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Coordenadores

Augusto Jobim do Amaral


Clarice Beatriz da Costa Sohngen
Ricardo Jacobsen Gloeckner

INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA
UMA APROXIMAÇÃO DESDE O PODER DE JULGAR

GABRIEL IGNACIO ANITUA


Gabriel Ignacio Anitua
Copyright© 2018 by Gabriel Ignacio Anitua
Editor Responsável: Aline Gostinski
Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:


Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de
Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
INTRODUÇÃO À
Luis López Guerra
Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da
CRIMINOLOGIA
Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
UMA APROXIMAÇÃO DESDE
Owen M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA O PODER DE JULGAR
Tomás S. Vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

A617i

Anitua, Gabriel Ignacio


Introdução à criminologia [recurso eletrônico] : uma aproximação desde o poder
de julgar / Gabriel Ignacio Anitua ; coordenação [e tradução] Augusto Jobim do Amaral
, Clarice Beatriz Sohngen , [e tradução] Ricardo Jacobsen Gloeckner ; tradução Bruna
Lapporte. - 1. ed. - Florianópolis : Tirant Lo Blanch, 2018.
recurso digital ; 2 MB (Ciências criminais ; 2)

Tradução de: La justicia penal en cuestión: aproximación genealógica al poder de


juzgar.
Formato: epdf
Requisitos do sistema: adobe acrobat reader
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia e índice
ISBN 9788594771926 (recurso eletrônico)

1. Direito penal. 2. Processo penal. 3. Livros eletrônicos. I. Amaral, Augusto


Jobim do. II. Sohngen, Clarice Beatriz. III. Gloeckner, Ricardo Jacobsen. IV. Lapporte, Coordenadores
Bruna. V. Título. VI. Série.
Augusto Jobim do Amaral
18-51107
Clarice Beatriz Sohngen
CDU: 343.1
Ricardo Jacobsen Gloeckner
Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644

12/07/2018 20/07/2018 Tradução de Augusto Jobim do Amaral, Brunna Laporte


É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ e Ricardo Jacobsen Gloeckner
ou editoriais.
A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se
à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.


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Impresso no Brasil / Printed in Brazil


APRESENTAÇÃO DA SÉRIE CIÊNCIAS
CRIMINAIS

Indescritível a honra de podermos disponibilizar ao públi-


co, com o apoio da Editora Tirant Lo Blanch, um espaço singular
para as ciências criminais. Uma Série disposta sobre um campo
de saber interdisciplinar por excelência, politicamente enraiza-
do, e que concerne à responsabilidade de encontros frutíferos
para a decisão sempre urgente de transformar a crise em crítica.
A condição atual de normalização da barbárie punitiva
historicamente fixada e seus permanentes e violentos desdo-
bramentos necessitam de um pensamento agudo que tenha
primordialmente a responsabilidade de questionar este estado
de crise. Diante de tamanha relevância temática, abre-se um
espaço para investigação interdisciplinar crítica que represente
uma ruptura aos esquemas legitimantes postos pelos discursos
tradicionais e que demonstre empenho na desconstrução do
caldo cultural difuso notadamente com traços autoritários. As
inúmeras dinâmicas em matéria de violência punitiva – res-
paldadas por práticas ardilosamente racionalizadas jurídica e
politicamente – em algum sentido, indicam uma biopolítica
preocupada com uma governabilidade forjada por narrativas de
exclusão/morte e funcionalizada pelas rotinas penais.
Às pulsões totalizantes de um poder punitivo, aos afetos
de medo que o monopoliza, bem como às suas técnicas securi-
tárias em escala global, requer-se um enfrentamento que não
pode se furtar ao aporte interdisciplinar. Assim, para interrogar
as tendências e contornos de uma cultura punitiva e estarmos
à altura de tempos urgentes, é que as ciências criminais devem
fundar seu limiar radicalmente. Afinal, mais diretamente, o
que haveria de decisivamente contemporâneo e radical senão
o profundamente im-possível e necessário traço de con-vocação
vi SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA APRESENTAÇÃO DA SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - AUGUSTO JOBIM DO AMARAL vii

ética que a “questão criminal” possa se debruçar? Na fragilida- certamente passa por aí.
de densa da resistência contra os blocos maciços de sentidos Por fim, uma terceira linha a ser contemplada na presente
e racionalidades bem pensantes, diante das tendências justi- Série cuida de apresentar ao público brasileiro jovens pesquisado-
ficantes da imposição violenta de supostos fins “justos”, talvez res, com obras de vanguarda que procuram oxigenar a atmosfera
reste ainda pulsares, como instantes outros que excedam toda neste campo. Muitas vezes, o mercado editorial se encontra fe-
de presença ensimesmada. chado para autores iniciantes e a tarefa desta linha é a de ajudar
Para tanto, como desafio ímpar, a Série Ciências Criminais que o público tenha acesso a um rico material, represado em
foi pensada como abertura fértil a uma qualificada resistência na virtude da conjuntura do mercado editorial brasileiro.
seara do conhecimento pasteurizado sempre pronto a colonizar Portanto, em tempos sombrios de naturalização da
o saber nas ciências criminais. Prima-se por garantir o acesso a violência, sobretudo dos dispositivos de punição, em que o em-
obras fundamentais nas mais diversas dimensões dos debates brutecimento do pensamento toma protagonismo, orientado
relativos à naturalização da violência punitiva. pelos auspícios neoliberais, a urgência radical de alguma inte-
Baseada nesta premissa, a Série possui linhas editoriais ligência disposta a enfrentar a burrice do fanatismo mobilizado
plurais. Sua primeira direção tem como princípio fundamental pelos fascismos como modo de vida atrofiado pelo terror se
ser um canal de acesso às atuais problematizações nos assuntos impõe. O vazio reflexivo ganha eco, matraqueado pelo senso
de interesse às ciências criminais em ampla escala, no Brasil e comum que, em matéria penal, concretamente, não apenas
no exterior. De um lado, aproximar pesquisas no âmbito nacio- franquia a morte em escala industrial operada pelo sistema
nal, dispondo interfaces entre suas produções e experiências, penal, mas forja uma expansiva e permanente tecnologia de go-
por outro, construir traduções e possibilitar o diálogo, pontes verno hábil à eliminação da diferença. Responsabilidade diante
profícuas a privilegiar a diferença. Permitir que se desenhe o este estado de coisas é mais que mera questão de engajamento e
caleidoscópio brasileiro neste campo, juntamente com suas apro- luta, atualmente trata-se de ponto nevrálgico de sobre-vivência.
ximações e distensões ao pensamento alienígena, é contribuir
para o encontro com sua própria singularidade e a possibilidade Porto Alegre, maio de 2017.

de fazermo-nos outros a nós mesmos. Augusto Jobim do Amaral


Uma segunda vertente possui acento na reedição de
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS
obras clássicas do pensamento das ciências criminais. A difi-
Pós-Doutor em Filosofia Política pela Università Degli Studi di Padova/ITA
culdade em se encontrar obras esgotadas, vindas do Brasil e do Pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universidad de Málaga/ESP
exterior, que ainda hoje são merecedoras de atenção crítica, Doutor em Altos Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra/POR
encontra-se na base desta linha preocupada com a genealogia
do pensamento crítico nas ciências criminais. Emergências
estas que, quiçá, acabaram se desviando das principais tra-
jetórias editoriais, habitando injustificável espaço restrito às
discussões de pós-graduação, ou um número pequeno de lei-
tores. Nas frestas de uma memória reverberam outros futuros
possíveis. Revigorar o debate científico nas ciências criminais
SUMÁRIO

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3

APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

CAPÍTULO 1
AS ORIGENS DAS ESTRUTURAS JUDICIAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

CAPÍTULO 2
O PODER DA JURISDIÇÃO COMO ATRIBUTO DA SOBERANIA . . . . 41

CAPÍTULO 3
A REFORMA LIBERAL E O JUIZ DA LEI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

CAPÍTULO 4
O PODER DOS JUÍZES E O MODELO DA “INDEPENDÊNCIA” . . . . . . 89

CAPÍTULO 5
O ATIVISMO JUDICIAL NO ESTADO SOCIAL E SUA CRISE . . . . . . . 103

CAPÍTULO 6
A “JUSTIÇA ATUARIAL”: O MODELO DA JUSTIÇA NEGOCIADA . . . 123

PALAVRAS FINAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

OBRAS CITADAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151


PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

O estudo realizado pelo Professor Gabriel Ignacio Anitúa,


intitulado nesta versão brasileira como “Introdução à Crimino-
logia: uma aproximação desde o poder de julgar”,1 corresponde a
mais um de seus vigorosos e potentes trabalhos críticos. Como
o leitor poderá acompanhar, coloca em discussão um objeto de
estudo não raro ignorado pela criminologia dita crítica ao longo
da história. Por isso, desde logo, o destaque dado pela mudança
do título original.
Enfatiza, com efeito, a curiosa falta de obras criminológi-
cas dedicadas a uma análise mais profunda e verticalizada das
estruturas de poder emaranhadas no campo do poder judiciá-
rio. Ao longo das últimas décadas a criminologia crítica elegeu,
como objetos primários de análise, apontar como aspecto cen-
tral no sistema punitivo, as agências penitenciárias e policiais.
As tensões na proximidade entre estes dois espaços de poder
autorizaram, em geral, a criminologia a elencá-los como obje-
tos par excellence do campo criminológico crítico. A modulação
das agências penitenciárias e policiais a partir das estratégias
disciplinares, como acentuou Foucault2, permitiu a ubiquidade,
quase-indistinção entre códigos, normativas, procedimentos
e práticas. O continuum entre modelos penitenciaristas e os
códigos de comportamentos sociais através de uma ortopedia
moral correspondente a fazer o corpo atuar em prol de um
regime de produção (a educação para um modelo de produção

1. Originalmente possui um título pouco diverso: La Justicia Penal en Cuestión:


Aproximación genealógica al poder de juzgar. Madrid: Iustel, 2017.
2. Cf. FOUCAULT, M.. A Sociedade Punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). São Paulo:
Martins Fontes, 2015.
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capitalista, como acentuaram Melossi e Pavarini3 ou a docili- ou sociológicas se conectou fortemente aos aparatos policiais,
zação dos corpos, segundo Foucault4) indicava claramente um que deveriam, por seu turno, criar condições para o desen-
deslocamento pulsante. Fazer operar todo um aparato de dispo- volvimento de uma “prisão a céu aberto”, isto é, estabelecer
sitivos de vigilância que analisam, medem, cercam e constroem tecnologias sobre o corpus social. Por isso se pode falar em
seus objetos. A criminologia “psi” que acabara de se constituir relações comensais entre ambos os campos, que se nutrem de
não somente, mas inevitavelmente por intermédio da prisão, determinados regimes de enunciados em comum. Com efeito,
como um laboratório de detecção de “anormalidades” foi o cor- na base do penitenciarismo e da literatura criminológica poli-
relato efeito próprio das tecnologias policiais postas em atuação cial, constata-se uma recorrente interpenetração, mobilizada
a partir do século XVIII e XIX. Tecnologias estas que atingiam a pelo positivismo criminológico. Seja como for, parece pouco
formação de determinados enunciados sobre o humano, uma discutível esta trama entre ambos os campos.
antropologia do comportamento desviante, modulada a partir Evidentemente, identificado este problema, não é difícil
das ciências ditas humanas. reconhecer que pouco crédito deu a criminologia às atividades
Em ambos os lados – quer “internos” quer “externos” à jurisdicionais. Em outras palavras, a jurisdição acabou como
prisão –, o dispositivo policial atravessa os corpos, operando que isolada da crítica criminológica, como Iñaki Anitúa in-
na construção de um homo faber capaz de responder às osci- siste desde o princípio. E, como o leitor poderá verificar por
lações do mercado de trabalho. A prisão, operada a partir da conta própria, a magistratura, a jurisdição, o direito, enfim,
conjugação de dois princípios (o princípio da equivalência5 e não performam uma dialética de oposição diante das agências
o da less eligibility6) servia plenamente à disciplinarização do penitenciárias e policiais. Senão que são regidas também por
corpo social e à construção de uma subjetividade que formaria certas lógicas que, se não são bem exatamente aquelas da disci-
sujeitos que decidiriam, “livremente”, pela alocação de sua força plina (já que a disciplina seria um contra-direito, como acentua
de trabalho em prol do grande capital. A revolução industrial Foucault), consistem em dispositivos de garantia da ordem.
e o progressivo amontoamento de pessoas nos grandes cen- A literatura criminológica, mesmo aquela de corte críti-
tros urbanos introduzia e requisitava, portanto, os dispositivos co, evidentemente permeada por algumas exceções, trata de
policiais que atuavam na proteção de bens e interesses reivin- imunizar o judiciário daquelas críticas que são constantemente
dicados pelo tiers état. endereçadas às agências policiais e penitenciárias. O funciona-
Desde aí, as práticas normalizadoras, que iam das casas de mento das cortes, dos juízes, de seus funcionários, dos agentes
correção às fábricas ou ainda, dos códigos de conduta atuados do Ministério Público não é completamente estranho à mesma
pela polícia aos palácios de justiça performaram uma linha que engenharia (seja ela policial ou penitenciária), responsável pela
se constituiu, na literatura criminológica, como defesa social. garantia da ordem pública7. Tradicionalmente, ao menos no
De toda forma, como objetos privilegiados, o penitenciarismo Brasil, a própria criminologia crítica deposita uma confian-
e sua epistemologia de variantes biocentristas, psicologizantes ça extrema nestes agentes, esquecendo-se de descortinar os
3. MELOSSI, D.; PAVARINI, M.. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário. Rio de
horizontes de produção normativa, de estabelecimento de
Janeiro: Revan, 2006. standards de decisão e especialmente, de conectar tais práticas
4. FOUCAULT, M.. Vigiar e Punir. 20 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
5. Cf. PACHUKANIS, E. B.. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica, aos préstimos que o judiciário ofereceu em todos os episódios
1988.
6. Cf. RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O.. Punição e Estrutura Social. Rio de Janeiro: Revan, 7. Cf CAMPESI, G.. Genealogia della Pubblica Sicurezza: teoria e storia del moderno dispositivo
2004. poliziesco. Verona: Ombre Corte, 2009.
6 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA 7

de subversão democrática. O que equivale hoje a dizer: um Buzaid e Nelson Hungria, apenas para citar dois exemplos. Isto
corpo burocrático de alto nível que repristina categorias herda- para não falar do papel alienado da doutrina, que tece elogios e
das do fascismo italiano (como no caso brasileiro), desvelando celebra a atuação de tais intelectuais de forma apartada de suas
uma cultura conservadora acrítica e antidemocrática, que se atividades políticas.
encarrega de obstaculizar, através de sua atuação política, im- Na atual conjuntura, a débil democracia brasileira foi
portantes reformas no campo do direito e processo penal (basta atingida em cheio através de uma atuação do Poder Judiciário
vermos as distintas manifestações destas agências em torno e do Ministério Público que não se esgotou com a interferên-
dos projetos de código penal e de processo penal). Além disso, cia política. Evidentemente, um ativismo judicial desmedido
constata-se uma sólida base cultural que enfrenta as mudanças tratou de progressivamente minar as bases da Constituição.
– especialmente aquelas ligadas à introdução de mecanismos O caso do desmanche de direitos fundamentais – em paralelo
que induzem refreamento às posturas inquisitoriais – como um àqueles dos direitos sociais levados a cabo pelo atual governo
perigo à ordem pública (veja-se o caso brasileiro das cautelares – se tornou possível graças à atuação do STF, um organismo
diversas da prisão). judicial que lembra uma caricatura de Corte Constitucional,
Além deste cenário que por si mesmo seria problemático que tem chancelado posturas, práticas e condutas de agentes
ao extremo, não se pode descurar das relações políticas entre públicos que lembram períodos muito duros da ditadura civil-
judiciário e regimes de exceção8, através da adoção de uma -militar brasileira. A juristocracia10 brasileira implementada
“legalidade autoritária”, que encobriu, sob o manto de uma com a sustentação de boa parte da doutrina constitucionalista
pretensa legitimidade, uma distribuição de castigos marca- (o celebrado “pós-positivismo” ou um “anything goes constitu-
da pela irracionalidade. E isto é particularmente importante cional”), serviu para que o sistema punitivo brasileiro, de feição
porque nos períodos em que mais de necessitou do judiciário, marcantemente autoritária, fosse reforçado. Basta-se verificar
ele foi conivente, ou melhor, subserviente aos poderes de oca- os atuais argumentos que autorizaram a “revogação” da presun-
sião.9 A aparência de atuação secundum legem permitiu, como ção de inocência no Brasil.11
nos casos italiano, alemão e brasileiro, para ficar com estes Cabe, então, por oportuno dizer, que as práticas puniti-
exemplos, que este corpo burocrático de alto escalão passasse vas encontradas no Brasil (e que se poderiam estender a muitos
incólume pelas transformações estruturais que recaíram sobre outros países), são o fruto de uma transversalidade constitutiva
a conformação do Estado. No caso brasileiro, a situação é ainda do poder punitivo, que não deixa de ecoar no campo do judiciário
pior, tendo em vista que estruturas importantes do Estado se lato sensu (compreendendo aqui todos os agentes que funcionam
mantiveram intactas, mesmo com a Constituição de 1988. A como câmeras de ressonância de uma tecnologia policial). O que
transição entre os períodos de exceção e o restabelecimento causa espécie é certo tom melancólico adotado em geral pela cri-
democrático praticamente blindou tais agentes contra as con- minologia crítica sobre a base de atuação de tais agentes, como
sequências de seus atos. No caso brasileiro, inclusive, alguns se esperasse um agir diferente, em consonância com um “direito
expoentes do regime político ditatorial foram elevados a Mi- penal liberal”, que paradoxalmente é o caminho natural pelo qual
nistros do Supremo Tribunal Federal, como o caso de Alfredo
10. Cf HIRSCHL, R.. Towards Juristocracy: the origins and consequences of the new
8. PEREIRA, A.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2007.
e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 11. AMARAL, A. J. do; CALEFFI, P. S. P.. “Pré-ocupação de inocência e a execução provisória
9. RECONDO, F.. Tanques e Togas: O STF e a Ditadura Militar. São Paulo: Companhia das da pena: uma análise crítica da modificação jurisprudencial do STF”. Rev. Bras. de Direito
Letras, 2018. Processual Penal, Porto Alegre, vol. 3, n. 3, p. 1073-1114, set.-dez., 2017.
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a defesa social cruza as três distintas agências aqui referidas. A em manifesto sua violência e suas brutais pretensões de poder.
inusitada confiança depositada pela criminologia crítica no ju- Que sobre a capa da universal imparcialidade posta como
diciário reflete, de forma muito clara, o sucesso das estratégias ideologia oficial seja ex-posta a nada ingênua perversão de
de descolamento do judiciário das instituições penitenciárias e suas razões particulares.
policiais. O elemento que garantiu o encobrimento, durante largo A atual conjuntura político-criminal, espelhada em de-
período, foi a predominância de certo modo de decisão, que de- cisões inclusive das Cortes Superiores que flagrantemente
veria se dar em consonância com alguns significantes reitores, desrespeitam a Constituição, apenas marca mais um instante
mesmo que sempre à disposição para “torções ou giros autoritá- triste do profundo caldo cultural autoritário que experimen-
rios”. O liberalismo penal, em grande medida, configura-se como tamos por tradição no Brasil, reatualizado por um racismo de
uma constelação em que os enunciados políticos são diametral- classe, mas que nada dista da rotina naturalizada de violências
mente opostos de suas práticas empíricas. Ao largo da história, o seletivas, institucionalizadas e amparada categoricamente, não
liberalismo penal foi incapaz de se colocar como um verdadeiro apenas por largo espectro midiático, mas por atores de Estado
óbice aos excessos e práticas penais irracionais. Talvez, com o mo- que ganharam protagonismo inédito e que acabam por orientar
vimento juristocrático brasileiro, as coisas tenham sido colocadas a persecução criminal.
às escâncaras e, enfim, as tecnologias policiais tenham deixado de
se camuflar nas sombras de princípios, regras ou tipos penais, para A dinâmica das megaoperações policialescas e seus me-
serem solenemente ignoradas pelos agentes públicos. Há uma ine- gaprocessos nada menos arbitrários, vertidos sob o slogan
gável mudança no ambiente político do judiciário, autorizando, do “combate à corrupção” – que a justiça criminal brasileira
portanto, que suas práticas já não mais tenham como base uma aprendeu a importar tardiamente, pouco importando ao menos
lei (que não deixa de ser o resultado de jogos de poder, como ex- se questionar o que tais práticas acarretaram de concreto nas
ploraram Chambliss e Seidman pela pista foucaultiana12), mas que experiências dos países que as realizaram, a saber, nada de
possam ser chanceladas como uma resposta idiossincrática para decréscimo nas práticas de corrupção, todavia um sensível
o mal-estar generalizado da violência e da corrupção no Brasil. aperfeiçoamento nas suas performances –, constroem algo
como que um arcabouço narrativo de arranque sobre o qual
Em particular, tomando com urgência o caso brasileiro, e irá se debruçar toda e qualquer hipótese no processo penal, seja
seu protagonismo judicial em termos de uma governamentali- ela acusatória ou defensiva, e orientará todos seus movimentos
dade punitiva, cabem ainda algumas notas. Se algum exercício e estratégias – algo como uma “pretensão delatória”, bem ao
cínico pode ser capturado nestas performances atuais dos agen- gosto da genealogia do poder de julgar inquisitorialmente posto
tes judiciais, das mais diversas maneiras, serão tanto a farsa e magistralmente examinado por Iñaki Anitua.
quanto o ridículo convidados privilegiados. No cinismo, prin-
cipalmente como racionalidade em termos de poder de julgar/ Passando longe de qualquer pré-ocupação de inocência
punir, nada cabe de (auto)crítica, pois, afinal, sabem muito democraticamente concebida, produzem-se subjetividades
bem o que fazem, mas ainda assim o fazem. jurídicas (atores político-criminais) que, forjadas oportunis-
ticamente sem perder tempo, pois angustiados pela eficiência
Contra isso, sempre caberá um esforço em expor as im- punitiva, amparam-se no cinismo dos “jogos processuais” e des-
posturas do ridículo que coloca sob a matéria de decisão penal tilam o medo como estratégia. Cinismo e medo, eis os afetos
12. Cf. CHAMBLISS, W.; SEIDMAN, R.. Law, Order & Power. 2 ed. London: Addison-Wesley, político-criminais centrais nestes contextos.
1982.
10 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA 11

Sendo assim, o roteiro de uma criminologia midiática, neste campo, principalmente em tempos nos quais se pretende
instrumento de um populismo punitivo que é, dinamiza um esvaziá-lo. Iñaki Anitua segue este esforço de crítica ao que se
autoritarismo cool. A pornografia penal terá um duplo e com- passa, engajando-se, neste que é um dos seus mais apurados
plementar cenário: para a patuleia, costumeira clientela do estudos de história do presente.
sistema penal, um vasto cardápio de programação televisio- Talvez nunca antes o alerta de Foucault devesse ressoar
nada na rotina policialesca “em ação”, entretanto, para a casta tão fortemente: “os juízes só são visíveis de vermelho”14. A
privilegiada, a ode punitiva deverá ter outra roupagem, afinal justiça só interessará ao público em sua forma aguda, lá onde
deve ser retratada através de capítulos diários como qualquer há crime, tribunal criminal, jogo da vida e da morte. Isto deve
enredo de novela e finamente contornados por “delações” va- ser explicado ao menos tendo em vista um duplo movimen-
zadas e veiculadas por veículos da grande mídia anêmica de to identificado pelo professor francês. A justiça envelopada
democracia. Tudo amparado, enfim, por decisões judiciais “im- por uma “administração” equiparável aos demais poderes do
parciais”. Portanto, a governabilidade de um dispositivo judicial Estado sofreu um duplo movimento, um para frente e outro
inquisitivo não cessará em demonstrar suas reconfigurações. para trás: por um lado, deixa escapar todo um domínio, cada
Que o discurso crítico, por sua parte, também não ignore sua vez maior, de negócios que se regulam atrás de si (como as
responsabilidade em antever ambas implicações para além de contendas no plano econômico) e, além do mais, desvia-se,
sua arrogância desastrosa. profundamente, das funções “sociais” de cuidado cotidiano.
Que isto seja afeito a regimes que não se conformam à de- Por certo que ela não deve se portar apenas como uma for-
mocracia não é necessário dizer. O trabalho de Iñaki Anitúa se taleza (ainda que o acesso a ela possa por vezes isto representar),
situa neste espaço deixado quase em branco pela criminologia mas é irônico que ela seja flexível, permeável, transparente. Em
crítica. A força de seus argumentos, desde a base genealógica seus terrenos é a organização da desordem que produz efeitos
à crítica ao ativismo e atuarialismo demonstram, à saciedade, úteis. No mecanismo judiciário que vela por nós, a desordem
que se torna uma tarefa inadiável examinar, mais detidamen- produz a ordem. Sobretudo, de três maneiras fundamentais:
te, este aparato coercitivo. produz “irregularidades aceitáveis” ao abrigo das quais nos
Fazer uma política da criminologia pode ser muito mais achamos numa tolerância consentida por todos; produz “dis-
frutífera que qualquer análise de política criminológica, ou simetrias utilizáveis”, assegurando, a alguns, vantagens que não
ainda de uma criminologia política, mesmo ambas sedizentes têm outros que as desconhecem ou não podem tê-las; enfim,
críticas. Trata-se, em resumo, de ver a criminologia não apenas sobremaneira, produz aquilo de mais alto valor nas civilizações
como saber, inclusive político e crítico, mas como um campo de como a nossa – a ordem social.
intervenção permanente, lugar de uma política da criminolo- Portanto, enormes ressonâncias de Kafka, em que o retrato
gia. Portanto, levar a sério a pista que Sandro Chignola aponta do aparelho judiciário condiz com uma destas maquinarias de
quando escreve “Foucault oltre Foucault: una política della filo- Jean Tinguely, “cheias de rodagens impossíveis, de lâminas que
sofia”13, propriamente quanto ao sentido subjetivo do genitivo nada arrastam e engrenagens que fingem: todas as coisas que
“della”, ou seja, fazer política por meio da criminologia. Uma
criminologia que se permita fazer política, que se posicione
14. FOUCAULT, Michel. “O Limão e o Leite”. In: Repensar e Política. Coleção Ditos e Escritos VI.
13. CHIGNOLA, Sandro. Foucault oltre Foucault. Uma política della filosofia. Roma: Organização e seleção de textos Manuel Barros da Motta. Tradução de Ana Lúcia Paranhos
DeriveApprodi, 2014. Pessoa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 237
12 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA

´não funcionam´ fazem com que ´isso ande´.”15 Precisaremos


referir em específico, o caso brasileiro, ou em alguma medida
todos nossos sistemas judiciários latino-americanos atuais, e
apontar o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário como
avalista da desigualdade e das relações vigente de dominação? APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
Tal tarefa pode ser movida adiante. E aqui, o leitor encon-
trará uma fonte inesgotável de inspiração, que permitirá a todos Gabriel Ignacio Anitua
aqueles inconformados com a atuação deste órgão, perspectivar
saídas e encontrar argumentos fortes o suficiente para sustentar É motivo de orgulho que meu recente trabalho tenha uma
as necessárias linhas de fuga. Como em tantos outros escritos, versão para ser lida no Brasil. Por isso meus sinceros agradeci-
o trabalho do professor argentino é impecável, indicando que mentos aos colegas Augusto Jobim do Amaral e Ricardo Jacobsen
a criminologia crítica deve se ocupar deste campo, repleto de Gloeckner, com quem compartilho muitos interesses acadêmi-
contradições performáticas e que merece ser vigiado mais de cos e também preocupações cidadãs.
perto por aqueles preocupados com os rumos das democracias
É precisamente por estas últimas preocupações que me arris-
contemporâneas.
co a falar oportuna e humildemente, desde as sugestões propostas
Porto Alegre, março de 2018. neste livro, da investigação sobre a questão judicial, perspectiva a
Augusto Jobim do Amaral qual não duvido será ampliada com estudos mais concretos acerca
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS do sistema da justiça penal brasileiro.
Pós-Doutor em Filosofia Política pela Università Degli Studi di Padova/ITA
Pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universidad de Málaga/ESP
Que estas investigações se desenvolvam é uma verdadeira
Doutor em Altos Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra/POR necessidade, atentando-se para a infeliz situação do tema aqui
tratado. Outra vez com a imagem do início de “Anna Karenina”,
parece que a forma particularmente infeliz com a qual a justiça
Ricardo Jacobsen Gloeckner no Brasil aparece necessita muito mais do que investigações teó-
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS ricas ou empíricas desde o âmbito acadêmico.
Pós-Doutor em Direito pela Università Federico II/ITA
Doutor em Direito pela UFPR. Desde a sempre próxima Buenos Aires observei, com
especial preocupação, o processo judicial que desaguou no
impeachment de Dilma Rousseff, em abril de 2016, e a irre-
gular situação política que isso gerou. Assim como também
as posteriores persecuções contra Luiz Inácio Lula da Silva,
o candidato com maior intenção de voto popular segundo as
pesquisas, que em janeiro deste ano recebeu a confirmação
da sentença de condenação por parte dos desembargadores
João Pedro Gebran Neto, Leandro Paulsen e Victor Luiz dos
Santos Laus. Eles elevaram a condenação de nove anos e meio
15. FOUCAULT, Michel. “O Limão e o Leite”, pp. 238-239. para doze anos e um mês de prisão e, mais importante ainda,
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intervieram assim diretamente no jogo político eleitoral. Essa para o futuro do Brasil, que constitui o processo em curso há
hiperatividade e velocidade judiciais encaminham-se, ao que mais de vinte anos, do hiperencarceramento ou encarceramen-
parece, para revogar a candidatura ou para impedir a assunção to em massa. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional,
presidencial de Lula – caso o jogo jurídico de recursos tenha havia 622.202 presos em 2016 (com um aumento de 167% desde
êxito, faça-o participar da eleição e a vença – como se vaticina. o ano 2000). O Brasil tem a quarta maior população carcerá-
Esses são dados de um contexto no qual a justiça penal, junto ria do planeta, atrás de Estados Unidos, China e Rússia. Esses
com os meios de comunicação, aparece como uma das principais dados devem ser vistos como a expressão quantificável de todo
ferramentas políticas capazes de estabelecer um modelo contrário um sistema geral de controle da população pobre e vulnerável
à vontade popular, mas que provavelmente conseguirá aumentar a através da violência estatal.
insegurança e a ingovernabilidade nas quais afundou a cidadania Tanto nas violências exercidas pelo sistema penitenciário
no Brasil. e policial quanto na desorganização política e social do país os
No dizer de Boaventura de Sousa Santos “o sistema judi- juízes penais têm uma clara responsabilidade.
cial, que tem como sua função a defesa e a garantia da ordem É por isso que parece uma obviedade predicar a mencionada
jurídica, transforma-se em um perigoso fator de desordem jurí- necessidade de refletir como cidadãos e estudar como acadêmi-
dica”. Explica o respeitado professor português, através do que cos a questão da justiça penal no Brasil. Especialmente, creio, é
ele considera como medidas judiciais flagrantemente ilegais e uma obrigação para os formados nas disciplinas jurídicas, como
inconstitucionais, a seletividade grosseira do zelo persecutório, os próprios juízes e todos aqueles que levam a sério o projeto
a promiscuidade aberrante com os meios de comunicação ao político do assim chamado “Estado de Direito”.
serviço das elites políticas conservadoras, e outras situações nas Para além do fato de que esse tema do poder judicial deveria
quais a justiça penal é protagonista, conformando “uma situação ser o objeto de atenção de todas as disciplinas que afirmam estudar
de caos judicial que ressalta a insegurança jurídica, aprofunda a o direito e o sistema penal, certo é que isso não ocorre no “Direito”
polarização social e política e põe a própria democracia brasileira que se ensina nas universidades brasileiras (nem nas argentinas),
à beira do caos”. instituições destinadas a formar estes mesmos operadores jurídi-
Em todo caso, esse protagonismo político do sistema de cos. Nem mesmo se ensinam as leis orgânicas ou de organização
justiça penal brasileira é muito destacado, muito visível. Desde do poder judicial e do Ministério Público. Na melhor das hipóte-
distintas partes do mundo se adverte, geralmente com preocu- ses, algo desta temática é abordado nas disciplinas vinculadas à
pação, e através da principal fonte de iluminação (os meios de sociologia ou à chamada “criminologia”. Mas isso somente ocorre
comunicação) como algo inclusive “brilhante”. É, com efeito, quando esta supera os velhos preconceitos positivistas que a li-
uma espécie de “cifra luminosa” da atuação do sistema de jus- mitavam à análise do “delinquente”. Qualificou-se este tipo de
tiça criminal. criminologia como “crítica”, situada nesse “campo polivalente”
Não obstante, minha preocupação também descansa, (nos dizeres de Enrique Marí) de estudo sobre os problemas jurídi-
como aparece no livro, sobre a “cifra obscura” dessa atuação co-penais, que excede o marco teórico e metodológico tradicional
judicial desde a qual diretamente provoca outros efeitos no das ciências jurídicas e que opera nos confins da política, da socio-
querido país irmão que igualmente me assustam. Refiro-me a logia, da antropologia, da psicologia e outras ciências sociais. Isso
esse outro fenômeno, menos visível, mas igualmente perigoso também foi apresentado como sociologia jurídica ou sociologia
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do direito, e em outros lugares como socio-legal studies, law in aos métodos fragmentários, assistemáticos e avalorativos que
context, law and society studies etc. Não faltam expositores destas imperam nas “distintas” ordens das disciplinas.
matérias em idioma português. Quem mais contribuiu para am- Estas “disciplinas” às quais se deve recorrer pertencem
pliar esta forma de observação sobre o poder judicial foi, em nosso principalmente ao campo das ciências sociais, uma vez que no
meio, Boaventura de Sousa Santos (veja o capítulo 3 do livro Socio- sistema penal aparecem questões que vão para além das leis
logía Jurídica Crítica: para un nuevo sentido común en el derecho, específicas, e portanto, não são compreensíveis somente desde
Madrid, Editorial Trotta/ILSA, 2009), o qual também pode ser uma postura jurídica positivista (aquela é parte integrante,
incluído na grande equipe de referências da criminologia crítica. também, do sistema social e por isso participa de seus limi-
Nesse marco incluo as páginas que agora apresento, ad- tes). Por isso, a revisão desde o enfoque sociológico de qualquer
vertindo que ainda que se tenha enfatizado historicamente, a instituição penal resulta imprescindível. Mas não é somente
perspectiva crítica recebe a influência da sociologia e da política, necessária a sociologia, já que na justiça penal se aproximam
o que não é exclusivo deste trabalho nem da perspectiva crítica. questões políticas e éticas fundamentais para a nossa vida em
A complexa tarefa de politizar e sociologizar a questão ju- sociedade.
dicial penal é advertida inclusive na descrição (e crítica, via de A análise jurídica não está, nem deve estar cega relativa-
consequência) das normas jurídicas e também das decisões ju- mente aos seus pressupostos ideológicos concretizados nas
diciais concretas. Contudo, entendo que se deve ir além disso instituições terminais, que finalmente determinarão o seu con-
para compreender qualquer fenômeno que se relacione com o creto agir social.
sistema penal. Nesse sentido, parece necessário analisar a con- É por tudo isso que o jurídico não se pode traduzir como
formação e funcionamento atual das agências judiciais e do “técnico” e o aporte das outras disciplinas, sobretudo de tom
Ministério Público. descritivo das realidades, impõe já não apenas a reflexão pro-
Uma tarefa que requer algum tipo de transdisciplinarida- priamente jurídica, mas também política. A necessidade que
de. Uma vez que o sistema penal “é induvidosamente um objeto assinalo é a de inserir a análise jurídica (e não por acaso quando
de conhecimento multifacetado ao qual não se pode acessar esta análise entre em campo com as instituições do sistema penal
mediante uma única descrição normativa (Bergalli, Roberto, e mais concretamente, com as da justiça penal), dentro de esque-
Control Social Punitivo. Sistema Penal e Instancias de Aplicación: mas políticos mais globais. O objetivo declarado é o de conseguir
Policía, Jurisdicción y Cárcel, Barcelona, M. J. Bosch, 1996, p. transformações jurídicas e, portanto, políticas e sociais.
VIII), o estudo de quaisquer de suas instituições torna necessário Desta forma, o enfoque transdisciplinar que se propõe no
e imprescindível este recurso às distintas disciplinas que incluem livro tenta compatibilizar as melhores expressões da sociologia,
a filosofia, a antropologia, a sociologia, a história, a psicologia, da antropologia e da história, com os limites filosóficos e po-
entre várias outras. Faz-se necessário, assim, colocar em crise lítico-penais próprios do pensamento ilustrado, que o direito
aquela compartimentalização que obrigava e legitimava a divisão penal atual reflete no garantismo, este último capaz de colocar o
em “disciplinas”, tanto dentro do direito como do direito no seio indivíduo em uma posição privilegiada, e também na “racionali-
do conhecimento sobre o social. Retomando antigas reflexões dade” ligada a valores finais como o de pacificação e participação
dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt, verificou-se a democrática e igualitária.
necessidade de se recorrer a outro tipo de investigações alheias
Tudo isso supõe um posicionamento expressamente
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político, o que certamente forma parte da criminologia crítica que inclusive a tarefa descritiva alcança com esta visão um com-
que compartilhamos com os muito valiosos expoentes desta ponente político prático vinculado à denúncia e à reforma ou à
tendência no Brasil. mudança. Trata-se, assim, de reiterar a importância destes temas
São tantas e de tão boa qualidade as investigações feitas e instituições para realizar um saber comprometido com a polí-
pelos meus colegas brasileiros que a isso pouco um argentino tica penal ou criminal de determinada feição.
poderia agregar, que apenas conhece essa realidade criticável. Creio que se deva comemorar que se publique este livro aqui
De fato, se menciono as preocupações vinculadas à violência e agora, quando a necessidade de pensar e transformar os poderes
social e estatal no Brasil, é pela grande quantidade de produ- judiciais e o Ministério Público se tornam iniludíveis em “Nos-
ção sobre os problemas penitenciários e policiais que produz a samérica”, e em particular no Brasil.
criminologia crítica brasileira. Sem ignorar a importância que continuam tendo as agên-
Não obstante, esta visão crítica não parece estar tão pre- cias policiais e aquelas relacionadas ao castigo, se poderia
sente nas investigações atuais sobre o judiciário, que dada a sua afirmar que da sorte das agências judiciais depende em grande
escassez, devem ser sempre agradecidas, de todas as maneiras. medida as das outras duas, supostamente vinculadas a ela por
Se é um fato grave que não se investigue o agir dos juízes, sua direção e controle.
membros do Ministério Público e dos defensores, e se analisem Não apenas dali vem a sua importância. Em grande medida
desde o exterior de suas instituições corporativas as diversas compartilho o que foi assinalado, com genial redação, pelo meu
formas de organização, muito mais grave é que isso deixe de se professor Edmundo Hendler, quando afirma que “da trilogia
fazer desde postulados políticos e acadêmicos progressistas ou que conforma delito, processamento e castigo não apenas o se-
de esquerda. A criminologia crítica brasileira deve se ocupar desta gundo é mais importante; bem se poderia pensar que o castigo
tarefa e tenho fé de que seus promissores cultores o estão fazendo seja apenas o pretexto para dar lugar ao processamento” (Hen-
através de investigações concretas. dler, Edmundo, “Enjuiciamiento penal y conflictividad social”,
A atenção que neste livro se dedica à “questão judicial” signi- in Maier, Julio; Binder, Alberto (comps.), Homenaje al Prof.
fica um aporte desde a história e desde certas tendências globais David Baigún, Buenos Aires, del Puerto, 1995, p. 378).
(como aquela do atuarialismo) que entendo terem influência E assim, para além de sua importância, o certo é que o
também no Brasil. Mas também se propõe, reitero, a necessária processamento é a parte mais crítica deste trio. E que por sê-lo
politização destas perspectivas e do método transdisciplinar, que tem a potencialidade de ser a menos violenta, capaz de reduzir
é a verdadeira matriz que assegura uma reflexão moral. ou sair das violências que justificam que falemos de delitos e
Este livro é, então, uma nota para se colocar o sistema de de castigos. Mas a violência e a dor, em verdade, subsistem,
justiça penal como o principal objeto de atenção de uma cri- formam a parte essencial de nossas disciplinas penais, e a base
minologia crítica ou sociologia jurídico-penal no Brasil. Mas com a qual estamos acostumados a trabalhar: juízes, promoto-
uma crítica que não se descole e, pelo contrário, que mantenha res de justiça e defensores.
pontos em comum tanto com os estudiosos do direito penal A análise própria destes personagens e das organizações que
como de seus operadores jurídicos. integram o juízo, o direito e o direito penal em particular, mos-
Esse objetivo deve ser ineludivelmente político, e é por isso tra-nos que estas agências nem sempre se opõem à violência, já
que muitas vezes apenas a refletem e a legitimam. O paradoxo e
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a ambivalência das já criticadas análises “formais”, não obstante, Isso deve ser advertido especialmente pelos próprios
permitem ao direito se diferenciar da violência ou, em todo o caso, membros do poder judiciário brasileiro, que assim poderiam
sublimá-la. Isto não é necessariamente negativo, pois, como disse evitar a espiral de violência e descrédito nas quais eles pró-
Eligio Resta (na La certeza y la esperanza. Ensayo sobre el dere- prios cairão, mais cedo ou mais tarde. Os setores majoritários
cho y la violencia, Barcelona, Paidós, 1995), é possível “enganar” a da justiça penal devem ser valentes, serenos e cautelosos para
violência através do direito como produto cultural, e este pode se conseguir a contenção da própria violência e aquela que se
constituir em uma “mentira nobre” que convença a todos e per- estende socialmente. Ainda há tempo de cumprir a sua parte
mita no futuro iludir assim a violência. Contudo, isso deve ser de responsabilidade na consolidação da ordem e da convivên-
pensado e planificado para que assim suceda, e deve conter esses cia democráticas, limitando especialmente a violência que se
componentes voluntários mínimos de pacificação e democratiza- exerce, interna e externamente, a serviço de interesses cor-
ção. Deve-se problematizar a “questão judicial” através da chave porativos, usualmente muito poderosos. Por detrás disso, as
política da pacificação, democratização e igualdade. instituições de controle (e também de cidadania) devem estar
O modelo de organização da justiça e do direito penal rela- preparadas para impedir a reiterada prevaricação e abusos ju-
cionado com o sistema de justiça penal, que também se propõe diciais, muitas das vezes em consórcio com comunicadores
neste texto, aponta nesta direção. O direito garantidor de que se sociais irresponsáveis e políticos incapazes.
fala, inclusive com uma única dimensão processual e agnóstica, Enfim, nem de longe com estas palavras e com este livro
ademais de incorporar o rechaço à violência, permite elaborar que se apresenta esgota-se a amplitude de aspectos necessá-
um critério jurídico que outorgue pautas para a articulação de rios a serem analisados criticamente. Muito mais há para ser
políticas democráticas e que nos afaste da violência da cultura estudado e proposto rapidamente como objeto de atenção.
atual sem impor outra mais poderosa. Essa alusão à democracia Confio nestas investigações futuras, realizadas talvez pelos
implica a distribuição igualitária, pois deve facilitar o gozo dos leitores e leitoras com quem se pretende manter um diálo-
bens materiais a todas as pessoas, e também outro tipo de re- go fecundo.
cursos que deem conta de uma efetiva participação no público, Buenos Aires, 23 de fevereiro de 2018.
dentro do qual se encontra o juízo penal.
Isso implica a assunção do público como o lugar de inte-
gração de todas as pessoas, algo que está bem longe de permitir
– já que é mais bem um obstáculo – tanto o sistema de justiça
penal que conta com a matriz de origem que aqui se descreve,
quanto a tarefa cotidiana de alguns operadores que formam
parte da sua crônica diária.
Um primeiro passo para chegar a esse fim é não cair na his-
teria ou no pessimismo. Sempre de acordo com meus professores,
neste caso Zaffaroni, sugeriria prudência e cuidado. Essa primeira
medida, mais do que um passo, pode ser a colocação de um freio:
um freio de emergência (como propunha Walter Benjamin).
INTRODUÇÃO

O julgar é um poder terrível, além de uma responsabilidade


difícil e complicada. Talvez, isso fique, em maior medida, evi-
denciado quando se atribui a essa função a consequência penal,
que, conforme será dito neste ensaio, não é eterna e possui sua
história. A problemática, tanto individual quanto institucional,
daquele que deve resolver um conflito, ou a quem se atribui tal
poder, corre à beira desse curso histórico.
Mais, além disso, já que muitas dessas perguntas e pos-
síveis respostas a esses problemas já foram formuladas, no
presente momento, a análise da justiça penal merece a atenção
de especialistas e pessoas, possíveis usuários do poder jurisdi-
cional em geral. Tanto na Espanha quanto na América Latina,
o fenômeno da justiça penal é analisado tanto pela demanda ou
intolerável presença em assuntos “políticos”, quanto pela sua
suposta eficácia ou inoperância em assuntos “comuns”.
Ambos os fenômenos, que poderíamos identificar como
uma “cifra clara” e uma “cifra negra” da atuação judicial penal,
devem ser analisados desde parâmetros criminológicos ou da so-
ciologia jurídico-penal. Devem e têm de ser postos em “questão”.
Ao perguntar sobre a administração da justiça penal, ao
colocar essa função e essa instituição “em questão”, pretende-se
fazer referência direta à chamada “criminologia crítica”. Refiro-
-me, sob essa vasta denominação, especialmente, ao rastro muito
influente, que há mais de quarenta anos, começou a deixar Ales-
sandro Baratta, numa revista a qual chamou precisamente “La
questione criminale”, como forma de manter a linha de continui-
dade com os investigadores e ativistas sobre a “a questão social”
da Itália do final do século XIX (e que se diferenciava assim dos
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chamados “positivistas”, que reduziam suas análises a situações e ao seu contributo em Estructuras judiciales (1994).
individuais). Dentro dos novos objetos de atenção da “crimino- Quero render uma homenagem aos dois, apesar de que
logia crítica”, ou como quer que se denominasse essa nova forma neste ensaio não farei o que eles fizeram já nesses trabalhos,
interdisciplinar de análise, estava, especialmente, o próprio siste- senão que me limitarei a colocar em questão histórica a justiça,
ma penal abstrato ou concreto, que, nos trabalhos posteriores de tentando apontar alguns momentos do passado, que servem
Baratta (1986) e Bergalli (1999), classificou-se como “instâncias para entender o poder judicial no nosso presente.
de aplicação do sistema penal.” Refiro-me ao que genericamente
podemos indicar como o trio “polícia, jurisdição penal e castigo”. Contudo, não será este um trabalho rigorosamente his-
As três instâncias, ou agências, entre as quais se têm distribuído tórico. Em tal sentido, serão seguidas algumas intuições
atualmente o sistema penal, são as encarregadas da denominada metodológicas de Michel Foucault, mesmo que esse tipo de
criminalização secundária e, por isso, têm uma responsabilidade análise com referência histórica, que não requer necessaria-
muito grande na chamada seletividade do poder punitivo, que é mente o rigor dessa disciplina, não tenha começado com o
uma característica intrínseca do exercício dessa forma social de grande autor francês. Todos os autores que serão citados aqui,
poder. É desde então que, por terem sido descuidadas ou dadas como Bodin, Montesquieu ou Tocqueville, assim como os pais
como naturais na criminologia tradicional, as próprias atuações da sociologia, Marx, Weber e Durkheim, fizeram um uso es-
do Estado, em matéria penal, converteram-se no principal objeto pecífico da história para dar conta das questões e problemas
do estudo dos pensamentos críticos sobre esta matéria. Estudá- da sociedade do seu tempo. A referência a essas ferramentas
-las implica, naturalmente, exercer algum tipo de controle sobre da história lhes permitiram contrastar hipóteses explicativas
o dito poder punitivo, o que supõe também um posicionamento sobre o surgimento, desenvolvimento e conformação, na atua-
expressamente político, que certamente não é uma novidade. lidade, do fenômeno que os preocupava concretamente. “Com
a ajuda do método histórico-comparativo puderam estabelecer
Em todo caso, sim, cabe agregar que a maior investigação que as sociedades são sistemas nos quais os grupos sociais, as
empírica e produção teórica da chamada “criminologia crítica” instituições, as crenças, as doutrinas, estão inter-relacionadas
recaiu, em princípio, sobre a instituição penitenciária e, mais e serão estudadas em suas conexões mútuas, em sua gênese e
recentemente, na policial. Não deixa de ser curioso que aquela desenvolvimento. É que os sistemas sociais são mutáveis, estão
instância judicial seja a mais descuidada, quando é, eviden- submetidos a mudanças e transformações que se produzem,
temente, a mais próxima ou ligada ao discurso estritamente entre outras coisas, porque o campo social está atravessado por
jurídico (disciplina na qual foi formada a maior parte dos cri- contradições, conflitos, lutas, interesses, ajustes, desajustes,
minólogos críticos espanhóis e latinoamericanos). reajustes”, dizem VARELA e ALVAREZ URIA (1997: 51).
Podem ser citadas importantes exceções. Entre elas, espe- Denominou-se esse tipo de análise como “história do pre-
cialmente, dois daqueles professores que mais me influenciaram sente”. E eu poderia estar de acordo com essa denominação se
e que, nos anos noventa em que era um jovem graduado, foram se deixasse claro, pelo menos neste caso, que se terá mais em
autores de dois importantes trabalhos para prestar atenção na conta o presente do que a “história” em si. De qualquer maneira,
“questão judicial”. Refiro-me a Roberto BERGALLI, autor de acredito que esta aproximação resulta útil na investigação sobre
muitos trabalhos e em especial Hacia una cultura de la jursidic- o poder de julgar, na medida em que o estudo histórico se faz já
ción: ideologias de jueces y fiscales (1999), e a Raúl ZAFFARONI não com a pretensão de encontrar uma “verdade” no passado,
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senão para reconstruir o passado das nossas “verdades”. Mas, as outras; mas cada família infeliz tem um motivo especial para
como indicava Michel FOUCAULT, não se pretende remontar ao se sentir desgraçada”, é válido apontar que as “justiças” de cada
tempo para encontrar uma grande continuidade, nem uma pre- país são desgraçadas por suas específicas e particulares circuns-
tensa evolução ou determinismos, mas, ao contrário, perceber tâncias. Não obstante, aqui se prestará atenção nos caracteres
os acidentes, os eventos ou os marcos que estão na raiz do que que dão conta dessa dificuldade e mal-estar comum dentro da
se conhece e existe (1992a: 13). Como apontou Robert CASTEL questão judicial penal.
“o método genealógico procura as filiações. Mais exatamente, Para isso, tentar-se-á evitar uma típica “armadilha” fami-
tenta, quando se trata de um acontecimento determinado, com- liar, que consiste em esconder os antepassados obscuros dos
preender a relação existente na sua constituição entre os efeitos quais não cabe se orgulhar ou dos quais não haja herança a ser
de inovação e os herdados” (1983: 9). reclamada. A administração da justiça atual é produto dessas
A genealogia, assim definida, aponta para a revelação de um circunstâncias, que costumam estar entrelaçadas com fatos
dado da realidade atual. Tenta desvelar os interesses e demais pro- notáveis, inclusive “mitificados”. Isso é especialmente notá-
blemas ocultos por trás daquilo que ficou consolidado em forma vel no que diz respeito às ideias reformistas da ilustração e do
de instituição, algo que parece especialmente importante naquela constitucionalismo, que nunca foram realizadas de verdade. E
instituição hoje quase naturalizada e assim legitimada no exercí- isso por não atender às realidades precedentes, concomitantes
cio de um dos poderes mais terríveis sobre as pessoas. e futuras. Como diz Alejandro NIETO, um grande crítico do
Por isso é um recurso necessário para estudar esta área do sistema judicial, “os anos parecem não correr e no século XXI
poder, pois, como afirmou ZAFFARONI, “um poder judicial sem seguimos falando de Rousseau e Montesquieu e silenciando –
história corresponde à imagem sem contornos de um juiz que quando não ignorando – um século inteiro, o XIX, de guerras
sempre quis sustentar o establishment, ou seja, a de um juiz que, civis constantes e de uma administração da justiça que nem em
por ser asséptico, o poder lhe perpassa sem tocá-lo, porque não um ano sequer foi administrada ou repartiu justiça; ao tempo
o protagoniza” (1994: 12). que se ocultam deliberadamente os desastres do caciquismo,
a guerra civil de 36 e a ditadura. Supõe-se que tão tenebroso
Da mesma maneira se expressava BERGALLI ao ressaltar a im- passado pode se remediar com a conjuração de simples verbalis-
portância de uma “História da questão criminal latinoamericana” mos constitucionais: ‘a justiça emana do povo’ (...) surpreende
(1999: 230), para se opor à imagem ideológica e autorrepresentati- inclusive que neste beatério não se tenha proclamado também
va daqueles que atuam no poder judicial, como se estivessem fora que os juízes são ‘justos e benéficos’” (2004: 61 e 62).
dos seus condicionamentos políticos e sociais.
Entendo que esse “tenebroso passado” também requer um
Para além de insistir, assim, na referência histórica, destaca- estudo adequado. Como em qualquer dos poderes públicos,
-se que se fará isso no trabalho de forma geral, deixando por um no geral, mas em particular nos que se relacionam com os con-
momento de lado uma necessária análise das características pró- flitos humanos, esse estudo deve começar pela compreensão
prias do particular contexto social, econômico, cultural e jurídico do problema cultural e político que justificou sua aparição e
dos diferentes espaços geográficos, sejam nacionais ou regionais. manutenção. Para isso, é oportuna esta mistura de ferramentas
Cada um desses âmbitos oferecem características e disposições que não coincide, embora não desdenhe das análises clássicas
diferenciadas e, assim como sinaliza Tolstoi – ao começar Anna do tipo de história das ideias, de história das mentalidades, e
Karenina – que “todas as famílias felizes se parecem umas com
28 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA

que também atende a biografias ou histórias mínimas.


Conforme já falei, acredito sobremaneira que isto é re-
levante no que se trata do poder de julgar, manifesto em sua Capítulo 1
forma mais brutal nesse poder em relação a determinados con-
flitos e com a violência, o que remete à análise especialmente AS ORIGENS DAS ESTRUTURAS JUDICIAIS
do que fazem e fizeram os juízes em matéria penal. Isso não
se aplicará a um contexto nacional específico, mas se colocará
atenção aos condicionamentos políticos e sociais sobre a ins- Os sistemas de julgamento penal andaram juntamente
tituição judicial, o que por sua vez requererá prestar atenção com a história política e guardam perfeita correspondência com
também ao momento jurídico, tanto na sua dimensão políti- ela, como nos ensinou Julio MAIER (1996: 442). O mesmo pode
co-constitucional, quanto na estritamente penal e processual. ser dito dos sistemas de organização do poder no que toca à
tarefa de julgar. E isso remete diretamente à questão por anali-
sar, a questão judicial, e à indagação sobre certas permanências
ou momentos históricos que digam algo sobre a natureza e
função daquelas instituições e pessoas, que se justificam como
artifício encarregado de resolver certas disputas.
No começo, se se insiste no julgar enquanto fenômeno
cultural e político é porque resulta fundamental para poder
falar deste, de fato, como um artifício, e sublinhar que não se
trata de um fenômeno natural. O que, por certo, não lhe retira
nenhum valor, nem desmerece a instituição, senão o contrário:
tenho para mim que todo o artificial é realmente imprescindí-
vel para as pessoas, caso contrário não o teriam criado, e que “o
natural”, às vezes, é injustamente valorado de forma positiva.
Insisto na “artificialidade” precisamente como a consequência
da decisão de colocá-lo na história, e contra certa pretensão
“naturalizadora” desta questão.
Não obstante, Perfecto Andrés Ibañez, na mais recente e
indispensável obra sobre esse poder, e de onde tomei a palavra
“herdado”, sustenta que “na maioria dos grupos humanos mini-
mamente articulados resulta constatável a existência de alguma
instância, no mais amplo sentido, institucional, encarregada de
dirimir os conflitos dos associados entre si e com o próprio grupo”
e que desde esse ponto vista “a presença da função de julgar cons-
titui uma certeza universal” (ANDRES IBAÑEZ, 2015: 43).
30 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA GABRIEL IGNACIO ANITUA 31

Isso pode e deve-se discutir, desde outros pontos de vista na sua passagem a formas mais ou menos liberais, entre os sé-
que incluam especialmente a antropologia, da qual poderia ob- culos XVIII e XIX.
servar-se diferentes maneiras de resolver os conflitos, incluindo Será necessário, portanto, um breve exame da organização
muitas “instâncias”, que pouco têm a ver com o que interessa aos da justiça na época em que a cidade de Roma organizou a civiliza-
fins deste ensaio. ção em torno ao mar Mediterrâneo. Nessa forma de organizá-la
Em todo caso, parece evidente que para aquilo que importa não foi menor a figura da iuris dictio, a qual parece aproximar-se
aqui – nosso presente – é fundamental analisar a coexistência do menos do tradicional “dizer” e mais à etimologia de “ditar” (que
poder de julgar dentro da forma “Estado”, que começa a surgir no vem desde “dedo” e chega até “ditadura”).
final da Idade Média européia e, por outro lado, relaciona-se com Da época da monarquia não ficam quase rastros, ainda
a emergência do que se tem denominado como questão penal ou que se saiba que o poder de julgar era exercido diretamente e
criminal (ZAFFARONI, 2011; ANITUA, 2015). de forma pessoal pelo rei que, junto ao poder político e religio-
É nesse período que se produziram as mudanças mais so, reunia em si todas as funções jurisdicionais, especialmente
importantes na forma da política e em concreto da política aquelas penais, apesar de que “não se conheciam normas gerais
criminal, e tais mudanças perduram até a atualidade, apesar processuais as quais sujeitar-se para o exercício desse direito de
de serem peculiarmente questionadas. Os seguintes conceitos coação penal” (MOMMSEN, 1999: 388). Em tal sentido, essas
têm sua origem naquele importante momento histórico: “ca- atribuições se associavam às religiosas e estavam formalmente
pitalismo”, “Estado”, a noção de “monarquia” como sinônimo encabeçadas por “pontífices” e assessorados por juristas. Já antes
inicial do paradigma da “soberania” (que se manterá, apesar da instituição da República se produziu uma espécie de delega-
da paulatina e feliz abolição das monarquias a partir do século ção de funções entre magistrados chamados duumviri. Nos casos
XVIII), a “burocracia” como governo em mãos de expertos, e um penais mais graves, como os delitos de alta traição, correspondia
novo desenho do poder em mãos do Estado que, com as noções a dois magistrados chamados duoviri perduellionis. O povo, não
de “delito” e de “castigo”, conformará o “poder punitivo”. Ainda obstante, contava com um recurso para insurgir-se contra a de-
que não tenham surgido nessa época, foi também quando se cisão do Rei ou de seus magistrados: a provocatio ad populum,
produziu a redefinição e começava a globalização de conceitos que obrigava a assembleia popular a reunir-se e decidir sobre a
tais como “justiça” e “direito”, que provinham especialmente do anulação das consequências prejudiciais de tal decisão.
passado romano comum dessa parte da Europa. Este antecedente e a instauração da República provo-
Isso, de fato, relaciona-se com a profunda “marca” que caram a aparição de um novo sistema de julgamento e assim
Roma deixou no Ocidente e no mundo globalizado (LEGENDRE, novas formas de exercer o poder de julgar. Este procedimento
2008). Se aquela época segue presente em tantos aspectos cultu- surgiu paulatinamente, mas, finalmente, mudou de mãos tanto
rais e políticos é porque, entre outras coisas, deixou uma herança o poder de requerer como o de decidir, que recaíram sobre o
inapagável pela sua complexidade quanto ao fenômeno jurídico povo (acusação popular e algum tipo de tribunal de jurados).
e na forma de entender a justiça. Como se verá, essa presença do Durante a República romana, de qualquer forma, a maioria
direito romano, inevitável no presente, também teve uma aura dos conflitos continuavam sendo resolvidos de forma privada
de justificação mítica, embora diferente, tanto no momento de entre as partes envolvidas e aqueles que decidiam o pleito. Estes
aparição das estruturas estatais, ao final da Idade Média, como foram os pretores e outros magistrados menores, uma vez que
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os cônsules delegaram esse labor (STEIN, 2001:12), embora não forma, chega até nossos dias. Com Diocleciano esse sistema que
tivessem a prerrogativa de funcionários estáveis. Este é o mo- se aprofundou logo no Império do Oriente, consolidou-se até
mento de maior desenvolvimento do direito romano. A partir limites nunca antes atingidos (STEIN, 2001: 31). É também desde
das míticas XII tábuas se organizou esse saber em torno das então que começava a se desenhar um tipo de funcionário judi-
decisões da jurisprudência que, de “secreta” e pouco previsível, cial, de acordo com um particular sistema burocrático “de castas”.
passou a estar organizada ao redor das influentes formas de Estava ali já, como se disse, o embrião desse sistema judi-
raciocinar dos expertos, que, por aconselhar esses “pontífices”, cial de magistraturas específicas que, com o declínio do Império
passaram a ser verdadeiros organizadores dessa forma, a jurídi- romano, foi desaparecendo para renascer ao final da Idade Média.
ca, que ainda hoje está vigente e informa o sistema de resolver É que, de fato, e para além de seu desenvolvimento na área orien-
disputas (IGLESIAS, 2007: 140 e ss). tal, a decadência do Império no Ocidente coincidiu com o período
A República estabeleceu um limite acentuado ao poder de lutas para dominar o poder de julgar, o qual permaneceu, por-
de julgar em mãos do funcionário, com a sua transferência a tanto, sob várias cabeças e com diversas fontes de justificação.
tribunais “populares”, como os “curiais”, os “centuriais” ou os in- Para além disso, o período feudal europeu, no que se
tegrados por “tribos”, que davam conta de uma limitação posta refere à tomada de decisões em conflitos, estava caracterizado
pela divisão de poder. Com todo o peso que tinha o “comício” por encontrar a razão de um dos litigantes através de sinais
para a tomada de decisões, a faculdade de impor penas ou a coer- exteriores que a revelassem diretamente. A revelação, como
tium, sempre formou parte do imperium que esteve em mãos dos é lógico, não se produzia senão diante da interpretação dada
magistrados eleitos para tal fim: os pretores, principalmente, pela comunidade aos fatos, sobre os quais podia se relativi-
tomavam decisões que, excepcionalmente, eram recorríveis. zar o cumprimento (cicatrização da mão queimada, flutuar
Logo, com o Império e a fase expansiva dessas formas na água, ganhar “provas” difíceis etc.). Sustenta MOORE que,
organizadas politicamente ao redor das cidades, economica- nesses casos, “a interpretação não era ditada pelo bispo ou por
mente baseadas na exploração de escravos, reviveu-se a cognitio outro juiz ou oficial senão pelo povo reunido, a comunidade
(método “vertical” de busca da verdade e atribuição da razão em conjunto” (1989: 150). Isso, não obstante, acontecia apenas
própria da monarquia romana) em mãos do Senado imperial e em casos nos quais as partes não resolviam suas diferenças de
dos cônsules, e também, finalmente, do próprio Imperador e dos forma privada. Assim se manifestava esse caráter não excluden-
magistrados por ele nomeados, que constituíram a aparição dos te, nem orgânico, além de especialmente compositivo (ALESSI,
primeiros funcionários oficiais encarregados especificamente de 2001: 3 e ss.), e nos quais não se organizava o poder com o exer-
julgar penalmente e com estabilidade no cargo. Foi de grande cício monopólico da violência. Não é possível falar, portanto, de
importância o praefectus urbi, de nomeação imperial, o qual autêntico poder punitivo, nem tampouco de uma justiça penal
acabou por deslocar o pretor. Era juiz de apelação, tinha juris- como a do presente naqueles exemplos.
dição e poder de polícia, que em seu distrito se estendia por um “No que diz respeito à organização judicial, teve lugar um
raio de cem milhas em Roma. E também exercia sua faculdade de retorno à justiça administrada por tribunais populares em forma
investigação através dos seus ajudantes. Nasceu assim também de assembleia (mallus, mallum), nos quais deveria participar todo
o germe do sistema de persecução penal pública de responsabi- membro livre da comunidade, todo membro digno e respeitável.
lidade de funcionários, que é recebido pela inquisição e, dessa As regras aplicadas para resolver cada assunto não provinham do
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legislador, autoridade ou fonte externa alguma, senão que eram sustentavam a aparição de uma justiça profissional e o desenvol-
conhecidas como elemento inseparável da experiência grupal vimento do processo inquisitivo sem aquela influência romana
comum”, de acordo com PARDO LOPEZ (2009: 15). (ROXIN, 2000: 559).
Posteriormente ao século VIII, aparece uma embrionária O êxito da chamada “revolução papal” (PRODI, 2008: 55)
função judicial, mas sempre existiria de forma paralela e, com estava embasado na racionalidade do direito romano, sobrema-
maior extensão, a possibilidade de escolher entre a composição neira desde que se recuperou o projeto de Justiniano (mais um
privada e o processo judicial comunitário. O processo judicial sistema que integrava textos bíblicos com a patrística, e textos
propriamente dito, ainda assim, só teria lugar se fracassava a mais jurídicos como as “Decretais” de Gregorio IX, as “Extrava-
composição privada e, inclusive, neste caso “não encontramos ne- gantes”, o “Decreto” de Graciano etc.) por parte de importantes
nhuma diferença entre processo penal e processo civil” (ROXIN, atores, que se identificavam como juristas e escolásticos, em
2000: 557). Essa diferença tampouco será tão marcada a posteriori, cuja formação e legitimação as Universidades nascentes tive-
quando o que decairá será esse caráter adversarial, no qual a juris- ram um papel importantíssimo (BERMAN, 1996: 131 e ss.). Essa
dição não era um poder. recuperação da racionalidade abriu caminho, como já disse, para
esse revolucionário direito canônico, que recuperava formas do
Apesar de diferir muito nos diversos espaços territoriais,
processo romano imperial, para o sistema processual inquisitivo
no geral, coexistiam diversas “justiças” medievais, que depen-
(ARMENTA DEU, 1997: 210).
diam também das tentativas de alcançar a hegemonia de poderes
localmente concentrados. Mais além dessas diferentes justiças O ano de 1215 é uma data relevante para a transformação
eclesiásticas, feudais, senhoriais, monárquicas, urbanas, de agre- referida, justamente por ser o início da Inquisição. A inquisitio
miações, mercantis etc., o poder de decidir tinha algum tipo de haereticae pravitatis ou “inquisição (busca) da perversidade he-
relação com as concretas manifestações das relações de força. rética”, desenvolveu um sistema caracterizado pela vigilância, a
Quase em todas as diversas circunstâncias, aplicar justiça era concentração de poder, o encarceramento, a exclusão e o casti-
equivalente à declarada intenção de restituir um estado de coisas go, e também determinadas formas processuais e de organizar a
presumidamente originário ou prévio ao conflito. Na prática, investigação da verdade e resolver pleitos, que também seguem
exercer o poder de julgar era o equivalente ao exercer o poder. vigentes. O sistema inquisitivo, como modelo judicial, é carac-
Aponta ANDERSON que “a justiça era a modalidade central do terístico desse momento do continente europeu, onde se impôs
poder político” (1979: 154). o absolutismo monárquico e uma ideia mais forte de Estado, o
que logo será mencionado.
Isso dificultou a aparição de uma verdadeira burocracia até
Mas, antes disso, a mencionada transformação jurídica
aquele insigne momento em que começaram a emergir os Es-
possibilitou a legitimação do sistema de julgamento e da ins-
tados e com eles, logicamente, uma justiça penal formalizada.
tituição encarregada de realizá-lo, que é o antecedente mais
Esses Estados e príncipes exitosos obtiveram triunfos, ao passo
direto para se pensar na questão judicial. Com o método in-
em que a Igreja também o fizera, com métodos semelhantes
quisitivo, confirmou-se a persecução de ofício, a vítima e a
àqueles mitificados do passado imperial romano. A recepção do
comunidade foram desempoderadas do seu papel no conflito,
direito romano nas organizações estatais da Baixa Idade Média e
que adotará, então, uma perspectiva propriamente “penal”. A
no início da era moderna foi também a que deu suporte ao pro-
lesão já não era considerada contra uma pessoa determinada,
cesso inquisitivo. Descartaram-se historicamente as teorias que
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senão contra a ordem estabelecida pela Igreja ou pelo soberano. de Benedicto XII não realizava essa prática e que os interrogató-
Nem sequer a possibilidade de denunciar constituiu um reflexo rios eram o contrário do tormento (2000: 42), fica evidenciada a
desse conflito originário, já que se davam efeitos idênticos à importância e centralidade da confissão, e que para obtê-la não se
delação ou denúncia anônima, com a qual se permite evitar res- imporiam limites aos encarregados de atingi-la com maior zelo,
ponsabilidades ao acusador, que permanece oculto ao acusado e que a tortura seria, portanto, uma consequência quase lógica
e ao resto das pessoas. Isso reforçará o poder exercido pelo até ou necessária. Uma e outra foram a chave que manteve o fun-
então denominado árbitro e que a partir daí será o único sujeito cionamento da Inquisição. A confissão abriria o caminho para
real da questão a decidir. denunciar a si mesmo e aos outros. Para se denunciar e denunciar
A Inquisição, enquanto instituição surgiu, como se disse, em aos outros foi necessária a vigilância, porque eram todos suspeitos
1215, e através dessa reforma jurídica efetivada no IV Concílio de de estar em pecado ou em desobediência, e apenas os novos ex-
Latrão é que se colocaria em jogo a repressão dos cátaros e albigen- pertos podiam declarar o contrário. Nesse sentido, e como aponta
ses no Languedoc, realizada por motivações de unidade política e agudamente Nilo BATISTA, a metodologia que modelava um novo
religiosa. A influência que exercerá, assim, a Igreja sobre o organo- suspeito modelava, por sua vez, um novo tipo de juiz (2002: 261).
grama moderno da justiça, através dessa instituição e seu método De fato, a eficácia do método de interrogatório e persecução
penal e de processo, é notável. Ela se destaca em vários aspectos, das heresias abriu caminho para a formação de uma instituição
como as teorias da pena, a identificação do delito e do pecado (e encarregada de vigiar e perseguir organizadamente os suspei-
do “estado de pecado” como formas de direito penal do “autor”), tos. Em princípio, a instituição não foi permanente, pois logo
a representação do infrator como um traidor ou inimigo do sobe- depois de perseguir e exterminar a heresia desaparecia com ela e
rano, a teoria da lei penal e a obrigatoriedade do ius puniendi e a ficava praticamente em estado latente. Não obstante, como toda
busca pela confissão. Vou me deter agora sobre esta última. burocracia, conseguiria impor a continuação dessa estrutura a
Então, já era usual a indagação para obter confissões como partir da confirmação de um estado de emergência permanente.
método e prática habitual de manter a disciplina nos diversos mo- Além disso, o que sim se afiançaria, e seria adotado por outras
nastérios, que eram controlados poucas vezes ao ano. Foi após o IV instituições, foi o seu método jurídico, que modernamente de-
Concílio de Latrão, de 1215, que se impôs que tal exercício de con- nominamos processual, mas também jurisdicional.
fissão deixasse de ser público e passasse a ser secreto e feito apenas A Inquisição ultrapassa, então, a instituição em si, e se con-
diante do sacerdote confessor, que regularia a penitência de acordo verte em um método de investigar a verdade, que seria utilizado
com a sua análise da personalidade pecadora, sendo sua prática em sua forma mais extrema por todas as instâncias judiciais até
preceptiva. Também se converteria em ferramenta necessária à o final do século XVIII, mas que com as suas reformas, mais ou
nascente instituição encarregada de perseguir hereges, dissidentes menos reais, segue informando a atual metodologia judicial. A
ou meramente desobedientes ao poder. Essa importância da con- Inquisição estipulava o segredo absoluto das atuações, o qual
fissão é afirmada por aqueles que analisaram genealogicamente compreendia inclusive o nome dos acusadores e das testemu-
o direito penal e o direito processual penal (ZAFFARONI et. al., nhas, o dos juízes e suas táticas, interrogatórios e provas, e
2000: 225; ALESSI, 2001: 18). Mesmo quando a origem da tortura e até mesmo da sentença, razão pela qual o imputado absolvido
da busca pela confissão nesse momento da Igreja é negado por au- permanecia preso caso não pedisse, por algum motivo, a liber-
tores como HERZOG, que afirma como exemplo que a Inquisição dade. Esta não se dispunha de ofício, podendo acabar sua vida
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na prisão, já que o segredo incluía o público, que apenas cons- Estado de polícia (FOUCAULT, 2007: 21). A aliança entre capi-
tatava o desaparecimento de algum vizinho quando começava talismo, Estado moderno e poder punitivo influenciará a forma
o processo (MAIER, 1996: 302). de julgar e decidir os conflitos.
Em todo caso, especialmente o suspeito, mas também todos A aparição de uma organização burocratizada para exercer
os indivíduos convertiam-se em objeto da investigação realizada o poder de julgar e o desenvolvimento do sistema inquisitivo
por um único sujeito: o autor ou detentor da autoridade que ocu- de julgamento no continente europeu foi o produto de uma
paria funções jurisdicionais como principal manifestação de seu mudança política profunda, que deu lugar, como se disse, à
poder, e que atua para conseguir objetivos definidos politicamen- aparição dos Estados modernos. Essa ideia cultural de organi-
te, principalmente, o de reafirmar a obediência. zação social em forma hierarquizada, que ainda perdura hoje,
Toda essa transformação, além da revolução “jurídica”, foi tem como base a concentração de todos os atributos da so-
logicamente de tipo político, pois triunfou afirmando o Papa berania (legislar, julgar, administrar) num poder central, em
como autoridade com faculdades para formular leis, fixar im- detrimento de todas as relações de poder entre indivíduos nas
postos, castigar delitos, estabelecer e suprimir bispados, dispor comarcas, que o poder central ambiciona ou o mercado precisa
de benefícios eclesiásticos, administrar todos os bens da Igreja, para se desenvolver. A partir do século XIII, e com força desde
e atuar como juiz originário e de apelação das sentenças de uma o século XV, é o próprio monarca absoluto quem encarna ou
série de oficiais eclesiásticos, que atuavam em nível regional consubstancia essa ideia de Estado.
e local, como arcebispos, bispos, chefes de ordens religiosas, Essa nova definição do poder, ou das relações de poder,
ministros, tesoureiros, notários, escrivães, colégio de cardeais, dentro do diagrama da soberania, caracterizará as sociedades
administradores da casa de abade etc., os quais constituiriam modernas durante quinhentos anos, nos quais a soberania será
uma autêntica “burocracia”. A Igreja se converteu em uma estru- encarnada pelo monarca absoluto e, também, posteriormente a
tura hierárquica composta por uma série de cargos com distintas isso. O esquema da soberania durante as monarquias absolutas
hierarquias e funções, os quais foram classificados com o termo (já que isso mudará parcialmente depois das revoluções que se
officium, proveniente do direito romano, entendido como aque- gestaram a partir do século XVIII) apresenta uma característica
las funções ou serviços sagrados, correspondentes ao cargo que de crucial importância neste trabalho e serão exemplificadas
exercia seu titular em nome do Papa, enquanto detentor de uma em alguns aspectos relevantes para a questão judicial.
potestas, que também teriam e deteriam seus subalternos. Esse Nessa mesma época, e junto a esse diagrama de poder,
sistema foi particularmente eficaz. surge a “teoria da soberania” como teoria do poder. A “sobera-
Essa eficácia foi adotada pelos reis que agruparam maio- nia” produz a representação de uma verdade-evidência e uma
res territórios em reinos, o que, por sua vez, se explica pela convicção que insistirá que o fundamento do social está no
aparição de uma estrutura como a dos Estados soberanos, insti- consenso e não na guerra ou conflito. O expoente teórico da
tuições que começam a ser gestadas no início da modernidade. soberania (e do Estado absoluto) será, um pouco mais tarde,
Essa definição de poder político central é condição para se exer- Thomas Hobbes. Seu modelo de pacto ou contrato social é
cer um monopólio sobre o poder de julgar e castigar, o que de sujeição, nele os indivíduos renunciam ao seu direito de
será especialmente considerado por Max WEBER (1993: 1056). defesa e o cedem ao soberano, que permanece acima e exce-
Dali surgirá também a relação explícita entre mercantilismo e tuado do pacto. O soberano tem, de acordo com essa teoria,
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o direito de vida e de morte sobre os indivíduos e é no âmbito


da decisão para “resolver um conflito castigando, onde isso
se evidencia e se põe em prática” (FOUCAULT, 1992b). “No
Capítulo 2
soberano radica o Estado e necessariamente o poder legal e
de justiça. A justiça se transmuta em pena, que é concebida O PODER DA JURISDIÇÃO COMO ATRIBUTO
como um castigo, como a expiação do mal (o pecado); pune-se DA SOBERANIA
quem se rebelou contra o soberano”, de acordo com BUSTOS
RAMIREZ (1987: 54). Essa “expiação” teria virtualidade cura-
tiva sobre o corpo social submetido ao pacto, mas desde uma
Nesse sentido, era especialmente importante, portanto, que
instância externa ao mesmo. Desde esta distância, o soberano
a tarefa de julgar fosse monopolizada pelo soberano. Aquele que
tem um direito subjetivo de castigar, conforme justificações
julgava deixava de ser a comunidade ou algum indivíduo não
teóricas do Estado autoritário.
especializado e passava a ser o Rei ou um oficial régio. A partir
O principal dispositivo através do qual se exerce esse di- de agora “a justiça emana do rei, quem julga em cada caso con-
reito (com o objetivo de manter a ordem), e que reproduz o creto, seja ditando sentenças por direito, apoiadas na norma, seja
diagrama do poder, é o castigo mediante o suplício. Nele o adotando sentenças por império, mero exercício da sua virtude
Rei, através do verdugo, exerce sobre o corpo do condenado por ser soberano” (PARDO LÓPEZ, 2009: 23).
a tortura e a morte frente aos olhos do povo, a fim de que a
É precisamente nesse aspecto que se visualiza a novidade.
marca no corpo se grave nos corações dos outros indivíduos
Apesar das remissões à tradição jurídica romana, este momento
(FOUCAULT, 1998). A tomada de decisão, a “justiça”, pelo
histórico requeria uma base teórica diferente, que foi precisa-
contrário, realiza-se em segredo e sua complexidade ficará
mente a da soberania que, melhor que qualquer outra, expôs
garantida pela figura também mítica do Rei, e do juiz que
um juiz francês (o primeiro que ilumina um destes momentos
tomará seus atributos. O que, para além da remissão justifica-
chave para o judicial). De fato, foi Jean Bodin, nascido em Angers
dora ao divino, relaciona-se com a equivalência, nessa época,
e muito vinculado à Universidade de Toulouse e a de Paris, mas
de resolver o direito e criar o mesmo direito. Não era possí-
finalmente fixado em Laon onde será “procurador do rei” – um
vel distinguir o momento de criação daquele de aplicação da
novo cargo judicial –, quem elaborou essa teoria jurídica e po-
norma. Como próprias da soberania, ambas atribuições eram
lítica que, dentre outras coisas, redefine a função judicial nesse
logicamente indistinguíveis.
marco do absolutismo. Especialmente o fez em sua obra de 1576,
na qual se iniciou o saber sobre o Estado (BODIN, 2006). Para
ele, a lei, e sua aplicação (que não se diferenciava da sua criação),
é igual a um mandato do soberano e é o que a distingue enquanto
tal. Como disse outro francês, nesse caso de Bordeaux, amigo
dele, mas especialmente lúcido e muito mais tolerante: “Agora
bem, as leis mantêm sua credibilidade não por que sejam justas
senão porque são leis. É o fundamento mítico da sua autoridade,
não possuem outro” (MONTAIGNE, 1987: 346).
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O primeiro fundamento é mandar e, por isso, legislar está (ZAFFARONI et. al., 2000: 258 e ss.; CARO BAROJA, 1970: 183 e
antes de julgar ou valorar essa ordem. O jurisdicional, ainda ss.; FEDERICI, 2010). O texto de Bodin se inseria num contexto
quando não indiferenciado, vem a ser acessório ao legislativo. em que tinham êxito os manuais como o Malleus Maleficarum,
Como aponta PARDO LÓPEZ: “A lei é um ato de autoridade, a dos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, e o Manual
ordem do soberano. Com isso, não apenas mudou o conceito do de inquisidores, que Francisco Peña tinha elaborado sobre o
direito, senão que também muda a posição do juiz frente àquele original de Nicolau Eymerich (BATISTA, 2002: 249). Ambos,
e a função lógica de julgar” (2009: 29). O resultado, antes de ser que se imprimiam em excesso no século XVI, seguiam o rastro
uma decisão para o problema proposto pelas partes, passava a daquele originalmente formulado por Bernardo Gui no século
ser a comunicação de uma vontade tecnicamente concretizada XIII (personagem que seguramente o leitor conhecerá pelo
desde o poder soberano. Avançava-se assim na burocratiza- fictício de Umberto Eco em O nome da rosa, mas que existiu
ção ou profissionalização do juiz, enquanto “usufrutuário” do realmente no século XIII).
poder delegado a ele pelo soberano, para a aplicação com pre- Eram já extensos os tratados práticos, juízes e inquisido-
cisão das suas ordens. res que ensinavam a maneira de atuar, mas, a partir de então,
De fato, Bodin, esse burguês filho de artesãos, sempre fica claro que essas faculdades ou poderes são parte essencial do
esteve orgulhoso da sua carreira profissional e de seus próprios mesmo exercício do nascente poder estatal.
méritos ao serviço do poder. E o manifestou com a sua dili-
A doutrina da soberania colocou em claro a necessidade de
gência persecutória, especialmente dedicada às mulheres, que
dotar, com ferramentas e poderes, similares aos da Inquisição
afiançava as técnicas inquisitivas, e com o discurso de emer-
eclesiástica, o Estado, que também teria sua “espada” afiada de
gência do momento, vinculado com a “demonologia”. Bodin foi
acordo com as mesmas lógicas controladoras e repressoras da
também um dos grandes fundadores da legitimação inquisito-
desobediência.
rial e autoritária, a qual foi aplicada à persecução das bruxas,
não apenas teorizando, mas levando-a adiante com o singular De fato, na adoção dessa lógica inquisitiva está a premissa
zelo de um juiz inquisidor. Na obra citada, especialmente na para generalizar uma estratégia da suspeita e da repressão, que
de 1580 De la demonomanie des sorciers (FAURE 2010: 51), ex- deixará rastros de intolerância também no poder judicial, até
pressa a lógica comum ao nascimento da teorização política e o presente (MEREU, 2003).
da legitimação repressiva. De mãos dadas com esse processo de formação da admi-
Em ambos os casos, a construção de um “inimigo” (que nistração estatal e da burocracia judicial, e da vassalagem da
daí vem o “Satã” ou o demônio, ZAFFARONI, 2006) favorece pluralidade jurídica cultural europeia, a baixa Idade Média
um tratamento de emergência e amplia as faculdades de coisi- deu sinais da construção de mitos que definem certos sujeitos
ficação, especialmente manifestadas na tortura judicial, que é, ao criar categorias determinadas de sujeitos vulneráveis (ma-
ademais, o que explica a quantidade de confissões em matéria niqueístas, hereges, judeus, leprosos, bruxas, sodomitas). As
de persecução por bruxaria (HARRIS, 1974: 81). A misoginia ou pessoas incluídas nessas categorias eram identificadas como
o processo de construção do patriarcado também são destacá- “fonte de contaminação social e cujos membros poderiam ser
veis como tarefas da história judicial. O exemplo de controle da expulsos da sociedade cristã e, como seus inimigos, serem sub-
mulher através do Estado e do poder da justiça penal, com a des- metidos à persecução, denúncia e interrogatório, até a exclusão
culpa de repressão à bruxaria, está amplamente documentado da comunidade, a privação de direitos, a perda da propriedade,
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a liberdade e, em ocasiões, a própria vida”, segundo MOORE magistrados. Nas Partidas já apareciam diferenciados dos meros
(1989: 119). Esses sujeitos seriam vulneráveis também pela “árbitros”, de designação entre particulares. E relacionados com
consolidação jurídica e judicial da sua essência de inimigos, o desejado poder absoluto do Rei: assim se apontava que “Rei
convenientemente apontados como tais para “expiar” outros é governar e fazer justiça e direito”. Nas Cortes de Samora de
males, que foram definidos naquele marco de guerras e into- 1274, Alfonso X organizou a administração da justiça, criando sua
lerâncias por matéria religiosa, mas também através das novas estrutura orgânica funcional (IGLESIA, 1971). Este soberano es-
lógicas laicas ou propriamente estatais. tabeleceu um tribunal da Corte, composto por 23 juízes oficiais,
Essa sociedade intolerante e repressora foi, também, o chamados “administradores da Corte”, que atuavam por dele-
produto da transposição de uma economia de intercâmbio de gação real, cuidando dos chamados casos da Corte, quer dizer,
bens para uma economia monetária. Não se pode negar que daquelas causas que, por sua natureza, ficavam exclusivamente
essa transformação no modo de intercâmbio e de produção reservadas ao comparecimento ao Tribunal da Corte. Essas 23
contribuiu para a extensão de instituições de governo e, prin- instituições foram dotadas com cargos auxiliares como escri-
cipalmente, da justiça, para buscar uma maior estabilidade nas vães, monteiros, porteiros e outros funcionários. Durante todo
relações mercantis. O mercado e o poder político se desenvol- o Antigo Regime, a nomeação dos juízes e demais funcionários
veram de forma conjunta e interdependente. foi competência do Conselho do Rei (ALONSO, 1982).

Se em ambos os campos do poder, o privado e o público, No plano das fontes do direito, a luta entre o poder central
desenvolveram-se burocracias, as do nascente Estado tive- real e o dos senhores feudais se traduziu também na vassalagem
ram algumas características especiais de gestão frente às da dos direitos locais com tradição popular, mítica ou “pactuada”
sociedade civil. Entre elas quero me deter no mistério e na por um direito estatal imposto e que também reconhecia ante-
autoidentificação do burocrata, e em particular do juiz, com cedentes no direito romano imperial, que tinha sido conservado
um poder. Já não como uma obrigação ou uma faculdade que durante a Idade Média nas Universidades, em algumas práticas
possui, mas como uma característica essencial ou atributo, que territoriais do arco norte do mar Mediterrâneo e, sobretudo,
o identifica ou que o faz pertencer. É importante, já que esse como já se disse, na Igreja.
mecanismo é definidor, desde então e até o presente, das bu- O exemplo máximo do exercício da função política no mo-
rocracias judiciais e administrativas. nopólio sobre a afirmação de verdades e a imposição de castigos
em determinados diagramas de poder foi aquele que provinha
Para além disso, é um dado histórico a relação entre o pro-
da Inquisição. Mas existiram diversos modelos judiciais nos
cesso de concentração de poder, que desemboca na criação dos
diferentes espaços e, em muitos casos, vários com a mesma
Estados nacionais, e o processo de profissionalização e buro-
disposição competiam entre si. Como exemplo de funciona-
cratização dos órgãos encarregados de administrar a justiça em
mento dessas disputas, mas com igual predomínio do sistema
matéria civil e religiosa na Europa a partir do século XIII.
inquisitivo, é possível apontar, na Espanha, que os processos
É notável o exemplo de Castela e a atitude do Rei Alfonso de jurisdição real competiam com específicas e relativamente
X “o sábio”, assim chamado por saber das formas jurídicas, que independentes justiças exercidas por outros grupos de poder,
foi movendo a administração da justiça dos poderes locais e dos como os levados adiante pelo Tribunal do Santo Ofício (CON-
administradores municipais para delegados régios: administra- TRERAS, 1997: KAMEN, 1999). Na concretização histórica
dores de salário e, posteriormente, inspetores ou pesquisadores e desse espaço, como em outros, percebem-se diversas diferenças
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e dificuldades, entre as quais se destaca a permanência de foros conhecida e dominada por um grupo de juristas, expertos ou
especiais e “justiças” como a militar e a inquisitorial (HERRE- profissionais.
RO, 1998: 213 e ss.) Evidentemente isso está relacionado, também, com o sur-
Evidentemente, também houve resistências a esse proces- gimento do modo de produção capitalista. Não apenas pela
so centralizador e monopolizador dos conflitos e das justiças. E participação do direito e dos juízes na estrutura repressiva
assim, no caso castelhano mencionado, separavam-se por um dirigida aos pobres forçados por essa mudança (MARX, 1978:
lado os casos da Corte, reservados ao rei e a seus juízes, nos quais 626), mas também porque eles integravam uma forma técnica
era plena a aplicação do direito real e, por outro lado, todos os consubstancial a esse modo, qual seja, a burocracia. Essa ace-
demais pleitos, que deveriam ser resolvidos em primeira instân- leração dos intercâmbios e das finanças requereu mecanismos
cia pelo tribunal local e em apelação pelo Tribunal da Corte, de de funcionamento eficientes, isto é, tão rápidos como seguros
acordo com o foro local em questão, o qual foi se eliminando pro- para os interesses econômicos modernos (WEBER, 1993: 272).
gressivamente. A menção à “Corte” dá conta dessa proximidade Ainda quando se possa discutir esta origem comum em termos
com o poder real, o que também, nesse momento, deu lugar ao de necessidade, o certo é que o capitalismo e a burocracia se
uso de togas pretas como identificação de pertencimento. Esse encontraram historicamente e se pertencem intimamente, em
Tribunal da Corte converteu-se logo no de Audiência. Esse novo função da sua superioridade técnica sobre outra forma de or-
nome, vigente no Estado espanhol atual, aparece nas Cortes re- ganização. Essa eficácia foi também demonstrada em aspectos
unidas em Toro, em 1371, e também surge da imitação do modelo estritamente políticos e culturais. Esse é, por sua vez, outro
romano e canônico da Audientia bispal (CAÑAS, 2012: 170). dos motivos que provocou o desenvolvimento da burocracia,
Provavelmente não seja o hispânico o melhor exemplo de entendida como uma administração mais técnica, dotada de
processo exitoso de consolidação de poder real, nem de poder conhecimentos especiais e que depende hierárquica e econo-
centralizado. Contudo, as instituições tinham idêntica finalida- micamente do Estado central: essa administração e o exército
de àquelas que, com maior eficácia, conseguiram esses fins no serão os pilares do Estado. “O crescimento de poderosas insti-
caso francês. Mas é que, para além do estritamente político, a tuições administrativas, hierárquicas e centralizadas na Europa
essa eficácia pode-se atribuir outros efeitos, tanto econômicos foi um elemento vitalmente importante para o desenvolvimen-
quanto sociais. to do moderno Estado nacional europeu e da consolidação de
várias centenas de unidades políticas, mais ou menos indepen-
Como uma das principais peculiaridades do desenvolvi- dentes, que existiam em 1500, e já em vinte e poucos Estados
mento do Ocidente, já apontada por Max WEBER, é que apenas em 1900”, diz KRYGIER (1981: 14).
no final da Idade Média europeia se verificou a aparição de uma
autêntica e burocrática administração da justiça (1993: 1056). A A concentração do poder nos Estados foi seguida pela con-
recepção do direito romano e a contemporânea eliminação de centração de todas as ordens com a racionalização que WEBER
influências pessoais, locais e comunitárias foi possível graças à demonstra como característica do direito, da economia e, previa-
aparição dessas novas estruturas, vinculadas a um novo direito mente, da política (1993: 508-512). Essas formas não poderiam
e a essa nova organização específica, a qual se defendia como a ter-se desenvolvido, da maneira que o fizeram, sem a intervenção
mais eficiente. Este mecanismo de resolver ou expor conflitos já e apropriação de peritos e expertos, que se tornaram burocra-
não estará à disposição das partes, senão que seria uma técnica tas (WEBER, 1993: 531). Parece especialmente sintomático que
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o primeiro exemplo que utiliza esse autor, para dar conta desse devem ser respeitadas por aqueles. A partir de então, o Estado
“modelo ideal”, seja o da judicatura e dos juristas. terá interesse na resolução dos conflitos, inclusive mais do que os
Os intelectuais do direito, que surgem no seio das Uni- particulares, o que se revelará na falta de acusações e na aparição
versidades e no contexto da revolução urbana, têm um papel das delações secretas como motor de início das ações que pro-
fundamental nesse processo de concentração, que tende a moverão juízos e castigos. O que anteriormente ao aparecimento
destruir as culturas jurídicas locais e as diversas formas de con- do Estado realizava-se de forma diversa e também no seio da
viver com os conflitos. Assim indica ARNAUD ao exemplificar comunidade foi substituído por um mecanismo, essencialmente
o ocorrido na França, a partir do século XII, onde foram os técnico, com riscos menores de ser definido contrariamente à
juristas reais formados pelos professores universitários que, aspiração estatal. É por isso que essa mudança política tem como
ao propor um Estado urbano centralizado, reconheceram o Rei especial campo de ação a questão da justiça penal.
como superior às leis e seu domínio sobre a justiça. Nesse senti- Muitas das características da justiça advirão das dificuldades
do, é simbólico, mas exemplificativo, o estímulo ao traslado da próprias à natureza penal e das formas em que essa instituição
capital do reino para Paris, sede da Universidade. Esse grupo de específica foi resolvendo-as. A posteriori, continuariam caracteri-
letrados fez tudo aquilo em seu proveito, já que paralelamente à zando a instituição, mesmo que não existisse mais a necessidade
forma-Estado “se gera toda uma nova sociedade de profissionais que as fez surgir. Assim, por exemplo, o já mencionado sobre o
do direito, uma sociedade que depende por completo de uma valor legitimante da “verdade” judicialmente imposta e buscada.
monarquia com pretensões universais” (2000: 88). O monopó- A ideia reitora desse modelo é a de procedimento como
lio dos juristas e universitários sobre a administração da justiça pura investigação dos fatos. A tarefa da justiça transformou-se
recentemente criada e, a partir daí, sobre a ordem jurídica, foi totalmente, de um debate que demonstrava a razão de uma
ressaltada (SÁNCHEZ ARCILLA, 1995: 529), e isso para além do das partes em confronto, passou a ser uma pesquisa dos órgãos
fato de que os poderes políticos poderiam ter abusado dos seus públicos em busca de conhecer a verdade histórica. Nasce assim
poderes e buscado outro tipo de funcionário. O pertencimento a investigação, como a possibilidade dos Estados nascentes tra-
a esse estrato específico de especialistas facilitou, em todo caso, tarem todas as infrações como se fossem os delitos flagrantes do
a sua natureza externa à sociedade sobre o qual atuava. sistema romano (que recebiam um tratamento menos cerimo-
Essas burocracias nascentes substituíram, em nome do nial e mais punitivo). Desse modo, trata-se de reconstruir o fato
Rei, os diversos poderes locais, seguidamente abusivos (como ocorrido de acordo com critérios de “verdade”. Como aponta
no caso do Fuenteovejuna de Lope de Vega), e também a comu- FOUCAULT, “essa inserção do procedimento de investigação
nidade nas atividades jurisdicionais. atualizado, torna presente, sensível, imediato, verdadeiro, o
Mais do que usurpar a função de julgar, o poder jurisdicional, ocorrido (...) constituiu um descobrimento capital” (1995: 82).
o Estado e o Direito, (o Rei e seus juristas expertos) apropria- Isto se relaciona também com o já mencionado entorno
ram-se das relações de poder interpessoais, do conflito em si. E da confissão, que vinha a revelar um complexo mecanismo
isso é especialmente relevante no que diz com a justiça penal. O de prova sobre os fatos juridicamente relevantes para o caso.
monopólio estatal do ius puniendi significa que se substitui não “O direito probatório medieval foi desenhado no século XIII
apenas a sociedade em assembleia, senão também as vítimas nas para substituir o sistema probatório anterior – as ordálias –
suas queixas, e em seus lugares aparecem funções estatais que que a Igreja católica destruiu definitivamente no ano de 1215”,
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segundo LANGBEIN (2001: 4). sejam percebidas como supérfluas. Não faz falta estender-me
O sistema de valoração legal da prova implicava que sua aqui, contrariamente, sobre a valiosa função de garantia desse
autoridade originária ou mesmo a lei fosse o que concedesse ou exercício de transparência (TARUFFO, 2006).
não, a priori, eficácia probatória aos elementos de prova. Nesse Como outra característica expoente do sistema inquisitivo
sentido, era especialmente simples dar início à atuação judicial apareceu, no século XIII, na França, uma figura que não tinha an-
com base na suspeita, rumores, indícios que podiam dar lugar tecedentes nem sequer no direito romano: o procurador, a origem
à acusação. A isso se denominava “prova semiplena”, mas era do Ministério Público. Esse personagem representava o soberano
muito mais difícil conseguir uma condenação (e também uma lesionado pelo dano e permitiu que o poder político se apoderasse
absolvição), pois aí entrava em jogo o mecanismo das “provas dos processos judiciais (FOUCAULT, 1995: 75 e ss; ALESSI, 2001:
tarifadas” ou legais. Era este o sistema idealizado para prevenir 77-81). A transcendência dessa inovação não requer esclarecimen-
atuações independentes, arbitrárias ou irregulares dos juízes. tos, mas sim requer outro livro sobre a específica “questão” do
poder de acusar. Não obstante, tanto nesses momentos em que
Isso se relaciona com essa espécie de “autoconfissão” do juiz,
emergia a figura, como na reflexão crítica que se fez sobre toda
que é a motivação ou fundamentação e que constitui outro tipo
a administração da justiça, na passagem do século XVIII ao XIX,
de legitimação da decisão imposta. A motivação, que atualmente
encontra-se provavelmente a chave, também, para a problemati-
é uma exigência universal de qualquer ato de poder, precisamen-
zação de sua atual presença herdada.
te como reação à forma de exercê-lo discricionariamente, não
formava parte desse modelo judicial. De fato, era o oposto ao Sua intervenção descontínua, quase desnecessária, a
descrito como verdadeiro poder decisório do juiz. partir de alguns escritos, é mais bem um corolário das formas
de atuar na investigação dos fatos, que impõe a escrita sobre
Assim como no direito romano recuperado, o papa Ino-
a oralidade no processo de investigação. Isso se relacionava,
cêncio III havia imposto, em 1199, que a sentença propter
também, como parte da mesma transformação política, com a
autoritatem judiciariam presumi debet, pela mera autoridade
possibilidade de controlar o julgador, com poder e legitimidade
do juiz, era presumidamente válida. Em tal sentido, a prática
para fazê-lo (o Rei) através das apelações sobre as decisões dos
habitual, de acordo com os historiadores do direito, indica que
julgadores. A apelação da sentença é uma instituição política
a motivação era desaconselhada, como o faziam os juristas, ou
nascida para assegurar a centralização do poder e a organiza-
estava proibida, como o fazia a legislação castelhana (NIETO,
ção hierárquica, e não como garantia do imputado. Em suas
2000: 142). No primeiro caso porque se temia perder a dignida-
origens, é um instrumento nesse processo de centralização e
de e o poder do cargo. No segundo caso, entre outros motivos,
monopolização do poder de julgar: o recurso frente ao Rei era
para impor a lei castelhana sobre o direito romano ou doutrina
um ataque contra os juízes locais. O que não obsta sua moderna
dos juristas, e para que a resolução fosse mais rápida e não se
função garantística (MAIER, 1996: 713 e ss), ainda que sua natu-
demorasse buscando falsas justificações ou explicações.
reza tenha sido herdada. Entendo que a única forma de evitar o
Se o juiz está identificado com a autoridade decisória, efeito político buscado nas origens do instituto seria limitá-lo
como é o caso atual do Jurado, parece lógico que não deva expli- à possibilidade de revisar condenações, como ocorre com as
car seus motivos, nem possibilitar interferências ou controles sentenças dos jurados anglo-saxões, e como o estipula a correta
internos ou externos. A herança da percepção dos juízes como leitura dos tratados internacionais de direitos humanos (FER-
autoridade legitimada por si mesma faz com que as motivações RANTE, 1995: SIENRA, 2001). Permitir a revisão de sentenças
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absolutórias (ainda mais grave quando emanadas dos Tribunais não permitiram a sua propagação, inclusive quando se con-
do júri, já que desconhecem o poder soberano de julgar distri- servaram, apesar de terem cedido terreno para a Inquisição”,
buído entre os que não o exercem, senão excepcionalmente) dizia Faustin Helie (MAIER, 1996: 297). A tortura se afirmou
constitui um claro vestígio inquisitivo e absolutista. quando o poder começava a se centralizar e a ser administrado
A última característica que se poderia destacar é, outra vez, burocraticamente por uma corporação de expertos, que consti-
a forma oculta ou secreta da atuação da justiça, que “histórica e tuíam uma instituição que legitimava essa prática. A prática de
naturalmente apareceu unida à escrita” (MAIER, 1996: 296). O torturar converte-se em uma das tantas atividades probatórias
segredo procurava o êxito da investigação e do posterior casti- severamente regulamentadas, que outorgavam valores numéri-
go enquanto direito estatal. Para FOUCAULT, “a forma secreta cos para taxar ou valorar a certeza sobre a verdade do ocorrido
e escrita do procedimento responde ao princípio de que, em de acordo com a metodologia da investigação (ALESSI, 2001: 71).
matéria penal, o estabelecimento da verdade era, para o sobe- Nesse sentido, dá-se início a uma amplíssima literatura jurídica
rano e seus juízes, um direito absoluto e um poder exclusivo. que põe limites, embora justifique, permita ou tolere o terror
Ayrault supunha que esse “procedimento (...) tinha por origem (SABADELL, 2007: ZYSMAN, 2013: 249). O direito também se
‘o temor aos tumultos, às gritarias e clamores, aos quais o povo desenvolveu paralelamente a este esforço de medição. “Sobre
se entrega ordinariamente, o temor de que houvesse desordem, esta regulação da tortura se compilaram vastos tratados legais
violência, impetuosidade contra as partes e inclusive contra os para guiar o magistrado encarregado do interrogatório na de-
juízes’. Dir-se-ia que o Rei, com isso, queria demonstrar que o terminação de saber se havia causa provável para se admitir
‘poder soberano’ ao qual corresponde o direito de castigar não logo o interrogatório sob tortura”, informa LANGBEIN (2001: 7).
pode, em caso algum, pertencer à ‘multidão’. Diante da justiça É quiçá por isso que todas essas características da jus-
do soberano, todas as vozes devem calar” (1998: 41). tiça real e do direito estatal são indicadas tradicionalmente
Estas duas características de escrita e segredo também como um exemplo de “racionalização”, entendido assim pela
eram acompanhadas da exclusão do acusado como sujeito do substituição das formas bárbaras medievais por outras com le-
processo, tanto durante a investigação, quanto no momento gitimações jurídicas e mais imparciais de se fazer justiça. Não
de influenciar na decisão. O acusado deixa de ser sujeito da apenas a tradição jurídica, como também a sociologia, realiza-
relação e passa a ser um objeto ou dado da mesma, dele se ram essa apreciação. A crença de DURKHEIM (1985 e 1999) de
extrairá (literalmente) a prova mais absoluta, a confissão. É que as sociedades progridem de uma concepção punitiva para
por isso que a outra característica do sistema, como já se disse, outra restitutiva de justiça penal teve muitos seguidores, mas
foi a tortura judicial. A meta absoluta da investigação (a ave- a evidência disponível aponta para um “progresso” contrário.
riguação da verdade) não se importava em recorrer à tortura Os pensadores abolicionistas, de modo contrário ao pensa-
sobre o corpo do acusado, que agora seria um órgão de prova da mento jurídico e sociológico majoritário, assim demonstraram.
“verdade”. “A tortura, extraída dos textos do direito romano, ou Citando Steinert, Hulsman e Mathiesen, afirma LARRAURI
de fato praticada por certos funcionários reais, desenvolveu-se que “a falácia de Durkheim é provavelmente o resultado de
extraordinariamente graças à investigação secreta e escrita em como o século XIX olhou a Idade Média, e ao progresso desde
que consistia o processo, em perfeita harmonia com esse tipo de então, e a uma projeção desta imagem em tempos mais recen-
procedimento; pode-se constatar historicamente tal afirmação tes” (1987: 101). De fato, e esta é a tese principal das modernas
se se observa que as formas feudais de audiência pública e oral tendências sociológicas, também se pode sustentar que dita
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“racionalização” teve um papel fundamental no aumento da da justiça, senão que se estendem, especialmente, ao terreno
violência e não na sua diminuição (BAUMAN, 1997). religioso e ao poder político monárquico, ainda que, certa-
Nas sociedades segmentárias (as que identifico aqui como mente, neste campo é onde as continuidades com os rituais
o sistema social prévio à essa “revolução” judicial, estatal e ca- permanecem de forma clara. Inclusive, naqueles que supe-
pitalista), os processos de resolução de conflito interessavam-se raram a etapa monárquica e confessional. É possível realizar
justamente pela restauração da ordem a partir da reparação dos sugestivas observações a partir do conceito de “ritual” judicial
danos. Por isso, o ritual apontado por eles e seu direito sempre e penal (ANITUA, 2003; TEDESCO, 2015), mas agora me deterei
pretendia alcançar um compromisso, que é o contrário da decisão na origem da atual cenografia.
imposta “desde cima”. Pelo contrário, aduz MOORE que “quando Por um lado, a arquitetura judicial revela importan-
os governantes começam a se estabelecer, e a criar um aparato de tes acontecimentos no que toca à organização de um poder.
Estado aceito, suas formas de desenvolvimento mais antigas supõe Nesse sentido, apontou-se o peso cada vez maior do modelo
sempre a aparição de uma hierarquia de serviços especializados na do “chambre” sobre o do “salle”, um processo de “afastamento
manutenção da ordem – juízes, polícia, etc. – e o próprio direito se do justiçado” e da comunidade, e da concentração sobre o juiz,
faz coercitivo, impondo, desde cima, um modelo de culpabilidade que monopoliza em si mesmo todo o simbolismo do poder de
ou inocência estabelecido de acordo com códigos promulgados julgar (JACOB, 1991).
por uma autoridade central” (1989: 131 e 132).
Nesse momento, e em todos os poderes, especialmente nos
Tanto aqueles mecanismos locais quanto os novos tinham públicos, o espetáculo foi assumido como uma técnica de gover-
rigorosas formas rituais de se manifestar. De fato, pode-se dizer no de condutas. O diagrama do poder monárquico, no entanto,
que no sistema judicial do Antigo Regime organizava-se um apresentava um uso discricionário e excludente dessas zonas
manuseio estrito do ritual muito mais complexo. Cuidam de publicizadas, posto que o segredo também foi parte importante
rituais que tinham a capacidade de atuar internamente e, por desse diagrama de exercício do poder.
sua vez, evitar os controles externos.
A importância da técnica política e judicial do segredo, her-
O aspecto cerimonial e festivo que existia nas cerimônias dada da organização eclesiástica, aumentou no sistema judicial
punitivas antigas continuou no Antigo Regime e, talvez, na das monarquias europeias da Idade Moderna e ficou claramen-
atualidade. Mas a ritualística mudou de sentido já que, como te consolidada nos séculos XV e XVI. Não é por acaso que isso
aponta CAILLOIS, “quando o segredo, a máscara e a roupa de- ocorre a partir do momento em que a imprensa permitiu uma
sempenham uma função sacramental, pode-se estar seguro que maior difusão das opiniões. O segredo, logicamente, não foi fa-
não há um jogo, há uma instituição” (1986: 29). Quer dizer vorecido pela imprensa, senão que o temor da difusão livre das
que a cerimônia persiste, mas agora está regulamentada (como opiniões serviu para que, desde o poder central e seus funcioná-
o direito) e buscará influenciar na organização da vida social rios judiciais, se procurasse limitar a influência de tais opiniões.
de forma deliberada e com preeminência sobre determinadas As medidas de censura e de castigo, para aqueles que a evitam,
relações de poder. Para ampliar essas idéias, deve-se ter em sucedem-se amplamente em todas as legislações europeias desde
conta a obra de Robert JACOB, para quem a justiça nasceu e se o século XVI. A censura prévia, para autores católicos, é imposta
desenvolveu mediante imagens (1994). As imagens e símbolos pelo Papa Inocêncio VIII em 1487 e, posteriormente, fizeram
que adotaram os Estados soberanos não se limitam ao campo os Estados para proteger o poder real e já não a unidade da fé.
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Protegê-lo sobremaneira da crítica e do controle de outras fontes de supremacia. Esse meio privativo e inalienável do poder real
de poder (VIDAL BELTRÁN, 2001: 136). O desenvolvimento foi a justiça”, de acordo com SÁNCHEZ ARCILLA (1995: 505).
desse objetivo afundaria em controles de modelo interno, cada Todo esse processo de surgimento do poder real de julgar,
vez mais opacos e inextrincáveis. como exercício da monopolização da violência, está sendo aqui
Entretanto, esse desenvolvimento da administração esta- expressamente simplificado, como que para pôr em destaque
tal, atuando no escuro, também foi acompanhado de um espaço um elemento genealógico principal da justiça, identificado com
onde o poder era claro. Como indica Foucault, na cerimônia do aquilo que possui de negativo. Mas também deve ser reconhecido
castigo caía o véu do segredo do processo e o público tomava co- o evidente elemento secularizado, enquanto condição da possibi-
nhecimento das circunstancias que rodeavam o crime que estava lidade de extensão do sempre ambivalente discurso e prática do
a atacar a vontade soberana. Dessa maneira, o castigo público era direito, que se tornava independente do âmbito da moral (PRODI,
a vingança, a manifestação de violência que lembrava a justiça 2008: 155 e ss.). Por isso, é importante matizar, assim como insistir,
de sua força, ao condenado de sua infâmia e ao povo do poder ir- que o processo não foi igual em todos os cenários europeus, assim
restrito da lei e do soberano. “Os mecanismos de poder são em si como tampouco tiveram, nos diferentes lugares, iguais aceitações
suficientemente fortes para absorver, exibir, anular, em rituais de e resistências, nem produziram idênticos resultados.
soberania, a enormidade do crime” (FOUCAULT, 2000: 86). Esse
Um exemplo interessante desse surgimento é o que ocorre
ritual era um assunto político que sustentava aquele sistema. “A
na Inglaterra. As tentativas de consolidar uma estrutura estatal
execução em si era uma demonstração ritual de força e afirmação
ali começaram com a conquista normanda de 1066, ou seja, antes
de poder, conduzida, da mesma forma como em qualquer outro
daquelas ocorridas no continente europeu. Segundo uma inter-
ritual, com a pompa e circunstância de uma cerimônia pública”,
pretação tradicional, ao conquistar a ilha britânica, Guilherme
ensina GARLAND (1999: 170).
“o conquistador” tinha um território dividido, feudalizado ao
Esse ritual judicial é, provavelmente, o maior atributo da extremo e com costumes, leis e tribunais das mais diversas índo-
soberania encarnada no Rei. “Nesse conceito de soberania con- les. Com o objetivo de crescer o poder real e criar um verdadeiro
fluíram todos os aspectos que até agora apontamos: a concepção reino moderno, o soberano (da mesma forma que os monarcas
divina do poder real e seu caráter ministerial, a influência de- do continente) começou por unificar os costumes e por atri-
cisiva do renascimento e revalorização dos estudos de direito buir-se a administração da justiça (JAUREGUI, 1990: 35 e ss.),
romano como fator primordial para a potencialização do poder tentando unificar o direito e a jurisdição. Também, nesse caso,
real com respeito aos restantes poderes temporais e, finalmen- a beneficiada por este tipo de administração da justiça foi uma
te, como consequência do anterior, o intenso trabalho levado a classe burocrática ligada ao Rei, que assumia funções jurisdicio-
cabo pelos juristas medievais que poriam a serviço dos príncipes nais temporárias, enquanto viajava para as distintas jurisdições:
os meios necessários para adequar à realidade política todos os os justice in eyres (ALESSI, 2002: 91 e ss.).
princípios que lhes proporcionava um ordenamento jurídico tão
Contra a imposição desse regime político assimétrico
perfeito quanto centralizador. Mas todos esses aportes teóricos
começou a se gestar uma resistência, que se percebe principal-
não teriam transcendido ao plano dos fatos na configuração do
mente nos tribunais locais e inferiores, os quais tentam impor
Estado se, ao mesmo tempo, os Reis não tivessem tido ao seu
a lei comum, de origem popular e mítica (também romana),
alcance um meio eficiente e indiscutível por sua vez, através do
contrariamente aos estatutos reais normandos dos juízes reais
qual puderam canalizar e tornar factíveis todas suas aspirações
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(FOUCAULT, 1992b: 109 e ss). Finalmente, esse direito “comum”, com o poder absoluto do monarca e sua pretensão de universa-
com reminiscências romanas, terminou por ser aceito e reconhe- lidade de poder. Sem esses limites, que beneficiavam os nobres,
cido pelo próprio Guilherme “o conquistador” e seus sucessores a monarquia inglesa efetivamente teria imposto, como no conti-
em uma transação política de conveniências. Nesses pactos per- nente, sistemas inquisitoriais de julgamento, nos quais primava
sistiam algumas instituições, das quais será parte importante a o segredo e a solução autoritária. O sistema inquisitivo de jul-
presença do povo como público e logo como jurado em causas de gamento, que corresponde a uma concepção absoluta de poder
menor importância (SHAPIRO, 1981: 77 e ss.). Tinha-se chegado central, não pode aqui se impor por diversas razões. Não é razão
a um acordo que parecia conveniente ao desenvolvimento do menor a natureza diferente da nobreza inglesa, que logo se viu
Estado e do capitalismo, mas também para setores da nobreza involucrada com a burguesia e, assimilada àquela, não se apoiou
feudal e inclusive para determinados elementos populares. A mutuamente no Rei para a defesa do diagrama monárquico do
monarquia pretendeu eliminá-lo e centralizar o poder nos anos Antigo Regime.
sucessivos, provocando a reação dos poderes judiciais locais e o Entre outras das não menos importantes razões está a que
restabelecimento do pactuado common law monárquico, depois aponta Gustav RADBRUCH: “A classe profissional dos juristas,
de lutas políticas que dificultaram o fenômeno, que no conti- que na Inglaterra se desenvolveu como corporação à parte, antes
nente ficou conhecido como recepção do direito romano, com a do que em qualquer outro país, encabeçou a luta contra a recep-
aparição da Inquisição e uma burocracia judicial centralizada. ção do direito romano, fechando definitivamente a sua passagem,
Um exemplo dessas lutas entre poder central e poderes ao reservar para si a formação das novas gerações de juristas, ao
locais se observa no idioma. O idioma da monarquia e da justi- invés de confiá-la às Universidades” (1998:69). Essa é a tese com
ça foi o francês e apenas em 1362 se aceitou, por lei parlamentar, que Max WEBER explica a derrota da imposição da racionalidade
o inglês como idioma nos tribunais devido à pressão popular. jurídica moderna (e a burocracia) na Inglaterra (1985: 196).
De qualquer forma, o francês continuou sendo usado como
Como último marco de construção dessa diferença, e si-
língua judicial oficial até 1731 (GUARDIA MASSÓ, 1991: 41).
tuado dentro da luta contra o absolutismo, devo destacar os
Além das vicissitudes da monarquia normanda, e como processos revolucionários do século XVII. Apontou-se que
outro marco na história jurídica e judicial inglesa, devem também esses marcos formam parte de toda uma “tradição progressista”
ser destacados os acontecimentos do ano de 1215. É nesse ano voltada para a revolução, que faz as vezes de explicação da tra-
que os barões feudais impuseram ao rei João Sem Terra certas dição de não ruptura do processo inglês que foi, apesar disso, o
petições, as quais ele se viu obrigado a assinar sob o título de mais liberal de todas as outras ascensões da burguesia ao poder
Magna Charta (LINEBAUGH, 2013). Em virtude da cláusula 39 (TREVELYAN, 1986: 11). Em todo caso, é possível ver aí o início
da Carta, reforçou-se a proteção contra as prisões arbitrárias, de outro importante marco na configuração do poder de julgar
declarando-se ilegal a prisão de um homem livre, salvo que se nos Estados ocidentais.
originasse de um juízo legal frente aos pares e aos juízes reais. A
O triunfo do liberalismo ali se deve a que as últimas ten-
partir de então, começou a se observar, antes mesmo do que em
tativas de instaurar o absolutismo monárquico e o sistema de
outras partes da Europa, uma utilização dos direitos no sistema
julgamento inquisitivo na Inglaterra terminaram em uma grande
de julgamento como limite ao poder. O direito não foi funcional
derrota. Com distintos carizes, a Revolução puritana de Oliver
nesse caso para a burocracia e centralização monárquicas, senão
Cromwell, que deu lugar ao Instrument of Government, e depois
que seus limites foram impostos por grupos que se enfrentavam
60 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA GABRIEL IGNACIO ANITUA 61

a mais pacífica Revolução Gloriosa de 1688, que produziu o Bill of ao do Rei (PISARELLO, 2012: 60). A maioria dos parlamentares
rights, simbolizam essa derrota. Esses instrumentos legais foram da gentry eram magistrados, que defendiam a ideia da resti-
os precursores do constitucionalismo como movimento que tuição de supostos direitos tradicionais arrebatados do povo
impôs limites ao poder. O elemento antiestatal da reforma reli- inglês pelo monarca estrangeiro (normando). Apresentavam-
giosa é importante, uma vez que foi majoritário nos estamentos -se, assim, como defensores da sua liberdade, seguindo a senda
antimonárquicos revolucionários, bem como nos monárquicos do juiz Edward Coke, mas agora desde o Parlamento.
dispostos ao pacto posteriormente. É por isso que a própria mo- Esse Parlamento revolucionário foi o que aboliu em 1641 os
narquia observava nos princípios puritanos esse componente tribunais inquisidores das Courts of High Commission e a Star
antiestatal (WEBER, 1973: 118). Chamber, que tinha sido criado em 1487 de acordo com o modelo
As duas revoluções inglesas supõem a primeira mudança inquisitivo europeu (MUBIG, 2014: 157 e ss.), impondo o julga-
histórica na Europa moderna. Em direção ao que elas produzi- mento por jurados como único legítimo para autorizar o poder
ram inclinou-se o modelo ao qual se dirigiram as experiências punitivo. Também proibiu a tomada de juramento e a obrigação
e ideias do século XVIII, que serão expostas na continuação. de denunciar o imputado para obter a confissão (O´REILLY, 1994:
Essa série de eventos começou com a assinatura por parte de 409 e ss.). Quando em 1649 o Rei se nega a aplicar o acordo da
Carlos I da petition of rights de 1628, na qual se limitavam as Petition of rights, converteu-se no primeiro monarca que perdeu
prerrogativas reais, restabeleciam-se as “antigas” liberdades e a cabeça pelas mãos do Parlamento e da representação popular,
se reconhecia o Parlamento como lugar onde a nobreza e a bur- nos moldes da ameaça feita pelos puritanos para o caso de que
guesia exercem o seu poder. não pudessem ter a liberdade de professar seu culto, que era a de
Entre essas liberdades aparece com uma importância “tirar a coroa do Rei com a cabeça posta”. Cumpriram e geraram
maiúscula a liberdade de imprensa, que estava impedida por um precedente de grande conteúdo ritual (HILL, 1983).
legislações similares àquelas do continente, inclusive com uma No que diz respeito ao juízo por jurados, que se impôs a
maior importância do que a Igreja no exercício do controle. Mas partir de então como forma razoável de resolver os conflitos
especialmente aparece a liberdade de exercer o poder de julgar em oposição aos tribunais inquisitivos, é importante recordar
sem dependências do poder real (FOUCAULT, 2007: 60). Prin- que, segundo indicam diversos autores da época, suas origens
cipalmente, opunham-se os revolucionários à aparição de um remontam aos fenômenos participativos que se limitavam à
poder judicial centralizado, como no resto da Europa. De fato, mera presença como testemunhas do investigador, que julgava
os acontecimentos que se mencionam como revolucionários de acordo com o direito comum inglês. A presença de pessoas
estão relacionados com a reclamação por um juízo público, com da coletividade no ato do julgamento aportava aos juízes régios
conotações políticas, frente ao processo inquisitorial, que a Star a informação específica sobre os fatos, costumes e usos locais,
Chamber utilizava contra John Lilburne por ter editado pan- quando o poder do monarca pactuou sua soberania com os
fletos antimonárquicos, e com a reação do parlamento frente nobres. Essa presença popular aportava autoridade à sentença
à tortura que aquele Tribunal lhe aplicou para sentenciá-lo e legitimidade aos juízes (SHAPIRO, 1981: 57). Essas funções,
como culpável (TEDESCO, 2001: 38). O mencionado Lilburne evidentemente, foram observadas por Shapiro em uma análi-
era o líder dos niveladores ou levellers, grupo “duro” dos repu- se atual de comparação. Não obstante, já para o século XVII,
blicanos e igualitaristas, que asseveravam a defesa do “direito reconhecia-se a importância dessa participação popular, que
comum” e especialmente o poder dos magistrados como limite logo deixou de ser mera testemunha do juízo e passou a ser
62 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA GABRIEL IGNACIO ANITUA 63

juiz dos fatos (HENDLER e CAVALLERO, 1988: 26 e ss.). Não fossem ouvidas, julgadas e resolvidas abertamente” (PECES
é possível apontar com grau de certeza essa origem quase mi- MORATE, 1986: 136). O Poder do soberano se identificava com
tológica do jurado na Inglaterra, mas o que está claro é que uma violência não justificável.
a revolução inglesa deu supremacia definitiva ao julgamento Nesses momentos, tanto na Holanda como na Inglaterra,
público e por jurados. E também deu prestígio democrático a era produzida uma mudança de sensibilidades frente à vio-
esse método. Isso foi possível com outro modelo de juiz. Um lência, que iam de mãos dadas com as mudanças nas formas
modelo no qual a jurisdição deveria estar radicalmente sepa- concretas de expressão do capitalismo mercantil e, incipien-
rada do governo, segundo recorda ANDRÉS IBAÑEZ (2015: 48 temente, fabril e também com a afirmação do Estado e sua
e 49) desde Mc Ilwain. pacificação interna. Isso também coincidiu com a aparição de
Vários juízes foram teóricos desse novo poder limitador do uma nova classe de intelectuais, ligados à burguesia, que co-
poder do soberano com legitimação na própria comunidade. O meçava um processo identificado com a ilustração. BEATTIE,
primeiro que menciona a necessidade de um juízo com controle historiando a penalidade na Inglaterra nos séculos XVII e XVIII,
público, antes da Revolução que o firmaria perenemente, foi dá conta dessa mudança de mentalidades na noção de justiça.
Thomas Smith em 1565, mas sem indicar o fundamento dessa O êxito da função de julgar, na sua nova dimensão pacificadora,
prática, posto que apenas insistia na necessidade da presença associa-se às mudanças nos rituais para fazê-los menos visivel-
da comunidade, que deve escutar tudo o que dizem os juízes, mente violentos (1986: 39).
advogados, testemunhas e o prisioneiro (ANITUA, 2003: 73).
Essas reformas produzidas em torno da penalidade e do
É fundamental ter em conta o trabalho do juiz Edward juízo na Inglaterra são fundamentais para entender alguns crité-
Coke que, em 1612, no julgamento de “Bonham”, deu um ante- rios que guiaram os personagens mais importantes da Ilustração
cedente para essa revolução, ao tempo que impunha a gênese e, logo, o momento codificador no continente europeu.
da separação dos poderes (FERRAJOLI, 1995: 586). Sua obra
foi o mais importante antecedente das novas políticas e teo-
rias sobre a justiça e a política (HILL, 1980). Foi a primeira
explicação de um poder jurisdicional diferente do real, então
encabeçado pelo centralista Jacob I. Frente a sua pretensão de
resolver as causas judiciais, recuperando o poder delegado, “foi
respondido por Coke no sentido de que o monarca não estava
habilitado para decidir nenhuma causa pessoalmente, pois
todas elas, civis ou criminais, tinham que ser dirimidas em um
tribunal de justiça, segundo o direito e o costume do reino”, diz
ANDRÉS IBAÑEZ (2015: 50). Não apenas o direito, mas também
a função jurisdicional são assim concebidas mais como limites
do que expressão do poder real. A divisão de poderes come-
çava a irromper, e o fazia recordando o velho direito comum,
mas também, especialmente, a mesma comunidade. Também
declarou Coke “a grande importância de que todas as causas
Capítulo 3
A REFORMA LIBERAL E O JUIZ DA LEI

É outro momento crucial nesse caminho o que ocorrerá,


então, no século XVIII e na chamada Ilustração, com deter-
minados elementos humanos críticos consubstanciados com
a ascensão da classe burguesa. Essa nova esfera pública de
opinião, nem estatal nem eclesiástica, passava pela utilização
da razão e do juízo para criticar o campo artístico, para a sua
utilização nos campos investidos de segredos e proibições até
então: a religião e, sobretudo, o Estado (HABERMAS, 1994).
É importante agregar que aqueles que se sobressaíram na
tarefa crítica e mereceram ser chamados de “ilustrados” não
foram figuras especialmente versadas em direito e não integra-
vam, em quase nenhum caso, parte das estruturas burocráticas
afiançadas. Apesar disso, o que lhes rendeu censuras de parte
dos expertos da época, atreveram-se a atacar princípios, que de
tão “racionalizados” pareciam óbvios ou naturais. É assim que
“Beccaria e Voltaire se fizeram famosos como críticos da tortura
judicial, apesar de recém-chegados a uma literatura legal crí-
tica, quase tão velha como o direito de tortura em si mesmo”,
segundo LANGBEIN (2001: 8).
De fato, o programa crítico da ilustração não apenas não
ficava de fora senão que constituiu um especial ponto de referên-
cia da crítica ao direito e, em concreto, à forma de julgamento e
à judicatura. As “bandeiras” do iluminismo nessas áreas foram,
por um lado, a defenestração da tortura e do segredo do julga-
mento e, por outro, a crítica à crueldade e à infâmia dos castigos
públicos. Uma e outra crítica tinham em mira o agir da justiça
do absolutismo monárquico, especialmente na França, onde os
Parlamentos judiciais foram objeto de atenção crítica por parte
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da assembleia legislativa. características de seus membros individuais. A isso se somavam


Nesse país, o já mencionado processo de criação de uma ma- as características hereditárias e a compra desses cargos, que, com
gistratura profissional de procedência real se estendeu com maior tudo isso ou precisamente por isso, tinham logrado obter certa in-
rapidez e perfeição. Isso fortaleceu a posição do monarca, mas dependência do Rei, pois nem sequer seus mandatos ficavam fora
também a dos próprios juízes. Dentre as funções do Rei, separa- dessas vontades dos juízes, individuais ou corporativas e, em geral,
va-se por especificidade a de julgar, que se desenvolvia na prática corruptas. A natureza patrimonial asseguraria a permanência ou
através de autoridades submetidas (justiça delegada) ou direta- inamovibilidade de alguns cargos que, ao enfrentar o poder real,
mente por ele (justiça retida). Mas o certo é que também nesta iam aprofundar os elementos corporativos nesses juízes. “A Ma-
última o Rei confiava em conselheiros que, finalmente, tomavam gistrature ficou constituída como um autêntico corpo, com seus
as decisões em seu nome e cujas funções se atomizavam. próprios regramentos, costumes e atos de isenção; com privilégios
e interesses comuns do coletivo e seus membros por proteger; en-
O poder soberano de julgar recaiu, finalmente, no Parla- quanto a responsabilidade individual dos juízes se diluía em tudo”,
ment, que de “expoente da justiça delegada, acabará sendo uma aponta PARDO LÓPEZ (2009: 188).
verdadeira e própria seção autônoma dentro daquela, uma ju-
risdição permanente” (ANDRÉS IBAÑEZ, 2015: 53). Da sede em Os filósofos práticos, aqueles que vão de Montesquieu
Paris, ampliou sua área de cobertura, criou outras treze sedes em a Voltaire, e de Verri a Beccaria, para não mencionar os au-
grandes capitais. Compare-se a sua extensão com a do Ministério tenticamente radicais, foram fundamentais para criticar essas
– e depois Audiência – em Castela, que possuía uma sede única faculdades que, corretamente, as associavam à velha ordem a
onde estava a Corte, e que passou a ter duas fixas, uma em Valla- qual pretendiam substituir por uma nova. Nesse sentido, eles
dolid e outra em Granada, que monopolizaram o poder em maior foram também os “responsáveis” pela Revolução Francesa,
grau e com mais dependência real do que as similares francesas “foram os que estabeleceram a diferença entre uma simples
(APARICIO, 1995: 14). quebra de um velho regime e a efetiva e rápida substituição
por um novo” (HOBSBAWM, 1998: 67).
A efetiva administração da justiça, na França, estava em
mãos dos Parlamentos; o Rei, simbolicamente, era quem de- Esses foram os atores que, com o discurso da educação e
tinha a faculdade de julgar, mas “San Luis distribuindo justiça transparência, enfrentavam esse poder criticando-o e postula-
não passava de uma metáfora” (ZAFFARONI, 1994: 51). Pelo vam um novo sistema de julgamento, a partir da necessidade
contrário, os conflitos apresentavam-se porque esses juízes se de impor um sistema republicano de governo, que substituís-
arrogavam tarefas legislativas e, inclusive, executivas. Especial- se o absolutismo monárquico. O novo sistema permitia, ainda,
mente, o conflito dava-se no tocante às autoridades judiciais afirmar a dignidade do ser humano na questão judicial. Ambos
em si. A desordem jurisdicional ao final do século XVIII cons- interesses resolviam-se com os mesmos remédios, posto que
tituía a regra, existia um permanente conflito de competência, aquilo que violentava a democracia e a dignidade humana, no
que na realidade encobria disputas por honorários e poderes. Antigo Regime, era a mesma coisa. Tinham na mira, e provavel-
mente idealizavam, o sistema romano republicano e o praticado
O poder dessa judicatura francesa era mais amplo do que o na Inglaterra que, como ficou apontado, não foi influenciado tão
meramente ligado a resolver conflitos e tinha importantes atri- profundamente pela centralização monárquica.
buições de polícia, o que dava maior espaço para demonstrar
arbitrariedades e abusos, que foram, finalmente, as principais Como se sabe, o resultado dessas lutas não teve o efeito
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quiçá desejado, senão que culminaram também no que diz res- poder político. O modelo participativo e de controle comunitário
peito ao poder judicial por reforçar estratégias disciplinares e foi, pelo contrário, o que propuseram infrutuosamente a maioria
verticalizadas de poder, como as técnicas apontadas por FOU- dos ilustrados radicalmente democráticos. Não obstante essa par-
CAULT (1998), e continuaram tanto o processo “racionalizador” cial falta de concretização do projeto ilustrado, o certo é que essas
apontado por WEBER (1993: 1060 e ss.) quanto o centralizador ideias foram cruciais para os processos de resistência dos séculos
explicado pelo brilhante TOCQUEVILLE (1969). O saber das seguintes e foram um especial paradigma ao qual se voltou a recor-
novas disciplinas científicas reforçaria essa estratégia oculta de rer após a derrota dos nazifascismos, em 1945, na Europa, e a partir
poder, ampliando, ademais e finalmente, as estruturas burocrá- da década de oitenta em Portugal, Espanha e Ibero-América.
ticas do Estado (MARÍ, 1993: 187). O paradigma ilustrado não apenas significava uma limitação
Acredito que após o fracasso de tais tentativas, que agora ao poder, senão que pretendia recuperar a função do poder de
explicarei, o sistema burocrático da administração da justiça e julgar em benefício da comunidade, relacionando-o com a ordem
da administração em geral reorganizou-se e se recentralizou, e o controle exercidos contra o próprio poder. Uma característica
além de ter sido ampliado. De fato, ainda que o surgimento e importante para os ilustrados encontrava-se na necessidade de
amplo desenvolvimento da administração burocrática (também democratizar o poder. Também, evidentemente, no poder que se
na justiça) seja produto dos estados absolutistas, tal modelo exerce na função de atribuir verdades e, possivelmente, castigos.
burocratizado não deixou de crescer com o advento da época A conexão do judicial com o político ficava estabelecida com cla-
posterior às declarações e codificações, como se verá com o im- reza em todos os ilustrados a partir do pensamento de outro autor
pulso de Napoleão. Pelo contrário, os funcionários públicos, ao francês, que é central para localizar esse novo marco da genealogia
deixarem de ser servidores do Rei, puderam alcançar logo uma judicial. Charles Louis de Secondat, Barão de MONTESQUIEU,
maior autonomia como servidores da “Nação”. “Ademais, a re- ocupa um lugar privilegiado relativamente aos discursos legiti-
volução industrial não apenas estimulou os governos para que madores e, por sua vez, limitadores desse poder, caracterizando
realizassem novas funções, mas também permitiu a arrecada- O espírito das leis como “o poder de julgar, tão terrível para os
ção de quantidades muito maiores de impostos e o emprego de homens” (MONTESQUIEU, 1972: 152).
um número muito maior de funcionários. Como resultado de Em um contexto de resistências contra o poder real, que
tais desenvolvimentos, pressões e recursos novos, aumentaram dava lugar às reivindicações pelo “juiz natural” e às lutas contra
o tamanho e a importância das organizações administrativas as “comissões reais” (MUBIG, 2014: 118 e ss.), no qual ele mesmo
continentais”, indica KRYGIER (1981: 28). Como resultado desse integrou essas judicaturas, repouso ainda do poder da nobre-
processo, não é demais recordar a visão sobre a maquinaria za (especialmente em Bordeaux natal), Montesquieu deu uma
judicial penal que realizou Franz Kafka em O processo. resposta mais complexa e superadora dessa dicotomia, que jus-
Desde esse momento, dois modelos opostos desenvolve- tificaria as teorias de divisão de poderes e, especialmente, da
ram-se paralelamente: o da administração burocratizada e o do independência judicial. A proposta excede, logicamente, nossa
controle popular democrático. Essa tensão se verificou na justiça matéria e é possível ver nele o introdutor do liberalismo frente
penal mais do que em outros âmbitos. O modelo da burocracia ao autoritarismo real, sem retroceder ao pluralismo feudal.
teria maiores possibilidades de êxito, pois era ele que estava vi-
Em sua ideia de limites frente ao poder, preocupou-se
gente e que se reportava a uma comodidade evidente, tanto aos
especialmente pelo aspecto de organização de uma justiça de
juristas profissionais quanto, finalmente, àqueles que exerciam o
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forma radicalmente diferente da existente, com limites sobre si manifestações do poder seria alterado.
mesma, mas que também pudesse contrapor-se ao legislativo, A reforma, ao menos a tentada pela Revolução Francesa,
fonte de legitimidade formal, e ao mesmo governo que execu- pretendeu, em um primeiro momento, combater a estrutura
tasse essas leis. burocrática própria dos Estados absolutistas, corrupta e cor-
Essa autolimitação, precisamente por ser tão pautada porativa, também ampliada pelos Bourbons. Os experimentos
nas liberdades individuais, garantia-se pelo apego à lei em de autogoverno local foram acompanhados de reformas na ad-
si, evitando que o próprio magistrado fosse quem a ditasse, ministração da justiça, tanto com tribunais populares como
enfrentando assim os abusos das “comissões” reais (MUBIG, com a introdução de jurados e, em todo caso, com o controle
2014: 131), também se manifestando contra a profissionalização público da atividade dos anteriormente todo-poderosos juízes,
(MONTESQUIEU, 1972: 152) e, finalmente, que seu agir público aos quais se queria lhes retirar esse poder, com suas doutrinas,
fosse assim controlado externamente. seus segredos e seus ritos (ALESSI, 2001: 118). Os democratas
Em todo o caso, suas conhecidas propostas, para transfor- radicais o faziam com argumentos diferentes aos das críticas
mar os juízes em “instrumento que pronuncia as palavras da lei, de Montesquieu, pois ele defendia inclusive a venalidade e a
seres inanimados que não podem moderar nem a força nem herança dos cargos, se isso garantisse sua independência.
o rigor das leis” (MONTESQUIEU, 1972: 112), eram dirigidas Nas propostas dos revolucionários, a crítica foi muito mais
tanto para a reforma das leis quanto para a atuação dos juízes. radical. E se pretendia fazer tábua rasa da justiça existente e da
Quiçá seu melhor intérprete prático tenha sido o Marquês de sua dualidade entre a dependência do soberano ou seu poder
Beccaria, que demonstrava a antítese dessa proposta com o juiz corporativo. Também discutia-se o caráter burocrático ou eli-
existente, quer dizer, apontando as vantagens das leis claras e tista dessa função. Todas essas diferenças propostas resultavam
simples: “para julgar o resultado (...) não se precisava mais que sugestivas e valiosas para deslegitimar o passado e pensar o
um simples e ordinário bom senso, menos falaz que o saber futuro e, em parte, foi crucial sua recuperação na elaboração
de um juiz habituado a encontrar culpáveis e que tudo reduz garantista que faz Luigi FERRAJOLI (1997).
a um sistema fictício prestado por seus estudos” (BECCARIA, Exemplificarei algo disso, que é variado e riquíssimo, nas
2011: 159). ideias de Jeremy Bentham, que além de fazer dessa proposta a
Essas ideias ilustradas foram penetrando em toda a socie- chave da sua obra escrita e prática, a desenvolveu concretamente
dade e na própria monarquia absoluta. Luis XVI, na antessala da em seu Tratado sobre a organização judicial. Ali, em 1791, o genial
sua derrota, reconheceu a necessidade de submeter a uma revi- pensador inglês se ocupou desse ramo do poder, o qual considerou
são a Ordenança processual e penal francesa de 1670, postulada “um resíduo da barbárie feudal, um ramo daquela árvore que pro-
por protesto popular. Por sua vez, convocou os “espíritos sele- duziu tanto veneno, que a assembleia constituinte destruiu com
tos” da França para colaborar com a reforma judicial mediante a sua gloria até às raízes” (BENTHAM, 1853: 23). Ademais de confiar
remissão de memórias (os cahiers), que demonstravam a necessi- na reforma empreendida pela Revolução Francesa, atrevia-se a
dade de reconhecer direitos aos imputados, reorganizar a justiça, fazer uma crítica à ideia de que a justiça pudesse emanar do Rei, ou
impor a publicidade do juízo e implantar um juízo oral frente aos do soberano, quem quer que fosse. Bentham confiava, pelo con-
jurados (MAIER, 1996: 340 e 341). Essas tentativas foram o prin- trário, em voltar para uma espécie de “procedimento natural” pelo
cípio dos fatos revolucionários, com os quais todo o sistema de qual julga a comunidade e, dando materialidade a ela, o “tribunal
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da opinião pública”. É que, ademais, tem mais legitimidade para isso eram a correção e a completude da prova na qual a decisão
fazê-lo, posto que o novo soberano coincide em sua função crítica se baseava. Mas isso significa, argumentava Bentham, que não
com dito tribunal (SCHOFIELD, 2000: 156). era suficiente dar publicidade apenas à prova, senão também,
A relação do controle público com a judicatura não aca- dentre outras coisas, aos argumentos expressados pelas partes
bava ali na sua proposta. O controle sobre os juízes, ao ser eles ou por seus advogados sobre a prova, a recapitulação da prova
por sua vez controladores dos outros funcionários, resultava feita pelo juiz e as razões sobre as quais o juiz fundamenta a sua
fundamental na sua arquitetura de governo. Por isso, desenha decisão” (SCHOFIEL, 2000: 150).
um quase-jurado, concordante com a opinião pública, através Por outro lado, também Bentham mostrava-se partidário
da seleção de um público que de forma obrigatória assistiria às de um modo de julgar livre de excessivos formalismos, evitando
audiências. “Seu propósito era o de aplicar controles e limites o domínio dos expertos ou “letrados”, por isso, mais eficiente
ao poder do juiz; dar publicidade adicional aos procedimen- e, por sua vez, mais factível de ser entendido pela população
tos jurídicos; forçar o juiz a dar publicamente razões da sua em geral (BENTHAM, 1853: 42 e 46). Escrevia isso enquanto
decisão; e melhorar a forma com a qual apresentava a prova” discutiam-se reformas concretas sobre as maneiras de realizar
(SCHOFIELD, 200: 157). os juízos penais.
É que, para Bentham, controlar os juízes era mais impor- Foi, como dito antes, a partir da Revolução Francesa que
tante do que controlar os outros funcionários estatais. Para ele, se tentou modificar o sistema de julgamento inquisitivo, ao
da mesma forma que para Montesquieu e para Filangieri, o po- mesmo tempo em que a organização política geral. Não se exa-
deroso poder judicial devia estar rigidamente regulado pela lei: gera a importância da Revolução na sua tarefa de proporcionar
“Em todas as sociedades civilizadas atuais, utilizando os mais para todo o mundo e até a atualidade uma linguagem e um
variados pretextos, os membros da judicatura manifestaram tal programa relativo aos direitos. De qualquer modo, ao final do
astúcia e audácia em comparação com a cegueira e estupidez século XVIII foi um momento geral de revoltas e agitações po-
do poder legislativo (de qualquer vertente), que logrou encon- líticas contra o Antigo Regime, nas quais aquela se inseriu e
trar meios em todos os países e, especialmente, na Inglaterra, de também se manifestou na Revolução dos Estados Unidos da
debilitar a autoridade do legislativo, anular suas disposições e América (17776-1783), na Irlanda (1782-1784), Bélgica e Liège
usurpar, assim, a sua autoridade.” (BENTHAM, 2000: 115). Toda- (1787-1790), Holanda (1783-1787), Genebra e vários outros que
via, Bentham também não confiava apenas na lei e guardava um incluíram a Inglaterra (1779), e que continuaram ao longo do
forte compromisso com as possibilidades práticas de execução. século XIX até chegar finalmente à Espanha e Ibero-América,
Por isso, não podia tomar como suas as palavras de Montesquieu, com desigual sorte (HOBSBAWM, 1998: 62).
que descrevia um juiz-máquina, submetido à lei e com restri- A tarefa da Assembleia Constituinte francesa foi intensa
ções quanto à sua interpretação. O controle, para esse autor, em matéria de reforma da organização judicial, processual e
radicalmente muito mais democrático, devia ser mais refinado penal, e mostra claramente a luta entre os princípios inquisi-
e recorrer também à sociedade, que está viva e saberá se defender tivos – que perduraram no sistema que se impôs como síntese
de poderes excessivos dos seus humanos detentores. ou compromisso – e os acusatórios – que lograram modelar
Para BENTHAM, “a finalidade última do procedimento parcialmente os primeiros.
judicial era a exatidão da decisão, e os meios necessários para Aponta Magnólia PARDO LÓPEZ que “a Revolução está
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guiada pelo rechaço aos exorbitantes poderes políticos dos soberania nacional e porque assume a função principal, isto é, a
Parlamentos e pelo repúdio das faculdades discricionárias au- de legislar” (1997: 4175).
toatribuídas por alguns juízes, que acreditavam em poder julgar É por isso que se chegou a vedar qualquer possibilidade de
pela consciência sem se ater ao direito. Ambas circunstâncias interpretação (BERGALLI, 199: 381). Mais do que isso, a divisão de
influenciam no questionamento que hoje deve ser feito sobre poderes foi vista como um baluarte contra os abusos judiciais, e
administração de Justiça: a primeira ao realizar a distribuição isso era impensável e contrário à concepção absolutista (TOMÁS
dos poderes e funções no Estado e a segunda ao conceber a Y VALIENTE, 1997: 4170). Finalmente, a instituição do jurado po-
função judicial como sujeição à lei. Mas o legado do Antigo pular se erigiu como modelo de garantia de liberdade: SIEYÈS, em
Regime francês reaparece: a utilidade de uma magistratura fun- sua famosíssima intervenção, apontava que é “a autêntica garan-
cionária e profissional, acompanhada de uma posição inatacável tia da liberdade individual na Inglaterra e em todos os países do
pelo poder político” (2009: 247). Isso se deu pela persistência e mundo nos quais se queira ser livre. Esse método de administra-
ampliação desse conceito judicial em si, que assume a magistra- ção jurídica é o único voltado para a proteção contra os abusos do
tura como algo próprio, pessoal, de modo que é indiferente que poder judicial, tão frequentes e tão temidos em todos os lugares
tenha sido comprado, herdado ou ainda, obtido pelos “méritos” onde não se for julgado pelos pares” (1989: 138). Também a reivin-
ou favores políticos das novas Repúblicas. dicação da publicidade era uma forma reivindicada de controle
Não obstante, se algo se transformou foi porque o modelo externo e interno da atividade judicial, como já tive a oportunida-
judicial revolucionário tinha claro o que não queria. “Os Parla- de de ressaltar (ANITUA, 2003). Mirabeau, em um discurso frente
mentos, desde um primeiro momento, atuaram como antimodelo à Assembleia Nacional, dizia “Dê-me o juiz que queiras, corrompi-
para o traçado da nova judicatura. A lembrança e a desconfiança do, inimigo mesmo se queres. Pouco me importa, contanto de que
(...) serviram para que os diferentes regimes e poderes que se suce- nada possa fazer sem a presença do público”. Tudo isso demonstra
deram, nos novos tempos, pusessem especial cuidado em impedir que tentavam se proteger dos abusos do poder judicial, ao invés
possíveis ingerências da judicatura no governo e não o inverso. dos abusos do governo ou do legislativo.
A verdadeira preocupação dos revolucionários franceses não era Uma das primeiras decisões da Assembleia Nacional, de 4
tanto proteger o poder judicial, mas proteger-se dele”, diz PARDO de agosto de 1789 (recém constituída como tal), foi a de supri-
LÓPEZ (2009: 254). mir justiças senhoris, proibir a venda de cargos judiciais e impor
O modelo positivo que os guiava era herdado, além do que a gratuidade da justiça. O 3 de novembro, por decreto, colocou
se observava na Inglaterra e na tradição mítica da República em licença por tempo ilimitado todos os Parlamentos, até que se
romana, da noção quase sacralizada da lei e do racionalismo. reformasse todo o sistema judicial (ANDRÉS IBAÑEZ, 2015: 55).
Como disse TOMÁS Y VALIENTE, “durante os últimos tempos Não foram estas as únicas medidas de uma das reformas de maior
da ilustração se difundiu muito por toda a Europa a crítica ao consenso popular, burguês e inclusive de setores monárquicos,
excessivo arbítrio judicial; esperava-se um juiz submetido às leis, como se pode deduzir das prévias tentativas dos Bourbons de de-
intérprete cego e mecânico daquelas. Quando com o Estado li- limitar o poder dos juízes.
beral se constitucionalizou a divisão de poderes, é óbvio que o Do 26 de agosto desse ano é a famosa Declaração dos Direi-
legislativo alcançou uma situação de preeminência, e isso por tos do Homem e do Cidadão, com seus princípios limitadores,
duas razões: porque é o poder diretamente representativo da começando pelo da legalidade. A Ordenança do posterior 9 de
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outubro proclamava a abolição da tortura judicial, que era um que não se logrou transformar a concreta administração da jus-
dos pedidos mais recorrente dos ilustrados. A Ordenança do 10 tiça com tudo isso, sobretudo se se tem em conta que, após a
de outubro de 1789 foi a primeira norma processual que esta- reação de Termidor, os Tribunais formaram parte da reação e da
beleceu a publicidade do processo criminal. A lei da reforma revanche contra os jacobinos. Não obstante, a ideia da reforma
da organização da justiça foi sancionada em agosto de 1790 e, judicial se manteve, assim como os princípios acusatórios e o
assim como a lei de julgamento sancionada em setembro de 1791, julgamento por jurados, tanto na Constituição de 1793, como na
demonstra a influência do direito inglês. Esta se destaca com a Constituição, de sinal político inverso, de 1795. Dá a impressão
introdução de um jurado de acusação e outro do juízo e, fun- que na tematização do judicial e sua independência, primeiro os
damentalmente, com a adoção do princípio contraditório e dos moderados, logo os radicais democratas e finalmente os reacio-
princípios da gratuidade, motivação da sentença, publicidade e nários, todos estavam de acordo.
oralidade dos juízos que se impunham, inclusive, para a fase de Apesar disso, as críticas reacionárias a esse novo procedi-
instrução (artigo 9). Mas também se destacam nessas normas o mento foram muitas. Na sua maior parte provinham daqueles
receio do sistema judicial, que diferencia aquele modelo e que que já sabiam se mover dentro do sistema judicial do Antigo
se concretizaria na lei de 1 de dezembro de 1790, a qual cria o Regime e do espírito conservador de alguns magistrados, que
“Tribunal” de Cassação destinado a impor a vontade da maioria desejavam a ordem que impunha a hierarquia dos antigos tri-
do poder legislativo sobre a vontade do juiz. bunais e a instrução escrita. Fruto dessas críticas, surgiu o Code
O mais complexo, desde um ponto de vista prático, des délits et des peines em 1795 (de seus 646 artigos, 599 se re-
relacionava-se com a forma de designação dos juízes, pois a “As- feriam ao procedimento penal), que instituiu uma investigação
sembleia aplicou o princípio do sufrágio à nomeação de todos os escrita e secreta, realizada pelo diretor do júri de acusação, que
funcionários e decretou, em maio de 1790, que os juízes fossem era quase um juiz de investigação. Esses atos avançavam sobre o
também designados por eleição popular pelo prazo legalmente debate oral, já que se permitia sua incorporação através de leitura
apontado segundo os casos, com direito a ser indefinidamente posterior. No mesmo sentido de afirmar práticas inquisitivas já
reeleitos” (PARDO LÓPEZ, 2009: 263). Também se discutiram arraigadas, inclusive pedidas por alguns setores sociais – como
outros aspectos, como o da vestimenta, que denotava os privilé- a organização da persecução penal pública e a existência de uma
gios dos antigos juízes. No 13 de agosto de 1790, proibiu-se todo investigação secreta e escrita – foi redigida a lei do dia 7 chuvoso
o traje que fosse contrário à igualdade (o igual e burguês traje do ano IX (26 de janeiro de 1801). Aqui já se está em um novo
preto se impôs por um tempo, mas com o Império se restabele- momento histórico, o qual, com Napoleão à frente desde 1799,
ceram as cores e outros aspectos que denotavam a hierarquia). pôs-se fim à Revolução, mas também estendeu por toda a Europa
A mudança foi revolucionária, se se observa que para a maioria os seus resultados. A nova Constituição desse ano VIII (13 de
dos cargos, que anteriormente tinham uma habilidade especial e dezembro de 1799) começou com a reforma da área judicial, que
muito complexa, não se requeria agora nem instrução legal nem terá êxito até o dia de hoje no continente. Isso se concretizou na
uma religião ou rendas determinadas. lei do 27 ventoso desse mesmo ano (18 de março de 1800), com a
A primeira Constituição Francesa, a de 1791, dedica o capí- qual a magistratura judicial francesa alcançou sua forma atual.
tulo V do Título III ao Poder judicial. Neste se seguiu a tendência Também, esse processo e estado de discussão sobre a ques-
de leis prévias, que oscilavam entre as ideias de Rousseau e as tão judicial foi trasladada para a justiça penal e foi o que levou a
de Montesquieu (PARDO LÓPEZ, 2009: 261). Parece evidente sancionar o Código de Instrução Criminal Francês de 1808, cuja
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marca ainda perdura nos sistemas continentais europeus e nos Antigo Regime, meramente reformado.
latino-americanos. Com Napoleão, que se apresentava como a Tanto o método processual quanto o sistema judicial de orga-
síntese francesa das diversas políticas prévias exercidas de forma nização e de juízo tiveram êxito na Europa do século XIX e XX. O
autoritária, e levando em consideração os projetos reformistas dos êxito destacável de uma jurisdição não conflitiva com o governo,
Bourbons, logrou-se impor um sistema “misto” sobre a área judi- mas assim mesmo capaz de conservar privilégios, relacionava-se
cial. “Da constituinte, conservou a aproximação da justiça ao povo com a sua aceitação popular ou legitimidade. Como aponta Per-
mediante a arbitragem, a conciliação, os juízes de paz e o jurado fecto ANDRÉS, esse esquema teve “o duplo efeito de induzir nos
criminal, assim como a nova pirâmide judicial, mais simples e juízes uma percepção falsa de aspectos fundamentais do próprio
mais lógica. Do Antigo Regime, o decisivo aporte técnico que re- papel, e na sociedade uma imagem também mitificada do papel
presentavam a apelação hierárquica civil e a cassação, assim como da jurisdição” (2015: 59). Como já se disse, esse modelo esten-
as linhas mestras da magistratura profissional”, resume PARDO deu-se no século XIX para a Europa e para a América Latina. Foi
LÓPEZ (2009: 276). A seleção dos juízes concretos ficou em mãos bem recebido por setores mais lúcidos da burguesia e da própria
do próprio Napoleão, que, normalmente, era negociada com os judicatura e em âmbitos universitários.
próprios juízes, o que se traduziu em um sistema complexo de
Na Espanha, não havia se desenvolvido até então um sis-
corporativismo tolerado pelo executivo.
tema judicial do estilo francês. Apesar do desenvolvimento da
Também o sistema processual que se impôs foi o resultado metodologia inquisitiva na legislação e nas práticas (TOMÁS
de um compromisso entre a política criminal de tipo inquisitivo, Y VALIENTE, 1969: 87 e ss.), isto não se trasladava para a hie-
que inspirava a Ordenança de 1670, e a que inspirava a lei de jul- rarquia e para a organização judicial. No Antigo Regime, a
gamento de setembro de 1791. Do sistema inquisitivo absolutista magistratura nem era tão numerosa, nem tinha uma adminis-
recebe o Código a persecução penal pública e a meta de descobrir tração organizada e centralizada, salvo, e com deficiências, no
a verdade histórica; do sistema acusatório revolucionário, o no- caso de Castela (ALONSO, 1982: 105 e ss.). A presença dessa
minal respeito à dignidade e à liberdade humanas. justiça real estava apenas visível nos cargos locais dos magis-
A questão concreta dos juízos também deu conta de outro trados. O maior controle da Coroa nesses organismos judiciais
difícil compromisso: na etapa de debate se decidiu manter o e também administrativos, que foram as Audiências, fica de-
jurado, junto à exaltação dos princípios do juízo oral, públi- monstrado porque existiam apenas duas permanentes: em
co, em contraditório e contínuo; mas o procedimento escrito e Valladolid e na cidade real, logo em Granada, com nível de
severo também obteve seu triunfo, pois a investigação reunia chancelaria, e com um âmbito mais reservado, as posteriores
essas características e estava a cargo de um juiz. Nessa primei- de Galícia, Estremadura, Sevilha, Astúrias e, ainda menor, em
ra etapa, ao próprio imputado resultava impossível saber o que Canárias, que dependiam todas do Conselho de Castela. Este
estava acontecendo, pois também para ele os atos eram secretos. seria a máxima fonte centralizadora do poder judicial e que
Na doutrina processual continental esse modelo foi chamado sempre podia atrair para si ou reclamar a faculdade suposta-
de “sistema misto”, por receber características tanto inquisitivas mente delegada (APARICIO, 1995: 16). O poder do Rei ficava
quanto acusatórias. Na literatura inglesa segue sendo chamado também garantido com as nomeações desses juízes, que funcio-
de inquisitivo, e parece mais correto chamá-lo “sistema inquisi- navam em salas e seriam assim a base da organização judicial
tivo reformado” (GOSSEL, 1980: 222; MAIER, 1996). Também o futura (TOMÁS Y VALIENTE, 1997). Em princípio, evitaram-se
modelo de juiz e o próprio sistema judicial seguirão sendo o do as vendas dos cargos, que começaram a ser realizadas no final
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da dinastia de Habsburgo, e foram rejeitadas já no século XVIII funcionários de carreira e dependentes do Rei e da mesma bu-
pelos Bourbons. rocracia judicial.
Esses juízes eram nomeados pelo Rei, mas tinham uma No que se refere aos juízes, esse cargo era monopólio dos
sólida formação e legitimidade nas Universidades. Quiçá era juristas, mas não dos “criollos”, mesmo que egressos das novas
isso que permitia um controle sobre sua atividade, sendo mais Universidades americanas. Frente a essa rejeição, e também
uma modalidade de controle interno do que externo (ALONSO, contra o costume da venda que no ultramar era mais tolerada,
1982: 175). Não obstante, sua uniformidade com as elites estava exigiram primeiramente reformas aos Reis e depois se inclinaram
garantida pela proibição de exercer o cargo quem tivesse “sangue pela independência (BURKHOLDER e CHANDLES, 1984: 19).
manchado”, pois devia atestar, inclusive para atuar como advo- Isso ocorreu porque as esperadas reformas, do final do XVIII, re-
gado, até três graus de parentesco com “cristãos velhos” e que forçaram o caráter externo de funcionários sempre peninsulares,
não tivessem exercido trabalho público ou mecânico. pois “a Coroa tinha que romper as relações existentes entre os
Outra coisa foi a extensão desse sistema para a América es- ministros e a sociedade local”, e implementaram maiores medi-
panhola. Essa extensão seria tão importante que, sem exagerar, das de controle, como as listas de classificados ou a carreira e a
pode-se dizer que a burocracia judicial foi a que impôs a ordem periodicidade no cargo (BURKHOLDER e CHANDLES, 1984: 175
castelhana na América, sempre discutido com a mera legitimi- e ss.). Em 1776, aprofunda-se essa política, quando se cria a Au-
dade da força dos conquistadores (GARRIGA, 2004: 711 e ss.). diência em Buenos Aires, junto ao Vice-Rei auditor, hospedado
nessa desobediente e autárquica cidade (HALPERIN DINGHI,
As possibilidades de crescer em um mundo com castas e 1985: 44 e ss.). Mas as reformas dos Bourbons não lograram
classes mais marcadas, com escravidão, e diversas formas de acu- dobrar os poderes jurisdicionais e políticos dos municípios, e
mular riquezas, também se estenderam aos juízes. Precocemente dali, além dos motivos econômicos, a rebelião independentista,
se advertiu sobre esse desvio dos benefícios econômicos do poder. também estava focada na reação contra a centralização. Não obs-
Assim, “nas Índias foi ‘necessário que se estreitasse de forma mais tante, o peso simbólico das Audiências foi tão importante que é
apertada, haja vista as maiores possibilidades de incorrer nesse de se notar que os espaços geográficos das nações independen-
pecado’, segundo o padre Diego de Avendaño, para quem ‘há um tes correspondiam aos das administrações judiciais em maior
vício peculiar nos juízes das Índias: a ambição por ouro e prata medida, inclusive superando a dos vice-reinados, ainda que para
e ‘os sintomas de avareza nos altos cargos são mais notáveis nos isso competissem com o poder judicial assumido pelos Cabildos
magistrados’; Guardiola y Saenz, tempos depois, exigia que os ma- de cidades importantes (MORELLI, 2004: 1079 e ss.)
gistrados fossem ‘amantes da verdade e inimigos da avareza’”, os
As elites locais aspiravam os postos de privilégio dessas
quais são citados por STRINGINI (2013).
burocracias poderosas, que desde a metrópole se temia ceder.
O sistema judicial que competiria com o mais natural e Provavelmente, a dificuldade de obter esses cobiçados cargos
direto dos Cabildos, ou municipal, foi idealizado pelos mo- levou a uma grande maioria de juristas criollos a optar pelo libe-
narcas “como medida dirigida a estabelecer um controle firme ralismo radical, o que representava romper os laços com Madri
sobre aquelas terras. Todavia, esses novos tribunais logo exerce- e com o Conselho das Índias. Em todo caso, os movimentos
ram faculdades muito superiores às responsabilidades judiciais liberais independentistas na América tomavam nota do pro-
de seus antecessores castelhanos” recordam BURKHOLDER cesso francês, mas os movimentos de advogados e movimentos
e CHANDLES (1984: 13). Para evitá-lo, consagraram-se como judiciais também o utilizavam para manter sua cota de poder.
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Estava claro contra o que se devia organizar uma nova ad- também (...) é produto de uma conformação estatal complexa
ministração da justiça, e, em tal sentido, as críticas ilustradas são na qual os elementos liberais não logram alcançar, quase nunca,
similares às formuladas no resto da Europa. A legalidade e a pu- a hegemonia institucional e, muito menos, social” (APARICIO,
blicidade eram reivindicações contra o velho processo ofensivo 1995: 55). Esse século foi uma demonstração dessa dificuldade.
(ALONSO, 2008: 17 e ss.), que também encontrariam seus críticos, Foi finalmente com a sanção da lei orgânica do poder judicial
que insistiriam na legalidade e na busca pela verdade. Finalmente, de 1870, e da lei de julgamento criminal de 1882, que se implan-
alcançar-se-ia um “acordo” similar ao ocorrido na França. tou o sistema “misto” já consolidado na França (ARREGUI, 2012:
Assim, a Constituição de Cádiz de 1812 abriu espaço para 383 e ss.). Apesar das resistências, a promessa de estabilidade nos
a separação de funções judiciais e começou a formalizar uma cargos fez com que essas reformas tivessem êxito em configurar
administração própria, à qual se dedicaram os artigos 241 e 261. uma administração que persistiria, inclusive, após a crise daquele
Deixa-se claro que essa função, não obstante, administrava-se regime da primeira restauração monárquica (HERRERO, 1989:
“em nome do rei” (art. 257), algo que as constituições liberais rei- 584 e ss.). Não obstante, foi precisamente nesse período quando
terarão até o presente, excetuando logicamente as republicanas. se apresentaram mais projetos para uma reforma que sempre ficou
Aparece assim o Supremo Tribunal (art. 259) limitado a tudo o suspensa (APARICIO, 1995: 140).
que se refere à administração, inclusive seus funcionários e fun- Na Argentina, essas reformas liberais observaram-se
cionamento. Também se abre espaço para o Tribunal do Júri (art. também desde um primeiro momento no aspecto formal, com
307). E como consequência disso se suprimiu a inquisição em as primeiras decisões dos governos independentes. Mas também
1813. Isso, porém, é só o embrião da reforma “afrancesada”, pois se prolongou, até quase o final do século, a reforma concreta
o mesmo “discurso preliminar” a essa Constituição deixava claro da administração da justiça. Assim, a antiga corporação judi-
que a Comissão “absteve-se de introduzir uma alteração subs- cial lograva se manter e herdar seus privilégios e atribuições
tancial no modo de administrar a justiça, convencida de que as coloniais, agora em mãos de juristas locais. Isso aprofundará
reformas dessa ordem devem ser fruto de meditação, exame mais uma sensação de pertencimento a uma “elite”, que se definiria,
cuidadoso e detido, único meio de preparar a opinião pública precisamente, como a “fundante” ou “dona” do país, e que iria
para que receba sem violências as grandes inovações”. Esse em- se autorreproduzir com nomeações arbitrárias (com a licença
brião não se concretizou até o final do século, com as alternâncias e aquiescência dos poderes políticos) e nepotismos.
entre liberais e reacionários, que chegam até o presente na Espa-
Sinalizou-se que esse modo de organização judicial con-
nha e que persistem com tensões dentro da sua administração da
servava a estrutura colonial, própria da monarquia absoluta, e a
justiça. O que ficou como prática habitual foi a postergação da
sobrevivência desse modelo garantia não apenas um determina-
reforma, precisamente por sua importância, delegando assim a
do modo de funcionamento do sistema judicial, mas também um
conformação do âmbito judicial aos próprios atores.
modo de governo judicial, que será funcional ao poder político
A tímida mudança empreendida pela Constituição de Cádiz (BINDER et. al., 2004; MASSONI, 2007).
foi rapidamente abortada. A reação conservadora de 1814 resta-
beleceu as estruturas judiciais e, inclusive, a pessoa dos juízes Com o modelo francês (e também o estadunidense no que
anteriores a 1808, algo que voltou a ocorrer logo (ORTEGO GIL, toca ao marco constitucional) encobriu-se essa sucessão entre
2015: 85 e ss.). O sistema judicial do século XIX “não apenas é a Real Audiência, logo depois Câmara de Justiça ou de Apela-
herdeiro, em boa parte, da prática histórica anterior senão que ções e finalmente a Suprema Corte de Buenos Aires (SEGHESSO,
84 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA GABRIEL IGNACIO ANITUA 85

1989). Houve poucas propostas diferentes, no geral, inspiradas politicamente pela lei e socialmente pela cultura dos intérpretes
nas ideias de Bentham. Como a proposta persistente no constitu- autorizados e seus interesses, isto é, pelo poder simbólico e o in-
cionalismo da introdução de Jurados populares, sempre rejeitada teresse cultural, político e econômico desses últimos” (CAPELLA,
pela justiça profissional, que já se identificava com as palavras da 2008: 185). Produziu-se uma aliança, ainda contra os desejos par-
“academia”: é ilustrativo o papel de Manuel Antonio de Castro, ticulares, entre os intérpretes em abstrato e os que o faziam em
que encabeçaria desde 1815 a Câmara e os primeiros âmbitos aca- concreto: entre acadêmicos e juízes (que em alguns casos, como
dêmicos (LEVENE, 1941). Também o projeto de Bellemare Plan na Argentina, são as mesmas pessoas, normalmente, como con-
General de Organización Judicial para Buenos Aires, publicado sequência de desenvolvimento raquítico das Universidades). As
em 1829, reflete uma importante intenção reformadora que não ideologias jurídicas que guiavam o ensino trouxeram como con-
pôde se concretizar (BINDER, 2003: 11). sequência “aplicações elitistas ou restritivas dos ordenamentos
Finalmente essa herança colonial naturalizou-se, até que jurídicos” (BERGALLI, 1999: 237). Os modelos de interpretação
entre 1853 e 1874 “assentaram-se as bases para a reforma de uma mais genéricos aumentaram essa ideia de “autonomia”, desde a
autêntica carreira judicial” (CORVA, 2014), primeiro na provín- primazia das discussões que iam do jusnaturalismo ao positivis-
cia de Buenos Aires e depois no âmbito federal. A concretização mo do início do século, àquelas que se dão desde a “teoria pura”
das reformas, a seu modo, não implicou numa derrota, senão de Kelsen até a “concepção sistêmica” de Luhmann ao final do
na consolidação de um modelo prévio. Esse funcionamento século XX, ao menos no âmbito da justiça hispano-americana.
perverso foi, ao mesmo tempo legalista e consubstanciado no Também repercutia a ideia de especialização, produto do
Estado Liberal, um aprofundamento do modelo centralista e modelo de ensino que se pregava em forma de matérias, de dis-
unificador do jurídico e do político, de acordo com o mencio- tribuições de competências que seguiam os códigos. E da mesma
nado modelo francês. organização e distribuição de competências em poderes judi-
A lógica imperial napoleônica, ademais, impregnava tanto ciais ampliados. A separação entre áreas, como o civil, comercial,
o judicial como, logicamente, a ideia de direito. O sistema fun- penal, processual ou constitucional, e de todas elas, do político e
cional hierarquizado respondia plenamente ao modelo de direito do social, com justificações de eficiências técnicas, produziu uma
do Estado Gendarme ou de Polícia. E reforçava uma falsa ideia dificuldade para entender o caráter complexo do direito em si.
de neutralidade estatal na vida econômica e social. Como aponta Isso se refletia claramente no modelo de juiz desse mo-
CAPELLA, em relação ao sistema de justiça, dita ideia “é uma mera mento histórico e que, da França, irradiava para a Europa
petição de princípio, pois dá por verdadeiro que a legislação que os e América Latina. Nos termos de OST, este é o “modelo do
tribunais aplicam é socialmente neutra e, sobretudo, que também Código”, que suporta quatro corolários: o monismo jurídico, o
o seja a própria cultura dos magistrados (para quem a fala das monismo político, uma racionalidade dedutiva e linear e uma
classes populares e seus valores costumam ser ininteligíveis até o concepção de tempo orientado para um futuro controlado ou
dia de hoje)” (2008: 182). de progresso (1993). Esse modelo ligado ao “Código” continua
De fato, o desenvolvimento do direito, e do próprio ensino marcando a forma do judicial e ficou como herança do lega-
do direito (com a Universidade continuando a cumprir o mesmo lismo e de Napoleão. Este último “seguindo seu instinto de
papel de reprodução do direito do Antigo Regime), reforçava estratégia militar e suas tendências centralistas, ao delinear o
essa ideia falsa de neutralidade e de efetiva autonomia relativa- sistema judicial, constrangeu os juízes dentro de uma estrutu-
mente à democracia do poder judicial, que “está determinado ra hierárquica piramidal semelhante àquela da administração
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pública, que era, essencialmente, a mesma das forças armadas”, tipo de identidade própria, a qual, por sua vez, é substituída
afirma ANTILLÓN (2016: 135). Para isso, recorreu à cominação por uma identidade de “juiz”, que adquire características con-
do prestígio da legalidade confinado nos códigos. servadoras e temerárias.
“A carreira profissional no seio da Magistratura é uma cria- Esse modelo burocrático estava identificado com uma “car-
ção napoleônica que funcionou de forma arbitrária e caótica reira” a qual chegava muito jovem, por concurso de base técnica,
durante o século XIX, para se aperfeiçoar e se objetivar durante mas na prática com certas vinculações prévias de pertencimento.
o século XX. Representa para os juízes numerosas vantagens Carreira que se realizava dentro de uma estrutura hierarquizada,
e um que outro inconveniente”, aponta PARDO (2009: 285). que no seu percurso coadjuvava com uma socialização dentro da
Indica como evidente vantagem a carreira e as contrapartidas mesma corporação e, assim, reforçava a ideia de autonomia do
às autolimitações do poder político: a crescente objetivação resto da sociedade (GUARNIERI e PEDERZOLI, 1999).
para a designação de juízes, a independência funcional e a ina-
Talvez a especial valorização da “independência” a respeito
movibilidade no cargo (limitações que advêm do modelo do
do político, que acompanha a carreira, deveu-se ao fato de que,
Antigo Regime).
nesse momento histórico, não tinha uma grande efetividade. E
Isso aprofundou a burocratização e a especialização de uma que facilitava a manutenção da separação com relação à mesma
administração integrada por um conjunto de funcionários que, sociedade, e sobremaneira aos setores menos favorecidos daquela.
mediante a carreira, integravam-se dentro de um corpo unifor-
No que diz respeito ao político, essa separação foi efetiva.
me. Um corpo coletivo que iria moldando os corpos individuais
“Esse modelo burocrático e hierarquizado foi recebido também
que o compunham, tal como apontou esse grande observador que
no resto da Europa, incluída a Itália, onde se viu temperado,
foi Balzac, ao descrever o modesto juiz Popinot em A interdição,
desde 1859, pelo recrutamento dos juízes mediante concurso
dizendo que “com o decorrer do tempo, o jovem mais bonito e
público. O resultado foi a transformação da magistratura em
robusto converte-se em uma máquina de considerações, em um
um corpo de funcionários cuja independência, não obstante a
autômato que aplica o código em todos os casos, com a indiferença
garantia da inamovibilidade, não passou de um simples arti-
das agulhas de um relógio”.
fício para a causa dos poderes, que por um lado as hierarquias
Ficou, definitivamente, nesse século, conformada com internas e por outro o ministro, através do Ministério Público,
a ideia de “carreira”, que assegura uma verdadeira imunidade tinham sobre suas carreiras”, segundo FERRAJOLI (1995: 588).
aos juízes frente ao poder político. E que, para além das suas
Tudo o que levou à glorificação, outra vez quase ao nível
possíveis vantagens teóricas, frente ao avanço desse poder, gera
de mito, da ideia da “independência” do juiz. NIETO disse que
uma grande problemática de legitimação democrática na judi-
aquela como “dogma é falsa e suas influências perversas, já que
catura (GARCÍA PASCUAL, 1996: 31), especialmente, se ela não
não impede a intervenção do Poder Executivo, fomenta a impu-
vai ligada a uma profunda “dependência” da lei, a qual esteve
nidade dos juízes e distorce a natureza do Poder Judicial” (2004:
associada ao modelo ideal de independência dos outros poderes.
110). Essa independência foi aplicada ao que estava por fora da
De fato, esse tipo de juiz, denominado como “técnico-bu- própria corporação judicial e de seu entorno. Inclusive as deci-
rocrático” por ZAFFARONI (1994), gera um maior isolamento sões judiciais passaram de legitimadas pela lei a estar ligadas à
e, por sua vez, dependência interna, tanto do ápice do sistema “jurisprudência”, isto é, a outras decisões judiciais e à “doutrina”
de justiça penal quanto da mesma burocracia, que limita todo ou decisões de acadêmicos.
88 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA

Em todo caso, essa ideia de independência tendeu a re-


forçar o caráter autônomo da área judicial. Ao estar focada
basicamente no poder político e particularmente no executi-
Capítulo 4
vo, sobrevalorizou-se a independência judicial e se conseguiu
esquecer sua justificação última. Essa independência deixou de O PODER DOS JUÍZES E O MODELO DA
garantir a imparcialidade e a proteção dos cidadãos em geral “INDEPENDÊNCIA”
e especialmente os envolvidos no processo, para ser um fim
absoluto e proteger simplesmente os privilégios dos mesmos
juízes. É assim que Boaventura de Sousa SANTOS descreve a
Na margem latino-americana, essa “independência” foi
“independência corporativa” como aquela independência que
mais profunda, pelo componente de classe e pela mencionada
se justifica na ideia da democracia, mas que em realidade está
herança colonial, assim como pela importante fonte em maté-
orientada para a defesa dos interesses e privilégios de classe dos
ria de legislação constitucional e processual e pela organização
próprios juízes (1998).
e modelo de juiz, tradição que provém dos Estados Unidos da
América do Norte. Assim como no âmbito europeu continental,
a influência nessa matéria e na questão judicial foi majoritaria-
mente francesa; em outras áreas geográficas, como a América
Latina, produziu-se uma combinação de ambos anteceden-
tes. De qualquer forma, as declarações estadunidenses foram
também fundacionais do projeto constitucional ocidental dos
séculos XIX e XX. E isso influencia também, logicamente, o
continente europeu. A influência especificamente americana
constata-se naquilo que tem de original com relação ao sistema
inglês da common law, que é o início de um sistema de Cons-
tituição escrita e rígida.
As discussões em torno da organização institucional dos
Estados Unidos não tiveram como referência antagônica o ab-
solutismo monárquico e os privilégios feudais, e tampouco o
sistema inquisitivo de julgamento, já que o sistema de justiça
local e contraditório tinha-se afirmado desde que nessas terras
se assentaram aqueles que fugiam das persecuções religiosas
na Grã-Bretanha.
Era mais lógico que ali se esforçassem em resistir ao go-
verno, em princípio o da metrópole e, inclusive, ao legislador
(evidentemente o que faz impositivamente), e que não houves-
se resistências nem reprovações profundas aos excessos de um
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judiciário mínimo e, parcialmente, ligado à área local. As leituras antecedente, a partir da Declaração de Direitos (Bill of Rights) de
de Montesquieu que se realizaram ali foram diferentes (ANDRÉS 1791, o direito positivo ocidental em geral fez sua a noção de direi-
IBAÑEZ, 2015: 68) e talvez se relacionassem com esse receio da tos humanos da forma como se conhecem (como poderes do ser
própria soberania que estavam fundando com outras bases e com humano, pelo ser humano, para limitar o poder estatal e outros
uma desconfiança do despotismo, que se traduziu em direção ao poderes). Em rigor com a verdade, a primeira expressão de um
mesmo princípio democrático. documento que articula um sistema de governo legítimo como
As discussões entre duas formas distintas de organizar a expressão dos seus limites é a Declaração de Direitos de Virginia
democracia e o Estado, a federal, mas mais centralista de Ha- do 12 de junho de 1776 (que seguia por sua vez a tradição inglesa já
milton (que triunfou na concretização prática), e a local, e por mencionada). Pelo contrário, foi o critério de Hamilton aquele que
isso participativa de Jefferson (com uma reprodução mítica impôs uma Constituição para os Estados Unidos, que pretendia
importante no futuro), não punham em discussão a indepen- subordinar a lei ordinária e o poder democrático de sancioná-la.
dência do juiz, nem a natureza adversarial da justiça, com a A Constituição foi redigida no verão de 1787, na Filadélfia, por
instituição do Jurado e a necessária transparência e publicida- 55 delegados dos 13 Estados fundadores que haviam sido convoca-
de das audiências em juízo. Nesse último sentido, a evolução dos para emendar The Articles of Confederation (uma Constituição
seguiu sendo paralela à da instituição na Inglaterra, ainda embrionária, em vigor desde 1781, que fracassou pelos escassos
quando a visão jeffersoniana de uma democracia de vizinhos, poderes que outorgava ao governo central, já que a soberania era
local e direita (uma visão rural e amável da sociedade) fascinou reservada expressamente para cada Estado). Ali, ademais da re-
a maioria dos estadunidenses. Dessa forma, as classes domi- lativa limitação aos mais democráticos poderes locais, pode-se
nantes permitiram com maior facilidade que o “público” não observar a influência das ideias que foram logo expressadas em O
fosse competência exclusiva do Estado. Federalista, especialmente, as que buscavam reforçar a divisão de
Não houve diferenças, no entanto, no que toca à tolerância poderes e a independência do juiz para poder limitar as funções
de controles máximos a partir da nascente “opinião pública” e dos do legislativo. O desenvolvimento posterior dessas ideias colocou
jornais. No geral, constata-se uma inclinação pela transparência o judicial no centro do sistema constitucional, como com rigor
da função pública e pela liberdade de imprensa total, tanto de fe- expõe GARGARELLA (2012: 35 a 63).
deralistas quanto de democratas quando eram oposição, e outra O Bill of Rights estadunidense de 1791 está constituído
em direção ao controle e à censura quando cada um deles estava pelas dez primeiras emendas à Constituição de 1789. Não é por
no governo. Dessa transparência não se excetua a tarefa judicial, acaso que nelas se tenha especial consideração pelos limites à
que também se submeteria à crítica e ao controle generalizado. intervenção punitiva estatal (em particular, a emenda oitava
Não obstante, noções muito diferentes tiveram uns e outros no que proíbe “os castigos cruéis e não usuais” que eram pratica-
que toca à relação entre o poder judicial, às maiorias políticas e dos nos suplícios) e, como faz a primeira emenda, garantam
aos textos jurídicos. liberdades que também serão limitações para a soberania: “O
Foi o ponto de vista jeffersoniano que insistiu em uma De- Congresso não poderá fazer nenhuma lei que tenha por objeto
claração de Direitos contra o critério de Hamilton, que enxergava estabelecer uma religião ou proibir o seu livre exercício, limitar
nisso a natureza de pacto própria da história britânica e não de uma a liberdade de expressão ou da imprensa ou o direito de reunir-
nova forma de organização. Apesar disso, e daí a importância desse -se pacificamente e apresentar petições ao Governo.” Os limites
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ao Congresso e ao governo foram vistos como parte dos poderes a inconstitucionalidade de uma lei que proibia a escravidão
dos cidadãos e os garantidores dessa concepção autolimitadora em alguns Estados assentados em territórios comprados pelo
e liberal foram os juízes. Estado federal, desencadeando a guerra civil (BELTRÁN e
Isso não surgia diretamente dos textos mencionados, que GONZÁLIZ, 2005: 145 e ss.). Isso implicou um grande golpe
são especialmente descobertos em relação ao âmbito judicial: a ao prestígio da Corte, mas não foi suficiente para colocar em
Constituição previa, no articulo III, seção 1, que “O poder judicial discussão essa ampliação de poderes e da discutível função ju-
dos Estados Unidos é investido em uma Suprema Corte e nos dicial proativa. Função que, não obstante, foi especialmente
tribunais inferiores que forem oportunamente estabelecidos por elogiada e, inclusive, imitada desde os textos e interpretações
determinações do Congresso...” e, na seção 2, que “a competên- judiciais ibero-americanas no século XIX até aquelas do pós-
cia do Poder Judicial se estenderá a todos os casos de aplicação -guerra mundial europeu. Talvez isso se deveu à admiração que
da lei e da equidade ocorridos sob a presente Constituição, as despertou, desde épocas anteriores, ao modelo político, social
leis dos Estados Unidos e os tratados concluídos ou que serão e econômico estadunidense.
concluídos sob sua autoridade...”. Pelo contrário, foi a própria Um desses primeiros admiradores foi sem dúvida outro
Suprema Corte que se atribuiu esse poder específico, garantidor francês, cuja obra é também notável para analisar esse poder
de sua “independência”, mas também provedor de uma “potên- de julgar. Refiro-me a Alexis de Tocqueville, esse jovem juiz de
cia” nunca vista até o momento. Versalles, que viajou para os Estados Unidos para analisar seu sis-
É no conhecido julgamento “Marbury vs. Madison”, de tema de aprisionamento (TOCQUEVILLE e BEAUMONT, 2005)
1803, que a Suprema Corte apontou que se uma lei está em e que também encontrou ali a chave da democracia com este e
contradição com a Constituição, corresponde aos Tribunais outros limites ao poder do soberano, do qual tanto desconfiava
ordinários fazer valer a supremacia desta última, ressaltando (TOCQUEVILLE, 1957). Para além de que, em A Democracia na
que esse “é o verdadeiro sentido da função judicial” (BELTRÁN América, observava que a real diferença entre essa realidade e
e GONZALEZ, 2005: 88 e ss.) De fato, algo disso remetia à pró- a da Europa estava no notável desenvolvimento da sociedade
pria Constituição e sua pretensão expressada na “cláusula de civil, também entendia que existia ali um inédito sistema de
supremacia”, do Título VI, seção 2, da qual a função de julgar equilíbrios. Isso devia-se, primordialmente, à descentralização
torna-se garante e, portanto, redutora do potencial político. e ao sistema federal, que lograva reunir as vantagens dos Esta-
Assim, a noção de soberania do órgão legislativo desaparece dos grandes e dos pequenos: “O poder administrativo (...) não
em parte, ou é compartilhada com o poder judicial, já que não oferece nada central nem hierárquico (...) O poder existe, mas
será totalmente soberano o corpo criador do direito, que está não se sabe onde encontrar seu representante”, é assim que nos
subordinado a outro corpo também criador de direito. Estados Unidos não existe “centro algum no qual os raios do
poder venham a convergir” (TOCQUEVILLE, 1957: 88).
Tampouco o judicial se impôs abertamente esse mesmo
poder de soberania. De fato, no julgamento em menção se jus- Dedicou, no citado livro, “um capítulo à parte para o poder
tifica esse poder, mas também limita a si mesmo para resolver judicial” (o VI, do livro I), no qual descreveu as funções do poder
o caso. A justiça estadunidense através da Suprema Corte de- judicial, fundamental para os freios e contrapesos montes-
morou cinquenta e quatro anos para voltar a anular uma lei do quianos. Ressaltava TOCQUEVILLE que “os norte-americanos
Congresso. Foi no caso “Scott vs. Sandford” de 1857, ao declarar conservaram no poder judicial todas as características que por
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costume lhe são reconhecidas. Delimitaram-lhe, exatamente, liberdade e à dignidade. Aporta legitimidade porque ensina aos
num círculo que lhe é privativo (...). A primeira característica cidadãos o direito e porque encurta a distância entre a aristo-
do poder judicial, entre todos os povos, é servir de árbitro. Para cracia jurídica e o povo (TOCQUEVILLE, 1957: 260). E também
que tenha lugar a atuação dos tribunais, é indispensável que o fazia reconhecendo a habilidade de um judiciário que se au-
haja litígio (...). A segunda característica do poder judicial é a torrestringe, ou se envolve pouco, quando o assunto poderia
de se pronunciar sobre casos particulares e não sobre princípios transtornar o estado das coisas.
gerais (...). A terceira característica do poder judicial é a de não Como já se disse, os juízes estadunidenses exerceram em
poder atuar quando não se recorre a ele ou, segundo a expressão poucas oportunidades esse poder derivado do controle difuso
legal, quando se lhe submete uma causa. Os norte-americanos constitucional e, como por outras vias o poder judicial inglês,
conservaram no poder judicial essas três características dis- europeu e latino-americano, chocava-se pouco com esse poder
tintas. O juiz norte-americano não pode pronunciar sentença, político do qual se declarava orgulhosamente “independente”,
senão quando há litígio. Não se ocupa senão do caso particular mas apenas por ser um “corpo” diferente. Assim, com extensão
e, para atuar, deve esperar sempre que se submeta a causa. O juiz universal, essa invocada “independência” dos outros poderes
norte-americano se parece efetivamente com os magistrados de públicos foi reputada como a chave da função estritamente ju-
outras nações. Porém, está revestido de um imenso poder polí- dicial (GIMENO SENDRA, 2000: 30). Uma função social não
tico. De onde vem isso? Move-se ele no mesmo círculo e se serve comprometida com conflitos que reputava externos e sobre os
dos mesmos meios que os demais juízes? Por que possui, então, quais, em razão disso, não deviam tomar partido.
um poder que estes últimos não possuem? A causa está apenas
neste fato: os norte-americanos reconheceram aos juízes o di- A suposta neutralidade política, assim como o profundo
reito de fundamentar suas decisões na Constituição, mais do isolamento da sociedade, foi uma chave do modelo judicial
que nas leis. Em outros termos, permitiu-lhes não aplicar as leis ocidental no agitado final do século XIX, marcado pela deno-
que lhes pareçam inconstitucionais”. E assim “os norte-ameri- minada “questão social” e pelos conflitos de classe. “O sistema
canos confiaram aos seus tribunais um imenso poder político: judicial permaneceu indiferente frente a essa agitação, defen-
mas, ao obrigá-los a não atacar a lei exceto por meios judiciais, dendo, caladamente, os direitos de propriedade e determinando
diminuíram muito os perigos desse poder” (TOCQUEVILLE, judicialmente as obrigações contratuais entre particulares,
1957: 254 e ss.). Afirmava assim (adiantando-se ao que logo se em sua maior parte membros da burguesia” (SANTOS, 2009:
chamaria) a “judicialização da vida política”, pois toda a ques- 485). Essa conformação de um poder “alheio” às lutas políticas
tão política poderia terminar sendo também questão judicial, e sociais, ademais, recebeu uma nova justificação da reserva
o que não era ruim na sua ideia de dividir o poder ao máximo. finalmente elitista, na ideologia cientificista do final do século
XIX e início do século XX.
Os juízes tinham recebido um verdadeiro poder de sobe-
rania. E esse poder era considerado um freio aos perigos das Isso também é rastreável naquele período, no qual se con-
mesmas maiorias. O lúcido Tocqueville dava-se conta disso e solidaram os fundamentos dos nossos atuais sistemas judiciais
daí suas elogiosas chamadas ao controle público dessa ativa penais. Os discursos do saber reservaram uma importante cota
sociedade civil, assim como a instituição do Júri popular. Uma de poder na transação realizada na efetiva configuração entre
instituição que enxergava mais como política do que judicial, os desenhos democráticos dos iluministas e a prática eficaz dos
que coloca o cidadão no lugar do juiz e lhe inculca o respeito à poderes já constituídos. Os expertos deviam trabalhar quase
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como se fossem “cientistas”. E isso valeria tanto para o experto imposta por sua posição, pediu a abolição do regime de jura-
no paradigma jurídico, quanto para o das ciências da conduta, dos e sua substituição por uma equipe de expertos versados
que disputaram desde o século XIX seu domínio, especialmen- na ciência da conduta humana” (TAYLOR et. al., 1977: 40). Do
te, sobre a questão criminal (ANITUA, 2015: 263 e ss.), mesmo modo, os positivistas jurídicos se opuseram ao Júri po-
Para discernir nessa disputa alçava-se, novamente, a pular com o argumento das dificuldades técnicas implicadas na
figura do juiz, que traçava a divisão dos “saberes” que a repe- tarefa de julgar (ANDRÉS IBAÑEZ, 2015: 433; MAIER, 1996: 783;
liu e dirimiu dentro do mesmo raciocínio do direito. No espaço CARDONA, 2000: 113). Foi assim que houve novas justificações
ibero-americano, e como resultado daquela transação de prá- para o velho acordo que acrescentava a posição de privilégio dos
ticas que consolidou o sistema inquisitorial e escrito na etapa operadores judiciais.
da “investigação”, legitimar-se-ia indubitavelmente o poder dos Agora bem, se esse acordo era possível na aplicação de
expertos sobre o “expediente” e sobre a investigação, comparti- políticas tradicionais aos casos concretos, logo se viu impos-
lhados entre as administrações da justiça e as polícias. E no que sibilitado frente aos autênticos casos difíceis e naqueles em
se relacionava já com a tarefa de sentença, “o desenvolvimento que começavam a aparecer interesses de classe e, inclusive, da
da dogmática jurídica faz com que o peso das garantias da segu- nova casta funcional. O ideal de “independência” começava a
rança e da liberdade, antes depositadas nos jurados populares, revelar alguns problemas com o da “divisão dos poderes”. Como
agora se apoiasse na racionalidade dos sistemas normativos e na apontou outro jurista francês, em 1921, esse pretenso equilíbrio
escravidão do juiz em interpretar racionalmente o direito. A dog- chegava, em determinados casos, a gerar uma confrontação. En-
mática apresentava-se, pois, como competidora do Jurado, visto quanto isso, “na Inglaterra e na França, a ruptura do equilíbrio
como paladino da liberdade do povo. Evidentemente, o processo se produziu em proveito do legislativo, que submeteu sob sua
de concentração do poder já era irreversível. A justiça popular, norma os poderes coordenados e instaurou assim um governo
ao contrário, começa a ser atacada como uma fonte inevitável de parlamentar. Nos Estados Unidos, a alteração de equilíbrio se
arbitrariedade e sentimentalismos”, assegura BINDER (1997: 71). produziu a favor do poder judicial, que submeteu os outros
Ainda naqueles casos nos quais se apresentava em com- dois ao seu controle e estabeleceu dessa forma um regime de
petição com o poder e saber dos juristas, o conhecimento governo dos juízes” (LAMBERT, 2010: 21).
hegemônico da corporação médica e policial igualmente se Esse “governo” atuava como freio às políticas progressistas
manifestou contrário à discussão política e teve uma maior e, basicamente, o fez como pressuposto de proteção da pro-
potencialidade de excluir o âmbito do poder reservado aos ex- priedade privada e de uma posição vantajosa para contratar.
pertos. Nesse sentido, majoritariamente pode-se aliar com os Em outros países, também a judicatura tentou impedir as re-
expertos do direito, gerando um modelo integrado de crimino- formas timidamente atentatórias à propriedade privada, como
logia clínica e direito penal (BARATTA, 1986: 40), que também se percebeu na República alemã de Weimar (PISARELLO, 2012:
advogava pelo segredo do “laboratório” judicial, no qual se re- 127) e ainda sem a possibilidade de controle que se ensaiava na
solvia o caso concreto, enquanto o aspecto político advogava Áustria ou na Tchecoslováquia naquela época. No 5 de novem-
pela defesa social. Isso significou, na prática, que dali partissem bro de 1925, os juízes do Supremo Tribunal alemão assumiram o
duros argumentos contra todo tipo de controle e participação, exercício do controle constitucional das leis, com o argumento
inclusive da publicidade dos juízos, e que solicitassem mais de que a Constituição de Weimar não proibia. Essa decisão de
poder para o experto. “A escola positivista, seguindo a lógica Aufwertungsurteil (sentença de sobrevalorização) teve como
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consequência a possibilidade de sabotar judicialmente as re- piramidal também provocou o fato de que esse poder se con-
formas sociais do momento (NEUMANN, 1943: 41). centrasse nas Supremas Cortes.
De fato, e apesar de que isso já se percebia anteriormente, Em todo caso, tanto com controles difusos quanto concen-
como o demonstra a obra do francês Lambert, o conflito re- trados de constitucionalidade, nessas intervenções os órgãos
crudesceu com as políticas propostas nos Estados Unidos em judiciais defendiam mais sua “independência” e uma determi-
crise pelo presidente Roosevelt desde 1932. O “ativismo” judi- nada correspondência à classe, do que uma efetiva “separação de
cial propiciou uma “guerra” entre os poderes, que terminou poderes”. Isso reforçava determinados traços culturais (como a
expressamente quando o presidente apresentou em 1937 um ilusão de não politização derivada da formação técnico-jurídica
projeto de Lei de reorganização judicial, o que obrigou os juízes já apontada) que, juntamente com os traços sociais (homoge-
a negociar (BERGALLI, 1984: 37 e ss.). Lambert, o professor de neidade da extração social, tendência à endogamia) e políticos
Lyon, fez escola com essa fórmula de “governo de juízes”. Aler- (tendência ao conservadorismo e ao autoritarismo), explicariam
tava sobre um poder de veto conservador, tornando também a forma natural com que esses juízes participaram das experiên-
suas as críticas progressistas dos Estados Unidos contra o con- cias autoritárias do século XX (ANDRÉS IBAÑEZ, 2011).
trole de constitucionalidade difuso, e advertindo sobre o perigo Essa participação foi terrível e também triste, porque foi
da jurisdição constitucional então proposta na Europa, imposta mais bem por omissão, o que, como se sabe bem, relaciona-se
após a II Guerra Mundial. com não ter feito o que poderiam, deveriam fazer ou se espe-
O triste papel dos juízes frente aos totalitarismos, mas rava que fizessem contra o atropelo aos direitos humanos mais
também certo desprezo pelo modelo estadunidense, desembo- elementares. Esse tipo de atropelo, esses genocídios e crimes
cou no prestígio dos Tribunais Constitucionais, que era o que atrozes, ocorreram no século XX com particular eficácia.
anunciava Kelsen, como controle político, tanto do legislador A judicatura desempenhou um terrível e triste papel no
quanto dos juízes. De alguma maneira, essa adoção do controle tenebroso século XX. Quando deveria enfrentar os atentados
de constitucionalidade concentrado no lugar de difuso logrou mais brutais contra os direitos fundamentais, contra a vida e a
“concentrar” a problemática da judicialização da política, e da dignidade dos seres humanos, não demonstrou idêntica capa-
politização da justiça em uns poucos funcionários, que sendo cidade de veto, aquela usada frente à legislação que dava conta
judiciais seriam desse nível especial dos Tribunais constitucio- das lutas e conquistas sociais dos setores desfavorecidos e não
nais. Mas, ainda assim, a enorme produção legislativa do Estado proprietários.
social provocou a circunstância de que a jurisdição na Europa
também adquirisse protagonismo como intérprete desse con- O modelo do poder de julgar que ia sendo gestado res-
junto, por vezes caótico, e com a primazia da Constituição. pondia especialmente ao tipo de personalidade autoritária
que Adorno e seus discípulos delinearam nos anos cinquenta.
Diferente foi o caso na América Latina que seguiu o Sobremaneira, no que diz respeito ao fortalecimento das soli-
modelo de controle difuso de constitucionalidade e logo, salvo dariedades dentro do mesmo grupo de juízes e a ser repressivo
na Argentina que o mantém até hoje em estado puro, adotando e intolerante com os “bodes expiatórios” que são tidos como
sistemas “mistos” que reconhecem a importante relação entre distantes e ameaçadores. Isso se traduz com a inclinação a
juízes e Constituição (FERRER, 2009) para controlar as outras respeitar e temer o poderoso e a humilhar e destruir o vulne-
funções estatais. Não obstante, a estrutura burocratizada e rável. Adorno e seus colaboradores definem a “personalidade
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autoritária” como um construto psicológico de tendências la- (ZAFFARONI, 1994: 202).


tentes e manifestas, que se correlacionava muito positivamente A França de Vichy também mostrou um corpo judicial de
com a ideologia conservadora político-econômica, com o et- funcionários pouco alterado pelo sacrifício de seres humanos.
nocentrismo, com tendências antidemocráticas, com racismo Nos poucos trabalhos que analisam sua atuação geral, expõe-se
– elementos todos presentes na configuração histórica do judi- os julgadores num lugar “equidistante” ou “ambivalente”, nem
cial. No que toca à profunda correlação negativa da inteligência colaboracionista nem resistente, como se isso fosse possível
com a educação formal, isto não se dava no caso dos membros frente ao totalitarismo e ao genocídio (SALAS, 2011).
do poder judiciário, mas sim se amoldam à descrição de que
costumam ser pouco críticos e muito convencionais, que idea- Especialmente narrável foi a resistência da judicatura a al-
lizam suas próprias famílias e descarregam sua frustração em gumas políticas sociais da República espanhola, de acordo com
grupos étnicos ou raciais minoritários que servem de “bodes seus interesses de classe, que impunham o acomodamento polí-
expiatórios” (ADORNO et. al., 1965). tico. Esse modelo de juiz permitiu sua adaptação ao novo regime
franquista, e através de um processo de “depurações”, “purgas”
Assim, os regimes totalitários não tiveram inconvenientes e “ascensões” adquiridas por manifestações de estar decidido
com os poderes judiciais, que integraram suas políticas repres- na “guerra” e por reprimir a legalidade republicana. Isso se fez
sivas e até as antecederam, logrando com que caíssem aqueles de tal modo que, apesar do aprofundamento da vinculação de
modelos prévios, que poderiam ter sido evitados, como foi o caso identificação com o chefe de Estado (primeiro ditador e logo o
da Alemanha. rei), permitiram exaltar a ideia de “independência” e, inclusive,
De fato, foi especialmente grave a aquiescência e a colabo- conviver, sem sujar as mãos em excesso, ordenando mortes ou
ração dos tribunais de justiça na Alemanha nazista (RAFECAS, castigos atrozes, com a exceção de algumas jurisdições de ex-
2013; STEINWES et. al., 2013), onde a “purga” de 1933 afetou ceção e tribunais especiais (LANERO TABOAS, 1996: 58 e ss.).
bem poucos juízes, já que a maioria preferiu seguir fazendo Enquanto a repressão se desenvolvia em outros lados, “a escassa
carreira sob esse regime e aplicando suas horripilantes leis. Esse conflitividade dos assuntos dos quais efetivamente se ocupava
acompanhamento silente não impediu, senão que propiciou a jurisdição ordinária permitia oferecer uma aparência de neu-
que, quase todos os juízes prosseguissem na carreira após a tralidade técnica” (DÍEZ-PICAZO, 1994). A “política judicial”
vitória aliada, tampouco foram especialmente afetados pela franquista manteve o modelo judicial herdado. Se é certo e per-
“desnazificação”. Uma exceção a isso foi processar os juristas do tinente afirmar que “nosso sistema democrático exige romper
regime, o que foi levado ao cinema magistralmente por Stanley com a cultura do juiz autoritário que se consolidou durante a
Kramer em O juízo de Nuremberg (curiosamente na Espanha ditadura” (JIMENEZ VILLAREJO e DOÑATE, 2012), é porque
denominado Vencedores ou vencidos?). “consolidar” demonstra que essa cultura precedia a ditadura,
Esse caráter conservador do judiciário, omisso quando se como aponta ANDRÉS IBAÑEZ (2015: 93). Estava inserida em
perpetravam os atropelos a direitos fundamentais, foi o mesmo outra cultura mais ampla, conservadora, elitista e ligada à “corte”
da Itália fascista, onde o ministro fascista Rocco apontou que de funcionários, que propiciou o golpe militar e a longa ditadura.
“a magistratura não deve fazer política de nenhum gênero, não No caso latino-americano, essa participação e compromis-
queremos que faça política governista ou fascista, mas exigimos so, ativo e prévio, com o golpe, e logo a pacífica convivência
firmemente que não faça política antigoverno ou antifascista” com a repressão, pode ser observada em casos tão sangrentos
102 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA

como o do Chile de Pinochet (HILBINK, 2014) ou o do Brasil na


ditadura (MOREIRA, 2014). O mesmo se pode dizer no caso da
Argentina, cujo poder judicial reconheceu a legitimidade das
Capítulo 5
ditaduras militares e atuou, em consequência, omitindo sua
obrigação diante da derrogação da Constituição nacional (BER- O ATIVISMO JUDICIAL NO
GALLI, 1984; GARGARELLA, 2010: 247 e ss.; BOHOSLAVSKY, ESTADO SOCIAL E SUA CRISE
2015; CASTRO FEIJOÓ e LANZILOTTA, 2013).
Ainda quando podem ser citados, tanto um reduzido
número de funcionários resistentes quanto outro reduzido Em todo caso, foi a integração desse Tribunal estaduniden-
número de entusiastas perpetradores de atrocidades, não me se, desde 1953, à chamada “Corte Warren” daí em diante, que
enganaria se dissesse que a atitude majoritária, em todos os daria conta de um novo modelo de juiz.
casos, foi de contemplação pacífica dos horrores que, evidente- Efetivamente, esses juízes foram elogiados por um
mente, deveriam conhecer. De tal forma, não se colocavam em “ativismo” que desenvolveu amplamente os direitos de igual-
risco de sofrer represálias ex ante, nem serem responsabiliza- dade (como em “Brown vs. Board of Education” de 1954, entre
dos a posteriori. Surpreenderá a busca de participação criminal outros), de autonomia e vida privada (como em “Roe vs. Wade”
nos repertórios judiciais, pois, para além das exceções, esta não de 1973, entre outros) e também de liberdade frente ao Estado
surge daí. E não por uma tática de apagar rastros, senão porque (como em “Miranda vs. Arizona” de 1966, entre outros), es-
a repressão ficou delegada às jurisdições especiais (como a mi- pecialmente, fazendo frente aos governos locais. Ao mesmo
litar) ou aos funcionários policiais ou militares, ou diretamente tempo, a Corte entregou ao governo federal dos Estados Unidos
efetuada de forma extralegal pelo Estado. uma carreira ininterrupta de vitórias de leis de intervenção,
Os funcionários judiciais, enquanto isso, faziam sua car- antimonopólio e consubstanciadas ao modelo de Estado assis-
reira, sem que a “política” os incomodasse, de acordo com tencial. Precisamente por isso que esse tipo de atuação seduziu
uma particular concepção de “independência”. Sem chegar e, de fato, foi imitada nas mais recentes democracias da Europa
a esses extremos, inclusive, encontrar-se-ia a aquiescência e América Latina, tanto na idealização de um novo modelo de
com o poder nos Estados Unidos, onde, depois dessa disputa juiz, quanto defendendo um “ativismo” que demonstrava que
mencionada, a Corte já não obstaculizou o governo, e no que também podia ser progressista.
diz com a justificação de políticas autoritárias se pode citar a Longe de destoar do modelo político do Estado Social, esse
internação de cidadãos japoneses em campos de concentração maior protagonismo dava conta da complexidade e da plurali-
no julgamento “Korematsu vs. US”, de 1944. dade de interesses que requeriam, então, a intervenção judicial
(GARCÍA PASCUAL, 1996: 156 e ss.). Esse novo juiz respondia,
segundo OST (1993), ao “modelo de dossiê”, que deve decidir de
forma mais complexa, com soluções para casos concretos, nos
quais diferentes e novos tipos de juízes também se comprome-
tem na resolução desses casos, com obrigações prestacionais,
que são as próprias ao novo modelo de Estado e de direito.
104 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA GABRIEL IGNACIO ANITUA 105

A incorporação dos direitos sociais junto ao desenvolvi- garantias penais e processuais, que aludem a supostas “emer-
mento do Estado de bem-estar expandiu o sistema jurídico e gências” que nunca cessam (FERRAJOLI, 1995). Essas realidades
com ele o número de atores e a margem de intervenção judicial, não se negam. Pelo contrário, devem ser denunciadas. Mas o
que chega potencialmente a espaços antes imunes (GUARNIERI autor italiano confia em que poderão, ademais, ser evitadas com
e PEDERZOLI, 1999). Isso tornaria mais complexo o seu atuar, um modelo que “juridiciza” o sistema democrático, ao qual se
apesar de que a maioria dos poderes judiciais não responderam impõe uma “esfera do indizível” que protege as pessoas, enquan-
a essas demandas, nem sequer quando eram formuladas desde to garante o debate participativo e integrador. Nesse modelo, o
essas premissas, na ocasião dominantes. Certamente, possibi- papel da jurisdição é certamente central e exige de seus mem-
litou um desenvolvimento ativo especialmente progressista, bros um “ativismo”, assim como uma capacidade, herdada do
que na Itália, Espanha e América Latina se conheceu, em suas juiz estadunidense, de “falar” pela Constituição. Essa confian-
versões mais avançadas, como “uso alternativo do direito”, por ça que atribui maiores poderes a quem historicamente abusou
utilizar as rachaduras do sistema jurídico contra a exploração deles, foi certamente criticada (DE LORA, 2005; MARTÍ, 2005).
e a manutenção de uma ordem injusta (DUQUELSKY, 2000; Mas é certo que o modelo não é de tipo descritivo senão prescri-
CARCOVA, 2009). Isso, especialmente no âmbito latino-ame- tivo e, nesse sentido, é de grande utilidade para pensar no que
ricano, implicava em um compromisso com os membros mais pode e deve chegar a ser o serviço de brindar justiça.
frágeis da sociedade, tomar partido por eles usando tanto a Para além da riqueza dessa teoria, que encontra na área judi-
criatividade quanto o legalismo firme quando essas promessas cial parte da solução para os problemas, o certo é que o faz porque
não são cumpridas (BUENO DE CARVALHO, 1994: 85). constatou a presença de uma crise. Mas, como direi, também há
Na Itália esse movimento foi delimitado no tempo e não foi autores progressistas que observam no âmbito judicial parte do
de todo produtivo, mas sim teve uma marca e concretização mais problema mais geral da democracia moderna. Igualmente o fazem
forte no âmbito da teoria, com a nova legitimação do juiz enquan- porque percebem uma crise. Como aponta Boaventura de Sousa
to garante dos direitos fundamentais e de proteção do mais débil. SANTOS, o poder judicial é objeto privilegiado de atenção en-
A obra principal dessa nova justificação é a de Luigi FERRAJOLI quanto pode ser visto como parte da solução ou parte do problema
(1995; 1999). Esse autor, e muitos dos seus seguidores, confia que da não realização do Estado de direito (2009: 460).
os órgãos judiciais, nessa função de guardião das promessas jurí- Uma boa aproximação à problemática atual da adminis-
dicas e políticas, poderão e deverão atuar para fortalecer o regime tração da justiça é o estudo realizado por outro autor francês
democrático e proteger as pessoas mais necessitadas. especialmente lúcido. Refiro-me a Antonie Garapon, que foi
Isso não deixa de estar no plano prescritivo e do futuro, juiz em Valenciennes e em Créteil, e dedicou uma parte im-
mas serve para criticar o passado e o presente da justiça, espe- portante de sua obra a analisar a atual crise do modelo de juiz.
cialmente, a penal. Sob o nome de “justiça penal” realizaram-se Sustenta que os juízes, nas sociedades contemporâneas, são os
mais danos do que os que se lograram evitar, segundo lembra “guardiões das promessas” que elas fazem a si mesmas através
Ferrajoli, que é um grande conhecedor da história das atrocida- das leis elaboradas pelos que as representam, deixando, em
des e das infâmias que vão da inquisição, passando pelos anos consequência, de serem meros julgadores do Direito e adqui-
escuros do nazismo alemão, do stalinismo soviético e de muitos rindo a “condição de garantes de tais promessas, de zeladores
regimes militares e fascistas, como os da Itália, Espanha, Por- de seu cumprimento” (GARAPON, 1997). Como consequência
tugal e América Latina, até chegar à crise contemporânea das de tal compromisso, o papel e poder dos juízes se estende até
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alcançar todas as áreas políticas. Tal judicialização da vida polí- Para além das propostas dirigidas ao sistema democrático em
tica, segundo o autor, “não consolida nem reforça a democracia: geral, o autor se concentra em “delimitar o novo lugar do juiz”. Para
pelo contrário, a debilita”, uma vez que o papel dos juízes não é tanto, revisa distintas vertentes que desenham um novo cenário,
fazer as leis, mas aplicá-las. Foi a incapacidade das sociedades dentre os quais se destacam a revalorização da imparcialidade,
contemporâneas de resolver seus conflitos jurídicos que muitas a reabilitação da ética, a recuperação da representatividade e a
vezes fez com que estes fossem transferidos para a arena judi- assunção de um papel fundamental nas sociedades contemporâ-
cial. Antonie Garapon vê isso como um problema, mas que deve neas, ao ser o juiz aquele que recorda “à humanidade, à nação ou
ser solucionado com “uma democracia sem rumor de togas”. ao simples cidadão as promessas que fez a si mesmo, começando
Uma reforma social e política organizadora de uma democracia pela primeira delas, a promessa de vida e de dignidade. Os juízes
genuinamente representativa, que permita à justiça enfrentar guardam essas promessas, mas não as amarram: são suas testemu-
aquele paradoxo, a partir do qual os juízes ao reagir frente a nhas, seus garantes e guardiões. Elas lhes foram transmitidas, eles
uma ameaça de desintegração contribuem para promovê-la. as escutaram e as recordam, chegado o momento, aos mesmos as
Sua metáfora da “República presa pelo Direito” dá conta de quais foram confiadas”, segundo GARAPON (1997: 202).
uma justiça que “de secundária passa a ser primária”, assumindo Para além da percepção da crise, social e política, mas
perigosamente o lugar simbólico da democracia, constituindo também judicial, que requer reformas mais amplas, os juízes
um novo “governo dos juízes”, que assume um “poder inédito”. também podem ocupar um lugar na solução desses aspectos
Isso se produz porque o “Direito se converteu em uma nova problemáticos. “O ativismo judicial, que é o sintoma mais apa-
linguagem com a qual se formulam as demandas políticas que, rente, não é mais do que uma peça em um mecanismo mais
decepcionadas por um Estado em retirada, se dirigem massiva- complexo que requer outras engrenagens, como a debilitação
mente à justiça”. Assim, Antonie GARAPON também dá conta do Estado, a promoção da sociedade civil e, obviamente, a força
do ativismo judicial, já que o juiz é requerido como o “novo dos meios de comunicação” (GARAPON, 1997: 18).
anjo da democracia”, para o que é impulsionado pelo descrédi- Mas ainda assim a crise do modelo de juiz é simplesmente
to do Estado, a decepção da política e pelo peso dos meios de um sintoma a mais da crise geral, seria um erro não o atender
comunicação. Estes últimos têm uma relação ambígua, já que individualmente, assim como voltar, outra vez, a sujeitar sua
enquanto auspiciam essa instância, também a desacreditam. reforma às prévias mudanças de outras áreas do campo mais
Vê o autor nisso um perigo, já que a velocidade da comuni- amplo do poder. Esse maior protagonismo judicial aparece
cação põe em discussão o tradicional espaço judicial, o tempo como um efeito da perda de capacidades da política tradicional
do processo e a qualidade oficial dos sujeitos processuais, ge- de ser “cadeia de transmissão” de demandas cidadãs (BERGAL-
rando uma visibilidade e transparência sem precedentes em LI, 1999: 337 e ss.). E também porque perderam a imunidade que
alguns casos concretos, resultado da integração da investigação tinham os poderosos no âmbito econômico e social. A justiça se
periodista e do trabalho judicial. Algumas evidências sobre esses apresenta claramente nessas áreas, seja de forma voluntária ou
aspectos estruturais podem ser aproveitadas, como as de tipo requerida, pelas próprias esferas econômicas, sociais ou polí-
processual, pois “as relações entre a imprensa e a justiça se vêm ticas. E isso é um fato, goste-se mais ou menos, que não pode
exacerbadas pelo nosso arcaico sistema, que dá demasiada im- ser ignorado e que dá conta de uma saída desse lugar parcial ou
portância ao juiz de investigação e não atenção suficiente ao juiz político, sem saber que já o tinham os integrantes da judicatura.
da audiência”, aponta GARAPON (1997: 62).
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“O ativismo ou protagonismo judicial não é em si mesmo não, destino comum de desintegração do sistema tradicional
algo bom ou ruim para a democracia participativa. Deve-se ava- de partidos políticos, que talvez não seja consequência senão a
liar em termos de seus méritos substantivos”, diz SANTOS (2009: causa de ditas intervenções judiciais.
497), mas os exemplos que dá são mais bem negativos (tribunais Mas o que sim é comum a todos esses fenômenos é a men-
na República de Weimar, Suprema Corte dos Estados Unidos cionada importância da justiça penal. E se observa aqui o perigo
frente a Roosevelt ou seu par chileno frente a Allende). que estes novos juízes protagonistas possam se transformar
Porém, efetivamente, haveria um inconveniente se se es- em uma nova casta, que fique mais além dos limites formais
quece ou se deixa de lado aquele que deveria ser o principal ator e também dos que impõem o controle da maioria. Esta casta
da política, que é o indivíduo em conjunto com todas as outras seria tão perigosa se atuasse sozinha frente a todos os poderes
pessoas “comuns”. Parece-me que se esquecem dessa chave ou, inclusive mais, se atuasse de comum acordo com os outros
democrática aqueles que apenas impulsionam e aplaudem o cha- poderes públicos, ou com os privados, como os dos proprietários
mado “ativismo dos juízes”. Muitas vezes se está de acordo com a dos meios de comunicação, ou inclusive com o apoio popular:
orientação política das decisões de alguns dos juízes mais ativos a pior situação se daria com a união de todos eles contra algum
e em muitas outras claramente não. Isso faz parte da política. indivíduo ou grupo vulnerável. Tanto se atuam como corpora-
E certamente haveria que marcar diferenças em processos ção ou “partido judicial”, contra os outros atores políticos ou
nacionais que remetem igualmente à justiça penal. Não é igual em conjunto com eles e as demandas populares, a situação traz
falar de “mãos limpas” na Itália dos anos noventa e de toda a ope- sérios perigos. Esses fenômenos foram definidos por GARA-
ração judicial contra a trama política e econômica delitiva – que PON, respectivamente, como “crispação corporativa” ou “deriva
na Espanha em 2016, teve protagonismo um sindicato fascista populista” (1997: 58), e implicam em ambos os casos esse “pro-
desse nome que, com a conivência de elementos policiais e judi- tagonismo” dos funcionários.
ciais, interveio ativamente em processos judiciais e foi investigado Nos processos políticos atuais, a importância dos juízes é tal
não apenas por extorsão, mas também por conseguir “favores” que chegou a inverter a antiga questão da “independência”, te-
de funcionários sob o pretexto, já habitual também nos países mendo-se agora mais a pressão do judicial sobre o poder político
latino-americanos, de pagá-los para participar de conferências ou que aquilo que implicava previamente isso. (ANSOLABEHERE,
supostos encontros de formação. 2007: 19 e ss.). Não se tratará aqui de analisar o que isso implica
Também não é igual processar políticos poderosos em para os outros poderes políticos. Já é bastante árduo pensar no
lugar de opositores incômodos. E também não há semelhan- que faz ao próprio poder judiciário.
ça com intervenções judiciais, que propiciam a derrocada de O “protagonismo”, como fenômeno, não é negativo em si.
governos democraticamente eleitos, com um uso oblíquo de Por um lado, promove a crítica interna e elimina assim o cor-
investigações de corrupção, com as que pretendem controlar os porativismo judicial e, por outro, ajuda a assunção por parte de
que de todo modo exercem o poder com métodos irregulares. todos do papel político da magistratura. Esse papel é político,
A crônica sobre a atuação da justiça penal em nosso entorno mas está limitado pela democracia, pelo direito e pela “verda-
dá motivos para justificar muitas outras investigações, local- de”, tal como definiram de forma restritiva os melhores modelos
mente radicadas, e que descrevam essas situações patológicas garantistas. Caso contrário, contamina suas funções. Como se
de seu modo particular. Isso nada indica sobre um possível, ou disse, o fenômeno responde, em grande medida, à cidadania
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que demanda mais coisas daqueles que devem cumprir esse Latina, com as circunstâncias específicas do crime e da repro-
novo papel judicial que, atualmente, começa a ser percebido vação social (BERGALLI, 1999: 317 e ss.)
e a se perceber como “político”. E também ao processo de es- Não é estranho a essa nova demanda social sobre a justiça,
fumação dos limites entre governo, legislação e jurisdição, do o eterno interesse dos meios de comunicação sobre os fenôme-
qual surgem inevitáveis tensões entre o poder judicial e os po- nos judiciais. Tampouco são os meios de comunicação alheios,
deres eleitos por procedimentos democráticos (GUARNIERI e portanto, à mencionada crise do sistema judicial. A maior de-
PEDERZOLI, 1999, 276). mocratização, a transparência, as inovações tecnológicas que
Isso deveria reforçar os controles e autocontroles, pois fizeram possível que o agir da justiça se tornasse um tema “polí-
“quanto mais reconheçamos a intrínseca politicidade da ju- tico” e também “popular”, provavelmente, afetaram não apenas
risdição e defendamos o compromisso civil e político dos essas demandas sociais, senão também que menosprezaram a
magistrados, mais rigorosa deve ser a deontologia profissional falsa imagem que os operadores das diversas administrações
destes, com o objeto de fazer crível o papel de garantia dos da justiça tinham de si mesmos, como se estivessem “para
direitos que atribuímos à magistratura”, insiste FERRAJOLI além do bem e do mal”. Alguns desses funcionários percebem
(2013: 8). Pelo lado individual, para poder suportar a assunção a partir daí que a justiça “já não é o que era”. Essa percepção
de um poder tão terrível e difícil, sem cair na situação levada ao pode estar relacionada com a ideia de “crise”, tal como é narrada
cinema por Chabrol em A comédia do poder. Pelo lado coletivo, em muitos textos.
porque não reconhecer essa politicidade e “sofrer” essa deman- Alguns desses fatores críticos se relacionam com essas
da social pode produzir dois fenômenos associados, como o novas demandas propiciadas pelo modelo jurídico prestacio-
da denominada “politização da justiça” (quando os partidos nal e pela própria ambiguidade do direito moderno, que impõe
ou outros atores políticos influenciam ou instrumentalizam as desafios novos de interpretação (BERGALLI, 1999: 308 e ss.).
decisões judiciais, ou nomeiam juízes partidários para dobrar Como já se disse, contra o modelo homogêneo da legalidade e
as decisões políticas que não aprovam) ou a “judicialização da o código, apareceu um novo modelo de multiplicação, especifi-
política” (quando algum juiz ou uma espécie de “partido ju- cação e complexidade dos direitos humanos. O que é incitado
dicial” torna-se protagonista do jogo político e decide sobre pelo peso da análise da “constitucionalidade”, como a assunção
políticas concretas, ou atua para além das suas funções para de um direito regional, internacional ou global, especialmente o
deslegitimar o inimigo político). Digo que são associados, pois vinculado com os direitos humanos (que deveria se internalizar),
constituem uma espécie de “círculo vicioso” que deixa mais mas também com o de caráter econômico ou de entes transna-
empoderados e expostos os juízes como atores, em igualdade cionais (que também dão conta da pluralidade de fontes contra o
de condições com os outros poderes públicos e os poderes sel- velho diagrama da soberania). Em ambos os casos, identifica-se o
vagens privados, em um novo “cenário” que, seja qual for, não fenômeno de “abertura” da fonte jurídica que informava a tarefa
é estritamente reservado a quem deve intervir entre as partes judicial sobre a prática jurídica internacional ou global.
individuais ou coletivas.
Mas já não se trata de uma mera extensão do modelo do
Talvez na esfera jurídica fique agora socialmente mais visí-
pós-guerra, senão que, em grande medida, isso implica agora
vel a tradicional aliança entre setores econômicos e políticos (e
a assunção da sua crise e suplantação pelo modelo liberal que
também judiciais) que, como já se disse, apresentavam-se nos
deve se assumir em instâncias da chamada “globalização”. Esta,
anos noventa, especialmente na Itália, Espanha e na América
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mais do que as possibilidades de internacionalizar a lógica ju- quase todos os trabalhos descritivos utilizam-se classificações
rídica (ainda presente), estará moldada pelos riscos da crise que recordam aquelas utilizadas historicamente, em especial,
do modelo de Estado de bem-estar, especialmente propiciados naquele século. Por exemplo, Alejandro NIETO (2004) justifica
pela ruptura daquele “novo pacto” por parte de classes privile- na sua análise que se classifica a justiça como tardia, teimosa,
giadas, entregues a um capital financeiro que propicia a evasão cara, desigual, imprevisível, mal travada, desgarrada e, espe-
impositiva e, dessa forma, uma crise na qual se visualiza “a cialmente, é o que me referi por extensão, ineficaz.
produção das suas próprias sepulturas”, mas sem oferecer, ine- Socialmente essa “crise” tem a ver com descobrir, pela pri-
vitavelmente, outra ordem de substituição. meira vez, o que a justiça faz e também, assim, que é “classista”,
O processo de internacionalização do poder econômico, “discriminadora”, “lenta” ou “corrupta”. É que, também, parece
consequentemente, produz-se com a perda de poder dos an- outro sintoma da crise do judicial a indubitável visibilidade social
tigos Estados nacionais, no plano da sua capacidade política e política que adquiriu o sistema de administração da justiça e
de responder às demandas sociais e, também, no plano da sua seus problemas, antes tolerados, ignorados, ocultos ou silenciados
soberania, como capacidade estatal de organização jurídi- pelos diversos interesses. Como apontou MAIER: “A questão se
ca (BERGALLI, 2001: 123) e como possibilidade de ser o lugar apresenta como a queda de um mito, ou de vários mitos ou, quiçá
privilegiado de desenvolvimento da violência, como foi histo- entre nós mais simplesmente, como o caso do bruxo da tribo que
ricamente, mas também da sua resistência e até pacificação. vê descoberta a simplicidade causal dos mistérios que realiza –
Todavia, enquanto esses Estados perdem legitimidade, au- casualmente ocultos – diante das pessoas” (2001: III).
menta a utilização do recurso à violência, na forma (entre outras É que afora do que se considera mais politizado na justiça
menos visíveis, mas igualmente eficazes) do poder punitivo. É ou judicializado pela política, também se percebem problemas
utilizado para tentar dar resposta às demandas que não podem na administração da justiça penal, especialmente, desde pa-
ser resolvidas com outras ferramentas, para as quais não se tem râmetros que assumem uma específica função, como aqueles
fundos econômicos nem ideias. As violências se aplicam em um que a pensam apenas como um meio de resolver problemas
regime de concorrência, no qual apenas o menos frágil tem chance públicos. Isto é, se se projeta em termos de eficácia relativa-
de manter seus privilégios. mente à outra função política. É o que costuma ser revelado por
Não parece casual, por outro lado, que tanto a recuperada pesquisas encarregadas de “medir” as percepções sociais. Tanto
visão elitista do judicial quanto o olhar crítico direcionado a na Espanha como nos países ibero-americanos o poder judicial
essas elites pelos sujeitos de estamentos sociais mais vincula- não costuma obter “boas notas” nessas pesquisas, seguramen-
dos com o salário produzam-se no contexto socioeconômico de te por diversos motivos, muitos deles não estritamente atuais.
redução do chamado Estado social, no qual esses “privilégios”, Mas, além disso, nos últimos anos, “a dilatação, a lentidão e
que foram historicamente e seguirão sendo dos juízes, pareciam inoperância de execução das decisões, a escassa acessibilidade,
estender-se ao resto das classes trabalhadoras ou de serviços. os elevados custos, o distanciamento e conservadorismo dos
Definitivamente, também essa crise econômica identi- julgadores, a qualidade pobre, o viés parcial dos julgados, o
fica-se com os problemas da própria justiça que, em muitos corporativismo e a corrupção de alguns dos seus membros são
casos, distam de ser novos ou originais e reiteram aqueles já alguns dos problemas frequentemente divulgados”, de acordo
sinalizados na mencionada crise do final do século XVIII. Em com PASTOR PRIETO (1993).
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Em todo caso, há uma sensação de insatisfação que provo- não haveria inconveniente em uma descrição ajustada a essa
ca uma perda de confiança (QUINTERO OLIVARES, 1998: 19), realidade desde o ponto de comparação com a historicidade do
que provavelmente nunca teve realmente, mas que no presente funcionamento do sistema e, em particular, desde a percepção de
se esperava de alguma forma encontrar em algum lugar. Essa quem são os atores das instâncias de aplicação do sistema. O que
decepção é especialmente perigosa, a meu ver, trasladada ao se observa, então, ao invés de uma nova crise, é a permanência de
âmbito de uma justiça penal a qual se vê como impotente em um sistema de justiça penal com suas contradições e seus modelos
conseguir um objetivo político que nunca foi seu, e que talvez ideais, presentes desde a consolidação das estruturas estatais.
seja inatingível. Ainda mais quando se recorre a esse objetivo, Está-se frente ao antigo modelo de juiz que, à mercê da
aquele vinculado com a prevenção do delito, para tentar resol- sua ductilidade, segue sendo o do presente. E digo antigo, mas
ver os problemas das mais diversas índoles. também ambíguo, porque o modelo se deve a essa acumulação
Em todo caso, uma referência comum dessa percebida crise de histórias, mas é, também, o que ainda se apresenta como
termina em um juízo sobre uma ineficácia, que pode orientar reconhecível enquanto julgador e detentor de um poder sobe-
soluções que não façam senão aumentar os problemas prévios. rano. Esse modelo que Perfecto ANDRÉS IBAÑEZ define como
Acredito que muitos desses aspectos são símbolos de mudan- “uma concretização fiel do tipo ideal de jurista do positivismo
ças. É isso, e não outra coisa, o que significa a palavra “crise”. As dogmático e ideológico. Com a característica de falsa consciên-
mudanças, o seu existir, poderiam ser (sem necessidade nem cia sobre o autêntico papel do direito e do próprio papel no
determinismo algum) para melhorar ou piorar. Que tudo possa modelo; a imersão no formalismo interpretativo; a inclinação
seguir igual, acende os alarmes de alerta. irrefreável – dir-se-ia que escrita no seu DNA – de operar como
Contudo uma crise permanente e persistente dificilmen- funcionário oficioso do poder de ato; com a predisposição,
te pode reputar-se como tal. É por isso que podem se albergar enfim, de ver certeza no direito, naquilo que não era mais que
sérias dúvidas sobre a existência de uma tal crise no sistema de o resultado da homogeneidade ideológica dos próprios opera-
justiça penal. Se ela existisse poderia indicar algumas pautas dores deste, entre si, e com a classe do poder” (2007: 81).
para posterior modificação da justiça penal, tão mais profundas Esse exercício pretende se limitar a entender alguns aspec-
quanto seja a crise. Mas ainda se não o é, essa persistência não tos que fazem do herdado, como menciona ANDRÉS IBAÑEZ
deve fazer com que se desista da sua tentativa de melhora, pois (2015: 93), o essencial ou ínsito ao modelo de justiça, especial-
se confirmou com razão que “a reforma da justiça penal é uma mente o penal. Pela sua mesma maleabilidade e ductilidade,
tarefa permanente, quase uma atitude frente ao sistema penal”, essa justiça segue sendo a do juiz herdado, nela se percebe o
como afirma BINDER (2000: 13). componente decisório e de origem, que denota a presença do
elemento inquisitório e punitivo, desde seus exemplos tardo-
Então, os problemas no funcionamento da justiça podem não
-medievais e especialmente vinculados ao Estado absolutista e,
ser apenas o sintoma da crise, senão as características do sistema.
no espaço latino-americano, aos vícios da tradição colonial. A
Efetivamente, há algo que não funciona se se compara o sistema de
isso, somou-se o pior da tradição da “carreira” francesa e seu
justiça penal configurado na prática com as declarações de direi-
profundo corporativismo. E o pior da tradição da “independên-
tos e a Constituição, que lhe proporcionam determinado desenho
cia política” anglo-saxã e suas arrecadações de poderes privados,
nunca realizado, com um modelo ideal de justiça que apenas serve
especialmente vinculados aos proprietários. Tudo isso reforça-
para ver o quão longe está dele o que de fato existe. Sem embargo,
do por um isolamento corporativo, que percebe como ameaça
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toda tentativa de abertura. Pode-se apontar no que diz respeito demandas se dirijam para pensar em verdadeiras soluções cole-
à justiça o que FOUCAULT deixou indicado sobre a justificação tivas aos problemas e confirma o limitado poder da jurisdição.
do castigo: “tudo ocorre como se praticássemos um tipo de cas- Mas, ao contrário, verifica-se uma indevida assunção dos
tigo no qual se cruzam ideias heterogêneas, sedimentadas umas fins da penalidade e, ainda pior, de uma política de prevenção
sobre as outras, que provém de histórias diferentes, de momen- do delito por parte dos poderes judiciais, que se somam a essa
tos distintos, de racionalidades divergentes” (1998: 26). “fuga sistemática ao direito punitivo como refugium peccatorum”
Faço especialmente essa alusão não apenas porque existe que “apenas se explica como modo demagógico de satisfazer a
também essa mistura de lógicas definindo a justiça penal, senão chamada opinião pública, enquanto despreza ou ignora que o
porque é esse componente “penal” que marca o principal pro- grau de ineficiência consubstancial ao sistema penal resultará
blema atual da jurisdição. É que também o mesmo poder dos mais patente e lamentável conforme se faça crescer o marco das
juízes costuma se ver reforçado quando atuam com a lógica tarefas que se lhe assinalam”, explica QUINTERO (1998: 35 e 36).
punitiva (e isso explica situações nas quais alguns deles se Essas ineficácias da justiça penal serão dirigidas, finalmente,
convertem em “caudilho” de lutas contra delitos de regimes até colocar em jogo suas próprias razões de ser: os limites e garan-
prévios ou de grupos econômicos que não lhes eram do todo tias constitucionais que em tal lógica obstruem o trabalho policial,
estranhos). Em todo caso, quando no lugar de “terceiros” ou que enfim cumpriria aquela função preventiva e repressiva. Remo-
“imparciais” voltam a ser aqueles sujeitos únicos encarregados vidos tais “obstáculos”, busca-se aumentar a eficácia. Prescinde-se,
de “fazer o bem” ou, no caso, erradicar ou reduzir o delito. assim, dos princípios que são a base da nossa cultura jurídica,
A suposta ineficácia desta função traduz-se em muitas das como os da culpabilidade, proporcionalidade, “in dubio pro reo”,
propostas e transformações “camaleônicas” da política judicial. proteção da intimidade etc. e mesmo da natureza da jurisdição em
O principal risco ou problema provém de pensar a administração sentido estrito (HASSEMER, 1990: 203). O que se obtêm com essas
da justiça como responsável pela prevenção ou redução do delito. propostas pode-se encaminhar em duas direções: ou se aumenta
Isso, por certo, está bem longe de suas limitadas possibilidades a repressão policial “eficiente”, com o que a justiça penal não fará
reais, mais bem focadas em impedir excessos em relação à vio- senão aumentar o índice de violência global sofrida pela sociedade
lência destinada, supostamente, para essa tarefa. ou se aprofundará o déficit de funcionamento da justiça e amplos
setores do sistema penal se limitarão a uma eficácia puramente
O fundamento garantista e pacificador da jurisdição rela-
simbólica (HASSEMER, 1990: 200).
ciona-se com sua necessidade de reduzir todo tipo de violência,
a dos indivíduos e grupos em conflito e, especialmente, a dos A primeira opção é realmente perigosa, tanto nos âmbi-
próprios Estados no exercício daquele poder punitivo, que nunca tos executivos, quanto também nos estritamente judiciais, nos
pode ser sua razão de ser. Frente às demandas para possibili- quais se tentará fazer “eficiente” a gestão da mesma e tradicional
tar a atuação daquele, com a escusa de “solucionar” o problema justiça, possibilitando a atuação reprodutora e justificadora de
ou conflito que fosse, a judicatura deve responder, de alguma um poder que atua seletivamente. Isso é o que merece atenção,
maneira, com aquela que ZAFFARONI chama de “lógica do ver- precisamente, por estar fora do foco midiático, mas que igual-
dureiro”: se uma pessoa vai a uma feira de verduras e pede um mente parece responder àquelas demandas sociais e políticas,
antibiótico, o verdureiro lhe dirá que vá até uma farmácia, porque assim como a comodidade da burocracia judicial para evitar ser
ele só vende verduras” (2006: 243). Dessa forma, permite que as questionada sem mudar substancialmente.
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Já se teorizou sobre o aparecimento, no último quarto de (BRANDARIZ, 2014).


século, de uma justiça penal atuarial (FEELEY e SIMON, 1994). Como é lógico, os maiores efeitos de tal pensamento sobre
Seu nome remete às disciplinas matemáticas, mas provém da téc- a política penal observar-se-ão nas instâncias policiais (SOZZO,
nica dos seguros e de seu manejo e cálculo do risco (FOUCAULT, 2000) e penitenciárias (RIVERA, 2015). Mas também é observável
2007: 187; ANITUA, 2015: 557). Não é por acaso, assim, que a ques- na instância judicial, onde de fato teve suas primeiras observações
tão da “eficiência” tenha se convertido em seu leitmotiv preferido. sobre as práticas nos Estados Unidos (FEELEY, 1979a; FEELEY,
Ainda quando se pode ver alguma novidade, em um momento 1983). Esse “atuarialismo” traduz-se no estrito âmbito da justiça,
em que a multiplicação das formas da empresa chega a todos os em termos de eficiente manejo de custos e de tempo, como “um
âmbitos (FOUCAULT, 2007: 187), o certo é que esta concepção de modo de funcionamento praticamente de mercado, que orienta
tipo “gerencial”, administradora ou de gestão, relaciona-se com as o sistema em uma chave de prestação de serviços e de melhora
mencionadas “heranças” do juiz penal, em particular, com a lógica da produtividade dos operadores públicos” (BRANDARIZ, 2014).
burocrática da qual o “gerencial” é um tipo específico. Especialmente, isso se entroncará nos momentos de crise do
A também chamada “nova penologia” reforça o manejo de modelo do Estado social e de mãos dadas com políticas neolibe-
dados estatísticos e a avaliação do risco, que a tornam diferente da rais que, juntamente com os apelos à democracia, informarão as
antiga modalidade punitiva centrada no indivíduo. Mas também mais recentes reformas. Assim, a introdução da lógica de gestão
propõe alterações no que se relaciona à gestão, especialmente da na administração da justiça penal, percebe-se em nossos países
justiça, para torná-la mais eficaz, de acordo com a velha “racio- através de alguns dos discursos e programas de reforma judicial,
nalidade” dos meios excludente da racionalidade dos fins. Isso lastreados na marca neoliberal (CIOCCHINI, 2013).
tende a reforçar os velhos preconceitos ou estereótipos, que agora Como se disse, já não se pensará nos fins do sistema nem no
costumam ser formatados para realizar processos, nos quais a seu efetivo resultado externo, senão que se priorizará o produto
condenação seja mais segura, o que recai negativamente sobre interno da justiça: será mais eficaz se logra mais e mais rápidas
algumas pessoas quando são acusadas (e contra as mesmas “cate- prisões preventivas, condenações etc., reduzindo, ao mesmo
gorias” de pessoas, sejam vítimas ou denunciados). tempo, os custos em uma sucessão de decisões que tendem a
Os pressupostos da “justiça atuarial”, como da própria autolegitimar o gasto previamente investido. Assim, a lógica eco-
política criminal do risco, pretendem ser pré-políticos, mas nomicista relaciona-se com as pretensões de destruir o Estado
escondem um poderoso conteúdo de cariz autoritário e clas- social e também o liberal, identificado com certos mecanismos
sista. Assim ocorre, por exemplo, com a postulada eficiência de garantia e de controle que serão vistos como caros, começan-
como horizonte discursivo, que permite e reproduz a gestão do pela ideia de verdade.
na administração de dor institucional, tanto o do castigo em Delmas-Marty apontou dois perigos para o modelo de julgar
si, da prevenção e seleção de conflitos e pessoas, quanto o do em respeito às garantias e que atentam potencialmente contra o
processo penal. Essa apelação oculta o caráter autoritário da princípio da “verdade”. Esses fenômenos são, por um lado, o apa-
política criminal, já que representa um pensar que não pode recimento de procedimentos negociados, que tentam desbloquear
ser facilmente associado a etiquetas políticas convencionais os sistemas abarrotados pelo número de causas, sem respeitar os
(FEELEY e SIMON, 1994: 190), mas que é evidentemente re- procedimentos de prova; e, pelo outro lado, a confrontação com o
produtor da ordem dada e naturalizada, operando como uma papel dos meios de comunicação que marca, segundo a autora, a
linguagem diferente e oposta àquela das garantias e dos direitos vontade democrática de evitar que se escondam certos assuntos,
120 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA GABRIEL IGNACIO ANITUA 121

mas também “um surpreendente retorno ao sistema de acusa- cautelares (FEEELEY e SIMON, 1994) ou na determinação da
ção privada, inclusive de linchamento coletivo, que não favorece pena (ZYSMAN, 2013).
nem a busca da verdade nem tampouco o retorno da paz social, Para isso também serão utilizados os recursos aportados
haja vista o risco de reações em cadeia que representa” (DELMAS- pela verdadeira revolução tecnológica, especialmente aquela
-MARTY, 2000: 613). relacionada à informática, que se utilizará, não obstante,
Embora o último fenômeno se dê especialmente naqueles principalmente para reiterar “vícios” próprios das nossas ins-
casos nos quais se pode verificar o fenômeno do “protagonis- tituições judiciais, como a delegação de funções a subalternos
mo” judicial, isso não atua, senão indiretamente, no momento ou a ausência de motivação, que agora pode ser encoberta com
atual, na maioria dos casos levados à justiça, principalmen- o uso do “copia e cola”, que nem sequer se reconhece como
te naqueles que impõem penas privativas de liberdade, que “modelões” de resoluções de sentenças.
não gozam nem desse protagonismo nem da evidenciação da Outro exemplo dessas lógicas, mais original ainda, é o caso
imprensa e de seu público, mas que respondem a determina- dos chamados “subsídios variáveis” no Estado espanhol. Os
das campanhas de “guerra ao crime”. Neles se impõem penas chamados “módulos”, implementados timidamente nos anos
realmente graves, evitando-se o “custo” da busca judicial da ver- noventa, e por lei em 2003, utilizados para que os juízes possam
dade, assim como o de respeitar o modelo de garantias penais, demonstrar uma maior laboriosidade ou eficiência a fim de au-
especialmente a defesa e, finalmente, também o de efetivar o mentar os ingressos ou vencimentos judiciais, já foram ampla
controle público dos cidadãos, a ideia transmissora de sentido, e justificadamente criticados pela doutrina (DOMÉNECH,
os efeitos catárticos para seus personagens e o conjunto das 2009). Os efeitos possíveis são certamente perigosos, embora
funções que os juízos penais poderiam ter em uma sociedade o comprovado seja a alteração das estatísticas judiciais, porque
democrática (ANITUA, 2003). “a introdução de módulos de rendimentos, para o fim de remu-
Supostamente em resposta a essas demandas sociais, mas nerações variáveis, produz uma tendência a ampliar os rótulos
efetivamente garantindo a lógica interna dos operadores do sis- das cifras penais” (RAMOS MÉNDEZ, 2006: 20).
tema de justiça, que assim reiteram o que já se fazia, os sistemas Essa seria uma das consequências sistêmicas de toda a jus-
de justiça penal tentaram dar conta do componente da eficácia, tiça atuarial: uma falsa resposta à demanda cidadã, que consiste
do qual careciam, alcançando maiores resultados com menores em fazer o mesmo que se fazia historicamente com uma nova
custos. O modelo disso é o que ficou evidenciado com a emer- legitimidade autorreferente. Em tal sentido, nada há de novo
gência das lógicas atuariais, que enfatizam os meios antes dos na mencionada “justiça atuarial”, que retorna às piores tradi-
fins, cuja discussão se torna impossível. ções inquisitivas de absolutizar a ideia de verdade, evitando os
A essas lógicas dedicarei o último capítulo. Tomarei como “inconvenientes legais” para encontrá-la. É que esses métodos
exemplo de modelo atuarial ou eficientista da justiça penal o legalmente dispostos são vistos, principalmente, como um gasto.
previsto pelo mecanismo de “conformidade” ou “juízo abrevia- Outro exemplo disso, na justiça penal, é o reiterado
do”, ainda que não ignore que existam outros exemplos desse retrocesso jurisprudencial na interpretação das nulidades pro-
modelo que poderiam trazer algum proveito ao exame. Como batórias ou a chamada “doutrina dos frutos da árvore venenosa”.
nos Estados Unidos, também nos nossos países verificaram- Da mesma forma, a conversão dos fatos por arte de magia ou
-se algumas aplicações dessa lógica na imposição de medidas jogo de palavras em “prova”, os quais não passariam de suspeita,
122 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA

de denúncia, de hipótese acusatória ou uma conclusão da in-


vestigação policial, que não são outra coisa senão material de
perícia investigativa.
Capítulo 6
Ou, finalmente, o retorno à busca da confissão como prin-
cipal prova. O que admite enormes diferenças de grau, mas A “JUSTIÇA ATUARIAL”:
não é minha intenção comparar a aberração da justificação da O MODELO DA JUSTIÇA NEGOCIADA
tortura judicial (ou a mera tolerância daquela realizada em
sede policial) com o instituto da negociação da pena. Con-
tudo, sim, destacarei que possuem em comum esse antigo Desde o final da década de oitenta e durante a década
engenho de comodidade judicial consistente em conseguir a de noventa do século XX, implementaram-se importantes
autoincriminação. reformas no processo penal dos Estados latino-americanos e
O perigo desse tipo de avanços ou contrarreformas é que também dos países europeus como Itália, Espanha e Portugal.
nunca encontrarão seu máximo aproveitamento em termos de Muitas delas pretendiam reformar sistemas herdados do juízo
custos e eficiência. E sempre se poderá dar um passo mais além. inquisitivo, pouco reformados de acordo com os modelos dos
É o que se pode observar no instituto da justiça negociada que, códigos do século XIX e das demandas do século XX.
de se projetar primeiro para delitos de pouca gravidade, foi se As primeiras premissas de ditas reformas apareceram vin-
estendendo para todo o sistema, ampliando seus termos, como culadas aos processos de “transição” ou de “democratização”, que
revela a última reforma processual penal no Reino de Espanha, logicamente deveriam ter uma consequência político-criminal
realizada pela Lei 41/2015, do 5 de outubro, que modifica a lei de e sobre os direitos humanos, vinculadas tanto a um Estado de
Enjuiciamento Criminal, que entrou em vigor o 6 de dezembro, Direito falido quanto a um Estado social de todo insuficiente.
com a expressa vontade de agilizar a justiça penal. Embora a Assim como a política criminal autoritária identificava-se com
medida de limitar os prazos tenha se tornado a mais conhecida, o modelo inquisitivo, no âmbito da justiça penal, a dita política
ali também se sanciona um novo “processo por aceitação de criminal democrática pretendia tender ao acusatório.
decreto”, que não é outra coisa do que levar à máxima expressão
Porém, andando pouco nessa direção político-criminal,
o mecanismo da justiça negociada.
uma nova premissa se converteria na bandeira das reformas já
iniciadas. O novo leitmotiv seria o da “eficiência” das funções
penais. Isso afetaria toda a política criminal, que abandonaria as
pretensões democráticas e se manifestaria, principalmente, em
dependência às políticas policiais e da agora chamada “segurança
cidadã”. O modelo imitado, em todas essas políticas criminais
erráticas e prejudiciais, foi o dos Estados Unidos da América.
No plano da reforma processual penal, também o modelo
anglo-saxão foi influente. Porém, não se tomou dito modelo com
um todo (o que não teria sido de todo ruim em algumas constitui-
ções latino-americanas), senão que se tomaram “emprestadas”
124 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA GABRIEL IGNACIO ANITUA 125

algumas medidas isoladas, muitas vezes denominadas de mecanismos simplificadores não solucionam o problema da
“remendo”, “salva-vidas” ou “estepe” de outros sistemas que re- ineficácia em nível externo ao sistema. Esses mecanismos sim-
conhecem uma origem totalmente diversa (a herança hispânica plificadores não são “outra coisa que a renúncia a princípios
e colonial, o modelo francês). Confirmou-se, então, um sistema fundamentais do sistema penal e, também, não constituem
continental europeu híbrido no qual se injetaram contributos remédio algum para a ineficácia do procedimento penal, são
anglo-saxões e se desvirtuaram tanto de um como de outro, re- apenas paliativos que, na maioria das vezes e quase exclusi-
tornando-se, na mais das vezes, a legitimar as velhas práticas vamente, tentam ocultar essa ineficácia” (MAIER, 2000: 271).
inquisitivas que pretendiam erradicar. Não obstante, tais práticas foram sendo adotados nas úl-
A adoção de um sistema acusatório, baseado na legalidade, timas décadas, com diversa amplitude e alcance, por diferentes
teve logo a vantagem eficientista de tê-lo simplificado. A neces- Estados do nosso entorno. Assim, na Espanha, na reforma de
sidade de “simplificar” o processo penal misto, ou inquisitivo 28 de dezembro de 1998, impôs-se com o nome de “conformi-
reformado, veio fundamentada em que este não poderia dar dad” (DE DIEGO DIEZ, 1997); em Portugal, no novo Código
resposta, pelo menos não em tempo oportuno, à quantidade Processual Penal de 1987, o consenso (ALMEIDA COSTA, 1994);
de causas que era necessário atender. Foi para lograr tais obje- e no âmbito latino-americano, na década de noventa em Gua-
tivos que se tentou regularizar um procedimento mais simples temala, Panamá, Costa Rica, Chile, Bolívia, Paraguai, Brasil,
de imposição de condenações. Com acerto disse BINDER que El Salvador, Colômbia, assim como nos regimes processuais
“um dos usos da palavra simplificação do processo, em certos penais argentinos (em 1992 em Córdoba, em 1993 em Santa Fe,
contextos concretos de discussão da política criminal, pode em 1994 em Terra de Fogo, em 1997 no Estado Federal, em 1998
esconder uma visão profundamente autoritária do processo em Buenos Aires etc.) adotaram-se formas procedimentais nas
penal” (1993: 67). quais se pode chegar a uma pena logo após a aquiescência do
imputado quanto à pretensão do acusador, chamando-se em
Efetivamente, a busca dos objetivos estatais desmedidos
todos esses últimos casos “juicio o procedimiento abreviado”
(aqueles feitos apontados pela criminalização primária) era o
(BOVINO e MAIER, 2001).
que tornava necessário contar com a colaboração do acusado,
que deveria ser forçado a deixar de exercer seus direitos. A pro- Esse mecanismo foi proposto como novidade e o modelo
messa de lhe impor de forma direta e sem juízo uma pena, que a ser imitado por todas essas legislações foi o plea bargaining,
seria menor do que aquela que se poderia impor se optasse por que é uma prática dos sistemas processuais dos Estados Unidos
exercer seus direitos, foi a via utilizada para obrigar o acusado da América, da Inglaterra e Gales. Em rigor, o modelo adota-
a “colaborar”, acordando com a acusação. Os “acordos” assim do é uma espécie do plea bargaining: o sentencing bargaining,
obtidos representam um golpe mortal contra a estrutura do o acordo realiza-se sobre a pena a ser imposta se o acusado
juízo penal em um Estado de direito liberal, de acordo com assume a culpabilidade (guilty plea). Pela influência do prin-
Bernd SCHUNEMANN (1991). cípio da legalidade processual penal na tradição continental
europeia (e por esse meio na tradição ibero-americana) não é
A “conformidade” com a pena por parte do acusado, após o
possível, em princípio, realizar outros acordos, também reali-
acordo com quem detém a pretensão estatal remete, na verdade,
zados no âmbito anglo-saxão, como o charge bargaining, lateral
às práticas persuasórias permitidas pelo segredo nas relações
bargaining etc., que permitem negociar também o próprio fato
desiguais próprias à Inquisição (FERRAJOLI, 1995: 748). Esses
ou a classificação legal.
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Em verdade, uma primeira crítica dirigida a esse tipo de afirmação poderia ser discutida, pois, curiosamente, os juristas
acordos, como a de Schünemann ou Ferrajoli, na Alemanha e estadunidenses fundamentam, também, em valores democrá-
na Itália, embasava-se na possível vulneração do princípio da ticos o princípio da discricionariedade (PINKELE, 1986: 16 e ss.)
legalidade processual que está consagrado constitucionalmen- Mas é um fato que compõe a sistemática processual e ins-
te (POTT, 2000: 85). O princípio da legalidade processual é um titucional que formou nossos sistemas de justiça penal e que
dos princípios básicos do Estado de direito liberal, tanto na sua fazia contrapeso ao modelo de juiz herdado na tradição “con-
historicidade no continente europeu, quanto na sua formu- tinental”. Não obstante, o princípio da legalidade processual
lação teórica mais geral (SCHUNEMANN, 1991; FERRAJOLI, seria posto em dúvida desde o momento em que se pretendeu
1995; ANITUA e BORINSKY, 1999). Outras formas, acaso mais aplicá-lo com rigor. Tentou-se colocar em prática, mais do que
graves, de gestão eficientista que também vulneram esse prin- em outras áreas, na Alemanha de Bismarck: “Quando em 1877
cípio estão constituídas pela utilização de “agentes infiltrados”, entra em vigor a regulação processual penal, o princípio da le-
aos quais se permite delinquir, assim como as negociações me- galidade tinha alcançado seu ponto de vigência e conhecimento
diante a não responsabilização dos “delatores” (ANITUA, 1998). mais culminante, ao tempo que dita aplicação, sem fissuras, ia
É especificamente o princípio da legalidade que impede dar colocando em destaque suas desvantagens. Desde a perspectiva
crédito probatório total à confissão. Nos sistemas processuais alemã, a história da sua vigência, a partir desse momento, é a da
continentais europeus e latino-americanos o objeto do processo progressiva diminuição de sua aplicação”, recorda ARMENTA
penal não é disponível, nem ao acusado nem ao funcionário es- DEU (1991: 55). Na verdade, posteriormente, a Alemanha nos
tatal, que tem o dever se perseguir todos os delitos e também de deu o exemplo mais terrível da história do abandono dos limites
esclarecer os fatos “em atenção à natureza pública do interesse e princípios ilustrados no processo e no direito penal. O certo é
em jogo” (ARMENTA DEU, 1997: 228). que todas as agências burocráticas estatais adotaram uma maior
O princípio da legalidade processual possui a mesma discricionariedade, conjugando uma amplitude imensa de con-
origem da garantia da legalidade substancial. Aparece depois da dutas incriminadas (ampliação e indeterminação das mesmas)
ideia de que a lei é o limite mais idôneo para a discricionarieda- com uma impossível obrigação de persegui-las.
de e arbitrariedade dos funcionários estatais. A submissão total Os estudos sobre a “cifra negra” da criminalidade deixaram
à lei por parte dos poderes executivo e judicial é o que garante demonstrado, no século XX, que são muito poucas as condu-
o freio ao poder arbitrário característico do Antigo Regime. O tas incriminadas na lei que efetivamente são processadas pelo
princípio da legalidade processual constitui uma exigência his- sistema de justiça penal. Isto remete a já apontada crise do
toricamente adquirida de limitação do poder. Também constitui princípio da legalidade, em vista da obrigatória persecução ofi-
uma garantia para os particulares, que podem controlar o acu- cial de todos os crimes, que é de impossível cumprimento em
sador ou funcionário que exerce a ação penal (ARMENTA DEU, um contexto de direito penal máximo. Tal crise é o que levaria
1991: 186). Para fortalecer o caráter intimidatório da lei penal, e os sistemas jurídicos ocidentais a assumirem critérios disposi-
para evitar arbitrariedades, os juristas da tradição continental tivos, mas, em particular, a possibilidade de alcançar acordos
europeia conceituam como “inseparável do cânon da obrigato- (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 1995: 36).
riedade da norma penal o princípio de obrigatoriedade da ação
Também se formularam críticas ideológicas ao que se
penal, e incompatível com uma visão democrática da função
considerou um perigoso modelo de perseguir todos os delitos.
penal o princípio da discricionariedade” (LEONE, 1963: 141). Essa
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Considera-se perigoso, posto que se corre o perigo de impor essa recomendação na Lei Orgânica 7/1988 de 28 de dezembro,
uma sociedade repressiva e deslegitimada perseguindo aquele art. 791.3 e 793.3 da Ley de Enjuiciamento Criminal. Por outro
mito. Outra vez, no início do século XXI, aponta-se que tal lado, também o fez a Lei do tribunal do júri (LO 5/1995), que
pretensão é um mito, já que é irrealizável com a quantidade copiou o mencionado art. 793.3 da Ley de Enjuiciamento Cri-
de condutas incriminadas por lei atualmente. Os sistemas que minal. É certo que isso tinha algum antecedente, pois a Ley de
acreditam no mito podem tornar-se perigosos se tentam alcan- Enjuiciamento Criminal já incluía, desde a sua redação original
çá-lo e têm como principal objetivo para isso a justiça penal. de 1882, um mecanismo similar em seu artigo 655 sobre a conclu-
Nenhum sistema judicial tem a capacidade para processar são antecipada do processo, sempre e quando concorressem uma
todos os delitos, nem sequer com os mecanismos mais sim- série de circunstâncias: a) que a pena solicitada pela acusação
plificados. Tudo isso, evidentemente, pode piorar se se perde a seja de prisão menor16; b) que exista vontade concorrente, tanto
formalidade do ato ritual judicial, se se recorre a outros meios da acusação quanto da defesa; c) que o defensor não entenda
que o façam amplamente operativo (PRITTWITZ, 2000: 446) necessária a continuação do processo; d) que, sendo vários os
ou se se fizer tudo isso utilizando a obscuridade e a coação no acusados, todos estejam de acordo; e e) que a pena solicitada não
processo de imposição de penas. seja inferior àquela que o Tribunal considera procedente em face
Essa crítica ao modelo da legalidade não deveria apontar da classificação acordada. Os artigos 694 e 695 da LECr também
a impossibilidade teórica do mesmo, senão a impossibilidade apontavam no mesmo sentido. De qualquer maneira, colocar em
fática frente ao atual modelo de política penal embasado num prática esses mecanismos não se tornou habitual senão depois
direito penal máximo e que não assume a justiça penal como das reformas de 1988, de rápida aceitação pelos operadores ju-
um verdadeiro “terceiro”, nem a importância de um mecanismo diciais com lógica eficientista (AGUILERA MORALES, 1998;
institucional dotado de um método de comprovação da verdade BARONA VILAR, 1994; ARMENTA DEU, 1991: 216).
implicado no juízo público. Esse procedimento, como demonstra a sua inclusão sem
A verdade desde esse ponto de vista jurídico garantista e alterar o sistema da lei processual penal do século XIX, nem o
público não é disponível. Os critérios atuariais de verdade pro- modelo de organização judicial herdado, não se relaciona com a
cessual já não têm base naquele sistema de comprovação legal, introdução de possibilidades de disposição da vontade punitiva
senão que são fruto do acordo e, por isso, a chamam de verdade por parte do funcionário estatal “senão que, fundamentando-se
consensual. Para os defensores do critério consensual de verda- no acordo do acusado e seu defensor sobre o teor da acusação,
de, a única vantagem do acordo não está em se aproximar melhor prescinde de todo o procedimento subsequente, ditando-se
da “verdade”, senão em terminar essa busca mais rapidamente. sentença sobre determinados pressupostos negociados e pro-
Isso foi acertadamente criticado (ANDRÉS IBAÑEZ, 1992; BA- duzindo, como efeito fundamental, o pronunciamento de uma
RATTA e HOHMAN, 2000) e será examinado mais adiante. sentença condenatória com um limite máximo na imposição da
pena, desde que esta não exceda a maior solicitada pelas partes
Rapidez, economia e eficácia foram os objetivos expressa- acusadoras”, resume ARMENTA DEU (1991: 233). Em nenhum
mente perseguidos pelos Conselhos de Ministros do Conselho caso, o funcionário estatal dispõe da sua pretensão punitiva,
da Europa, em sua recomendação R (87) 18, de 17 de setembro senão que são acusado e advogado que cedem frente a essa
de 1987, que dava indicações para realizar em tal âmbito a série
de reformas mencionadas. Como se apontou, a Espanha seguiu
16. N.T Aquela que vai de 6 meses e um dia a 6 anos
130 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA GABRIEL IGNACIO ANITUA 131

pretensão. Como não são sujeitos públicos, não estão sujeitos em 91% (noventa e um por cento) dos casos se impõe conde-
ao princípio da legalidade (ARMENTA DEU, 1991: 207). Legal- nação pelo método da plea bargaining (LANGBEIN, 1996: 47).
mente, o acusador não pode dispor da pena e ao que parece No trabalho pioneiro de observação etnográfica de FEELEY,
tampouco o acusado, em atenção à natureza pública do âmbito realizado sobre 1600 (mil e seiscentos) casos, concluiu-se que
penal (DE LA OLIVA SANTOS, 1992: 9853). nenhum chegou a juízo, pois se negociou uma pena (1979a).
Isso é muito importante para uma eficiência que não Segundo denuncia Nils CHRISTIE, “mais de 90 por cento – em
coloca em discussão a origem da lógica herdada. Com a “jus- algumas jurisdições 99% – declara-se culpado. Se isso não fosse
tiça negociada” se suprime o juízo, mas não se deixa de lado a assim, se ainda que uma pequena porcentagem deles não se de-
pena. Pelo contrário, cada vez se aplicam mais penas, em menor clarasse culpado, o sistema judicial inteiro dos Estado Unidos
tempo e sem realizar as limitações garantísticas, nem tampou- se paralisaria completamente” (1993: 142).
co as importantes funções do juízo público. O que criticavam todos esses autores era a circunstância
Na verdade, a forma de fazer isso era a adoção “a la espa- de que nos Estados Unidos se coagisse o imputado para se obter
nhola” do guilty plea, ou com a assunção da culpabilidade do a confissão. Produzem-se, assim, sistemas autoritários e inqui-
acusado precedida pela negociação, que é a forma habitual de sitivos impostos com a consolidação dos Estados a partir do
impor condenações no Estado que tem a maior porcentagem século XIII. LANGBEIN não encontra muita diferença entre
delas, ou seja, os Estados Unidos da América. Ali, a partir do ameaçar de quebrar ossos ou ameaçar com o cumprimento de
final do século XIX e princípio do XX, começa-se a utilizar o plea anos extras de prisão para obter uma confissão; em todo caso,
bargaining como forma de evitar o procedimento de julgamento a diferença é de grau e não de classe (1996: 14). A seriedade da
por Jurados. Isso acontece paralelamente, dentre outros fatores, ameaça, mediante o requerimento de uma sanção mais grave
pelo desenvolvimento e burocratização dos órgãos de persecu- se o imputado utilizar dos seus direitos e for declarado culpa-
ção estatal e pela ampliação das condutas previstas na lei, como do, é clara, já que há quase certeza de que assim o será. Nesse
aparece no interessante trabalho de Alschuler. Este autor indica, sentido, estudos sobre o sentencing nos Estados Unidos de-
além dessas causas históricas, que logo da sua legitimação pela monstram que quem é condenado em juízo sofre um aumento
Suprema Corte chega-se a uma cifra próxima dos 90% (noven- significativo no montante da sua condenação (BOVINO, 1998:
ta por cento) de penas impostas mediante acordos no final dos 533; ZYSMAN, 2013: 152).
anos setenta. “Como consequência, nosso sistema, supostamen- O acordo entre o acusado e os funcionários do Estado,
te acusatório, depende cada vez mais da prova da culpabilidade, que pode levar à imposição de um castigo evitando o juízo,
através da boca do próprio imputado, do que ocorre em qualquer então, tem como base um intercâmbio desigual e, no dizer de
sistema europeu inquisitorial”, diz ALSCHULER (2001: 78). FERRAJOLI, perverso (1995). Isso, ademais, viola todo o siste-
Atualmente, a porcentagem aproximada de condenações ma de garantias. Pois não apenas perdem vigência o princípio
impostas nos Estados Unidos após uma negociação supera, em da inderrogabilidade do juízo, o da publicidade e do princípio
muito, conforme a maioria da doutrina, esses noventa por cento acusatório, presentes no “juízo prévio” estadunidense, mas
(RODRIGUEZ GARCIA, 1997: 111). Indica Langbein que nos tri- também afetam os princípios da igualdade, da certeza e da
bunais estatais (isto é, os dos Estados federados) 95% (noventa legalidade substancial, o da proporcionalidade entre delito e
e cinco por cento) dos delitos são resolvidos sem juízo, destes pena e, inclusive, a presunção da inocência e a carga da prova da
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acusação (negadas pelo papel fundamental que desempenhará confessa) aponta que deveriam ser limitados os poderes discri-
o acusado). Para além do teor dessas críticas, também deve-se cionários dos acusadores e dar voz aos interesses das vítimas
recordar que alguns setores costumam estar mais preocupados, antes de acordar secretamente (FLETCHER, 1997: 258 e ss.; CA-
porque dessa forma seriam impostas penas menores do que BEZUDO RODRIGUEZ, 1996: 274).
as “merecidas” ou que, na negociação, alguém sempre “leva a O argumento de permitir que funcione o sistema penal sem
melhor” (LYNCH, 1998: 299 e 307; RODRIGUEZ GARCIA, 1997: entrar em colapso é o definitivo, e o qual se impõe sobre outros de
95 a 109; CABEZUDO RODRIGUEZ, 1996: 255 e 276). A justi- tipo jurídico, filosófico, político ou moral. Em termos similares,
ça penal estadunidense funciona da maneira como funciona de índole “prática”, indica-se que esta é a ferramenta que faz fun-
graças a essa metodologia. cionar o sistema punitivo britânico, já que no caso contrário não
Ainda “se alguém procura na Constituição dos Estados poderiam ser realizados todos os juízos necessários. Na década
Unidos algum fundamento para o plea bargaining, procurará de setenta, BALDWIN e Mc CONVILLE (1977: 3) faziam essa
em vão”, já que em seu lugar se encontra a garantia oposta, a do referência indicando a maior quantidade de condenações assim
“juízo abreviado” (LANGBEIN, 1996: 9). A totalidade dos atores obtidas (então 70%), ainda que criticassem parcialmente a pres-
do sistema e a maioria dos doutrinadores identificam a descri- são sofrida por alguns acusados para aceitar a culpa, inclusive
ção do modelo do plea bargaining como aquele sobre o qual inocentes, o que em todo caso apresentaria problemas morais
repousa o “bom” funcionamento do sistema estadunidense, e sobre a pena. Por esse sistema, combinado com outros recur-
que conduz à possibilidade de sanção da imensa quantidade sos processuais e penitenciários, disse-se que a lógica da justiça
de condenações atuais. A doutrina da Suprema Corte esta- penal inglesa “é sobretudo ‘gerencial’. Na medida em que con-
dunidense, desde que se ocupou do tema, o manteve como cerne apenas à gestão dos Tribunais conseguir mais condenações
constitucional. Mas o fez com base nas “vantagens mútuas”, e o mais rápido possível, é importante que o reconhecimento
que obteriam todos os interessados nos casos (RODRIGUEZ da culpa se produza o mais rápido possível” (TULKENS, 2000:
GARCIA, 1997: 94; CABEZUDO RODRIGUEZ, 1996: 87). Essa 679). Tenha-se em conta que foi mediante o mecanismo das
expressão é utilizada também pelos autores que sustentam a confissões forçadas que se produziram os maiores escândalos
conveniência do método, ainda que as vantagens sistêmicas de injustiça das últimas décadas, entre eles o processo “dos seis
corram a favor da pretensão punitiva do Estado e de quem de Birmingham”, ou o dos “quatro de Guilford” levado ao cinema
trabalha profissionalmente com os conflitos penais, que tem por Jim Sheridan mediante o Em nome do pai.
menos trabalho apesar de poder demonstrar melhores resul- Esse é o modelo que se importou para a Espanha e Amé-
tados de acordo com as lógicas “gerenciais”. rica Latina.
Não faltaram vozes que encontraram outros argumentos
Mas, apesar de ser realmente uma importação, tampouco
para apontar a vantagem de evitar o juízo público e por jurados,
é um sistema alheio à tradição histórica inclinada ao modelo
o que deveria ser o ordinário nos Estados Unidos. Dentro desse
processual e judicial herdado. Em tal sentido, não é vã a com-
âmbito, viu-se o acordo como forma de proteger as testemunhas,
paração realizada por muitos autores desse mecanismo com as
que assim não devem fazer declarações traumatizantes para
técnicas mais tradicionais do sistema inquisitivo (FERRAJOLI,
eles próprios. Entre esses “defensores” das vítimas está Fletcher.
1995: 737). Na verdade, são consubstanciais a tais mecanismos
Não obstante, (sempre sem criticar o sistema de acordos com o
de “simplificação” do processo as ferramentas que definiam, com
acusado, pois em caso contrário o sistema entraria em colapso,
134 SÉRIE CIÊNCIAS CRIMINAIS - VOL. 2 - INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA GABRIEL IGNACIO ANITUA 135

maior propriedade, ao menos para os ilustrados do século XVIII, renunciando a suas garantias (DE LA RUA, 1997: 1198). Para jus-
o inquisitivo: o segredo e a confissão do acusado como prova tificar essa redução ou minimização, aduz-se que a confissão foi
determinante da culpa. A equação segredo mais confissão para tradicionalmente valorada como uma circunstância atenuante
obter a verdade remete a um princípio cardeal dos sistemas in- da pena. Esse costume, também arraigado na história penal de
quisitivos (ANDRÉS IBAÑEZ, 1990: 106). todos os Estados (FERRAJOLI, 1995: 609), castiga severamen-
Pode-se argumentar que dita confissão não é obtida, agora, te quem não confessa e, por isso, propõe-se, desde postulados
sob tortura. Sem embargo, de alguma forma, quem “colabora” garantistas, que seja erradicada através da absoluta proibição
com o sistema penal “economizando” a realização do juízo en- legal de atribuir relevância penal ao comportamento processual
contra-se sob coação. Não se tortura o acusado, mas “como os do imputado (ZIFFER, 1996: 171). Apontou-se, com acerto, que
europeus dos séculos passados, que utilizavam essas máquinas, afirmar que alguns acusados são premiados por confessar e que
tornamos terrivelmente custoso para o acusado reclamar o exer- ninguém é castigado por não o fazer é esquizofrênico, já que os
cício do seu direito à garantia do juízo prévio. Ameaçamos com a conceitos de prêmio e castigo se derivam logicamente um do
imposição de uma sanção substancialmente mais elevada se ele outro (CABEZUDO RODRIGUEZ, 1996: 266).
protege a si mesmo, exercendo seu direito e, posteriormente, é Há uma espécie de reforço do inquisitivo, por trás de uma
declarado culpado”, afirma LANGBEIN (1996: 15). máscara composicional, se quem pactua é o Estado coagindo
CABEZUDO RODRIGUEZ, em seu pormenorizado traba- o imputado com uma ameaça penal maior para que colabore
lho de tese doutoral, analisou os mecanismos de negociação, evitando o juízo em contraditório. Assim, o que realmente se
encontrando paralelismos entre os acusadores estadunidenses busca é a confissão do imputado. De acordo com as práticas
com o recurso de acusar por delitos não realizados e solicitar resenhadas por FOUCAULT (2000), assim logrou um dos seus
penas gravíssimas, ou demonstrar que as conseguiriam indubita- objetivos: quebrou seu “contraditor” e, por isso, reduz a pena.
velmente em juízo (o overcharging e o bluffing), e o fingimento de “O caráter inquisitivo do juízo abreviado deixa clara a intenção
provas inexistentes pelos inquisidores, também com a promessa de condenar sobre a base da confissão extraída de forma coati-
de uma solução mais piedosa se viesse a confessar (1996: 111). va”, segundo BOVINO (2001: 74).

Certamente, vê-se limitada a possibilidade “negocial” A falsa apelação aos mecanismos de consenso não modifi-
do acusado se o acordo entre o acusador e o defensor realiza- ca, por outro lado, a qualidade de uma justiça administrada na
-se sobre a pena a ser imposta, que “será mais leve em face do lógica da soberania. O Estado nunca pode ser uma “parte” situa-
consentimento para o trâmite abreviado, ou da confissão” dizia da no mesmo plano de igualdade de seu oponente. No sistema
CAFFERATA NORES. O autor foi projetista da lei que impôs esse processual penal, que ficou configurado no Ocidente (tanto nos
mecanismo na Argentina e indicava que, como compensação países de tradição continental europeia como, em um desen-
pela atitude de reconhecimento da acusação, o imputado rece- volvimento diferente e mais tardiamente, nos anglo-saxões), é
berá “uma vontade estatal (a do acusador) para uma pena mais o Estado que substitui a vítima e enfrenta o acusado. Portanto,
próxima ao mínimo da escala sancionatória prevista em abstra- nesses procedimentos “simplificados”, aqueles que pactuam, na
to para o delito que se lhe atribui” (1997: 79). Segundo outro realidade, não são iguais, senão que é o Estado, por intermédio
penalista argentino, a redução da pena é o “preço” que cobra o de um dos seus agentes, quem se permite reduzir sua própria
imputado por contribuir com a desopilação do sistema penal, resposta violenta frente a uma determinada ação se o cidadão
acusado renuncia aos seus direitos constitucionais e “facilita”
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assim que se chegue ao resultado com menores “custos”. Isso é quando poderá fazê-lo.
igual a renunciar à jurisdição. Segundo crítica de ZAFFARONI, os institutos da prisão
Conforme afirma FERRAJOLI, “a negociação entre acusação provisória e do plea bargaining se complementam na América
e defesa é exatamente o contrário do juízo em contraditório, ca- Latina, pois enquanto a primeira se aplica para fazer permane-
racterístico do método acusatório (...). O contraditório, de fato, cer na prisão por muito tempo os autores de delitos menores, o
consiste na confrontação pública e antagônica, em condições segundo serve para impor rapidamente penas nos delitos graves
de igualdade entre as partes. E nenhum juízo em contraditório ou flagrantes (2000).
existe entre partes que, mais do que disputar, pactuam entre si
Como indicou SCHUNEMANN (1991), a psicologia do jogo
em condições de desigualdade” (1995: 748). As desigualdades
ensina que o mais poderoso é quem ao final impõe seus fins.
que se verificam em um acordo entre o Estado com a sua vontade
Pretende-se que esse tipo de procedimento tenha relação com
punitiva (e que não tem nada a perder) e o acusado de um delito
uma “negociação”, “consenso” ou um acordo entre partes iguais,
são, com evidência, de tipo material. A polícia, o Ministério Pú-
aos que assistem a livre vontade de contratar como no direito
blico e os julgadores da investigação, salvo casos pouco habituais
mercantil e civil. “Os atores da cena penal (autoridades policiais
(patológicos, mas bastante representativos do que podem os “po-
e judiciais, acusados, vítimas) atuam, formalmente pelo menos,
deres selvagens”, que também podem não ser estatais), contam
como associados no que poderia se classificar como “um encon-
com mais e melhores meios do que os particulares acusados.
tro de vontades”, afirma TULKENS (2000: 660), que logo aponta,
Dadas essas claras desigualdades materiais, não é difícil imagi-
em todo caso, que não se estaria frente a uma negociação livre
nar em que condições chegam, na maioria dos casos, a negociar
senão diante do que se conhece como pacto de adesão.
o reconhecimento de culpa o acusador, o acusado e o defensor.
Ademais, deve-se ter em conta os argumentos que indicam que Sustentou-se, assim, que o plea bargaining demonstra-nos
são os próprios advogados que buscam o acordo, quando ir a a influência dos conceitos próprios do “mercado” no processo
juízo lhes traz mais trabalho, mas não mais dinheiro (CABEZU- penal e, se é bem descritivo da efetiva natureza do mesmo, por
DO RODRIGUEZ, 1996: 89). São os advogados, também, que isso desagrada aos juristas. “Os críticos apontam que a justiça
influenciam, na maioria dos casos, os seus clientes para que acei- não é uma questão de regatear num bazar, senão de resolu-
tem a culpa dessa forma (RODRIGUEZ GARCIA, 1997: 53). ção meditada de conflitos. ‘Negociar’ é diferente de ‘apresentar
argumentos raciocinados’, e concluir um ‘pacto’, ou inclusive
E isso não é apenas porque atuam com racionalidade
chegar a um ‘acordo’, é diferente de obter um ‘julgamento’. O
econômica, senão porque normalmente ao acusado convém
significado mais coloquial de ‘bargaining’ é pior ainda. Um bar-
esse acordo, já que a desigualdade se reforça com a utilização
gaining é um desconto, é algo obtido a um preço reduzido. Se
de outros mecanismos processuais que se opõem ao modelo
os juízes e juristas rechaçam a noção de ‘justiça negociada’, o
garantista da justiça penal. É assim que a prisão provisória,
público, especialmente em nossos tempos de ‘insegurança’ e
além de ser utilizada como um adiantamento do castigo e como
temor, não vê com agrado a possibilidade de que os imputados
uma ferramenta de controle penal ilegítimo (“o juízo depois,
‘saiam ganhando’”, indica LYNCH (1998: 307). Apesar de tais
primeiro a sentença”, afirma a Rainha de Copas em Alice de
críticas, aponta-se que nos Estados Unidos “o esforço acadêmi-
Lewis Carrol), faz as vezes de “máquina de tortura”, para obri-
co mais destacado para justificar o plea bargaining é o pavoroso
gar o imputado a reconhecer a culpa que lhe permitirá sair em
artigo de Frank Easterbrook: O processo penal como sistema
liberdade pelo cumprimento da pena, ou saber, com certeza,
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de mercado. Esse autor aponta, corretamente, que o comporta- sistema de justiça penal eficazmente amplificado (ANITUA, 2001).
mento dos atores no sistema de plea bargaining é similar ao que Se se pretende induzir mais imputados a aceitar o acordo, é lógico
se observa no mercado. Sob as limitações do sistema, os atores que se aumente a diferença entre a pena oferecida ao que se con-
se comportam racionalmente, maximizam suas utilidades, fessa culpado e a pena que o ameace se for declarado culpado em
alocam seus recursos etc. Certamente, criamos um glorioso juízo. Dessa forma, a coerção é perfeita e já ninguém pode se ar-
mercado persa em lugar do que desenharam os constituintes”, riscar a exercer seus direitos.
conclui LANGBEIN (1996: 51). Ainda que não possa se afirmar outro tipo de consequências
Mas a lógica atuarial também funciona para assegurar o êxito deste procedimento (FEELEY, 1979b: 202), já parece bastante
e a economia diante de tal “barganha” nos Estados Unidos. Ali os reveladora a quantidade de penas impostas dessa maneira, que
acusadores têm regras pré-estabelecidas para o que podem “ofere- não poderiam ter sido ditadas se fossem submetidas ao juízo
cer” nos casos comuns (pois diferente é o caso quando se premiam tantos processos. A que sai mais beneficiada com esse sistema
delações): “As regras se parecem mais com as de um supermercado não é verdadeiramente a “justiça”, senão a pretensão punitiva
do que com as de um mercado de pulgas; existe um preço fixo do Estado, que assim atinge seu objetivo em maior número,
imposto ao caso, e não se poderá negociar com o acusador além ao menor custo, mais rapidamente e sem ter que debater, nem
desse limite, assim como não se pode fazer contraoferta pelo preço internamente, nem frente ao público sobre a finalidade última
de uma lata de ervilhas no mercado” afirma LYNCH (1998: 308). de sua razão de ser, nem sobre a tarefa que realiza.
Em referência a outros processos europeus, embasados Segundo LANGBEIN (1996: 50), esse tipo de procedimento
também na “importação” de acordos estadunidenses, diz TUL- permitiu o aumento desmensurado do índice de encarcera-
KENS (2000: 691) que “em um contexto estrutural dessa ordem, mento nos Estados Unidos nas últimas décadas do século XX,
a liberdade do ‘comércio’ (negotiatio) é mais ilusória que real. apontado por CHRISTIE (1993) como uma nova forma de holo-
Longe de contribuir para a igualdade das partes, os procedi- causto. Alguns dos motivos expostos deveriam analisar-se em
mentos negociados podem reforçar a desigualdade destas, pois profundidade para se encontrar as razões da ampla aceitação
o contrato é também o instrumento privilegiado de domina- do mecanismo por parte dos operadores dos sistemas penais de
ção do forte sobre o fraco”. Na verdade, o acusado só tem duas tradição continental europeia, como os da Espanha e América
opções: ou aceita a pena oferecida pelo acusador, reconhecendo Latina. Estes não fazem senão reproduzir, sobre isso, a ampla
sua culpa, ou se submete a um juízo onde, quase com certeza, aceitação que tiveram as instâncias de aplicação do sistema
será imposta uma pena muito mais gravosa do que a oferecida. penal nos Estados Unidos e Inglaterra alguns anos antes.
A eleição não é livre e, na verdade, tampouco é uma opção; in-
Os números dão conta de uma rápida aceitação, ainda
dependentemente de sua escolha, a consequência será a segura
quando não se conte com aquela secular tradição, e com diferen-
privação de sua liberdade e de todos os outros direitos pessoais
tes limitações que em geral impedem a negociação da pena para
não afastáveis dela que se perdem na prisão.
lograr condenações altas ou em determinados delitos. No Chile,
É por isso que se aponta um verdadeiro perigo na “con- 74% (setenta e quatro por cento) do total de condenações penais
formidade” ou no “juízo abreviado”, após a boa recepção desse do ano 2013 ocorreram mediante acordo (HORVITZ, 2014: 66). E
mecanismo na prática judicial. A velocidade para conseguir con- na Argentina, onde é muito difícil obter dados haja vista a natu-
denações se traduz em um aumento das penas impostas com esse reza federal das administrações de justiça (e também pela secular
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falta de transparência das mesmas, e pela ausência de trabalhos


empíricos universitários ou independentes), pode-se inferir o
mesmo tipo de uso. Esses dados se obtêm de uma investigação de
três departamentos da mais populosa província de Buenos Aires,
onde as sentenças também podem ser absolutórias, na qual se PALAVRAS FINAIS
aponta que houve “no ano de 2010 um, total de 2.804 frente a 1.099.
Portanto, as sentenças do juízo abreviado não apenas duplicam
senão que quase triplicam as sentenças por juízo oral e público”
É evidente que a articulação de uma justiça penal indepen-
(CIOCCHINI, 2013: 240). Para a justiça federal, uma amostra é
dente e imparcial, que medeie a conflitividade social ao mesmo
dada pelo informe apresentado em 2015, pelo Ministério Público,
tempo em que atue em um Estado social de direito, em um
indicando que, no ano de 2013, na área metropolitana da cidade de
mundo que globaliza os direitos fundamentais e que se enfrenta
Buenos Aires, realizaram-se 1.309 juízos abreviados e 725 debates
com os poderes públicos e privados selvagens, requer muitas
de juízo. Na Espanha, no ano de 2011, ditaram-se 162.578 sentenças
previsões, medidas e reformas.
no âmbito de julgados penais, representando as sentenças de con-
formidade 59,19% (cinquenta e nove vírgula dezenove por cento), Mas também parece necessário que, ao fazê-las, se tomem
quer dizer, 66.345 (MARTIN ROJO, 2012). Como apontava SAEZ as devidas precauções. Pelo menos aqui, quis-se insistir que essa
VALCARCEL, “a metade dos processos penais por delitos menos tarefa requer uma memória ativa que, ao desenhar um serviço
graves – além de uma cifra muito elevada em delitos graves – ter- de justiça penal, faça-o com cautela ou prudência, haja vista os
mina em sentença condenatória por conformidade do acusado, horrores que caracterizaram historicamente seu agir.
que é assessorado na maioria dos casos por um defensor público, Esse é o sentido de criticar o passado e o presente da justiça,
e enfrentamos uma cota imensa de pessoas submetidas a juízo especialmente a penal. Sob o nome de “justiça penal” realizaram-
que se veem reduzidas a uma situação de franca falta de defesa -se mais danos do que os que se lograram evitar. Como afirma
frente às instituições dedicadas ao castigo penal, portanto, uma FERRAJOLI, “seguramente, maior do que os danos produzidos
realidade que expressa desigualdade e injustiça” (2007: 18). por todos os delitos castigados e prevenidos foi, de fato, o dano
Tenho para mim que isso importa, especialmente, para a causado por aquele somatório de atrocidades e de infâmias –
administração da justiça e por isso para todos os cidadãos que se torturas, suplícios, explorações, massacres – provocados em sua
perguntam sobre ela. Tanto pela quantidade quanto pela qua- maior parte pelos ordenamentos punitivos pré-modernos, desde
lidade dessa justiça injusta. Em sua crítica, Aguilera sustentou o antigo Egito até a Santa Inquisição, na qual, com muita di-
que resolver o problema de lentidão e obstrução dos Tribunais ficuldade, pode-se reconhecer uma função qualquer de defesa
com esse método tem “um ‘preço’ que, mais do que excessivo, social. O mesmo deve ser dito sobre a justiça penal dos anos
resulta exorbitante: a desnaturalização do processo penal e o escuros do nazismo alemão e do stalinismo soviético, e ainda
sacrifício do regime garantístico processual” (AGUILERA. 1998: hoje, de muitos regimes militares e fascistas do terceiro mundo.
165). Efetivamente, o que se observa é que essa resposta atuarial Mas também é nos ordenamentos desenvolvidos no primeiro e
aponta exclusivamente para uma eficácia medida com relação segundo mundos, começando pelo nosso, que o arbítrio judi-
ao tempo, que não coloca em discussão, senão reforça, outro cial e policial, produzido pela crise contemporânea das garantias
tipo de agenda que parece estar obcecada com o castigo. penais e processuais, torna incerto e problemático o balanço dos
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custos e dos benefícios do direito penal, como também a sua grave erro de relacionar a tarefa da justiça com a agenda securi-
justificação” (1986: 46). tária ou de prevenção do delito. Talvez naquela época fizessem
Com mais razão se deve realizar essa tarefa em contextos de isso, pois dessa forma a transformação da justiça e dos casti-
justiças submissas aos poderosos, uma vez que são seletivamente gos apresentava-se como adequada desde cânones utilitários e,
repressoras com os setores vulneráveis ou derrotados. Longe de especialmente, vinculados com a suposta eficácia da ideia de
denunciar e reparar as violações de direitos, os sistemas de justi- dissuasão. Hoje em dia não parece razoável cair naquela arma-
ça penal da Espanha, Portugal e América Latina foram violadores dilha do poder punitivo, quando se sabe que isso não funciona
dos previamente identificados como vulneráveis. dessa maneira, e que a “justiça”, longe de se identificar com o
castigo, apenas pode se justificar se demonstra capacidade de
Essa constatação implica cautela, mas também uma maior limitar seus excessos e perigos.
necessidade de praticar reformas. Se algo se relaciona com a ge-
nealogia é o efeito de inércia e acomodação, a fim de que as coisas Longe disso, quando surge a crise da administração da jus-
sigam como estão, e estaria mal encaminhado este trabalho se tiça, a partir dos anos oitenta e noventa, quando nossos países
concluísse com um pessimismo histórico, dando a impressão de chegaram a estágios democráticos, vincularam outra vez suas
que as formas atuais de distribuição de justiça são irremediáveis. funções com aquela atividade de prevenção e castigo de deter-
Tampouco é a intenção conformar os leitores, afirmando que todo minados atos e pessoas. Não parece do todo inocente que muitas
o tempo passado foi pior, ou que ao menos não tenha sido melhor. dessas reformas relacionaram-se com esse sistema democrá-
Ainda que isso seja certo, não pode ser óbice, pelo que é uma obri- tico, mas, também, com as reformas neoliberais, que deram
gação moral e política para lutar por um futuro que seja melhor. ênfase especialmente à ideia de eficiência. A suspeita surge de
observar que as instituições que mais se vincularam com a nova
Para isso também pode ser útil a reflexão histórica. É que ordem econômica mundial, como o Banco Interamericano de
não seria sensato propor políticas de mudança sem recuperar o Desenvolvimento ou o Banco Mundial (BUSCAGLIA e DAKO-
melhor da história: as tradições que foram derrotadas, as ocul- LIAS, 1999), promoviam essas reformas.
tas e também as visíveis nunca implementadas. Em quase todas
as etapas, mas especialmente na crítica liberal do século XIX e É assim que as políticas de reforma judicial adquiriram o
na reflexão social do pós-guerra mundial, pode-se reconhecer discurso e a prática necessários para introduzir mecanismos
uma mesma dinâmica sobre a administração da justiça. Uma de gestão do mundo da empresa na estrutura organizacional
luta constante entre os movimentos de crítica ao sistema judi- da administração da justiça. Essas estratégias apontaram para
cial herdado e as resistências conservadoras. Essas resistências uma “eficiência” que poderia ser alcançada evitando a secular
lograram abortar ou desviar as tentativas de mudança em todas “demora judicial”, o que se traduziu simplesmente em fazer o
as etapas, porém cada um desses enfrentamentos modificou, mesmo, mas de forma mais rápida e com algumas visões de
ao menos no nível prescritivo, a configuração da administração aplicação local “gerenciais” (CIOCCHINI, 2013).
da justiça (BINDER, 2003: 14). Mas também com uma apelação à eficiência, que se vincu-
lava expressamente com a pretensão de desvio dos problemas
A tarefa de recuperação do melhor das propostas refor-
sociais, indo em direção à punição das classes subalternas,
mistas e progressistas do passado deve prestar atenção em seus
como tinha ocorrido no caso dos Estados Unidos.
principais erros. Tanto no presente quanto no passado, e me
refiro aos reformistas ilustrados. Incorreu-se e se incorre no Propor a reforma da justiça penal na agenda da segurança
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produz, ao mesmo tempo, e como naquele país, uma submersão É assim que se reforça a imobilidade nas objeções a algumas
na mencionada crise eterna, assim como impossibilita a verda- práticas razoáveis, que provêm do mesmo discurso eficientista.
deira reflexão sobre a importante tarefa que compete à justiça. Mas muito mais ainda se as reformas são propostas desde pers-
ZAFFARONI advertiu que isso ocorre se existe “um afasta- pectivas democratizadoras.
mento na administração da justiça das suas funções reais com As “resistências” que dão conta de situações privilegiadas,
relação às manifestas, o incremento da sua eficiência por si não de pertencimento a um acolhedor sistema burocrático, ou de
faz mais do que aprofundar essa distorção” (1994: 25). castas, não são a única modalidade de uma justiça que se nega
Inclusive pode piorar esse outro tema da segurança uma a mudar. Também se resiste cedendo ao aparente ou fútil e aco-
abordagem ruim da questão judicial. Se há uma relação tan- modando o real ou importante.
gencial, e mínima entre essas importantes questões, poderia Desde as linguagens da moda, que adota a sociologia de
se dizer que a constante e reiterada deslegitimação da justiça outras disciplinas, se poderia falar de estruturas judiciais adap-
contribui para a insegurança. Essa relação de crise e de denun- táveis ou de corporações jurídicas homeostáticas. Com uma
ciada inutilidade (para o que não pode ser útil otológica nem linguagem menos moderna se percebe essa “capacidade de
historicamente) aumenta a percepção da insegurança, porque a adaptação”, que torna possível a adoção das mesmas deman-
deslegitimação do sistema contribui para o aumento da percep- das, com a mera incorporação de alguns discursos novos, para
ção de vulnerabilidade das vítimas e terceiros, causando uma legitimar velhas práticas. A imagem de Lampedusa, em Il gat-
sensação pública de que “estamos sozinhos frente ao crime”, topardo, é aplicável a um âmbito especializado em mudar para
de que “ninguém pode nos ajudar” ou de que “nada funciona”. que tudo siga como está. A necessidade de responder à questão
Tudo isso, potencializado irresponsavelmente por atores sociais judicial, involucrando-se na sua reforma, deve estar atenta para
e políticos desde os meios de comunicação, aumenta o medo do não ser parte de “tentativas costuradas de tiroteios inócuos, e,
crime, que deveria ser atendido por outras agências públicas e depois, tudo será igual, em que pese que tudo tenha mudado”,
também por atores governamentais. como dizia o genial italiano.
A falsa crença de que a justiça pode fazer algo a respeito A reforma deve, portanto, rejeitar o modelo autoritário
resulta nociva para as talvez necessárias políticas de segurança. de castigo, que apenas oferece mais do mesmo às urgências,
E também para as políticas de reforma e democratização do ser- temores e desejos dos habitantes, e romper com a tendência da
viço de justiça. burocracia judicial de seguir fazendo o mesmo, mas com dis-
Eliminado esse inconveniente, outra contrastada dificulda- tinta racionalidade ou outros nomes. Como se disse, mal pode
de para essas últimas políticas se revela também na abordagem fornecer a procurada legitimidade de um serviço pacificador e
histórica, pois se observa que não há nada mais conservador protetor dos fracos, confirmação dada por outros meios de agir
do que o poder judicial. De fato, o recurso ao punitivismo não expropriadores dos conflitos por parte de burocracias e elites
faz senão manter o que se fez historicamente e, isso se constata alheias à comunidade.
não apenas na efetiva repressão aos mais pobres, mas também Nesse sentido, a transformação mais radical da justiça não
na intervenção do discurso punitivo sobre crimes aberrantes pode prescindir da questão já afirmada, que une a legitimidade
estatais do passado, ou sobre a mesma classe política e a cha- à sua efetividade.
mada corrupção. Esse outro tema que orienta as reformas presentes se
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vincula também com postulações em termos de eficácia. Escapar Outro modelo de resolução de conflitos, que emerja na
da agenda punitiva não significa desatender os seus problemas, administração da justiça com pretensões de dar resposta às
entre aquilo que se apontou, aquele que vincula ambos os planos. demandas de legitimidade democrática será produto de uma
TULKENS aponta que “o Direito Penal intervencionista e expan- mudança, mas que remete às sempre postergadas reformas da
sionista é posto em causa no plano duplo da legitimidade e da justiça, que vão desde as teorias liberais até as sociais-democrá-
eficácia, quer dizer, tanto no plano moral da adesão aos valores ticas, que devem adequar-se aos tempos atuais de participação
e aos interesses expostos pela norma como no plano operativo e aproximação das pessoas comuns, ao controle e ao escrutínio.
de execução” (2000: 664). No que toca à participação democrática, além de recuperar
Legitimidade e eficácia são respostas aparentemente con- experiências como o julgamento por jurados leigos que, não obs-
traditórias, e não apenas pelo já apontado acima, mas também tante a sua antiguidade e resistência desde diversos setores, tem
porque a primeira parece adscrever mais a um modelo participa- um potencial derivado desse ritual expressivo que se demanda
tivo. Contudo, se adequa, como se viu, ao burocrático a segunda. e que também deve atualizar-se (ANITUA, 2013), é necessário
Mas para além dessa batalha, devem ter uma resposta prestar atenção em algumas apostas do novo constituciona-
conjunta e que redefina a eficácia em termos dos objetivos polí- lismo latino-americano (Equador, Bolívia). Estas também se
ticos da legitimidade. Assim, enquanto os tecnocratas atuariais relacionam com a tradição democrática estadunidense, como
entendem a eficácia como redução de custos e capacidade de a eleição direta dos juízes ou dos órgãos de controle e eleição
pronunciar mais sentenças condenatórias, também é possível destes, ou a experiência de mandatos delimitados no tempo,
entender a eficácia como maior respeito às garantias dos impu- ou algum mecanismo para que se medeie os poderes políticos
tados no processo, assim como às funções políticas, simbólicas para uma última palavra constitucional (como no Canadá),
e de controle do juízo penal. que tem um grande potencial, em que pese seus problemas de
implementação.
Esse outro eficientismo é possível e, de fato, a eficácia
ligada no geral ao mesmo modelo neoliberal já foi apontada por Essa participação e resposta às demandas não deve esquecer
FOUCAULT, como aquela que “poderá e deverá testar a ação go- a satisfação dos direitos dos mais frágeis e vulneráveis, pois como
vernamental, julgar sua validade, permitir objetar na atividade diz CLUNY, “a crise da justiça não se situa, em primeiro lugar,
do poder público seus abusos, seus excessos, suas inutilidades, a na evidência da sua real falta de eficácia funcional (...) senão na
prodigalidade dos seus gastos” (2007: 284). Se essa chave crítica menos evidente falta de efetividade, quero dizer, da sua capa-
se vincula à referência final do modelo democrático e pacificador cidade de assegurar os direitos fundamentais ante o poderoso
é possível encaminhar a questão ou pergunta judicial. mercado e sua verdade unidimensional” (2011: 39).

A ideia de participação das pessoas comuns na justiça deve- Nem tampouco sua capacidade de pacificar os conflitos e
ria ser a chave nova e, ao mesmo tempo, antiga das reformas do minimizar a violência, pois, como diz BARATTA, o programa da
judiciário penal. A pergunta pela boa justiça deve responder-se justiça vai de mãos com o “programa de um direito penal mais
afirmando essa chave democratizadora, que também seja rápida justo e eficaz, que é também um grande programa de justiça
e eficiente, sempre que isso acompanhe o respeito da garantia social e de pacificação dos conflitos” (2000: 418).
da verdade, da democratização, da acessibilidade e igualdade, da Essa boa justiça, efetiva e eficiente, protetora e pacificado-
proximidade com todas as pessoas e da proteção do mais frágil. ra, democrática e participativa, poderia favorecer uma deriva,
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em todo caso, da ideia de justiça como poder para a de justi- a função política que cumprem e em como realizá-la com cau-
ça como um serviço. Sempre com essa ideia de que a justiça tela, mas sem temor (GUARNIERI e PEDREZOLI, 1999: 175).
serve a esses novos atores comunitários e necessitados. Insistir Essa educação não deve ser encarada como um novo en-
numa justiça que sirva, não deve entender-se no sentido de que capsulamento de elites ou castas de julgadores, senão que
seja servil aos poderes selvagens privados ou públicos, e muito devem afinar-se múltiplas vozes, para que possam entender e
menos à mesma corporação convertida nesse tipo de poder. descobrir seu poder dentro da própria complexidade da ques-
Pelo contrário, sendo capaz de reconhecer espaços de liberda- tão, e para que não prevaleçam opiniões e soluções simplistas,
de e com sensibilidade para demandas comuns e necessidades nem tampouco dirigidas por interesses tradicionais ou corpora-
dos mais fracos, a justiça penal servirá à vida social, obtendo tivos. Essa formação interconectada dos sujeitos, daquilo que é
justificação e legitimidade. comum, redundará em uma maior participação e redistribuição
Um serviço que sendo legítimo poderia também ser con- do poder, também do judicial.
fiável. E para isso deve operar-se institucionalmente com outro Deve ser visível que esse poder já não está destinado a
tipo de reformas, que defendam uma mudança na cultura do servir ao poder político ou privado, e menos ainda a mesma
juiz, especialmente, rompendo com a velha estrutura vertical, burocracia judicial, mas sim ao comum dos habitantes e espe-
que concentra o poder no ápice da pirâmide, mas sem promover cialmente àqueles que o acionam por uma necessidade vital.
a anarquia decisória.
É necessário, assim, um movimento de atenção que, ao
A mudança cultural se realiza especialmente no plano in- invés de colocar no centro os operadores, juízes ou advoga-
dividual, no caso de juízes e juízas. Como adverte FERRAJOLI, dos, o faça com os réus ou usuários de tais serviços, vítimas
“a confiança das partes em seus juízes é o principal parâmetro e ou supostos agressores, nos conflitos sociais que mereçam e
banco de provas da taxa de legitimidade da jurisdição. Não deveria justifiquem serem denominados “delitos”. E que o faça em sua
se esquecer nunca que os cidadãos, e em particular os que sofrem qualidade de sujeitos.
um juízo, serão também juízes severíssimos de seus juízes, dos
quais se lembrarão e julgarão a imparcialidade ou ausência desta, o Sujeitos que atuem, mas também controlem, vendo o que a
equilíbrio ou a arrogância, a sensibilidade ou o embotamento bu- justiça faz. E para tanto, os muitos olhos desses sujeitos, sempre
rocrático. Dos quais, sobretudo, recordarão se lhes fizeram sentir postergados, devem pousar sobre os operadores desse serviço
medo ou se garantiram seus direitos” (2013: 11). de justiça, de tal forma que se tornem efetivos e variados os
controles democráticos, que vão desde a publicidade dos pro-
Esse aspecto também merece reformas institucionais,
cedimentos até a motivação das decisões, para o que sim resulta
pois “o controle do fator humano (a ética judicial) não é algo
útil a revolução tecnológica e das comunicações.
que fique irremediavelmente excluído das instituições encar-
regadas da formação dos juízes, pois estas podem adotar ou Em todo caso, é necessário lutar para que esses olhos
promover processos de formação da sensibilidade e do caráter, possam “escrutar escrupulosamente as possibilidades que,
de determinadas virtudes necessárias para julgar com equa- quiçá, todavia restem à justiça”, como apontava Friedrich Dur-
nimidade, empatia, respeito a todos os implicados no juízo renmatt em sua novela Justiça.
e independência de critério”, aponta SAAVEDRA (2009: 28).
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O estudo realizado pelo Professor Gabriel Ignacio Anitúa (...) corresponde a
mais um de seus vigorosos e potentes trabalhos críticos. Como o leitor poderá
acompanhar, coloca em discussão um objeto de estudo não raro ignorado pela
criminologia dita crítica ao longo da história. (...) Enfatiza, com efeito, a curiosa
falta de obras criminológicas dedicadas a uma análise mais profunda e vertica-
lizada das estruturas de poder emaranhadas no campo do poder judiciário. (...)
Fazer uma política da criminologia pode ser muito mais frutífera que qualquer
análise de política criminológica, ou ainda de uma criminologia política, mesmo
ambas sedizentes críticas. Trata-se, em resumo, de ver a criminologia não ape-
nas como saber, inclusive político e crítico, mas como um campo de intervenção
permanente, lugar de uma política da criminologia. Portanto, levar a sério a
pista [e] fazer política por meio da criminologia. Uma criminologia que se per-
mita fazer política, que se posicione neste campo, principalmente em tempos nos
quais se pretende esvaziá-lo. Iñaki Anitua segue este esforço de crítica ao que se
passa, engajando-se, neste que é um dos seus mais apurados estudos de história
do presente. (...) E aqui, o leitor encontrará uma fonte inesgotável de inspiração,
que permitirá a todos aqueles inconformados com a atuação deste órgão, pers-
pectivar saídas e encontrar argumentos fortes o suficiente para sustentar as ne-
cessárias linhas de fuga. Como em tantos outros escritos, o trabalho do professor
argentino é impecável, indicando que a criminologia crítica deve se ocupar deste
campo, repleto de contradições performáticas e que merece ser vigiado mais de
perto por aqueles preocupados com os rumos das democracias contemporâneas.

Augusto Jobim do Amaral e Ricardo Jacobsen Gloeckner


no Prefácio à Edição Brasileira

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