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A CONVERGÊNCIA DA LUZ SOBRE AS ARTES:

PASSADO, PRESENTE E FUTURO:

André Scucato
Faculdade CCAA
Mestre em Ciência da Arte
andre@cinemadepoesia.art.br

PASSADO: a história da luz nas artes.

Conta a lenda que o imperador Wu Ti, da dinastia Han, triste pela morte de
sua bailarina predileta, ordenou ao mago da corte que a trouxesse de volta do
"Reino das Sombras". Caso desobedecesse, a punição era a morte. Utilizando uma
pele de peixe macia, o mago, com criatividade, modelou a figura de uma bailarina.
"Estendeu uma cortina branca armada contra a luz do sol, alcançando uma boa
projeção de silhuetas. Estava feito, no ano 121, um Teatro de Sombras.
Essa pequena narrativa sobre o teatro de sombras1 ilustra a sedução que as
imagens em movimento despertam no imaginário humano em todas as épocas. A
projeção dos raios luminosos começou a ser estudada quando "Aristóteles
observou a passagem de um feixe de luz através de uma abertura qualquer." 2
Desde o olhar aristotélico, séculos se passaram antes que o homem pudesse aplicar
e reproduzir esse fenômeno observado.

Aristóteles (384-322 a.C) observou a imagem do sol projetada no solo em


forma de meia-lua ao passar seus raios por um pequeno orifício entre as
folhas de um plátano e concluiu que, quanto menor fosse o orifício, mais
nítida era a imagem. Surgiu assim a primeira descrição da câmara obscura. 3

Após mais de mil anos, um sábio árabe conseguiu tornar realidade o que
Aristóteles havia percebido. "O princípio da câmara escura."4

1Teatro de Sombras surgiu na China, por volta de 5.000 a.C e consiste em uma projeção, sobre
paredes ou telas de linho, de figuras humanas, animais ou objetos. O espetáculo costuma atrair
multidões graças ao seu peculiar encanto artístico. Disponível em:
<http://inusitatus.blogtv.uol.com.br/2007/05/21/o-incrivel-teatro-de-sombras> Acesso em: 25 ago.
2008.
2 MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo:

Editora SENAC; São Paulo: Unesp, 2003, p. 32.


3PINTO, Cláudia Alves do Amaral. A Fotografia - História e origem. Disponível em:

<http://www.espigueiro.pt/reportagem/428fca9bc1921c25c5121f9da7815cde.html>. Acesso em: 25


ago. 2008.
4O princípio da câmara escura é simples: se fizermos um pequeno orifício na parede ou na janela de

uma sala mergulhada na escuridão, a paisagem ou qualquer objeto exterior serão projetados no
interior da sala, na parede oposta ao orifício. Se a tela for feita com um pedaço de papel ou um pano
branco, a imagem fica ainda melhor. Se a tela estiver perto da abertura, a imagem fica pequena,
porém nítida; se estiver distante, ela aumenta, mas perde em definição e colorido. MANNONI,
O físico Giovanni Battista della Porta (1540 - 1615) exibiu diversas paisagens
usando lentes sofisticadas, mas foi além do uso normal da câmara escura. Com a
técnica de pintura em vidro, incluiu nas projeções um cenário elaborado. Depois
acrescentou atores e música. Realizava o roteiro de cada apresentação, criando um
espetáculo multimídia, uma celebração das artes para comemorar a captura do
movimento pelo homem. A facilidade de trânsito entre a arte e a ciência foi essencial
para o aperfeiçoamento da técnica da projeção.
Graças a ele, a câmara escura, subitamente desviada de sua vocação
científica, torna-se um 'teatro ótico", um método de iluminação capaz de
projetar histórias, cenários fictícios, visões fantasmagóricas. Deixou os
domínios da ciência e da astronomia para mergulhar nos do artifício, da
representação, do maravilhoso, da ilusão. 5

Della Porta inventou o Teatro Ótico,6 desviando o uso prático e científico no


qual a câmera era utilizada. A projeção se transformou em espetáculos dinâmicos,
encantando o público que se reunia no interior da caixa escura. Do lado de fora,
atores reproduziam os movimentos projetados. Os músicos tocavam acompanhando
as imagens. Os atores recitavam o texto. O teatro ótico, portanto, reunia a técnica da
projeção ao teatro, literatura, música, dança e pintura.
As imagens de Della Porta, corretamente projetadas graças às lentes de
cristal e ao espelho, que ele conhece desde 1558, apresentavam atores
de verdade, com cenário e músicas de acompanhamento.7

Della Porta aliou os princípios da câmera escura a jogos de espelhos para a


criação de monstros, em um espetáculo aterrorizante, desviando a imagem de seu
sentido denotativo.
Seu objetivo era atemorizar os que o visitavam, através de espelhos
deformantes ou pintados, ou surpreendê-los com projeções inesperadas.(...)
o trabalho de Della Porta descrevia espelhos que alongavam ou encurtavam
os rostos, tornavam os homens mais velhos ou mais jovens, deformavam-
nos e desfiguravam-nos, ou acrescentava-lhes cabeças de asno, bicos de
grou, focinhos de porco. Os métodos para tais efeitos foram detalhados na
Magiae naturalis.8

Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo: Editora SENAC;
São Paulo: Unesp, 2003, p. 32.
5MANNONI, op. cit., p. 35.
6Giambatista Porta, que teve sua “magiae naturalis sine de miraculis rerum naturalium” publicada em

1589, afirmava que o reino da mágica natural incluía não só os poderes mágicos das imagens,
pedras, plantas e influências celestiais, mas também experimentos químicos e óticos. Porta
apresentava então um teatro ótico usando uma câmara escura para criar um entretenimento visual
variado e móvel. HERTHEL, Nanda. História do cinema: o início. Disponível em:
<http://www.artigos.etc.br/historia-do-cinema-o-inicio.html>. Acesso em: ago. de 2009.
7Ibid., p. 37.
8Ibid., p. 45.
Portanto a projeção de imagens sobre o palco antecede o surgimento do
cinema e da própria fotografia. No séc. XVII, espetáculos de Lanternas mágicas
realizadas por Nicola Sabbatini faziam aparecer espectros na cena. Espetáculos de
fantasmagoria, em que espectros eram projetados assustaram muito as pessoas.
Essa tecnologia foi utilizada sem escrúpulos por golpistas, para projetar a imagem
de espectros de parentes e, com isso, ter algm ganho financeiro.
A arte da projeção conferiu novo ânimo a uma série de retratistas, pintores e
desenhistas, que forneciam sua técnica como reprodutores de imagens. Com a
invenção da fotografia e o domínio da projeção e escrita da luz, surge em cena o
cinema. A máquina capaz de mostrar ao espectador a imagem em movimento, o
quinetoscópio, inventado por Thomas Edison, 9 apresenta pequenas cenas
registradas da realidade. Graças à nova invenção, os gestos dos atores seriam
eternizados, evitando seu completo desaparecimento na posteridade. Em poucos
segundos, com uma caixa de um metro e meio de altura e 75 quilos, era possível
copiar uma imagem em movimento. Depois, olhando pelo seu visor, a mágica. A
imagem se movia.... nascia o quinetoscópio.
O funcionário encarregado pediu que eu me debruçasse sobre uma lente de
vidro colocada em sua extremidade superior; olhei: algo disparou dentro do
aparelho, e eu vi, fascinado, maravilhado, um aldeão tirolês dançar como
um epilético diante de sua cabana e suas montanhas (com o vento agitando
o cimo das árvores), cena que durou de 25 a 35 segundos [...] podia-se ver
o deslocamento de seus joelhos, o endireitamento de seus sapatos [...]
Quando esta dança frenética chegou ao fim, o pequeno tirolês sorriu, fez
uma saudação e voltou à sua cabana.10

A escrita do movimento entra em cena com a mais perfeita máquina mimética


já construída. Nessa simples narrativa, Thomas Edison imitava a realidade com
perfeição. Aristóteles espantar-se-ia com essa câmara escura moderna. Também
era engenhosa a forma como esse invento encontrava uma importante aliada na
arquitetura dos estúdios. Thomas Edison, em suas memórias, descreve a
construção da arquitetura desse ambiente.
Quase tão impressionante quanto os filmes que ali fazíamos. Buscávamos
praticidade, não arte. O edifício tinha cerca de 25 a 30 pés e demos um
efeito grotesco ao telhado, elevando-o no centro e acrescentando-lhe uma

9A ele são atribuídas mais de 1300 patentes, ainda que nem todas sejam de invenções de autoria
própria. Entre as suas criações estão a lâmpada elétrica incandescente, o gramofone, o ditafone,
o microfone de grânulos de carvão para o telefone e o cinestocópio. Wikipedia. Disponível em:
< http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Edison>. Acesso em: 15 de junho de 2008.
10MANNONI, Laurent, op. cit., p. 388.
saliência provida de venezianas que podiam ser abertas ou fechadas por
meio de roldana, de modo a permitir-nos aproveitar ao máximo a luz.11

O quinetoscópio foi apresentado oficialmente "em 9 de maio de 1893 no


encontro anual do Departamento de Física do Brooklyn Institute of Arts and
Sciences"12 e foi considerado a primeira forma de cinema individual.
Os irmãos Lumière aperfeiçoaram o invento de Edison, criando o espetáculo
cinematógrafo 13 que poderia ser compartilhado em público, unindo em um só
aparelho a câmera, o projetor e a copiadora de filmes. A praticidade também
favorecia os franceses, pois seu aparelho era dez vezes mais leve do que o de
Thomas Edison.
No dia 29 de dezembro de 1895, acontecia no Grand Café Boulevard dês
Capucines,14 em Paris, a primeira projeção realizada pelos irmãos Lumière. Na tela
foram exibidas, durante poucos minutos, imagens em movimento como A Chegada
do Trem em Lyon (1895), A saída dos operários (1895) e O café do Bebê (1895).

Poetas, músicos, pintores, dançarinos, atores e arquitetos observavam o


cinema com outros olhares.
Numa arte como esta, onde a imagem deve ser tudo, há que se defender e
provar que as artes da imaginação, relegadas a meros acessórios, poderiam,
sozinhas, por seus próprios meios, construir filmes sem roteiro, considerando
a imagem móvel como personagem principal.15

11EDISON, Thomas. Memoires et observations. Trad. M. Roth. Paris: Flammarion, 1949, p. 34.
12Ibid.,p. 390.
13A primeira projeção de imagens animadas aconteceu no dia 1º de novembro de 1895, um mês

antes desta apresentação. O que aconteceu foi a fama do cinematógrafo, muito mais versátil, ter
sobrevivido junto ao aparelho. O mesmo não podemos afirmar sobre o bioscópio. "Os irmãos Max e
Emil Skladanowsky, alemães de origem polonesa, que, na mesma época dos Lumière e Edison,
haviam inventado o "bioscópio", um aparelho de projeção dupla que apresentaram publicamente no
dia primeiro de novembro de 1895. PARODI, Ricardo. O óbvio e o obtuso: origens e expansão do
cinema alemão até a Primeira Guerra Mundial. Disponível em:
<http://www.goethe.de/INS/br/sab/pro/seminare/htm/semin2/ aula1.htm>. Acesso em: ago. 2009.
14HARRELL,Thomaz, op. cit., p. 16.
15
VIEIRA, L. J. As vanguardas históricas:Eisenstein, Vertov e o Construtivismo Cinematográfico. In: Ivana
Bentes. (Org.). Ecos do Cinema: de Lumière ao Digital. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, v. , p. 69-82.
Paralelo ao aparecimento do cinema, a introdução da eletricidade no teatro
(colocar a data) possibilitou que novas experimentações pudessem ser realizadas.
A realização de jogos de luz e sombra, ilusões de ótica, novas formas de se deslocar
sobre o palco, mudanças de cenários em questão de segundos. Podemos afirmar
que a luz que possibilitou o surgimento do cinema mudou também toda a natureza
plastica e estética dos palcos.

E a partir da projeção de imagens, ocorreu uma convergência entre as


imagens da tela do cinema e no palco do teatro. Com o avanço da tecnologia e a
criação de projetores digitais, a cena se transformou completamente. Como no
tempo do teatro de sombras, projeção de imagens, atores e a dança voltavam a
dividir o mesmo espaço, só que agora de forma diferente.

PRESENTE: Luz. Projeção e interpretação

Cada vez mais a cena teatral contemporânea serve-se da eletrônica,


eletromagnetismo e informática, ampliando os recursos técnicos a serviço
de sua composição. observa-se o emprego de tecnologias, particularmente
o uso de vídeos e de microfones, tanto na cena do teatro comercial quanto
naquela considerada “cult”.16

O teatro e o cinema possuem linguagens específicas, no entanto


compartilham características . A luz, o ator, figurino, o cenário e a trilha sonora estão
entre os elementos comuns destas artes. O espaço e o tempo constituem sua
principal divisão. O teatro acontece em tempo real, na frente do espectador,
enquanto o filme é projetado meses depois da ação do ator ter sido captada. O
espaço teatral possui três dimensões, enquanto que a tela é plana. No entanto as
diferenças que separam o cinema do teatro vêm sendo eliminadas com o avanço da
tecnologia e a ousadia dos artistas. Principalmente a quebra do espaço, da fronteira
entre a exibição de imagens e a atuação ao vivo. Atualmente podemos acompanhar
uma ópera ou ballet sendo executado na Europa ou nos Estados unidos, sentados
em uma cadeira de cinema, em tempo real. Transmitido via satélite acompanhamos
um a transmissão via satélite do espetáculo de dança ou teatro.

16
ISAACSSON, Marta. Cruzamentos históricos: teatro e tecnologias de imagem ArtCultura,
Uberlândia, v. 13, n. 23, p. 7-22, jul.-dez. 2011. Disponível em: <
www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF23/marta_isaacson.pdf>.
Timidamente o teatro começou na década de 90 projeções de videos durante
a cena.
O advento de novas tecnologias acaba determinando novas mentalidades e novas
formas de percepção e comunicação, redefinindo a própria noção de teatralidade.
Percebemos que o confronto cotidiano com novas mídias: telefone, cinema, vídeo,
computador, influenciam nossa maneira de apreender a realidade, bem como nosso
modo de produção e percepção teatral.17

. A música, tanto na sétima arte quanto no espaço cênico pode ser tocada ao vivo
ou gravada. Recentemente podemos ver em teatros das grandes capitais projeções
de filmes com orquestras ao vivo, enquanto que nos palcos a música gravada entra
no exato momento definido pelo director do espetáculo.

17PROVOST, Marcilene Lopes de Moura Provost. O RAPSODO TECNOLÓGICO PROJEÇÕES DE


IMAGENS E DRAMATURGIA CÊNICA. Disponível em: <
ww.seer.unirio.br/index.php/pesqcenicas/article/view/177/150>
Nas últimas décadas, com o surgimento e o uso cotidiano de
diferentes tecnologias pelo homem, o teatro tem se confrontado com
novas possibilidades de comunicação. Com o advento da indústria
cultural e a necessidade econômica de atingir cada vez mais público, o
cinema e o vídeo tornaram-se meios “artísticos” mais viáveis
economicamente pela facilidade da reprodutibilidade das suas obras,
fazendo com que o teatro perdesse espaço e importância em uma
sociedade mais preocupada com o valor econômico do que com o
cultural.
18

A tradição lanternista
Os espetáculos de projeção de imagens ampliadas em salas escuras foram
oferecidos aos porto-alegrenses a partir de 1861 (FERREIRA, 1956),
majoritariamente como op- ção de entretenimento. Eles tinham lugar
principalmente no Teatro São Pedro, cons truído em 1858 e mantido sem
concorrentes até 1879, quando surgiu o Theatro de Variedades.19

18Morettho, Roberto. O uso da tecnologia no teatro contemporâneo: A cena de Enrique Diaz.


Disponível em: < www.faer.edu.br/revistafaer/artigos/edicao2/roberto.pdf>

19TRUSZ, Alice Dubina. O dia em que as vistas se animaram: a experiência inaugural dos
porto- alegrenses com os espetáculos de projeções cinematográficas. Disponível em: <
O teatro utiliza o espaço como suporte material, no qual os
movimentos são articulados dentro de uma determinada estru- tura
expressiva pelos atores em cena.
6_ Martin, op. cit. p. ___.

__ Cristina Aparecida Zaniboni Antonelli e Elêusis Mirian Camocardi

No cinema, o espaço pode ser transformado em outro por uma simples


mudança cenográfica alternando-se os pla- nos, como se a câmera
mostrasse ora uma ora outra, duas faces da realidade.

No contexto contemporâneo, onde se observa a dissolução das fronteiras que até então
deli- mitavam e distinguiam os territórios das diferentes artes, a cena teatral se abre
cada vez mais ao diálogo com outras práticas artísticas. Dentro dessa nova situação,
observa-se que o teatro passa a acolher novas mídias e procedimentos técnicos na
composição do texto espetacular e a usufruir sem pudor das novas tecnologias de
comunicação e informação oferecidas à sociedade.20

CALDAS, Paulo. Poéticas do movimento: interfaces. In: Dança em


Foco, Vol. 4. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria/Oi Futuro, 2009.

PAVIS, Patrice. A encenação Contemporânea: origens, tendências,

http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao/article/view/111/102>

20ISAACSSON, Marta. Le Projet Anderson, Lepage e a performance da imagem técnica.


Disponível em: www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis16/Poiesis_16_ART_LeProject.pdf>

.
perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2010.

SCHENKER, Daniel. Trânsito livre entre teatro e cinema. Revista de


Teatro SBAT Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, Rio de
Janeiro, n. 522, p. 19-33, novembro/dezembro. 2010

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