo menos, outras foram criadas a partir dos PCNs. Isso fica muito
evidenciado quanto ao papel da Literatura no ensino de LP. Primeiramente, o próprio fato de
ela ser parte da disciplina de língua portuguesa já é, por si só, prejudicial e errôneo. Isso
porque, assim, sendo, a Literatura passa a ser subsidiária das disciplinas embutidas nela,
como a Gramática.

Há, porém, outro problema quanto ao ensino de Literatura: o texto muitas vezes
serve apenas para que o professor ensine comportamentos e atitudes, e não o que mais
interessa ao texto literário, ou seja, sua particularidade linguística e seu poder imaginativo,
fruitiva. É o que se percebe do trecho abaixo:

A questão do ensino da literatura ou da leitura literária envolve,


portanto, esse exercício de reconhecimento das singularidades e das
propriedades compositivas que matizam um tipo particular de escrita.
Com isso, é possível afastar uma série de equívocos que costumam
estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja,
tratá-los como expedientes para servir ao ensino das boas maneiras,
dos hábitos de higiene, dos deveres do cidadão, dos tópicos
gramaticais, das receitas desgastadas do “prazer do texto”, etc.
(PCNs, BRASIL, 1998. p. 30).

Meu ponto de vista é o de que o texto literário, como está nos PCNs, é tratado
apenas como “uma forma específica de conhecimento”, e não como uma ferramenta para
que se obtenha uma leitura prazerosa. Assim, nós, professores de Literatura no Ensino
Fundamental, carecemos de diretrizes mais sólidas sobre como deve ser tratada a Literatura
pela escola. Por outro lado, isso acaba criando em nossos alunos a ideia de que todo texto
trazido pela escola serve apenas para que aprendam algum conteúdo. O que precisa
realmente ser valorizado é a mediação a ser utilizada, afinal o texto literário tem uma função
lúdica, fruitiva e descompromissada com notas e roteiros.

Mas ocorre ainda, a meu ver, que a questão dos gêneros textuais, trazida pelos
PCNs, tomou conta da escola. Os gêneros textuais tornaram-se tão importantes para o
ensino de Língua Portuguesa que muitos professores acabam por incluir o texto literário
como gênero de texto. Infelizmente, a realidade nas escolas é essa mesma.

Em nível local, o descaso é ainda pior: até o ano de 2013, havia duas aulas de
Literatura nas escolas municipais de Fortaleza para os alunos do sexto ao nono ano. A partir
de 2014, a Secretaria de Educação do Município estabeleceu que deveria haver apenas
uma aula semanal de Literatura. O pior é que essa única aula semanal deveria ser dividida
com a aula de Artes. Como poderemos dar aula de Literatura juntamente com Artes? Muitas
vezes, tento dar aula de Literatura, e os alunos reclamam porque querem aula de Artes.
Fica, então, insuportável a situação do professor: sem diretrizes, sem apoio da direção
escolar e sem orientação lógica e coerente por parte da SME.

Some-se a isso o fechamento das bibliotecas, a falta de diretrizes por parte da


SME, a inépcia da direção escolar, e resta o caos. As próprias expectativas de
aprendizagem da SME não citam a Literatura. Não há, portanto, no currículo da rede
municipal de ensino, menção especificamente sobre a Literatura, o que há, na verdade, são
gêneros de texto que deverão ser aprendidos durante cada bimestre.

4. A formação do professor de Literatura

Quando se fala em formação, a primeira ideia que surge é a de um


conhecimento acabado, pronto e perene. E é justamente essa ideia um dos entraves para
nós, professores de Literatura, especialmente no Ensino Fundamental. Parece que o
término de um curso superior já oferece toda a gama de conhecimentos necessários para o
ensino de Língua Portuguesa, quando na verdade a graduação representa apenas que se
tem o caminho para que sua formação seja melhor implementada.

Acresce que a formação de Literatura não existe para os professores da


Prefeitura de Fortaleza. Há vários eventos de formação para gêneros textuais, mas nenhum
especificamente sobre Literatura. Isso constitui mais que um simples erro, representa um
retrocesso, uma absurda negação de tudo o que representa a Literatura para a formação do
ser humano.
Pessoalmente, ressinto-me de estratégias de leitura especificas do texto literário,
por isso procuro ler sobre o assunto e aplicá-las nas minhas aulas na medida do possível.
Afinal, acredito que a minha formação não se iniciou na graduação nem terminou após sua
conclusão, ela na verdade começou antes, durante minha formação como leitor de texto
literário, uma formação autodidata que foi aprimorada no curso de Letras. É isso o que Marie
Christine Josso chama de processo de formação: ninguém forma ninguém, mas forma a si
mesmo formando os outros: “A formação de um professor é um caminhar para si, no qual a
viagem e o viajante são um só. “
5. Considerações finais

É de lamentar que a escola tenha permitido que o papel da Literatura seja tão
minimizado com atualmente. Para mim, a Literatura consiste em uma das únicas
ferramentas capazes de elevar o ser humano intelectualmente, porque ela é completa. Não
há sociedade que tenha conseguido patamar intelectual sem que tenha passado por uma
mentalidade de leitora de textos literários de modo abrangente.

Contudo, ressalte-se que a escola não é a única culpada por essa lástima. O
próprio professor merece parte da culpa, na medida de sua responsabilidade. Qual a
formação que nós, professores, temos quanto à Literatura? não sabemos o papel dela para
a escola nem a importância para o aluno, então como poderíamos “ensinar” Literatura?

Além disso, ressalte-se que as diretrizes nacionais e locais tornaram-se inócuas


e muitas vezes atravancam o ensino de Literatura, na medida em que privilegiam os
gêneros textuais, delegam ao texto literário a função única de transmitir conhecimento e
principalmente não promovem o verdadeiro valor da Literatura e suas funções. Desse modo,
o professor também se torna alienado e alienador.

Por fim, resta ao professor a tarefa de modificar todo esse cenário. O problema é
que, neste momento, ele está sozinho, é um viajante solitário e esperançoso, mas está só.
Nas escolas municipais não há perspectivas de melhoras quanto ao ensino de Literatura; ao
contrário, a tendência é de piora do quadro que aí está. Por mais que me esforce em sala de
aula, o resultado será sempre incompleto, porque, para a formação do leitor de literatura
acontecer de modo eficaz, é preciso a participação da família, da escola, dos órgãos de
educação, do próprio aluno, e isso não ocorre no ensino público municipal. Infelizmente.

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