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A arte da falsificação

Por Humberto Pereira da Silva


Hans van Meegeren, que criou seis quadros de Vermeer, permanece um incômodo para a crítica
Um dos traços mais característicos da cultura de massa é a possibilidade de utilização de técnicas para
a reprodução de obras de arte. O filósofo alemão Walter Benjamin produziu aquele que talvez seja o ensaio
mais significativo sobre o tema: A Obra de Arte na Época das Técnicas de Reprodução. A idéia básica de
Benjamin é que, com as técnicas de reprodução, a arte perdeu sua aura, que vem a ser algo como a evocação
ritualística de um objeto naquilo que ele tem de único e autêntico. Se, como decorrência da carência da aura,
os elementos que possibilitam a apreciação das obras de arte para a cultura de massa não são os mesmos que
para arte a clássica, e as técnicas de reprodução ganham relevo, um tema que inequivocamente fascina é o
que diz respeito à falsificação de obras de arte.
Um enfoque caro ao tema da falsificação é o que se refere ao plágio e, com ele, os condicionantes
legais para o interdito da reprodução. Embora as querelas acerca dos condicionantes para o interdito da
reprodução de uma obra sejam por demais interessantes, para escapar a uma discussão forense e ficar no
âmbito da arte, creio ser interessante pensar no tema da falsificação a partir de coisas como a possibilidade
de uma cópia perfeita e do acaso que pode cercar nossas crenças acerca da autenticidade. E para falar da arte
da falsificação, nada melhor que colocar em jogo o caso do falsificador holandês Hans van Meegeren (1889-
1947).
Antes, porém, um preâmbulo. Em 1937 afluíram ao Museu Boymans, de Roterdã, verdadeiras
multidões para admirarem a obra Cristo e os Discípulos em Emaús, um quadro pintado por Jan Vermeer, o
mestre holandês do século XVII. Tal momento revestiu-se de importância inequívoca, pois Vermeer não foi
exatamente um artista prolífico: o conjunto de sua obra forma um número pequeno de quadros que podem
ser apreciados nos dias de hoje. De modo que a descoberta de um Vermeer não foi (não é) um acontecimento
qualquer; e o Dr. Abraham Bredis, uma conhecida autoridade em assuntos de arte, a quem se ficara a dever a
descoberta, gozava a glória do momento. Só que o Cristo e os Discípulos em Emaús não era um Vermeer, e
sim uma falsificação realizada por Meegeren. Diante dessa situação insólita, importa realçar os episódios que
envolveram a falsificação de um Vermeer.
Meegeren, quando jovem, foi um pintor altamente prometedor e dotado de um verdadeiro talento
que, supostamente, se recusou a subornar um crítico para obter uma crítica favorável (esse ponto de partida
pode ser posto em suspenso, já que sua veracidade ou falsidade não afeta a discussão sobre falsificação de
obras de arte). Com isso, ganhou a antipatia dos críticos em geral e teve sua promissora carreira ceifada. Para
o que interessa, ele só entra em cena quando, em 1945, depois da queda da Alemanha nazista, a coleção de
obras de arte de Hermann Goering foi encontrada em Berchtesgaden. Incluía 1200 quadros, entre os quais,
Mulher Surpreendida em Adultério, com a assinatura de Vermeer, o qual não tinha sido pilhado por Goering,
e sim comprado por um agente em Amsterdã. Seguindo uma complexa pista para saber a fonte desse Vermeer
que se encontrava entre os quadros de Goering e, com isso, descobrir que holandeses colaboraram com os

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nazistas durante a Ocupação, a polícia holandesa chegou a Meegeren, então um próspero proprietário de um
clube noturno. Meegeren declarou à polícia que sua fortuna provinha da venda de seis Vermeer, que adquirira
de uma família italiana.
Apesar de tentar justificar que não houvera colaborado com os nazistas, Meegeren, sob pressão,
confessou que o Vermeer encontrado na coleção de Goering na verdade era um Meegeren pintado de forma
a parecer um Vermeer. Em seguida, confessou ter falsificado obras de Hals, Hoock e Vermeer, totalizando 14
obras-primas, entre as quais se incluía Cristo e os Discípulos em Emaús. Com essa declaração, Meegeren
abalou a reputação de Bredius e de todos os conhecedores da arte holandesa do século XVII. E, para provar
que não estava mentindo, pintou, na prisão, seu último Vermeer -O Jovem Cristo Ensinando no Templo- que
não deixa dúvida de que Meegeren era dotado de incrível talento para falsificação de obras de arte.
Na prisão, Meegeren trabalhou num estúdio fechado –ao qual ninguém tinha acesso- e, sob olhares
permanentes de um grupo de testemunhas oficiais, foi-lhe permitido usar o seu conjunto habitual de produtos
químicos para reproduzir os pigmentos da época de Vermeer. As acusações de colaboracionismo foram
retiradas, e Meegeren acabou sendo acusado de falsificar assinaturas.
O curioso caso desse falsificador holandês poderia ficar apenas para o anedotário. E a história da
cultura, aliás, está repleta de anedotas que, fora do pitoresco, não têm implicações que vão além da
curiosidade ou das incursões psicanalíticas. Assim, há evidente curiosidade em saber até que ponto Hitler
efetivamente flertou Leni Riefenstahl, quando esta apresentou o projeto para filmar O Triunfo da Vontade, ou
saber se Hemingway e Fitzgerald mediram suas respectivas virilidades num banheiro de Paris, como é descrito
pelo primeiro em Paris É uma Festa.
Desses episódios, além da anedota ou de supostos condicionantes psicanalíticos, não se pode inferir,
com segurança, caminhos que sejam reveladores das obras de Riefenstahl, Hemingway ou Fitzgerald.
Verdadeiros ou falsos, episódios como esses apenas realçam a curiosidade em torno do caráter do artista.
Contudo, o caso Meegeren, para além do anedotário (sim, pois um verbete qualquer sobre Vermeer pode
incluir, a título de curiosidade, que um holandês ganhou notoriedade falsificando Vermeer e esse episódio não
afetar a aura das obras reconhecidas como autênticas), envolve embaraços, quando se tem em vista coisas
como autenticidade de uma obra de arte e correlatos, como critérios para classificá-la, descobri-la, e a
fronteira entre conhecimento e crença de que uma obra não é fruto de engano.
Senão vejamos, Meegeren ficou para a história como um mago na arte da falsificação. Mas ele
falsificou o quê? Ora, ele simplesmente falsificou assinaturas? Os quadros de Hals, Hooch e Vermeer que ele
diz ter falsificado não são autênticos porque não têm a assinatura Hans van Meegeren? O que se sabe é o que
ele confessou, ou seja, que ele não copiou um Vermeer, mas que pintou um quadro como se fosse um Vermeer
e falsificou a assinatura.
A partir do relato, o que se sabe, então, é que os quadros pintados por Meegeren não são autênticos
porque a assinatura não corresponde à do autor -no caso, à assinatura de Meegeren- e não porque ele tenha
copiado, com a máxima fidelidade, um quadro qualquer de autoria reconhecida de Vermeer. O caso é que os

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Vermeer que Meegeren diz ter pintado (Cristo e os Discípulos em Emaús, Mulher Surpreendida em Adultério
e outros quatro) não estavam no catálogo das obras de Vermeer e passaram a fazer parte do catálogo tão logo
foram reconhecidos por especialistas. Por causa da autoridade da crítica, um Vermeer descoberto, como
qualquer obra que escapa ao catálogo de um artista, passa a ser autêntico.
O fato de, aparentemente, Meegeren não ter copiado e sim pintado quadros idênticos aos que
Vermeer faria multiplica as dúvidas. Se fosse um copiador, seu gênio seria de outro tipo e, quanto a isso,
bastaria contrapor um quadro original à cópia para ver a precisão com que ele reproduziria um original.
Deixaria marcas ou faria uma cópia perfeita? (Não é o caso considerar que Meegeren pode ter copiado
supostos quadros desaparecidos de Vermeer, pois uma cópia e um quadro idêntico de Vermeer rondando
pela Europa, é óbvio, causaria alvoroço). De modo que, não sendo um copiador, vejamos os embaraços
provocados pela situação.
Por que infortúnio Meegeren estaria impedido de possuir um autêntico Vermeer? Como saber que
Cristo e os Discípulos em Emaús não é um Meegeren e sim um Vermeer? Do fato de Meegeren pintar
exatamente como Vermeer não se pode dizer que entre os Vermeer aos quais, supostamente, ele emprestou
a assinatura, não estivesse um Vermeer efetivamente pintado pelo próprio Vermeer. Meegeren poderia, sem
problemas, e para se vangloriar como falsificador genial -eis o sentido mais irônico de sua arte-, afirmar que
um Vermeer autêntico é uma falsificação. E quem não descobriu que um Vermeer autêntico é falsificado, não
teria, do mesmo modo, como descobrir que um Vermeer falsificado é autêntico.
O caso ficaria mais simples se Meegeren apenas tivesse copiado fielmente um quadro já reconhecido
de Vermeer, mas, por azar, não é esse o caso. E, a não ser que se descubram técnicas absolutamente precisas
(e isso é apenas uma disposição bastante forte) para a certificação da data de um quadro, não há como dizer
que um Vermeer do século XVII não é um Vermeer do século XX.
Se a questão da autenticidade pode levantar uma série de embaraços no caso Meegeren, tais
embaraços não se esgotam, contudo, nesse ponto (está claro que, se um acidente histórico não o obrigasse a
falar -e, mesmo assim, ele bem poderia não ter falado-, a posteridade ficaria com um falso Vermeer por
autêntico). Ora, já que a imaginação permite, pensemos na situação em que -uma vez que Meegeren falsificou
a assinatura- estivéssemos diante de uma tela sobre a qual diversos matizes de tinta estivessem sobrepostos
ao acaso reproduzindo um Jackson Pollock ou um Wilhelm de Kooning e, por azar, com a assinatura Vermeer.
Se, por obra da imaginação, isso ocorresse, não haveria quem pudesse atribuir a Vermeer os quadros
descobertos. E, talvez, sequer fosse necessário lançar mão de técnicas para comprovar que as tintas utilizadas
não eram do século XVII e sim do XX. Para um caso bizarro assim, teríamos uma falsificação de Pollock ou de
Kooning com uma brincadeira agregada: a assinatura de um pintor do século XVII. Ocorre que não há razão
alguma para não supor que artistas contemporâneos falsifiquem uma assinatura para criar polêmica em torno
de suas obras. A situação é esdrúxula e colocaria um autêntico Pollock sob suspeita, caso o próprio artista não
viesse a publico para relatar a farsa.

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O incômodo sobre a falsificação, no caso, ganharia outros contornos. Pollock estaria falsificando o
quê? Como Meegeren, apenas a assinatura? Mas, para fazer um quadro idêntico ao que ele próprio faria com
a assinatura Pollock? Sendo assim, apelando para o bom senso, não é possível falar em falsificação. Claro que
só um excêntrico ou um insano para expor um Pollock ou um Kooning com uma assinatura de Vermeer como
se fosse um Vermeer falsificado. Isso seria absurdo, ainda que, num lance de dados, de fato o próprio Vermeer,
num acesso de fúria em conseqüência do fracasso de levar adiante um quadro, tivesse jogado tinta na tela e,
por obra do acaso, a assinatura tivesse ficado intacta. Mas isso só porque a imaginação permite pensar numa
situação como essa.
O caso Meegeren -e com ele a arte da falsificação- dá margem a outras inquietações. Como não
reconhecer o gênio Meegeren e não colocá-lo lado a lado com os grandes mestres da pintura holandesa do
século XVII? Esse anacronismo causa perplexidade, mas se é possível dizer quais são os critérios para afirmar
quem são os mestres da pintura na época de Rembrandt, a ausência de Meegeren é uma falha gritante.
O que falta em sua arte, e que não foi percebido pelos especialistas em 1937, para que Meegeren não
seja um mestre tanto quanto Vermeer, Hals e Hoock, dos quais falsificou a assinatura? Creio não ser possível
notar o que falta a um Meegeren, pois nada falta à pintura de Meegeren e que esteja presente nos artistas
que ele falsificou. Bem entendido, ninguém descobriu que um Meegeren não é um quadro do século XVII. Foi
o próprio Meegeren que disse que havia pintado um Meegeren parecido com um Vermeer. Então, um
autêntico Meegeren deve expressar a sua genialidade, o que desconforta, porque se trata, na mesma medida,
de um engenho do embuste.
Meegeren é aquele cujo êxito consistiu em enganar. Mas quem engana à perfeição, justamente, não
engana, pois o engano não pode ser outra coisa senão uma falta. Se alguém realizar algo para enganar, não
disser que sua obra tem por artifício enganar e esse artifício não for descoberto, não se pode dizer, sem o risco
de se cair num absurdo, que houve o engano. Por isso, se há engano diante do caso Meegerem, este consiste
em não inclui-lo como um mestre da pintura holandesa do século XVII, já que ele apenas revelou que é um
gênio.
Um último aspecto embaraçoso do caso Meegeren a ser destacado aqui é o que se refere à aura.
Seguindo Benjamin, o que a arte clássica tem e que permanece é a aura. Vale dizer: a aura possibilita o
sentimento de que a experiência propiciada pela presença de uma obra de arte não se repete a qualquer
momento, em qualquer lugar e em qualquer circunstância.

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