Dworkin compara os juízes — que, bem entendido, não podem se prevalecer de
nenhum poder discricionário — a escritores que deveriam cooperar para a redação de um romance coletivo escrevendo, um após o outro, um capítulo do livro. Isso implica que, cada um tem em conta, como em uma cadeia, do que precede e do valor global do que deve ser construído. A teoria narrativista, a que Dworkin defende, se distingue assim tanto do convencionalismo, que, por definição é artificialista, e do pragmatismo, que está sempre voltado para o futuro: “Uma proposição de direito é verdadeira, escreve Dworkin, se ela aparece como a melhor do processo jurídico por completo, compreendendo ao mesmo tempo o conjunto de decisões de fundo já tomadas e a estrutura institucional, se ela resulta de uma interpretação”. Nessa interpretação, a realidade do direito não se confunde com o texto da lei ou com a regra escrita que pertence a um estágio “pré- interpretativo”; ela pertence ao processo interpretativo e pós-interpretativo. As dificuldades dessa perspectiva ideal são sociologicamente numerosas. No entanto, Dworkin estima que sua concepção interpretativa esclarece no direito dois pontos particularmente delicados. O primeiro diz respeito ao problema das lacunas. Segundo ele, quase não há lacunas no direito. De fato, a partir do momento em que se coloca uma lei ou um texto do direito no contexto cultural e político onde eles foram editados, quase sempre se tem uma opinião: um sentido os habita, compatível ou não com os precedentes da história do direito, conveniente ou não à ética do momento, mas ele existe e, desse modo, não há “vazio” jurídico. O segundo ponto é aquele dos “casos problemáticos” ou “difíceis” com os quais pode se deparar o juiz e para os quais ele deve, se as regras do direito positivo forem insuficientes, pedir auxílio para os princípios do direito. Esses indicam, como já sabemos, ao lado da obrigatoriedade das “regras” que comandam e obrigam, a orientação geral da política jurídica. Ao contrário dos positivistas, cuja redução científica não passa de um empobrecimento e de uma falsificação, Dworkin sublinha a importância desses princípios que introduzem, no coração da própria vida do direito, uma dimensão moral na exata medida em que eles afirmam o caráter imprescritível dos direitos que o direito deve sempre tratar seriamente. . Regras de direito e princípios As regras de direito, por serem regras “postas” pelo legislador, são aplicáveis ou não a casos concretos. Caso sejam aplicáveis, e somente se forem aplicáveis, elas são válidas e produzem, para o caso concreto, efeitos jurídicos. Por exemplo: se a exigência de três testemunhas resulta de uma regra válida, é impossível que um testamento assinado por duas testemunhas somente seja, apesar de tudo, válido. Já os princípios funcionam de uma outra maneira: “mesmo aqueles que muito se assemelham a regras não enunciam consequências jurídicas que resultariam automaticamente da realização de condições previstas”. Por exemplo, o princípio segundo o qual “ninguém deve beneficiar-se de seu próprio erro” não significa que o direito jamais permitirá a alguém de tirar proveito do erro cometido. É o que indica o caso clássico da prescrição aquisitiva, segundo o qual, usucapiante beneficia-se de um comportamento que é a priori ilegal – invadir a propriedade alheia -, se alguém permanece ilegalmente sobre um terreno durante um longo tempo (usucapiante), acaba por adquirir, após um certo tempo, o direito de posse. Um princípio enuncia “razões que militam a favor de uma orientação geral”; ele serve de guia para aplicar tal ou tal regra. Percebe-se de imediato a importância que os princípios terão nos chamados “casos difíceis” (hard cases) quando lhes cabe motivar os julgamentos referentes aos direitos subjetivos e às obrigações específicas das partes. Por exemplo, quando se trata de decidir a questão sobre se um assassino pode herdar em virtude do testemunho de sua vítima, o princípio segundo o qual “ninguém deve beneficiar-se de seu próprio erro” esclarece a lei sobre as sucessões e justifica uma interpretação. De modo geral, na produção das decisões judiciárias, os princípios representam um papel considerável: eles são de fato a exigência que, além da regra, é levada em consideração e aplicada pelo juiz. Os princípios são, desse modo, parte integrante da vida do direito. Por isso, que os fatos e as situações jurídicas não são apenas resultados de constatações, mas são sempre interpretados; as próprias regras por vezes têm necessidade de ser interpretadas à luz dos princípios. RONALD DWORKIN E O SISTEMA JURÍDICO COMO A REUNIÃO DE REGRAS E PRINCÍPIOS: O CASO ELMERCASO ELMER
Caso Elmer: Trata-se de um jovem, Elmer, que assassinara o avô, por
envenenamento, em Nova York, em 1882, para poder herdar a fortuna, de que era maior beneficiário. Elmer tinha receio de que seu avô, que casara recentemente, pudesse alterar o testamento em seu prejuízo, pois os legatários residuais incluídos no testamento, habilitados a herdar se Elmer tivesse morrido antes do avô, eram as filhas deste. As filhas do morto entraram na justiça para contestar o direito de Elmer de herdar, direito que teria perdido ao matar seu avô e testador. No julgamento, o juiz Gray, favorável a uma teoria da legislação que segue uma interpretação exclusivamente literal da lei, (essa teoria propõe que aos termos de uma lei se atribua aquilo que melhor chamaríamos de seu significado acontextual) argumentou que o estatuto das sucessões não continha ressalvas acerca de assassinos entre herdeiros. E, além disso, se Elmer não herdasse os bens que se lhe haviam destinado, estaria sendo vítima de um desrespeito ao princípio da legalidade, pois uma segunda pena – além da prisão a que já estaria condenado - lhe estaria sendo imposta posteriormente ao tempo do crime. O juiz Earl, representando a maioria, opôs-se a Gray, utilizando uma teoria que atribui à intenção do legislador um importância fundamental da lei. Earl fez questão de notar a diferença entre a letra da lei e o que a lei realmente significava. “Seria absurdo, pensava ele, imaginar que os legisladores de Nova York que originalmente aprovaram a lei sucessória pretendessem que os assassinos pudessem herdar, e por essa razão a verdadeira lei que promulgaram não continha tal consequência”. Decidiu-se em favor das herdeiras, filhas do morto. Mas o que é importante neste caso, é que Earl na verdade não recorreu apenas ao princípio sobre a intenção do legislador; sua teoria da legislação continha outro princípio relevante: o princípio de que ninguém deve beneficiar-se de seu próprio erro.1
1 Cf. DWORKIN, Império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 24/5.
Transplantes Normativos e algumas refrações da sua utilização em decisões judiciais: Análise de posições do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e dos Tribunais Superiores brasileiros