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RONALD DWORKIN: OS DIREITOS LEVADOS A SÉRIO

Dworkin compara os juízes — que, bem entendido, não podem se prevalecer de


nenhum poder discricionário — a escritores que deveriam cooperar para a redação de um
romance coletivo escrevendo, um após o outro, um capítulo do livro. Isso implica que,
cada um tem em conta, como em uma cadeia, do que precede e do valor global do que
deve ser construído. A teoria narrativista, a que Dworkin defende, se distingue assim
tanto do convencionalismo, que, por definição é artificialista, e do pragmatismo, que está
sempre voltado para o futuro: “Uma proposição de direito é verdadeira, escreve Dworkin,
se ela aparece como a melhor do processo jurídico por completo, compreendendo ao
mesmo tempo o conjunto de decisões de fundo já tomadas e a estrutura institucional, se
ela resulta de uma interpretação”. Nessa interpretação, a realidade do direito não se
confunde com o texto da lei ou com a regra escrita que pertence a um estágio “pré-
interpretativo”; ela pertence ao processo interpretativo e pós-interpretativo.
As dificuldades dessa perspectiva ideal são sociologicamente numerosas. No
entanto, Dworkin estima que sua concepção interpretativa esclarece no direito dois
pontos particularmente delicados. O primeiro diz respeito ao problema das lacunas.
Segundo ele, quase não há lacunas no direito. De fato, a partir do momento em que se
coloca uma lei ou um texto do direito no contexto cultural e político onde eles foram
editados, quase sempre se tem uma opinião: um sentido os habita, compatível ou não
com os precedentes da história do direito, conveniente ou não à ética do momento, mas
ele existe e, desse modo, não há “vazio” jurídico. O segundo ponto é aquele dos “casos
problemáticos” ou “difíceis” com os quais pode se deparar o juiz e para os quais ele deve,
se as regras do direito positivo forem insuficientes, pedir auxílio para os princípios do
direito. Esses indicam, como já sabemos, ao lado da obrigatoriedade das “regras” que
comandam e obrigam, a orientação geral da política jurídica. Ao contrário dos
positivistas, cuja redução científica não passa de um empobrecimento e de uma
falsificação, Dworkin sublinha a importância desses princípios que introduzem, no
coração da própria vida do direito, uma dimensão moral na exata medida em que eles
afirmam o caráter imprescritível dos direitos que o direito deve sempre tratar seriamente.
. Regras de direito e princípios
As regras de direito, por serem regras “postas” pelo legislador, são aplicáveis
ou não a casos concretos. Caso sejam aplicáveis, e somente se forem aplicáveis, elas
são válidas e produzem, para o caso concreto, efeitos jurídicos. Por exemplo: se a
exigência de três testemunhas resulta de uma regra válida, é impossível que um
testamento assinado por duas testemunhas somente seja, apesar de tudo, válido.
Já os princípios funcionam de uma outra maneira: “mesmo aqueles que muito
se assemelham a regras não enunciam consequências jurídicas que resultariam
automaticamente da realização de condições previstas”. Por exemplo, o princípio
segundo o qual “ninguém deve beneficiar-se de seu próprio erro” não significa que o
direito jamais permitirá a alguém de tirar proveito do erro cometido. É o que indica o
caso clássico da prescrição aquisitiva, segundo o qual, usucapiante beneficia-se de um
comportamento que é a priori ilegal – invadir a propriedade alheia -, se alguém
permanece ilegalmente sobre um terreno durante um longo tempo (usucapiante), acaba
por adquirir, após um certo tempo, o direito de posse. Um princípio enuncia “razões
que militam a favor de uma orientação geral”; ele serve de guia para aplicar tal ou tal
regra. Percebe-se de imediato a importância que os princípios terão nos chamados
“casos difíceis” (hard cases) quando lhes cabe motivar os julgamentos referentes aos
direitos subjetivos e às obrigações específicas das partes. Por exemplo, quando se trata
de decidir a questão sobre se um assassino pode herdar em virtude do testemunho de
sua vítima, o princípio segundo o qual “ninguém deve beneficiar-se de seu próprio
erro” esclarece a lei sobre as sucessões e justifica uma interpretação. De modo geral,
na produção das decisões judiciárias, os princípios representam um papel considerável:
eles são de fato a exigência que, além da regra, é levada em consideração e aplicada
pelo juiz. Os princípios são, desse modo, parte integrante da vida do direito. Por isso,
que os fatos e as situações jurídicas não são apenas resultados de constatações, mas
são sempre interpretados; as próprias regras por vezes têm necessidade de ser
interpretadas à luz dos princípios.
RONALD DWORKIN E O SISTEMA JURÍDICO COMO A REUNIÃO DE
REGRAS E PRINCÍPIOS: O CASO ELMERCASO ELMER

Caso Elmer: Trata-se de um jovem, Elmer, que assassinara o avô, por


envenenamento, em Nova York, em 1882, para poder herdar a fortuna, de que era
maior beneficiário. Elmer tinha receio de que seu avô, que casara recentemente,
pudesse alterar o testamento em seu prejuízo, pois os legatários residuais incluídos no
testamento, habilitados a herdar se Elmer tivesse morrido antes do avô, eram as filhas
deste. As filhas do morto entraram na justiça para contestar o direito de Elmer de
herdar, direito que teria perdido ao matar seu avô e testador. No julgamento, o juiz
Gray, favorável a uma teoria da legislação que segue uma interpretação
exclusivamente literal da lei, (essa teoria propõe que aos termos de uma lei se atribua
aquilo que melhor chamaríamos de seu significado acontextual) argumentou que o
estatuto das sucessões não continha ressalvas acerca de assassinos entre herdeiros. E,
além disso, se Elmer não herdasse os bens que se lhe haviam destinado, estaria sendo
vítima de um desrespeito ao princípio da legalidade, pois uma segunda pena – além
da prisão a que já estaria condenado - lhe estaria sendo imposta posteriormente ao
tempo do crime. O juiz Earl, representando a maioria, opôs-se a Gray, utilizando uma
teoria que atribui à intenção do legislador um importância fundamental da lei. Earl fez
questão de notar a diferença entre a letra da lei e o que a lei realmente significava.
“Seria absurdo, pensava ele, imaginar que os legisladores de Nova York que
originalmente aprovaram a lei sucessória pretendessem que os assassinos pudessem
herdar, e por essa razão a verdadeira lei que promulgaram não continha tal
consequência”. Decidiu-se em favor das herdeiras, filhas do morto. Mas o que é
importante neste caso, é que Earl na verdade não recorreu apenas ao princípio sobre a
intenção do legislador; sua teoria da legislação continha outro princípio relevante: o
princípio de que ninguém deve beneficiar-se de seu próprio erro.1

1
Cf. DWORKIN, Império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 24/5.

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