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algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes
de uma ciência”.5
Transportando a concepção de paradigma para o campo das ciências sociais e
desse, para o campo do direito, J. Habermas6, citado por Marcelo Cattoni, entende que
paradigmas de direito são “as visões exemplares de uma comunidade jurídica que considera
como o mesmo sistema de direitos e princípios constitucionais podem ser realizados no
contexto percebido de uma dada sociedade”. Com efeito, “um paradigma de direito delineia
um modelo de sociedade contemporânea para explicar como direitos e princípios
constitucionais devem ser concebidos e implementados para que cumpram naquele dado
contexto as funções normativamente a eles atribuídas”.7
Com efeito, a razão de no presente estudo apresentarmos e contrapormos os
paradigmas dos Estados Liberal e Social de Direito – mostrando a insuficiência de cada um e
a releitura proposta a cada ruptura –, decorre da necessidade de se tomar por base as
formações anteriores (modelos paradigmáticos de estados constitucionais) para melhor
compreender o novo paradigma exsurgente, ou seja, o do Estado democrático de direito, que
no Brasil, foi inaugurado (positivado) e suposto pela Constituição da República de 1988.
O Estado Liberal de Direito, que teve algumas de suas bases teóricas lançadas por
Locke8 e Monstequieu9 caracterizou-se pela difusão da idéia de direitos fundamentais, da
separação de poderes, bem como, do império das leis, próprias dos movimentos
constitucionalistas que impulsionaram o mundo ocidental a partir da Magna Charta
Libertatum de 1215.
Nesse paradigma – o do Estado Liberal –, há uma divisão bem evidente entre o
que é público, ligado às coisas do Estado (direitos à comunidade estatal: cidadania, segurança
jurídica, representação política etc.) e o privado, mormente, a vida, a liberdade, a
individualidade familiar, a propriedade, o mercado (trabalho e emprego capital) etc. Essa
separação dicotômica (público/privado) era garantida por intermédio do Estado, que lançando
mão do império das leis, garantia a certeza das relações sociais por meio do exercício estrito
da legalidade.
Com a definição precisa do espaço privado e do espaço público, o indivíduo
guiado pelo ideal da liberdade busca no espaço público a possibilidade de materializar as
conquistas implementadas no âmbito do Estado que assumiu a feição de não interventor.
Nesse diapasão, sob a égide do paradigma liberal, compete ao Estado, por meio do
direito posto, “garantir a certeza nas relações sociais, através da compatibilização dos
interesses privados de cada um com o interesse de todos, mas deixar a felicidade ou a busca
da felicidade nas mãos de cada indivíduo” 10, rompendo-se, via de conseqüência, com a
anterior concepção de Estado (pré-moderno11), no qual, até a felicidade dos indivíduos era
uma atribuição estatal.
8
Cf. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo civil. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
9
Cf. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
10
CATTONI, Marcelo. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 55.
11
Por um sem número de fatores, o paradigma existente antes do Estado Liberal de direito (paradigma medieval)
levou cerca de três séculos para ser dissolvido, contando-se com o advento do capital (Karl Marx), passando pelo
desenvolvimento das práticas de investigação policial (U. Eco e Focaut), a substituição da cosmologia feudal –
fechada e hierarquizada – pela isonômica estrutura matemática de átomos, componentes do infinito universo da
física de Galileu (Koiré), bem como, pelas lutas de libertação religiosa e separação entre a religião, moral e
direito (Max Weber). “Seja como for, o relevante é que todos esses processos de mudança se integram em uma
profunda alteração de paradigma”, pois, antes dessa ruptura, “o direito e a organização política pré-modernos
encontravam fundamento, em última análise, em um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito,
moral, tradição e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam. O Direito é
visto como a coisa devida a alguém, em razão de seu local de nascimento na hierarquia social tida como absoluta
e divinizada nas sociedades de castas, e a justiça se realiza, sobretudo, pela sabedoria e sensibilidade do
aplicador em bem observar o princípio da equidade tomado como a harmonia requerida pelo tratamento desigual
que deveria reconhecer e reproduzir as diferenças, as desigualdades, absolutizadas da tessitura social (a
phronesis aristotélica, a servir de modelo para a postura do hermeneuta). O Direito, portanto, se apresentava
como ordenamentos sucessivos, consagradores dos privilégios de cada casta e facção de casta, reciprocamente
excludentes, de normas oriundas da barafunda legislativa imemorial, das tradições, dos usos e costumes locais,
aplicadas casuisticamente como normas concretas e individuais, e não como um único ordenamento jurídico
integrado por normas gerais e abstratas válidas para todos” (CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos
paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado democrático de direito. Revista de Direito
Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 477, mai., 1999).
4
12
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 1997. tomo I, p. 53. O renomado
constitucionalista português estabelece uma distinção feita por Benjamin Constant acerca da liberdade
(liberdade dos antigos e liberdade dos modernos). Cf. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O
espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 166. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Estado de direito e
Constituição. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 1) pondera que “a liberdade dos modernos na famosa fórmula de
Constant (CONSTANT, Benjamin. De l’esprit de conquête et de l’usurpation. Paris, 1814. p. 101 et seq.) e não
liberdade encarada como participação nas decisões políticas, a liberdade dos antigos” é que teve primazia em
meados dos anos setecentos. “A idéia de direito que então se generaliza, e que inspira as revoluções americana e
francesa, é tão marcada pela preocupação com a liberdade, que se tornou conhecida como liberal”. Cf. LOCKE,
John. Dois tratados sobre o governo civil. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 457 et seq. Com Locke começa a
surgir os pensamentos que vão culminar na necessidade de submeter o Estado ao Império do Direito. Constitui-
se, atua e se organiza em função do Direito. Ser livre é poder exercer a liberdade contra alguém e, dessa forma,
ser livre a também saber reconhecer a liberdade dos outros. Assim, a liberdade só existe onde existir o Direito
legítimo, que, na idade (pós) moderna só pode ser encontrado numa fórmula estatal onde descansam os fatores
reais do poder, ou seja, a fórmula do Estado Democrático de Direito, consagrada na Constituição da República
de 1988.
13
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 478, mai., 1999.
5
14
CATTONI, Marcelo. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 55.
15
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 42.
16
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 43.
17
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 44.
6
18
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 44.
19
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999. p. 48.
Conforme salienta o constitucionalista de Coimbra, esse conceito de Constituição pode ser desdobrado de forma
a captar as dimensões fundamentais que o incorpora. Dessa forma, têm-se: (1) ordenação jurídico-política
plasmada num documento escrito; (2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e
do respectivo modo de garantia; (3) organização do poder político segundo esquemas tendentes a torná-lo um
poder limitado e moderado.
20
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999. p. 48
7
26
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 478, mai., 1999.
27
LUCAS VERDÚ, Pablo. Curso de derecho politico. Madrid: Tecnos, 1992. v.1. p. 226. Apud., BARACHO
JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. Belo Horizonte: Del
Rey, 2000. p. 55.
28
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 480, mai., 1999.
9
no paradigma do Estado liberal, pois o novo traz em seu bojo a necessidade de se realizar uma
releitura historizada dos primeiros direitos chamados fundamentais, que os adapte à novel
demanda social.
Dessa forma, a liberdade do Estado liberal não pode mais ser considerada como
desdobramento da legalidade estrita, na qual o indivíduo podia fazer tudo o que não fosse
proibido por lei, “mas agora pressupõe precisamente toda uma plêiade de leis sociais e
coletivas que possibilitem, no mínimo, o reconhecimento das diferenças materiais e o
tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relação” 29, de modo
a satisfazer um mínimo material de igualdade.Em outras palavras, a nova pauta inaugurada
pelo paradigma do Estado social implica a “internalização na legislação de uma igualdade não
mais apenas formal, mas tendencialmente material”. Na verdade, com a ruptura do paradigma
do Estado liberal, ocorre uma redefinição dos clássicos direitos de 1a geração, ou, como diz
Habermas, uma materialização do direito.30
Em razão da complexificação da sociedade, resultante no modelo paradigmático
social ou de bem-estar-social, no qual o direito é materializado, o Estado vivencia um
momento de ampliação extraordinária na sua seara de atuação, mormente pela necessidade de
abranger tarefas vinculadas aos novos fins econômicos e sociais que lhes são atribuídos, e, via
de conseqüência, reduzir a distância entre a realidade do senhor e do escravo à luz de uma
igualdade material.
Nesse novo paradigma, o antigo cidadão-proprietário do Estado liberal é encarado
como o cliente de uma Administração Pública garantidora de bens e serviços.
A releitura do paradigma anterior não ocorre tão-somente no âmbito dos direitos
individuais, pois o princípio da separação de poderes (outro pilar do modelo liberal) também é
reinterpretado.
Com efeito, ao Poder Executivo são atribuídos novos mecanismos jurídicos e
legislativos “de intervenção direta e imediata na economia e na sociedade civil, em nome do
29
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 480, mai., 1999.
30
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre a facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. v. 2. p. 127 et seq. No mesmo diapasão, Menelick de Carvalho Netto pondera que os direitos
individuais de 1a geração não são mais vistos como verdades matemáticas. “O direito privado, assim como o
público, apresentam-se agora como meras convenções e a distinção entre eles é meramente didática e não mais
ontológica. A propriedade privada, quando admitida, o é como um mecanismo de incentivo à produtividade e
operosidade sociais, não mais em termos absolutos, mas condicionada ao seu uso, à sua função social. Assim,
todo o Direito é público, imposição de um Estado colocado acima da sociedade, uma sociedade amorfa, carente
de acesso à saúde ou à educação, massa pronta a ser moldada pelo Leviatã onisciente sobre o qual recai essa
imensa tarefa. O Estado subsume toda a dimensão do público e tem que prover os serviços interentes aos direitos
de 2a geração à sociedade, como saúde, educação, previdência, mediante os quais alicia clientelas”.
(CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 480, mai., 1999).
10
interesse coletivo, público, social ou nacional”.31 Ao Poder Legislativo, por sua vez, além de
sua atividade típica, compete o exercício de funções de controle, ou seja, “fiscalização e
apreciação da atividade da Administração Pública e da atuação econômica do Estado”.32 Por
outro lado, o “direito passa a ser interpretado como sistema de regras e de princípios
otimizáveis, consubstanciadores de valores fundamentais (ordem material de valores, como
entendeu a Corte Constitucional Federal alemã), bem como de programas e fins, realizáveis
no limite do possível”.33
Diferente do que ocorria no paradigma anterior, na idade do Estado social o Poder
Judiciário não se limita a ser a bouche de la loi, realizando, tão-somente, uma tarefa mecânica
de aplicação da lei subsumida automaticamente ao fato.
Agora, exige-se que o juiz seja la bouche du droit, pois a hermenêutica jurídica
estabelece métodos mais sofisticados como a análise teleológica, a sistêmica e a histórica,
“capazes de emancipar o sentido da lei da vontade subjetiva do legislador na direção da
vontade objetiva da própria lei, profundamente inserida nas diretrizes de materialização do
direito que mesma prefigura, mergulhada na dinâmica das necessidades dos programas e
tarefas sociais”.34
Do Poder Judiciário exige-se uma aplicação construtiva do direito material
vigente de modo a alcançar seus fins últimos na perspectiva do ordenamento jurídico positivo.
No paradigma do Estado social, cabe ao juiz, no exercício da função jurisdicional, “uma tarefa
densificadora e concretizadora do direito, a fim de se garantir, sob o princípio da igualdade
materializada, a Justiça no caso concreto”.35
31
CATTONI, Marcelo. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 60.
32
CATTONI, Marcelo. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 60.
33
CATTONI, Marcelo. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 59.
34
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 481, mai., 1999.
35
CATTONI, Marcelo. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 61.
11
dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, o Estado pode ser
chamado de social. 36
Não obstante, ele conserva a adesão anteriormente existente à ordem capitalista,
princípio ao qual não abdica, pois, no ocidente, o poder político repousa na estrutura
econômica do capitalismo.
Por outro lado, no oriente socialista, a base estatal se transforma, “e é essa
modificação que justifica o corte dicotômico entre o sistema político marxista e o sistema
político ocidental”.37
Primeiro os socialistas utópicos (Owen, Saint-Simon, Fourier etc.), depois, Marx e
Engels, desenvolveram uma profunda revisão crítica da base do Estado liberal, bem como, do
social, que repousavam na estrutura capitalista. Esses teóricos socialistas denunciavam o
caráter formal e individualista dos direitos e propunham novas bases com uma metódica
voltada para o proletariado.
A própria liberdade política, a liberdade individualista da Declaração de Direitos
do Homem não encontrou perdão por parte dessa nova doutrina. A pura liberdade de direito,
proteção metafísica e morta, que deixava o fraco à mercê dos fortes, exatamente como a
igualdade de direito, não servia aos teóricos do Estado socialista. Dessa forma, a liberdade e a
igualdade formais foram completamente repensadas, “não mais no plano enganador da pura
política, mas no plano social, para dar-lhes enfim um conteúdo real”.38
Com efeito, apresentando um plus ao Estado social e mostrando-se no pólo oposto
ao modelo liberal/burguês, o arquétipo socialista se caracteriza na medida em que o Estado
produtor remove o Estado de base capitalista, ampliando-lhe a esfera de ação, alargando o
número das empresas sob seu poder e controle, suprimindo ou estorvando a iniciativa privada,
colocando em xeque o modelo econômico estatal iniciado com o paradigma do Estado liberal
de direito39.
O Estado socialista, aproveitando a estrutura do modelo social, vai além na sua
constituição, e, passando a negar os valores capitalistas – aceitos pelo modelo social –,
culmina por promover ampla ruptura com o modelo de Estado liberal, postando-se, após
amplo intervalo, lado oposto ao modelo criado a partir dos movimentos liberais burgueses.
40
Cf. HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1994.
41
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 481, mai., 1999.
42
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre a facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. v. 2. p. 131.
43
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 481, mai., 1999.
13
direito”, como resultado da aplicação das doutrinas de Konrad Hesse, Robert Alexy, Friedrich
Müller, Ronald Dworkin, J.J. Canotilho e Paulo Bonavides, dentre vários outros.44
Nessa perspectiva, reconstrói-se a relação entre direito e moral, outrora destruída
pelo positivismo kelseneano. No nível de fundamentação pós-metafísico, pondera
Habermas45, tanto as regras morais quanto as jurídicas se diferenciam da eticidade tradicional,
oportunidade em que se postam como normas de ação, que surgem lado a lado, antes
completando-se do que excluindo-se.
Na fase pós-positiva inaugurada no paradigma do Estado democrático de direito,
os princípios46 ganham uma nova classificação que visa, sobretudo, permitir encontrar para as
demandas complexas, uma solução de compromisso do Direito à luz das exigências do novo
arquétipo estatal. Todo caso posto em discussão diante do Poder Judiciário é um caso difícil.
Para solvê-lo, portanto, dos operadores do direito, principalmente do Juiz, passa-se a exigir os
atributos de Hércules.47
Considerando o atual contexto social com a elevada complexidade e inovações da
sociedade, “não se pode ter ilusões quanto ao que esperar do texto que é a Constituição, em
seu sentido estritamente jurídico, que não pode ser visto como portador de soluções prontas
para problemas dessa ordem. Seu texto é como uma obra aberta; ao ser interpretado, atribui-
se-lhe a significação requerida no presente, levando em conta a Constituição em seu sentido
empírico”.48
A esta altura da revolução científica não se mostra mais viável a tese
formalista/normativista de interpretação do direito construída por Hans Kelsen49, que
preconiza o esgotamento das possibilidades de soluções complexas por meio da produção
normativa, pois, por melhor que se apresente, a moldura normativa sempre deixará margem à
atuação do intérprete. No paradigma do Estado democrático de direito, antes de boas leis,
devem existir bons operadores do direito.
Nesse diapasão, requer-se do Poder Judiciário – no paradigma constitucional do
Estado democrático de direito – decisões que, “ao retrabalharem construtivamente os
44
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 481, mai., 1999.
45
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre a facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. v. 2. p. 131.
46
No período positivista, os princípios ganharam força normativa ao ingressarem nos códigos como fonte
normativa subsidiária [MAULAZ, Ralph Batista de. Estado de Direito: discussão a partir da formação do
Estado moderno e do direito contemporâneo. Franca: Faculdade de Direito, 2001. p. 170. Dissertação (Mestrado
em Direito) – UNIFRAN, 2001. 194p].
47
Sobre o tema, cf., DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
48
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 144.
49
KELSEN, HANS. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 387-397.
14
50
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 482, mai., 1999.
51
Cf. DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Havard Universit Press, 1999. p. 22-31.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Celso Bastos,
1999. p. 51-54. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 228-266.
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado. Belo Horizonte, v. 3, p. 482, mai. 1999.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1999.
p. 1086 et. seq. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 75-123. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1997. p. 182-201, 209-215, 510-517, 574 et seq. CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e modernidade:
Dworkin e a possibilidade de um discurso instituinte de direitos. Curitiba JM, 1995. p. 67 et. seq.
52
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 482, mai., 1999.
15
53
GUERRA FILHO, op. cit., p. 145, nota 242. Em nota explicativa, o jusfilósofo da UFC salienta que na teoria
do direito anglo-saxônica, e, de um modo geral, “quem deu o maior impulso para o reconhecimento da natureza
diferenciada dos princípios enquanto norma jurídica foi, a nosso ver, conforme salientado anteriormente, Ronald
Dworkin, em Taking rigths seriously, com sua tentativa de superação do conceito de ordenamento jurídico como
um conjunto de regras primárias e secundárias, devida a H. L. A. Hart, em The concept of law (Postscript). A
recepção dessa proposta de superação do positivismo na Alemanha deve-se principalmente a Robert Alexy” (cf.
BONAVIDES, op. cit., p. 247, nota 243).
Insta acrescer que, na primeira metade do século passado, muito se discutiu acerca da normatividade dos
princípios. Tanto os positivistas quanto os jusnaturalistas reconheceram unanimemente a sua força vinculante.
Na atualidade, identificamos três teorias explicativas do fenômeno principiológico. A primeira delas, defendidas
por Del Vecchio e Bobbio, identifica os princípios como normas gerais ou generalíssimas de um sistema. A
segunda teoria, defendida por Alexy, concebe que os princípios não têm aplicação irrestrita, ou seja, não se
aplicam integral ou plenamente em qualquer situação, pois tais se identificam com mandados de otimização.
Alexy, da mesma forma que Dworkin, entende que os princípios são espécies normativas diferentes das regras.
Os princípios expressam que algo deve ser realizado na maior medida do possível. Os princípios são razões
prima facie e as regras razões definitivas (cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 81-115). Apesar de guardar uma aparente consistência, a teoria
dos princípios como mandados de otimização, defendida por Alexy, é objeto de críticas por autores ligados à
ética do discurso e às “análises pragmáticas da comunicação humana, o que dará origem à terceira teoria” –
defendida por Jürgen Habermas (Direito e democracia: entre a facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 241-295) com base na obra de Dworkin – “que identifica os princípios com normas cujas
condições de aplicação não são pré-determinadas” (cf. GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no
Estado democrático de direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação. Revista de informação legislativa. Brasília,
v. 36, n. 143, p. 191-209, jul./set., 1999.
54
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997. v. 1, p. 246.
55
Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 146;
PIMENTA, Roberto Lyrio. Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais programáticas. São Paulo:
Max Limonad, 1999. p. 126.
16
idéia-retora, que, de um “ponto de vista filosófico, metapositivo, pode ser entendida como a
idéia do direito (Rechtsidee), fórmula sintetizadora das idéias de paz jurídica e justiça, mas
que, para nós, se condensa positivamente na fórmula política adotada em nossa Constituição:
Estado Democrático de Direito”.56
Na esteira do pensamento de Dworkin, conclui-se que dado ao grau de abstração,
os princípios, ao contrário das regras, podem ser contrários (tensão) sem serem contraditórios
(antinômicos) – o que equivale dizer que eles não se eliminam reciprocamente à base do tudo
ou nada.
Nessa relação de contrariedade sem contraditoriedade, existe um intervalo
conceitual no qual se permite a construção, pelo operador do direito, de soluções adequadas à
demanda complexa.
Com efeito, é viável afirmar que no ordenamento jurídico subsistem “princípios
contrários que estão sempre em concorrência entre si para reger uma determinada situação. A
sensibilidade do juiz para as especificidades do caso concreto que tem diante de si é
fundamental, portanto, para que possa encontrar a norma adequada a produzir justiça naquela
situação específica”.57
Precisamente, pondera Menelick de Carvalho Netto58, é “a diferença entre os
discursos legislativos de justificação, regidos pelas exigências de universalidade e abstração, e
os discursos judiciais e executivos de aplicação, regidos pelas exigências de respeito às
especificidades e à concretude de cada caso, ao densificarem as normas gerais e abstratas na
produção das normas individuais e concretas, que fornece o substrato do que Klaus Günther59
denomina senso de adequabilidade, que, no Estado Democrático de Direito, é de se exigir do
concretizador do ordenamento ao tomar suas decisões”.
5. CONCLUSÃO
Os paradigmas constitucionais do Estado Liberal e do Estado Social de Direito
não se mostraram suficientes como modelos à satisfação dos interesses e valores que
informam a sociedade na era da comunicação.
Se de um lado o modelo liberal consagra apenas liberdades formais, deixando o
legando ao cidadão o jugo da servidão, de outro, o modelo social se mostra inadequado,
56
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 146.
57
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 483, mai., 1999.
58
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, p. 483, mai., 1999.
59
GÜNTER, Klaus. The sense of appropriateness. New York: State University of New York Press. 1993.
17
60
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 159.
61
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 158-159.
62
CARVALHO NETTO, op. cit., p. 486, nota 254.
18
propriamente no conteúdo de suas normas, mas sim nos procedimentos,63 que fundamentam
algum de seus possíveis conteúdos”.64
À guisa de concluir, saliente-se que o Direito no verdadeiro Estado de Direito
(Estado Democrático de Direito), conforme já mencionamos, precisa ser, antes de tudo,
legítimo, e para tanto mister se faz lançar mão das teses de superação ao positivismo.
Legitimidade que pressupõe a legalidade, corolários de um efetivo Estado Democrático de
Direito.
Conforme Marcelo Cattoni65, “não há de modo algum, que isentar os operadores
jurídicos de responsabilidades na realização do projeto constitucional-democrático entre nós.
Uma ordem constitucional como a brasileira de 1988, que cobra reflexividade, nos termos do
paradigma do Estado Democrático de Direito”, ordena aos operadores do direito uma maior
consciência hermenêutica, bem como, “responsabilidade ética e política para sua
implementação – algo que, infelizmente, e muitas vezes, falta a doutrinadores e a tribunais no
Brasil”.
No diapasão de Friedrich Müller66, um verdadeiro Estado Democrático de Direito,
“que possa ser chamado legítimo, só pode coexistir com um pensamento constitucional
normativo (e de modo algum com um pensamento constitucional nominalista ou simbólico)”.
Ao final, acrescente-se que a legitimidade ora retratada pelo exímio jurista
alemão, passa, necessariamente, pela coragem decisória do Judiciário, que, necessariamente,
deve assumir a condição de um autêntico Poder que se faz à luz dos atributos de Hércules.
63
Cumpre salientar que o Estado Democrático de Direito depende intensamente dos procedimentos, não apenas
os legislativos, e eleitorais, mas, sobretudo, os judiciais. Como diz Guerra Filho (2001, p. 159-160), “para
solucionar as colisões entre interesses diversos de certas coletividades entre si e interesses individuais ou
estatais, tão variadas e imprevisíveis em sua ocorrência, não há como se amparar em uma regulamentação prévia
exaustiva, donde a dependência incontornável de procedimentos para atingir as soluções esperadas.
Compreende-se, então, como o centro de decisões políticas relevantes, no Estado Democrático contemporâneo,
sofre um sensível deslocamento do Legislativo e Executivo em direção ao Judiciário. O processo judicial que se
instaura mediante a propositura de determinadas ações, especialmente aquelas de natureza coletiva e/ou de
dimensão constitucional – ação popular, ação civil pública, mandado de injunção etc. –, torna-se um instrumento
privilegiado de participação política e exercício permanente da cidadania. É compreensível, então, que devamos
enfocar aquela estrutura de poder do Estado que se utiliza do processo como instrumento de sua atuação, ao
aplicar o conjunto de normas que formam essa ordem jurídica: o Judiciário. O papel do Judiciário em um Estado
que se quer democrático é distinto daquele que se lhe atribui na formulação clássica sobre suas relações com os
demais poderes estatais. Do Judiciário hoje não é de se esperar uma posição subalterna perante os outros poderes
a quem caberia a produção normativa. O juiz não há de se limitar a ser apenas, como disse Montesquieu, la
bouche de la loi, mas sim, la bouche du droit, isto é, a boca não só da lei, mas o próprio Direito. Sobre esse
ponto, aliás, explicitou a jurisprudência constitucional alemã que a Lei Fundamental, quando estabelece, em seu
art. 97, que o juiz está vinculado apenas à lei, essa vinculação deve ser entendida como ao Direito”.
64
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 156-157.
65
CATTONI, Marcelo. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 99-100.
66
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Legislativo. Belo Horizonte, 1999. p. 26.
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