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Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – UFRJ

Disciplina : História da Filosofia Contemporânea IV


A Filosofia de Machado de Assis
Professor : Patrick Estellita C.Pessoa
2º semestre 2003

A volúpia do aborrecimento

“Volúpia do aborrecimento: decora esta


expressão, leitor; guarda-a, examina-a, e se não
chegares a entendê-la, podes concluir que ignoras
uma das sensações mais sutis desse mundo e
daquele tempo.”

“ A Razão pôs-se a rir.


– Hás de ser sempre a mesma coisa ... sempre a
mesma coisa ... sempre a mesma coisa ...”

Machado de
Assis

PREÂMBULO E RESSALVA

O objetivo deste trabalho é propor uma interpretação do sentimento que Brás


Cubas define como sendo “a volúpia do aborrecimento”, seguindo a proposta de uma
abordagem fenomenológica e conforme as discussões desenvolvidas durante o
semestre.

Partindo da afirmação heideggeriana de que uma interpretação “nunca é


apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições.” – que se fundamenta em
três aspectos já sempre presentes na constituição da pre-sença : posição, visão e
concepção prévias –gostaria de registrar, desde já, que a minha “posição prévia” é a
de um estudante (de literatura e filosofia) prestando contas do acompanhamento de
um curso. Portanto, vou me liberar daquele padrão formal e sacal dos trabalhos

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acadêmicos para publicação, que me obrigaria citar a todo instante as leituras ( obra ,
página, edição, etc.) que apóiam (ou não) a minha “visão prévia”, i.e. as articulações a
seguir apresentadas. Acredito contar com o beneplácito tanto de Brás Cubas como de
Heidegger : o primeiro afirma que “a obra em si mesma é tudo”, e o segundo define a
fenomenologia como “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como
se mostra a partir de si mesmo”. Bastam, portanto, a obra e o “método” dos dois
mestres.

UM POUCO DE BLÁ BLÁ

Há uma curiosa, mas por certo não casual, coincidência entre a abordagem
fenomenológica de Heidegger e as teorias literárias contemporâneas, como as
estéticas da recepção e do efeito, principalmente a segunda. Grosso modo, eu
apontaria a questão da valorização daquilo que não se mostra, do que se “vela e re-
vela” constantemente, pois é exatamente o não-dito que mais tem “a dizer” no texto
literário. Não nos parece descabido parafrasear a assertiva de W. Iser : “ o significado
do texto resulta de uma retomada ou apropriação daquela experiência que o texto desencadeou e
que o leitor assimila e controla segundo suas próprias disposições “ , em termos de Ser e
Tempo : “ a significância de uma coisa (o texto) é fruto da compreensão da coisa a partir de si
mesma na sua abertura para a pre-sença (o leitor), que dela se apropria (assimila e controla) a
partir de um interesse (suas disposições próprias) pelo qual – sempre-já – está tomado ”.
Basta de teoria : “ – vamos ao texto, ele mesmo ! ”.

DE ONDE FALA BRÁS CUBAS ?

Brás Cubas está “fora” deste mundo, é um defunto autor. Faz questão de
distinguir sua situação daquela que seria a de autor defunto. É alguém que só fala
(como autor) depois de morto. Curiosamente, não fala da morte, nem de anjos, nem de
deuses, muito menos de julgamentos, ou juízos finais. Só fala , e muito, da vida e dos
vivos; de “dentro” da vida. Isso iguala vida à morte, dentro à fora ? São para Brás uma
única e mesma coisa ? Podemos pensar que sim. Mas aonde isso nos poderia levar ?
Vida como morte, como uma sucessão de “mortes”, sendo a última, a biológica,

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apenas mais uma morte. E por que só falar agora ? Por que a lucidez que permite a
elaboração do discurso (logos) só agora é possível ? Fechou-se o círculo, e o ponto de
chegada revelou-se : “... sempre a mesma coisa ...”. Seria esta a revelação definitiva
da sensação expressa por : “volúpia do aborrecimento” ou “voluptuosidade do
nada” ? A “terrível” compreensão de que nossa vida é gratuita, não tem nenhum
“sentido” para além de si mesma, fato que somente seria possível apreender após o
fecho do círculo ?

VOLÚPIA, VOLUPTUOSIDADE E VOLUPTUOSO

Volupia (ae) é o nome latino para a ‘deusa do prazer‘; Voluptas (atis)


significa prazer, satisfação, alegria, gozo, contentamento. Voluptuosus (a, um) é
ainda agradável, aprazível, delicioso. Esses termos são derivados de velle –
presente do infinitivo do verbo volo : querer. O campo semântico a que se referem,
portanto, é o do desejo e do prazer. Aparecem cinco vezes, nas diferentes funções
– substantiva ou adjetiva – ao longo da narrativa.

A primeira vez : “ Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.”


não soa como alguma promessa de prazer ao interlocutor a quem é dirigida. É
uma fala da Natureza, dirigida ao narrador, durante o seu delírio de agonizante. Se
podemos considerar que a lascívia é a má consciência no desejo (acompanhando a
interpretação do Prof. Gilvan sobre o vocábulo, bastante presente na obra de
Nietzsche), o que a Natureza pode estar sugerindo é que Brás Cubas, que não teve
medida alguma nos seus desejos, irá agora conhecer o prazer de não desejar : a
Morte.

A segunda ocorrência são as “ chispas de vinho e de volúpia “ no olhar


que o Vilaça dirigia à D. Eusébia no cap. XII do romance. Também aqui, refere-se
ao desejo e ao prazer, agora com a conotação “mundana” de desejo do prazer
sexual. Não traz maior interesse à presente abordagem, mas reforça o que iremos
concluir com a quarta e a quinta aparição dos termos.

A terceira referência, objeto maior do trabalho, vamos discutir adiante.

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Nas quarta e quinta utilizações do termo, temos, claramente, uma
conotação positiva associada à voluptuosidade e voluptuoso, respectivamente : para
descrever a alegria e o orgulho masculino de Brás, ao supor que Virgília esperava
um filho que seria seu; e para discorrer sobre a habilidade e o regozijo que sentimos
ao estarmos “insulado” e imersos em “considerações” mesmo em meio a uma
multidão ativa e barulhenta.

A VOLÚPIA DO ABORRECIMENTO

A partir dessa positividade, que encontramos associada ao campo


semântico de volúpia, é que queremos sustentar a possibilidade de que, no cap.
XXV – Na Tijuca, quando Brás Cubas nos fala de “ uma das sensações mais subtis
desse mundo “, ele está marcando, não só uma radical mudança de comportamento
no narrador-personagem, que está imerso em uma profunda melancolia, mas
também, e principalmente, justificando a causa dessa transformação : “ele dispõe de
uma visão mais penetrante da verdade do que as outras pessoas que não são
melancólicas.” (Freud, Luto e Melancolia). A partir desse momento, ele nos narra
todas as suas aventuras segundo uma ótica de deterioração e de degradação, de
transitoriedade de tudo e de todos, que é interpretada por muitos como meros
pessimismo ou ironia, mas que nós queremos identificar como lucidez e forma
própria de interpretação do mundo.

É essa lucidez que nós vemos, entre muitas outras passagens : na


deficiência física de Eugênia e na borboleta preta – a “irracionalidade” da Natureza;
nos destroços da beleza da outrora irresistível Marcela; no cap. “Alucinação”, em
que a atraente Virgíla é vislumbrada na sua futura e inexorável condição de
decadência física. Em “O que escapou a Aristóteles” temos uma visão dos
acontecimentos na vida como a simples casualidade de bolas rolando e se
esbarrando, como em uma mesa de sinuca. O cap. VII “O delírio” pode, também, ser
visto como que a confirmação, às vésperas da morte, de toda essa visão filosófica
da existência humana como sendo um grande absurdo.

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Quando Brás Cubas, ao aproximar-se a velhice, “esquece” essa lucidez e
a noção das suas limitações humanas, e se imagina capaz de “corrigir” o mundo,
criando um medicamento “destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”, é
prontamente
castigado pela Natureza, tal qual um herói trágico ao desafiar os deuses. É ele
mesmo que nos diz, no primeiro capítulo :

“ Morri de uma pneumonia; mas se lhe


disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia
grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível
que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou
expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si
mesmo.”

SUPOSIÇÃO

Considero inadequado arriscar uma “conclusão” em um trabalho como este.


Também não se trata de um simples “achismo” ou de palpites lançados a esmo, mas
sim de mais uma possibilidade, dentre as inúmeras (mas não infinitas, conforme Eco)
que uma obra literária nos permite, sendo mesmo difícil (pelo menos para mim)
encerrar tão desafiante exercício. Isso posto, “concluo” com uma “suposição”, que se te
agradar, muito me honra e alegra, “se não te agradar, pago-te com um piparote, e
adeus.”.

Aluno : José Mauricio da Silva

Matr. : 103161310

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