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I. (o que é a genealogia?

"Para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos


acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os
esperava e naquilo que é tido como não possuindo história — (...); apreender seu
retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as
diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos..." p. 15

"A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao
olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, (...), ao desdobramento meta-histórico das
significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da origem."
p. 16
↳ Aqui, talvez seja interessante levantar a questão da interpretação (não

como interpretação do símbolo, mas como interpretação da interpretação

do símbolo) que Foucault estabele em Nietzsche, Freud e Marx.

II. (A questão da origem - Ursprung)

"Encontram-se em Nietzsche dois empregos da palavra Ursprung. Um não é marcado.


Nietzsche o coloca em oposição a um outro termo (...)" p. 26

Herkunft ⇒proveniência

"se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na


metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há "algo inteiramente
diferente": não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são essência,
ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram
estranhas. A razão? Mas ela nasceu de uma maneira inteiramente "desrazoável" — do
acaso. (...) O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda
preservada da origem — é a discórdia entre as coisas, é o disparate." p. 18

"A origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo;
ela está do lado dos deuses, e para narrá-la se conta sempre uma teogonia. Mas o
começo histórico é baixo. Não no sentido de modesto ou de discreto como o passo da
pomba, mas de derrisório, de irônico, próprio a desfazer todas as enfatuações." p. 18
↳ Aqui talvez esteja o lugar da recusa de Deleuze do tempo e da eternidade

de que fala Pelbart em "Deleuze, um pensador intempestivo". A origem

aqui lembra um pouco a idéia de eterno, porque estaria antes/fora do tempo

histórico e sinalizaria o lugar ideal.

"Enfim, o último postulado da origem, ligado aos dois primeiros: ela seria o lugar da
verdade." p. 18

Recusa da origem em Nietzsche: 1) porque busca a essência; 2) porque pressupõe


um anterior eterno/superior/absoluto; 3) implica essa "essência" como lugar de
verdade.

"Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será,


(...), partir em busca da sua "origem"(...), será, ao contrário, se demorar nas
meticulosidades e nos acasos dos começos (...). O genealogista necessita da história
para conjurar a quimera da origem, um pouco como o bom filósofo necessita do
médico para conjurar a sombra da alma. (...) A história, com suas intensidades, seus
desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes agitações febris como suas
síncopes, é o próprio corpo do devir." pp. 19-20

III. (Genealogia como busca da Herkunft)

"Termos como Entestehung ou Herkunft marcam melhor do que Ursprung o objeto


próprio da genealogia." p. 20

"Herkunft é o tronco de uma raça, é a proveniência; é o antigo pertencimento a um


grupo." p. 20

"A genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma grande
continuidade para além da dispersão do esquecimento. (...) Seguir o filão complexo da
proveniência é, ao contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é própria; é
demarcar os acidentes, os ínfimos desvios — ou ao contrário as inversões completas
— os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que
existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e
daquilo que nós somos não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do
acidente." p. 21

"Enfim, a proveniência diz respeito ao corpo (...) o corpo traz consigo, em sua vida e
em sua morte, em sua força e em sua fraqueza, a sanção de todo erro e de toda
verdade como ele traz consigo também e inversamente sua origem - proveniência. (...)
O corpo — (...) é o lugar da Herkunft." p. 22

"O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (...), lugar de dissociação do Eu,
volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está
portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo
inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo." p. 22
↳ Aqui podemos observar o Foucault que busca a genealogia no corpo sob

dois pontos de vista: que ele escolhe olhar o corpo porque se interessa pela

história do homem sob o aspecto do poder que se exerce sobre os corpos, ou

podemos olhar o Foucault nietzscheano porque ao escolher o corpo associa

o conhecimento à vida "da carne". (Jorge, isso está em Nietzsche e a


filosofia????)

IV. (Entestehung - emergência; surgimento)

"Entestehung designa de preferência a emergência, o ponto de surgimento. É o


princípio e a lei singular de um aparecimento. Do mesmo modo que se tenta muito
freqüentemente procurar a proveniência em uma continuidade sem interrupção,
também seria errado dar conta da emergência pelo termo final." p. 23
↳ "A genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma

grande continuidade." p. 21
"A análise da Herkunft deve mostrar seu jogo, a maneira como elas lutam umas contra
as outras (...)" p. 23
"A emergência é portanto a entrada em cena das forças; é sua interrupção, o salto pelo
qual elas passam dos bastidores para o teatro, cada uma como seu vigor e sua própria
juventude. (...) Enquanto que a proveniência designa a qualidade de um instinto, seu
grau ou seu desfalecimento, e a marca que ele deixa em um corpo, a emergência
designa um lugar de afrontamento; é preciso ainda se impedir de imaginá-lo como um
campo fechado onde se desencadeia uma luta, (...) é de preferência — (...) — um
"não-lugar", uma pura distância, o fato que os adversários não pertencem ao mesmo
espaço. Ninguém é portanto responsável por uma emergência; (...); ela sempre se
produz no interstício." p. 24
↳ seria esse interstício, ou melhor, poderíamos identificá-lo com o

intempestivo segundo Deleuze de que fala Pelbart, que não está nem na

história (no tempo) nem no eterno?

"As diferentes emergências que se podem demarcar não são figuras sucessivas de uma
mesma significação; são efeitos de substituição, reposição e deslocamento, conquistas
disfarçadas, inversões sistemáticas. Se interpretar era colocar lentamente em foco uma
significação oculta na origem, apenas a metafísica poderia interpretar o devir da
humanidade. Mas se interpretar é se apoderar por violência ou subrepção, de um
sistema de regras que não tem em si significação essencial, e lhe impor uma direção,
dobrá-lo a uma nova vontade, fazê-lo entrar em um outro jogo e submetê-lo a novas
regras, então o devir da humanidade é uma série de interpretações." p. 26
↳ cf. "Nietzsche, Freud e Marx" acerca da questão de interpretar as

interpretações.

V. (Relação entre a genealogia da proveniência e da emergência e história -


Wirkliche e supra-história)

"a genealogia é designada por vezes como "Wirkliche Historie"; em várias ocasiões
ela é caracterizada pelo "espírito" ou "sentido histórico"." p. 26
"o sentido histórico escapará da metafísica para tornar-se um instrumento privilegiado
da genealogia se ele não se apóia sobre nenhum absoluto." p. 27
"O sentido histórico, e é nisto que ele pratica a "Wirkliche Historie", reintroduz no
devir tudo o que se tinha acreditado imortal no homem (...). A história será "efetiva"
na medida em que ela reintroduz o descontínuo em nosso próprio ser." p. 27

"Há toda uma tradição da história (teleológica ou racionalista) que tende a dissolver o
acontecimento singular em uma continuidade ideal — movimento teleológico ou
encadeamento natural. A história "efetiva" faz ressurgir o acontecimento no que ele
pode ter de único e agudo. (...) As forças que se encontram em jogo na história não
obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta [o
acontecimento]." p. 28

"o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem referências ou sem
coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos.
Ele tem também o poder de inverter a relação entre o próximo e o longíquo tal
como foi estabelecido pela história tradicional em sua fidelidade à obediência
metafísica." p. 29

"A história "efetiva", (...) lança seus olhares ao que está próximo (...). Ela não teme
olhar embaixo. Mas olha do alto, mergulhando para apreender as perspectivas,
desdobrar as dispersões e as diferenças, deixar a cada coisa sua medida e sua
intensidade. Seu movimento é o inverso daquele que os historiadores operam sub-
repticiamente." p. 29
↳ a inversão de que Foucault fala em "Nietzsche, Freud e Marx": há em

Nietzsche uma crítica da profundidade idealizada.

"última característica desta história efetiva: ela não teme ser um saber perspectivo.
(...) o sentido histórico, tal como Nietzsche o compreende, sabe que é perspectivo, e
não recusa o sistema de sua própria injustiça." p. 30
↳ a história é um "olhar" sobre o passado, não é reconstrução do passado.
VI. (sentido histórico e a história dos historiadores)

"A proveniência (Herkunft) do historiador não dá margem a equívoco: ela é de baixa


extração. Uma das características da história é a de não escolher: ela se coloca no
dever de tudo compreender sem distinção de altura; de tudo aceitar, sem fazer
diferença. Nada lhe deve escapar mas também nada deve ser excluído.: pp. 30-31

"O parentesco do historiador remonta a Sócrates.


Mas esta demagogia deve ser hipócrita. Deve esconder seu singular rancor sob
a máscara do universal. E assim como o demagogo deve invocar a verdade, a lei das
essências é a necessidade eterna, o historiador deve invocar a objetividade, a exatidão
dos fatos, o passado inamovível." p. 31

"A objetividade do historiador é a interversão das relações do querer no saber e é ao


mesmo tempo a crença necessária na Providência, nas causas finais, e na teologia. O
historiador pertence à família dos ascetas." p. 31-32

"Passemos à Entestehung da história; seu lugar é a Europa do século XIX (...). O


próprio da cena em que nos encontramos hoje é representar um teatro; sm
monumentos que sejam nossa obra e que nos pertençam, nós vivemos cercados de
cenários. Mas há mais: o europeu não sabe quem ele é; ele ignora as raças qeu se
misturaram nele; ele procura que papel poderia ter; ele não tem individualidade.
Compreende-se então porque o século XIX é espontaneamente historiador: anemia de
suas forças, as misturas que apagaram todas as suas características produzem o
mesmo efeito que as macerações do ascetismo; a impossibilidade em que ele se
encontra de criar, (...)" p. 32

"O problema do século XIX é não fazer pelo ascetismo popular dos historiadores o
que Platão fez pelo de Sócrates. É preciso despedaçá-lo a partir daquilo que ele
produziu e não fundá-lo em uma filosofia da história; tornar-se mestre da história para
dela fazer um uso genealógico, isto é, um uso rigorosamente antiplatônico. É então
que o sentido histórico liberta-se-á da história supra-histórica." p. 33
VII. (sobre os usos do sentido histórico)

"O sentido histórico comporta três usos que se opõem, (...), às três modalidades
platônicas da história. Um é o uso paródico (...) que se opõe ao tema da história-
reminiscência, reconhecimento; outro é o uso dissociativo e destruidor da identidade
que se opõe à história-continuidade ou tradição; o terceiro é o uso sacrificial e
destruidor da verdade que se opõe à história-conhecimento. (...) Trata-se de fazer da
história uma contramemória e de desdobrar conseqüentemente toda uma outra forma
de tempo." p. 33
↳ Benjamin e "escovar a história a contrapelo".

"Reconhece-se aqui o duplicador paródico daquilo que a segunda Extemporânea


chamava de "história monumental" (...) Trata-se (...) de parodiá-la para deixar claro
que ela é apenas paródia." p. 34

"A história genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de nossa
identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá-la; ela não pretende demarcar o
território único de onde nós viemos, essa primeira pátria [ questão da origem] à qual
os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as
descontinuidades que nos atravessam." pp. 34-35
↳ retoma ao inverso a "história-antiquário"

"Terceiro uso da história: o sacrifício do sujeito do conhecimento. (...) o querer-saber


não se aproxima de uma verdade universal; ela não dá ao homem um exato e sereno
controle da natureza; ao contrário, ele não cessa de multiplicar os riscos; ele sempre
faz nascer os perigos; abate as proteções ilusórias; desfaz a unidade do sujeito; libera
nele tudo o que se obstina a dissociá-lo e destruí-lo." p. 36

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