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Filosofia da Natureza

Mariano Artigas

Filosofia da Natureza

Tradução
J osé E duardo de O liveira e S ilva

Segunda Edição
- 2017 -

I nstituto B r a s il e ir o de F il o so fia e
C iê n c ia “ R a im u n d o L ú l io ” (R am on L l u l l )

SÃO PAULO
2005
©+2003 by+Mariano Artigas
©+2004 by+EUNSA, Ediciones Univesidad de Navarra, S.A.
©+2005 desta traduA„o portuguesa by Instituto Brasileiro de Filosofia e
Cilncia 'Raimundo L lioª (Ramon Llull)
Tradução
JO S... EDUARDO DE OLIVEIRA E SILVA

Revisão técnica
Esteve Jaulent
Capa
Tarlei E. de Oliveira
Diagramação
Tarlei E. de Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Artigas, Mariano
Filosofia da natureza / M ariano A rtigas ó traduÁ „o JosÈ
Eduardo de Oliveira e Silva, ó S„o Paulo : Instituto Brasileiro de
Filosofia e CiÍncia ìRaimundo L.lioi (Ramon LLuLL), 2005.

16 x 23 cm. 335 p.
Titulo original: Filosofia de la naturaleza.
Bibliografia
ISBN 85-89294-06-4

05-2818 CDDñ101

Índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia : IntroduÁ„o 101

I nstituto B rasileiro de F ilosofia e


C iência “ R aimundo L úlio ” (R amon L lull)

Esteve Jaulent
Presidente
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Vice-Presidente
Josep Blanes Sala
Secretário
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São P au lo -S P BRASIL
Tel. (0xx11) 3101-6785
www.ramonllull.net // dep.editorial@ramonllull.net
Sumário

PRÓLOGO...........................................................................................................15

P rimeira Parte

I - INTRODUÇÃO: A NATUREZA E SEU ESTUDO


C a p ít u l o
FILOSÓFICO................................................................................................. 19
1. Introdução geral..............................................................................................19
1.1 A reflexão filosófica sobre a natureza.................................................19
1.2 As relações com outras áreas da filosofia.......................................... 20
1.3 Filosofia e ciências naturais..................................................................20
1.4 Valor e alcance da filosofia da natureza............................................. 22
1.5 Temas e problem as.................................................................................23
2. O estudo científico e filosófico da natureza ao longo da história............24
2.1 Ciência e filosofia na Antiguidade....................................................... 24
2.2 A ciência experimental m oderna.......................................................... 26
2.3 O impacto filosófico do evolucionismo, a física quântica e a
relatividade............................................................................................ 32
2.4 O renascimento da filosofia da natureza na época contemporânea... 34
3. O conceito de natureza..................................................................................36
3.1 Os sentidos de “natureza” e “natural” .................................................. 37
3.2 Caracterização do mundo físico............................................................38
a) O dinamismo natural........................................................................39
b) Pautas estruturais.............................................................................40
c) O entrelaçamento de dinamismo e estruturação...........................42
3.3 Delimitação do âmbito do natural........................................................ 43
a) O natural e o artificial..................................................................... 43
b) O natural e o racional..................................................................... 44
3.4 Propriedades do natural......................................................................... 44
a) O corpóreo........................................................................................ 44
b) O sensível...........................................................................................45
c) O material.................... 46
d) O espaço-temporal............................................................................46
e) O quantitativo................................................................................... 47
f) O necessário...................................................................................... 47
3.5 A caracterização aristotélica do natural................................................47
Capítulo II - AS ENTIDADES NATURAIS.................................................51
4. Os sistemas naturais...................................................................................... 51
4.1 A noção de sistem a............................................................................... 51
4.2 Tipos de sistemas naturais..................................................................... 52
a) Sistemas unitários.............................................................................53
b) Outros sistemas................................................................................. 53
5. As substâncias naturais.................................................................................. 54
5.1 A noção de substância.......................................................................... 55
5.2 A substancialidade na filosofia aristotélica........................................ 55
5.3 Substâncias e sistemas unitários.......................................................... 57
5.4 Características das substâncias naturais............................................... 57
a) A substância como entidade natural em sentido pleno................. 57
b) A substância como sujeito do dinamismo natural.........................58
c) A substância como unidade estrutural............................................59
5.5. Mecanicismo, subjetivismo e processualism o ................................... 60
a) O mecanicismo cartesiano...............................................................60
b) O subjetivismo kantiano.................................................................. 62
c) Processualismo e energetismo.........................................................63
6. Determinação das substâncias naturais....................................................... 66
6.1 A substancialidade ante a experiência ordinária................................ 67
6.2 A substancialidade diante das ciências................................................. 68
a) A substancialidade no nível biológico............................................68
b) A substancialidade no nível microfís ic o .........................................69
c) A substancialidade no nível macrofís ic o ........................................70
6.3 Analogia e graus de substancialidade..................................... ............ 71
6.4 Objeções anti-substancialistas...............................................................72
a) O conhecimento das substâncias.....................................................72
b) Substâncias e processos................................................................... 74

Capítulo III - O DINAMISMO NATURAL................................................... 77


7. Processos Naturais......................................................................................... 77
7.1 Noção de processo natural....................................................................78
7.2 Processos naturais e pautas dinâmicas................................................79
7.3 Sinergia, organização e tendências........................................................82
8. O devir: ato e potência................................................................................... 82
8.1 Ser e devir................................................................................................82
8.2 Modalidades de d ev ir.............................................................................83
8.3 Potencialidade e atualidade................................................................... 85
a) O devir como atualização de potencialidades............................... 85
b) As noções de potência e a to ........................................................... 87
c) Tipos de potência e a to .................................................................... 87
9. Os processos unitários na natureza............................................................. 88
9 .1 Os processos unitários diante daexperiência ordinária...................... 89
9.2 Os processos unitários diante das ciências...........................................90
a) Processos holísticos..........................................................................90
b) Processos funcionais........................................................................ 92
c) Processos morfogenéticos................................................................ 93
d) Processos cíclicos.............................................................................94
9.3. A gênese da natureza........................................................................... 96
a) A emergência de novidades............................................................ 96
b) A auto-organização da natureza....................................................97
c) O progresso como desenvolvimento da informação.................... 99

Capítulo I V - A ORDEM DA NATUREZA................................................101


10. A ordem natural..........................................................................................101
10.1 O conceito de ordem.......................................................................101
10.2 Tipos de ordem na natureza........................................................... 102
a) Ordem e estruturação............................................................... 102
b) Ordem e p autas......................................................................... 103
c) Ordem e organização................................................................ 103
10.3 Ordem e organização na natureza..................................................104
a) A diversidade de níveis naturais.............................................. 104
b) A estratificação dos níveis naturais: continuidade
e gradualismo........................................................................... 107
11. A estrutura físico-química....................................................................... 109
11.1 A composição da matéria................................................................109
a) Panorama histórico da física dos elementos........................... 109
b) Teorias científicas atuaissobre oscomponentes microfísicos 110
c) Teorias de unificação................................................................ 112
11.2 Mecanicismo, dinamismo e energitismo...................................... 114
11.3 Problemas filosóficos relacionados com a física quântica......... 115
12. Unidade e ordem no universo.................................................................. 117
12.1 Unidade de composição e dinamismo nos sistemas naturais.....117
12.2. O universo. . . . . ........................................................................... 118
a) a noção de cosmos ou universo............................................... 118
b) Finitude e infinitude do universo............................................. 119
12.3 Cosmos físico e mundo humano.................................................... 120
a) A Terra como ecossistema da vida.......................................... 120
b) Ecologia e movimento ecológico.............................................. 121
12.4 A nova cosmovisão........................................................................... 122
a) Teorias do caos, da complexidade e da auto-organização .... 122
b) Cooperação, sutileza e informação........................................ 123
c) Fatores aleatórios na natureza.................................................. 124
d) A singularidade da ordem natural............................................. 125

V - O SER DO NATURAL.......................................................... 129


C a p ít u l o
13. Níveis de compreensão da natureza....................................................... 129
13.1 Análise científica e reflexão m etafísica....................................... 129
a) A perspectiva científica............................................................ 129
b) A perspectiva da filosofia da natureza...................................131
13.2 A compreensão metafísica do natural........................................... 132
a) Unidade e pluralidade.............................................................. 132
b) Dinamismo e interação............................................................... 132
c) As quatro causas e a concausalidade..................................... 133
14. Condições materiais e determinações formais........................................ 133
14.1 Dimensões de tipo material na natureza....................................... 133
a) Extensão, duração e mutabilidade.......................................... 134
b) O conceito de matéria...............................................................135
c) Matéria primeira e segunda..................................................... 136
d) Características do natural....................................................... 140
14.2 Dimensões de tipo formal................................................................ 142
a) Configuração, consistência e sinergia......................................143
b) Significados do conceito de form a.......................................... 143
c) Forma substancial e acidental................................................. 145
d) Características das fo rm a s...................................................... 146
15. A Estrutura hilemórfica............................................................................. 150
15.1 O hilemorfi sm o................................................................................. 150
15.2 Correlação e unidade do material e do form al.............................151
15.3 Matéria e forma como causas..........................................................153
15.4 Valor do hilemorfi sm o..................................................................... 153
15.5 Os graus do ser físico.......................................................................155
15.6 Racionalidade materializada ...........................................................155

S egu n d a Parte

VI - DIMENSÕES QUANTITATIVAS....................................... 159


C a p ít u l o
16. As propriedades e relações das coisas m ateriais..................................159
16.1 A manifestação da substância através de suas propriedades...... 159
16.2 O quantitativo e o qualitativo........................................................ 160
a) O quantitativo........................................................................... 160
b) O qualitativo.............................................................................. 161
c) Relação entre quantitativo e qualitativo................................. 161
16.3 O quantitativo c o qualitativo no mecanicismo.......................... 162
17. A extensão dimensional.............................................................................163
17.1. A extensão como propriedade básica das substâncias naturais ...163
a) Substância, matéria e quantidade........................................... 163
b) A extensão.................................................................................. 165
17.2 O reducionismo cartesiano.............................................................. 165
17.3 Características do ente extenso.......................................................166
a) Continuidade............................................................................. 167
b) Divisibilidade.............................................................................. 167
c) Mensurabilidade.........................................................................168
d) Individuação............................................................................. 168
18. A pluralidade física.................................................................................... 169
18.1 Unidade e multiplicidade .............................................................. 169
18.2 O núm ero...........................................................................................170
18.3 O infinito quantitativo..................................................................... 171
19. A quantificação no conhecimento científico.........................................172
19.1 Matemática, experimentação e m edição........................................172
19.2 As magnitudes físico-matemáticas................................................. 173
19.3 Alcance do método físico-matemático........................................... 175
20. Filosofia da matemática............................................................................. 176
20.1 Interpretações da matemática..........................................................176
20.2 Construção matemática e realidade................................................ 178

Capítulo VII - ESPAÇO E T E M PO ......................................................... ...181


21. Localização e espaço................................................................................. 181
21.1 A presença lo c a l............................................................................... 181
a) A noção aristotélica delocalização.......................................... 181
b) A localização comomodode ser acidental.............................. 183
c) Modos de presença não-localizada......................................... 184
d) A não-localidade na física contemporânea........................... 186
21.2 O espaço............................................................................................ 187
a) A noção de espaço.......................................................................187
b) A realidade do espaço............................................................... 189
c) O espaço nas ciências............................................................... 191
22. Duração e tem po.........................................................................................192
22.1 A duração...........................................................................................192
22.2 Temporalidade, ser e d ev ir.............................................................. 194
a) A situação temporal.................................................................. 194
b) Graus de ser e duração............................................................. 195
22.3 O tem po............................................................................................. 198
a) A noção de tempo...................................................................... 198
b) A realidade do tempo................................................................ 199
c) O tempo nas ciências................................................................200
23. A unidade de espaço e tem p o ..................................................................202
23.1 Espaço e tempo na teoria da relatividade...................................... 202
23.2 Espaço e tempo como condições materiais darealidade............. 204
23.3 Compenetração do espacial e do tem poral.................................... 205
Capítulo VIII - ASPECTOS QUALITATIVOS............................................207
24. Propriedades qualitativas.......................................................................... 207
24.1 Virtualidades qualitativas dos seres naturais................................207
a) Substância, form a e qualidades...............................................208
b) As qualidades como propriedades intrínsecas da substância..209
24.2 Tipos de qualidades......................................................................... 209
a) Quatro espécies de qualidade................................................... 210
b) Virtualidades, disposições e tendências.................................211
c) Propriedades sensíveis e propriedades inobserváveis...........212
24.3 A objetividade das qualidades....................................................... 212
a) Qualidades primárias e secundárias...................................... 213
b) O conhecimento das qualidades............................................... 214
c) Reducionismo e propriedades emergentes............................... 216
25. Quantidade e qualidades........................................................................... 217
25.1 Dimensão quantitativa das qualidades...........................................217
25.2 A medição da intensidade qualitativa........................................... 219
25.3 Qualidades e magnitudes.................................................................220
25.4 Aspectos reais das magnitudes físicas............................................224
25.5 O quantitativo e o qualitativo no conhecimento do natural .........225
Capítulo IX - ATIVIDADE E CAUSALIDADE DOS
SERES NATURAIS...................................................................................227
26. Causalidade e ação física.......................................................................... 227
26.1 Dinamismo natural e interações físicas........................................ 227
26.2 Modalidades das transformações naturais..................................... 228
26.3 A ordem física e as quatro causas..................................................229
26.4 A causalidade eficiente: noção clássica........................................ 231
26.5 A causalidade eficiente diante das ciências................................... 232
a) Agentes e interações.................................................................. 232
b) Ação e contato............................................................................233
c) O princípio da causalidade........................................................234
26.6 Ação e paixão...................................................................................235
a) A ação e a paixão como acidentes............................................235
b) Ações transitivas e imanentes................................................... 237
26.7 Causalidade e emergência de novidades..................................... 238
27. A contingência da natureza......................................................................239
27.1 Leis científicas e leis naturais....................................................... 240
a) As leis científicas....................................................................... 240
b) As leis naturais.......................................................................... 241
27.2 Necessidade e contingência na natureza...................................... 242
a) Necessidade e contingência no s e r ...........................................242
b) Necessidade e contingência no a g ir.........................................244
27.3 Determinismo e indeterminismo.................................................... 245
27.4 Acaso, ordem e complexidade........................................................ 247

X - OS VIVENTES.......................................................................251
C a p ít u l o
28. Caracterização do ser vivente..................................................................251
28.1 Biologia e filosofia......................................................................... 251
a) Física, biologia e filosofia da natureza..................................251
b) A vida na biologia molecular...................................................252
c) A genética e as suas implicações............................................ 254
d) Informação e direcionalidade................................................... 256
28.2 Características dos seres v ivos....................................................... 257
a) Organização vital e funcionalidade..........................................257
b) Imanência e espontaneidade..................................................... 258
c) Aspectos fenomenológicos do ser vivente...............................259
28.3 A explicação da vida....................................................................... 260
29. A origem da vida e a evolução das espécies.......................................... 263
29.1 A origem da v id a ............................................................................ 264
29.2 A evolução das espécies.................................................................266
29.3 A evolução: ciência e filosofia...................................................... 269
a) Evolução e criação.................................................................... 269
b) Evolução e finalidade................................................................271
c) Evolução e emergência.............................................................. 272
d) Evolução e ação divina..............................................................273
29.4 A origem do hom em ........................................................................ 276
a) O processo de hominização...................................................... 276
b) Homem e anim al........................................................................ 278
c) A espiritualidade humana..........................................................279
29.5 As fronteiras do evolucionismo...................................................... 280

XI - ORIGEM E SENTIDO DA NATUREZA............................ 283


C a p ít u l o
30. A origem do universo...............................................................................283
30.1 A cosmologia científica.................................................................. 284
30.2 A criação: física e metafísica......................................................... 286
a) A criação como problema metafísico...................................... 286
b) Começo temporal e criação...................................................... 288
c) O início do universo................................................................... 289
30.3 Implicações da criação.................................................................. 291
31. A finalidade na natureza.......................................................................... 293
31.1 O conceito de finalidade.................................................................. 293
31.2 Dimensões finalistas da natureza................................................... 295
a) Direcionalidade..........................................................................295
b) Cooperação................................................................................. 296
c) Funcionalidade...........................................................................297
31.3 Existência e alcance da finalidade n atural.................................... 300
31.4 A finalidade natural diante da cosmovisão atual...........................301
a) Finalidade e cosmologia............................................................302
b) A finalidade no nível biológico................................................303
c) Finalidade e auto-organização................................................. 304
32. Natureza e pessoa humana....................................................................... 306
32.1 A singularidade hum ana.................................................................. 306
a) características da pessoa humana............................................ 306
b) Criatividade científica e singularidade hum ana................... 307
32.2 Matéria e espírito na pessoa humana.............................................. 309
a) O material e o espiritual: quatro problem as......................... 310
b) O hilemorfismo espiritualista................................................... 312
32.3 A natureza na vida hum ana.............................................................314
33. A Natureza e D eus..................................................................................... 316
33.1 Ciência e transcendência................................................................. 316
33.2 Teleologia e transcendência............................................................318
a) O argumento teleológico................................................................ 318
b) Natureza e providência.................................................................. 321
c) O mal na natureza...........................................................................323
33.3 A inteligibilidade da natureza..........................................................325
a) Inteligência inconsciente............................................................... 325
b) A natureza sob a perspectiva metafísica..................................... 326
c) A autonomia da natureza............................................................... 328

BIBLIOGRAFIA 331
Prólogo

Este livro do Prof. Mariano Artigas sobre a Filosofia da Natureza, que


tenho a satisfação de apresentar, atende aos objetivos comuns com os quais
estamos comprometidos em nossas investigações e docência há vários anos. Este
não é o lugar para me deter no constante diálogo que mantivemos neste período
precisamente em tomo destes objetivos, nem tampouco no caminho que precede
e prepara esta publicação. Basta mencionar o manual anterior, publicado por
nós dois em sucessivas edições desde 1984.
A obra que agora se apresenta é a sua natural continuação e desenvolvi­
mento. A minha ausência como autor não representa absolutamente a minha
dissociação a respeito dos seus conteúdos (nem muito menos nos meus estudos
sobre a matéria). Ao contrário, creio que este manual atende plenamente às
necessidades. Agora, como sou receptor do texto, gostaria de agradecer a Artigas
- com algum atrevimento, diria que em nome de todos os seus leitores - pela
bela e profunda síntese que nos oferece da filosofia natural (antecipada de outro
modo em seu trabalho La intelegibilidad de la naturaleza). A sua conhecida
competência, como filósofo da natureza e, ao mesmo tempo, como físico, explica
um resultado tão lisonjeiro para mim. Porém, o que mais me agrada, se me é
permitido usar este verbo de sabor subjetivo, é a certeza que uma obra como
esta assegura um porvir da filosofia da natureza.
E aqui tocamos, pelo menos parcialmente, esses objetivos aos quais me
referia acima. Não creio ser possível uma filosofia especulativa e metafísica -
incluindo a antropologia - que negligencie as ciências. A tarefa de reconduzir
o pensamento filosófico e científico a uma unidade de compreensão - certamente
“analógica” - passa necessariamente pela filosofia da natureza. Apenas desse
modo será possível superar a grande ruptura que se produziu na antiga
cosmovisão, quando a metafísica tradicional assistiu ao advento da ciência
moderna. Com uma abordagem ampla, este livro de Artigas consegue incutir
uma perspectiva filosófica de fundo das realidades naturais do mundo material
ao conciliar os aspectos perenes da abordagem metafísica clássica com a nova
cosmovisão da natureza que emerge da ciência moderna: não com um
concordismo extrínseco, mas repensando os temas desde a sua raiz. E, além disso,
tem presente nesta tarefa a epistemologia, como uma mediadora necessária entre
a ciência e a filosofi a, justamente porque a presença do elemento gnosiológico
não pode ser desprezada numa abordagem realista aristotélica (não-platônica).
A filosofia da natureza, um pouco esquecida pelos filósofos acadêmicos,
está renascendo há algum tempo, de um modo não-sistemático mas muito eficaz,
nas anotações dos cientistas atuais, nas apresentações informais e a título de sín­
tese, que saem de vez em quando, de mil modos, em revistas, livros e outros
meios de comunicação. Hoje, a todas as pessoas medianamente instruídas,
chegam contínuas ideias filosóficas sobre o mundo, a vida, o homem, ideias que
aos poucos vão se cristalizando numa determinada percepção da natureza. Sobre
esta base elaboram-se hoje os grandes projetos tecnológicos da humanidade e
perfila-se uma visão do homem que não está isenta de pontos problemáticos.
A intervenção do filósofo pode lançar muita luz neste processo natural,
cheio de luzes e sombras. O método mais desejável para isto é, em minha opinião,
muito parecido ao que Aristóteles empregou em seu tempo. Trata-se de dar
categoria metafísica ao que nos chega do ser natural mediante os diversos acessos
teóricos e experimentais que nos são oferecidos pelo mundo em que vivemos.
O livro de Artigas coloca-se claramente neste objetivo. Vejo em um trabalho
como este, além da sua evidente utilidade didática por causa de seus méritos
expositivos, uma importante contribuição para toda a filosofia e para o atual
debate que visa à harmonia entre a fé cristã e os conhecimentos científicos.

J u a n J o s é S a n g u in e t i
Faculdade de Filosofia
Pontifícia Universidade da Santa Cruz, Roma
P rimeira P arte
19

C apítulo I

Introdução: a natureza e seu estudo filosófico

Podemos estudar a natureza a partir de duas perspectivas: a científica e a


filosófica. As ciências buscam explicações dos fenômenos naturais a partir de
outros fenômenos ou causas, adotando pontos de vista particulares. Por outro
lado, a filosofia da natureza busca explicações que se referem ao “ser” e aos
“modos de ser” das entidades e processos naturais. Estas duas perspectivas são
autônomas, encontrando-se, porém, relacionadas. Mesmo ao adotarem pontos
de vista diferentes, as ciências apóiam-se em alguns fundamentos filosóficos e
a filosofia deve contar com os conhecimentos científicos.
Neste capítulo, faremos uma introdução geral à filosofia da natureza (item
1), seguida de uma introdução histórica (item 2), e propomos, depois, uma
caracterização da natureza que será utilizada como base das reflexões contidas
no restante do livro (item 3).

1. Introdução geral

A filosofia da natureza é o ramo da filosofia que se ocupa do mundo


natural ou físico. Veremos em que consiste essa reflexão filosófica sobre a
natureza e qual é o seu valor. Isto exigirá de nós considerarmos o alcance das
ciências naturais, uma vez que há uma estreita relação entre essas ciências e a
filosofia da natureza.

1.1 A reflexão filosófica sobre a natureza

A filosofia estuda toda a realidade à luz da razão natural. Além dos


conhecimentos particulares proporcionados pelas ciências, busca explicações
mais radicais que se possam dar da realidade; por isso, costuma-se dizer que
estuda a realidade à luz das suas causas últimas, ou, também, que se pergunta
pelo ser da realidade.
Segundo uma distinção clássica, são três os objetos da reflexão filosófica:
o mundo, o homem e Deus. A filosofia da natureza é a reflexão filosófica acerca
do mundo, entendido como mundo natural ou físico: tanto os seres inanimados (as
estrelas c os planetas, os componentes físico-químicos da matéria e os compostos
físico-químicos), como os seres viventes.
20 Filosofia da Natureza

1.2 As relações com outras áreas da filosofia

A antropologia estuda a pessoa humana. Uma vez que o homem é parte da


natureza, ainda que a transcenda, existe uma estreita relação entre a antropologia
e a filosofia da natureza. Sem dúvida, a pessoa possui dimensões espirituais não
redutíveis ao nível material; entretanto, é um ser unitário e, por conseguinte, o
estudo da pessoa deve contar com os resultados da filosofia da natureza. Por outro
lado, o ser humano constitui, por assim dizer, o horizonte ao qual se destina a
filosofia da natureza, por causa do nosso protagonismo dentro do mundo natural.
É interessante assinalar que as principais dificuldades que a antropologia
encontra provêm da filosofia da natureza. De fato, o enorme progresso das
ciências naturais leva, em determinadas ocasiões, a que se pretenda explicar
completamente a pessoa humana nos termos dos seus componentes físicos,
químicos e biológicos. Trata-se de um reducionismo ilegítimo, que extrapola
indevidamente os conhecimentos científicos para fora da sua área particular.
Assim, a filosofia da natureza desempenha um papel insubstituível no escla­
recimento destes problemas.
A filosofia da natureza proporciona também parte da base sobre a qual
se constrói a teologia natural. Com efeito, o nosso conhecimento natural de Deus
não é imediato: ao utilizarmos as nossas forças naturais, apenas o conhecemos
através das coisas criadas. Neste campo existem, também, posições naturalistas,
segundo as quais o mundo poderia ser explicado sem a necessidade de se recorrer
a Deus, e para esclarecer este equívoco, é preciso refletir sobre a natureza própria
da filosofia natural.
A filosofia da natureza serve como fundamento para a metafísica, que
estuda os princípios últimos do ser como tal, aplicáveis tanto ao material como
ao espiritual. Remontamo-nos às leis gerais do ser através da reflexão acerca da
natureza. É difícil, para não dizer impossível, construir uma metafísica rigorosa
sem contar com uma reflexão igualmente rigorosa sobre o mundo físico.

1.3 Filosofia e ciências naturais

As ciências naturais possuem um objetivo geral em comum: concretamen­


te, buscam um conhecimento da natureza que possa ser submetido a um controle
experimental. Esse requisito é uma exigência mínima que deve ser cumprida por
qualquer explicação para ser admitida dentro da ciência experimental1.

I. Para uma análise ampla da objetividade e da verdade na ciência experimental, cfr. ARTIGAS. Mariano.
Filosofia de la ciencia experimental. La objetividad y la verdad en las ciencias, 2a. ed., Pamplona: EUNSA,
1992.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 21

A filosofia da natureza não pode deixar de considerar os conhecimentos


alcançados pelas diferentes áreas da ciência experimental. Porém, o seu enfoque
é diferente, uma vez que, como afirmamos, busca descobrir as causas últimas
da natureza e propõe explicações gerais, que vão além do que se investiga na
ciência experimental. Por exemplo, propõe os conceitos de substância,
potencialidade e atualidade, para explicar determinadas características da
natureza; estes conceitos, no entanto, não são tema próprio de nenhuma disciplina
científica: as ciências estudam as substâncias e as potencialidades naturais,
porém não se perguntam pela própria noção de substância ou de potencialidade
tal como o faz a filosofia.
A filosofia da natureza necessita das ciências em medidas diferentes,
dependendo dos temas que estuda. Às vezes, a experiência ordinária proporciona
bases diferentes para a reflexão filosófica. Entretanto, também nesses casos, é
interessante contar com as ciências para garantir que a nossa interpretação da
experiência ordinária esteja correta.
Por sua vez, as ciências se constroem sobre alguns pressupostos que não
são objeto do estudo científico, mas que constituem as suas premissas
necessárias. Concretamente, as ciências pressupõem a existência de uma ordem
natural que, além disso, pode ser conhecida mediante argumentações nas quais
a experimentação desempenha um papel central. O êxito da ciência justifica a
validade desses pressupostos, amplia-os e precisa-os. Por exemplo, o progresso
científico permite-nos construir imagens do mundo ou cosmovisões que unificam
em uma imagem unitária os diferentes conhecimentos que obtemos da natureza.
Para construir uma cosmovisão, é necessário interpretar os conhecimentos
científicos e unificá-los, o que requer certa dose de reflexão filosófica.
O desenvolvimento rigoroso da filosofia da natureza é imprescindível para
que os métodos e resultados científicos não extrapolem o seu âmbito próprio.
O progresso científico pode facilmente ser interpretado equivocadamente se não
se dispõe de uma boa filosofia da natureza. Por exemplo, quando a ciência
experimental moderna nasceu sistematicamente no século XVII, apresentou-se
acompanhada pelo mecanicismo, segundo o qual o ente natural pode ser expli­
cado completamente mediante o deslocamento de partes materiais; na realidade,
o mecanicismo não é uma ciência, mas uma má filosofia: entretanto, durante
muito tempo exerceu uma influência notável, apresentando-se como se fosse uma
parte ou uma consequência do progresso científico, quando na verdade não o é.
A filosofia da natureza e as ciências naturais proporcionam enfoques
diferentes, porém complementares. De fato, este caráter foi respeitado até que,
no século XIX, o idealismo pretendeu invadir o terreno das ciências e os
cientistas sentiram que a filosofia não os ajudava, mas lhes impunha obstáculos.
22 Filosofia da Natureza

A reação antifilosófica cristalizou-se no cientificismo, que considerava a ciência


experimental o único conhecimento válido da realidade; uma das suas variantes
mais importantes foi o positivismo, que pretendia reduzir a ciência ao estabe­
lecimento de relações entre fenômenos observáveis, evitando tudo o que
ultrapassasse esse limite. Na realidade, o cientificismo é contraditório ao negar
o valor de todo conhecimento que não seja adquirido mediante a ciência, pois
esta tese mesma não é o resultado de nenhuma ciência. Além disso, o positi­
vismo estabelece um requisito que não pode ser cumprido pelas ciências, cujo
progresso requer a possibilidade de ir muito mais além do que é observável na
experiência.

1.4 Valor e alcance da filosofia da natureza

A experiência desempenha um papel importante dentro do método da


filosofia. Ainda que a filosofia da natureza não busque um conhecimento
detalhado tal como o proporcionado pelas ciências, deve basear-se tanto no
conhecimento empírico como no científico. Não é possível submeter as
explicações filosóficas ao controle experimental como se faz nas ciências; porém,
estas explicações deverão ser abandonadas quando não corresponderem aos
conhecimentos particulares bem fundados na experiência e nas ciências.
O valor das explicações filosóficas depende de dois fatores. Em primeiro
lugar, devem responder a problemas autênticos, apresentados adequadamente.
E, além disso, devem resolvê-los de modo satisfatório.
A existência de problemas filosóficos genuínos é negada por aqueles que
afirmam ser preciso somente explicar a composição e o funcionamento das
coisas. Indubitavelmente, estas duas perguntas são importantes, e constituem o
tema principal das ciências naturais. Todavia, não esgota os problemas que a
natureza apresenta à mente humana. Por exemplo, podemos nos perguntar pela
explicação última da ordem existente na natureza; as ciências nos proporcionam
explicações cada vez mais detalhadas sobre esta ordem, mas este conhecimento,
longe de reduzir o interesse pelas perguntas radicais, aumenta-o ainda mais.
Quanto mais avançam as ciências, mais espantosa parece a ordem que existe na
natureza. Outros problemas referem-se à explicação das entidades, processos e
propriedades da natureza de modo geral, que estão muito além dos conhecimen­
tos particulares proporcionados pelas ciências.
Uma vez admitida a existência de genuínos problemas filosóficos, como
podemos valorar as soluções propostas? Certamente, em filosofia não podemos
recorrer ao controle experimental do mesmo modo que se faz nas ciências. Entre­
tanto, deve-se julgar a validade das soluções recorrendo aos mesmos cânones
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 23

básicos, ou seja, à lógica e à experiência. Conforme dissemos, as soluções devem


ser coerentes com os dados disponíveis. Além disso, devem ser satisfatórias sob
o ponto de vista lógico: devem estar isentas de contradição e deve ser possível
utilizá-las para explicar os problemas a serem resolvidos. Obviamente, não existe
um critério automático de validade filosófica: o valor das explicações deve ser
aferido em cada caso concreto.
O alcance da filosofia da natureza é distinto nos diferentes casos. A
princípio, podemos esperar que os conceitos mais importantes não sejam,
relativamente, muito numerosos, visto que não buscamos um conhecimento
detalhado tal como as ciências o buscam. Na medida em que obtivermos
explicações referentes às características essenciais da natureza, essas explicações
terão um valor permanente. Comprovaremos, com efeito, que alguns conceitos
filosóficos propostos há muitos séculos conservam a sua validade, ainda que
devamos eventualmente adequá-los aos conhecimentos atuais. Por outro lado,
tendo em conta o enorme progresso das ciências, supõe-se que muitas
explicações da filosofia da natureza deverão ser revisadas periodicamente. De
qualquer maneira, centraremos a nossa atenção nos problemas mais básicos e
nas explicações mais permanentes, examinando tudo à luz dos conhecimentos
científicos atuais.

1.5 Temas e problemas

A filosofia da natureza abarca uma temática muito ampla, já que se estende


desde o átomo até o universo, incluindo os viventes e o homem, enquanto ser
natural. Pergunta-se, aliás, pelo significado da natureza e pelo seu fundamento
radical. Dessa forma, constitui a ponte lógica entre o conhecimento ordinário,
as ciências e a metafísica.
Aqui estudaremos os temas básicos da filosofia da natureza à luz da
cosmovisão atual. Começamos com uma proposta de caracterização da natureza,
baseada em dois aspectos fundamentais: o dinamismo e a estruturação espaço-
temporal; e mostramos que essa caracterização representa adequadamente o
natural frente ao espiritual e ao artificial. Este ponto de partida é coerente com
a cosmovisão científica atual, e permite abordar os problemas da filosofia da
natureza sob uma nova ótica, que coloca em evidência que na natureza coexistem
dim ensões físicas (relacionadas com a estruturação espaço-tem poral),
ontológicas (modos de ser e de atuar) e metafísicas (que fundamentam o ser e a
atividade da natureza).
Nos cinco capítulos que formam a primeira parte, examinaremos o
conceito de natureza, as entidades naturais, o dinamismo natural, a ordem da
24 Filosofia da Natureza

natureza e a estrutura hilemórfica dos entes naturais. Nos seis capítulos da


segunda parte, ampliaremos as nossas considerações às dimensões quantitativas
e qualitativas do natural, à causalidade dos seres naturais, aos viventes e à origem
e sentido da natureza.

2. O estudo científico e filosófico da natureza ao longo da história

Neste item consideraremos o desenvolvimento da filosofia da natureza


ao longo da história. Um momento chave deste desenvolvimento é o nascimento,
no século XVII, da ciência experimental moderna. Por este motivo, exami­
naremos primeiramente a época antiga - entendida em seu sentido amplo, ou
seja, desde a Antiguidade remota até o século XVII - e, na sequência,
analisaremos o posterior desenvolvimento da filosofia da natureza relacionando-
o com o progresso das ciências.

2.1 Ciência e filosofia na Antiguidade

Os filósofos gregos abordaram problemas filosóficos fundamentais e


formularam respostas que conservam a sua importância, ainda que a sua
perspectiva estivesse condicionada pelo escasso desenvolvimento das ciências.
A herança grega sobreviveu cerca de vinte séculos, até que a ciência experimental
moderna nascesse no século XVII, continuando viva em muitos aspectos até hoje.
Desde o princípio se enfrentaram, por um lado, a consideração metafísica,
que contemplava a natureza como obra divina e a pessoa humana como dotada
de uma alma espiritual e imortal, e, por outro, a perspectiva materialista, que
tinha a pretensão de explicar toda a realidade mediante os seus componentes
materiais. Na primeira linha, situam-se, com diversos matizes, Sócrates, Platão,
Aristóteles e os estóicos, cujas ideias foram parcialmente recolhidas na tradição
cristã, e, na segunda, os atomistas Leucipo e Demócrito, assim como seus
continuadores, Epicuro e Lucrécio.
O dilema entre as duas perspectivas já foi claramente apresentado por
Platão em seu diálogo Fédon, cujo protagonista, Sócrates, está, no ano 399 a.C.,
encarcerado à espera da morte; diante da proposta de fuga que os seus amigos
lhe apresentam, Sócrates explica no diálogo como as suas ideias acerca da
natureza evoluíram. Quando era jovem - diz -, movido por conhecer as causas
de todos os fenômenos, estudou as opiniões dos pensadores anteriores (os pré-
socráticos Anaxágoras, Empédocles, Anaxímenes, Heráclito, etc.) a respeito da
natureza, mas os tipos de explicação que propunham não lhe convenceram. E
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 25

explica o porquê: estes pensadores propunham explicações em termos de


componentes e ações, sem se referirem às essências das coisas nem àfinalidade,
que proporcionam as verdadeiras razões que permitem compreender por que algo
ocorre, qual é a conveniência de que ocorra e qual relação tem com o fundamento
divino do todo.
Deste modo, Sócrates já expôs os problemas centrais da filosofia da
natureza e da sua relação com as ciências: que relação existe entre estes dois
níveis de explicação? Basta considerar as causas físicas? Existe finalidade na
natureza? Existe um plano superior que dá a razão dos fenômenos naturais?
Sócrates e Platão inclinaram-se para as explicações metafísicas, que dão a razão
da natureza, recorrendo, em termos últimos, às essências, aos fins e à divindade.
Sob um prisma distinto, o atomismo de Demócrito centrou as explicações
em tomo dos aspectos físicos: o movimento local da matéria e dos átomos que
a compõem bastaria para dar a razão do todo, sem necessidade de recorrer às
explicações metafísicas. Esta abordagem foi continuada na Antiguidade por
Epicuro na Grécia e por Tito Lucrécio em Roma.
Aristóteles recolheu estes problemas e formulou uma perspectiva que
predominou durante vinte séculos. Na física aristotélica, mesclam-se os problemas
científicos e os problemas filosóficos, e estes são os que determinam a pauta.
Seria anacrônico recrim inar A ristóteles (ou Platão, os estóicos, os
medievais) por não ter construído ciência no sentido moderno. Para que a ciência
experimental nascesse de modo sistemático, necessitava-se muito mais que boa
vontade e interesse pela natureza, que sem dúvida existiam: por exemplo, no
âmbito que se podia estudar com os recursos disponíveis de então, a biologia de
Aristóteles é importante e rigorosa.
A cosmovisão aristotélica corresponde, em boa medida, à experiência
ordinária. Uma parte dessa cosmovisão, concretamente as teorias dos quatro
elementos, dos corpos celestes e seus movimentos e dos lugares naturais, recebeu
seu atestado de óbito quando a ciência moderna nasceu. Parecia, então, que toda
a filosofia aristotélica se arruinara. Entretanto, as ideias fundamentais da filosofia
natural aristotélica permanecem com uma grande importância até os dias de hoje:
a substancialidade, o hilemorfismo, a explicação dos processos em termos de
potência e ato, as quatro causas, a finalidade, são conquistas mestras às quais
se volta uma e outra vez, apesar do eventual descrédito do aristotelismo em
alguns momentos da história. Contudo, o enorme progresso das ciências na época
moderna faz necessário examinar novamente estes conceitos à luz do posterior
progresso científico.
A física aristotélica foi estudada por Tomás de Aquino em um novo
contexto. Com a ajuda de uma metafísica criacionista (ausente em Aristóteles),
26 Filosofia da Natureza

a síntese tomista centrou-se em torno do ato de ser e da participação. Nesse


contexto, os conceitos aristotélicos ganham nova vida. Completa-se a relação
entre física e metafísica: Deus é causa eficiente da natureza (causa primeira que
cria, conserva e concorre no agir, dando razão às causas segundas), causa
exemplar (ideias divinas) e causa final (por sua bondade cria um mundo bom,
ordenado ao homem). Deus governa o mundo por sua providência, o que explica
a finalidade natural. A liberdade da criação sublinha a contingência do mundo.
Tomás de Aquino propôs uma concepção original e muito importante da
natureza como a realização de um plano divino através dos modos de ser e de
agir, que Deus pôs nas próprias coisas, fazendo-as cooperar na construção da
natureza: compara a ação divina à de um artífice que pudesse outorgar às peças
com as quais trabalha a capacidade de mover-se por si mesmas para alcançar o
fim previsto. Esta é a ideia de fundo, que parece muito adequada à cosmovisão
atual, na qual a morfogênese e a auto-organização ocupam um lugar fundamental.
Por outro lado, Tomás de Aquino relativizou algumas importantes teses
aristotélicas, como a eternidade do mundo e do movimento, e as teorias
astronômicas.
A síntese tomista encerra importantes virtualidades que não foram
esgotadas, especialmente no âmbito da filosofia da natureza. Com efeito, neste
âmbito, frequentemente tentou-se simplesmente salvar os aspectos mais
metafísicos da doutrina tomista, separando-os da cosmovisão antiga. Mas, se é
preciso reformular as teses tomistas nos novos contextos que se apresentaram
posteriormente, estas ideias, em seus aspectos fundamentais, se mostram muito
adequadas para se conseguir uma integração profunda dos conhecimentos
científicos atuais com a perspectiva filosófica.

2.2 A ciência experimental moderna

A ciência moderna nasce no século XVII, na Europa ocidental cristã, em


boa parte graças aos trabalhos desenvolvidos ao longo da Idade Média (por
exemplo, nas Universidades de Paris e Oxford). Entretanto, a nova ciência surgiu
numa aberta polêmica com a tradição anterior e, por falta de um equilíbrio -
difícil naquela época-, desprezaram-se tanto os aspectos válidos do pensamento
clássico como os seus erros. Se antes a balança pendia para a filosofia, graças
ao êxito da ciência experimental, ela agora se inclina fortemente para o outro
extremo. Durante a época moderna, devido ao prolongamento das polêmicas
iniciais e à acumulação de sucessivos equívocos, predominaram interpretações
pouco rigorosas das relações entre ciência e filosofia e, portanto, da filosofia
da natureza.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 27

O trabalho dos medievais abriu o caminho para a ciência moderna.


Qualificar a Idade Média como época obscurantista, desinteressada pela ciência
e, inclusive, opondo-lhe obstáculos, é um erro histórico. Os trabalhos pioneiros
de Pierre Duhem lançaram novas luzes sobre este problema2. Duhem mostrou
que existiram muitos trabalhos que prepararam a ciência moderna, destacando,
neste sentido, as Universidades de Paris (Jean Buridan e discípulos: Nicolas
Oresme, Alberto de Sajonia, Enrique de Hesse, Marsílio de Inghen) e Oxford
(Robert Grosseteste, Roger Bacon, Richard Swineshead, John Dumbleton,
Thomas Bradwardine). Nesse sentido, o teorema do Marton College sobre o
movimento uniformemente acelerado equivale à lei de Galileu sobre a queda
livre, e Nicolas Oresme formulou uma prova geométrica desse teorema utilizando
uma figura que se encontra reproduzida por Galileu; e a teoria do “impetus” da
Escola Física de Paris (Buridan, Oresme) proporcionou a base das noções de
inércia e quantidade de movimento3.
As ideias cristãs também exerceram um importante influxo através de uma
matriz cultural que era geralmente compartilhada e que tomou possível o único
nascimento viável da ciência moderna. Sobretudo, a doutrina da criação exerceu
um grande impacto sobre o estudo da natureza, na medida em que punha de
manifesto a contingência do mundo criado livremente por Deus e, portanto, a
necessidade da experiência para conhecer as suas características; a racionalidade
do mundo, criado por um Deus infinitamente sábio; e a capacidade humana para
conhecer o mundo, porque o homem foi criado por Deus a sua imagem e
semelhança, com corpo e alma racional. Stanley Jaki documentou com abun­
dantes exemplos as sucessivas frustrações da ciência nas grandes culturas
antigas, e o influxo positivo do cristianismo no nascimento da ciência moderna4.
Thomas Kuhn escreveu: “De um ponto de vista moderno, a atividade
científica da Idade Média era incrivelmente ineficaz. No entanto, de que outra
forma poderi a ter renascido a ciência no Ocidente? Os séculos durante os quais
a escolástica imperou são aqueles em que a tradição da ciência e da filosofia
antiga foi simultaneamente reconstruída, assimilada e posta à prova. Na medida
em que os seus pontos fracos eram descobertos, estes se convertiam
imediatamente em focos das primeiras investigações operativas no mundo

2. Cfr. DUHEM, Pierre. Le système du monde. Histoire des doctrines cosmologiques de Platon à
Copernic, 10 volumes, Paris: Hermann, 1913-1917 e 1954-1959.
3. Encontra-se uma síntese destas questões em: ARTIGAS, Mariano. “Nicolas Oresme, gran maestre del
Colégio de Navarra, y el origen de la ciencia moderna", in Príncipe de Viena (Suplemento de Ciencias), ano
IX, n. 9 (1989), págs. 297-331.
4. Cfr. JAKI. Stanley L. Science and Creation. From Eternal Cycles to an Oscillating Universe,
Edinburgh and London: Scottish Academic Press. 1974.
28 Filosofia da Natureza

moderno. Todas as novas teorias científicas dos séculos XVI e XVII têm sua
origem em trechos do pensamento de Aristóteles comentados pela crítica
escolástica. Mesmo assim, a maior parte destas teorias contém conceitos chaves
criados pela ciência escolástica. Mais importante ainda que estes conceitos é o
estado de espírito que os cientistas modernos herdaram dos seus predecessores
medievais: uma fé ilimitada no poder da razão humana para resolver os
problemas da natureza. Tal como sublinhou Whitehead, «a fé nas possibilidades
da ciência, iniciada anteriormente ao desenvolvimento da teoria científica
m oderna, é um derivado inconsciente da teologia m edieval»”5. Estas
considerações vão de encontro com chavões repetidos por inércia; especialmente
com o chavão positivista, segundo o qual a teologia e a metafísica atuaram como
um freio para o progresso científico.
Ainda que existam outros pioneiros - como Leonardo da Vinci a
revolução científica moderna começou propriamente quando Nicolau Copérnico
(1473-1543) propôs a teoria heliocêntrica. Ao não considerar mais a Terra como
imóvel e posicionada no centro do universo, mas como um planeta que gira ao
redor do Sol, fez com que se deslocasse a cosmovisão dominante. A obra de
C opérnico, intitulada A cerca das revoluções da órbita celestes (De
revolutionibus orbium coelestium), estava dedicada ao Papa e não provocou
nenhuma polêmica.
Francis Bacon (1561-1626) pode ser considerado como o “profeta” de uma
nova ciência que se afastava dos métodos antigos e se dirigia para o domínio da
natureza. Não fez grandes contribuições à nova ciência e sua metodologia é muito
insuficiente; mas influenciou na consolidação de uma ciência baseada na
experimentação.
Bacon propôs um novo método, centralizado na indução, que, partindo
da observação, permitia formular leis gerais a partir dos casos particulares, graças
a recursos tais como as tabelas de presença, de ausência e de graus. Foi ele o
responsável por substituir as “formas” aristotélicas e escolásticas - que
pretendiam expressar a natureza das coisas - pelas “leis”. As formas e os fins
da filosofia tradicional não têm lugar na nova ciência; Bacon qualifica a
“finalidade” como uma “virgem estéril”, incapaz de dar frutos.
Estas ideias de Bacon foram, em geral, aceitas durante muito tempo, mas
apresentam problemas que estão sendo carregados até a atualidade: o sentido e
o valor da indução na ciência, a relação entre ciência e filosofia, o valor da
filosofia da natureza. Por exemplo, a nova ciência foi considerada durante séculos

5. KUHN, Thomas S. La revolución copernicana . La astronomía planetaria en el desarrollo del


pensamiento Occidental, Barcelona: Ariel, 1978, pág. 171.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 29

como “ciência indutiva”; mas, como se poderi am comprovar por indução a lei
da queda dos corpos ou a lei da gravidade, ou ainda as complexas teorias da física
matemática? Além disso, como poderíam ser verificadas estas teorias recorrendo
aos dados sempre fragmentários que a experimentação proporciona?
René Descartes (1596-1650) influenciou no nascimento da nova ciência
insistindo no enfoque matemático e dando umas contribuições parciais. Porém,
a sua física era deficiente comparada à de Newton e Galileu e o seu difundido
trabalho filosófico provocou equívocos históricos. Com efeito, utilizando seu
critério de evidência (as ideias claras e distintas), reduziu a substância corpórea
à extensão, negando a realidade das qualidades e eliminando o dinamismo
próprio da matéria; porém, a nova física só se consolidou quando se introduziram
conceitos como os de “força” e “energia”, que não cabem dentro do estreito limite
cartesiano. Descartes rechaçou também as formas, as qualidades e os fins. A
sua filosofia natural é um “mecanicismo” que pretende explicar tudo mediante
o deslocamento e os choques da matéria: desaparece, assim, a interioridade em
benefício da pura exterioridade, o que se aplica também aos viventes (ressal­
vando-se o espírito humano).
Johannes Kleper (1571-1630) formulou as primeiras leis científicas da
nova ciência, que dizem respeito às trajetórias elípticas dos planetas. Estas leis
representaram uma conquista de primeira magnitude - na qual se combinaram
a matemática, os dados de observação (outorgando grande importância à
precisão) e uma visão mística acerca da ordem da natureza - e destruíram o
presumido movimento circular dos corpos celestes.
Galileu Galilei (1564-1642) foi o principal pioneiro da nova ciência e
quem melhor se deu conta de sua natureza. Além das suas importantes
descobertas teóricas e pesquisas no campo da observação (formulação da lei
sobre a queda dos corpos, descoberta dos satélites de Júpiter e das faces de
Vênus, etc.), Galileu afirmou que o objetivo da ciência é formular leis que se
refiram a “afecções”, tais como o lugar, movimento, figura, magnitude, etc.;
renuncia, portanto, ao conhecimento das essências e do significado das coisas,
objeto próprio da filosofia e da teologia.
O famoso “caso Galileu”, com as cores que os pseudo-historiadores
pintam, não passa de uma lenda infundada. Por um lado, Galileu não dispunha
de demonstrações concludentes do heliocentrismo; por outro, as dificuldades
teológicas eram superficiais e podiam ser evitadas com facilidade, pois o
geocentrism o nunca fez parte da doutrina cristã. Além disso, surgiram
circunstâncias que agravaram o problema. De fato, a pena imposta a Galileu foi
o confinamento em sua vila particular, nas proximidades de Florença: Galileu
seguiu trabalhando até à sua morte, que lhe sobreveio aos 78 anos por causas
30 Filosofia da Natureza

naturais, e o processo não freou o nascimento da nova ciência6. Contudo, os


problemas acerca da natureza e o alcance da nova ciência continuaram
provocando polêmicas e dificuldades cada vez maiores.
Pouco depois da morte de Galileu, as ideias e os resultados acumulados
durante séculos, e os novos métodos e conquistas dos pioneiros da ciência moder­
na, culminaram no nascimento definitivo da física matemática por obra do gênio
de Isaac Newton (1642-1727), que publicou em 1687 os “Princípios matemáticos
dafilosofia natural ”, uma grande obra na qual se encontrava formulada a primeira
teoria da física experimental: a mecânica newtoniana. Este estudo inaugurou uma
nova era. A mecânica de Newton, aplicada igualmente aos fenômenos terrestres
e celestes, obteve um êxito ininterrupto tanto em seu desenvolvimento teórico
como em suas aplicações práticas até o século XX. Proporcionou, além disso, o
esqueleto que permitiu os grandes avanços da física e, sobre esta base, a conso­
lidação da química, da biologia e de todas as disciplinas da ciência experimental.
O nascimento da nova ciência foi acompanhado de equívocos e polêmicas,
devidos, em boa parte, a que esta se apresentava como uma nova filosofia natural
que vinha substituir a antiga. O crescente êxito da nova ciência e das suas
implicações práticas parecia indicar que este era o caminho obrigatório para
enfrentar com garantia o problema sobre o valor do conhecimento humano, que
se encontrava no centro da filosofia moderna. A nova ciência apresentava-se
como uma alternativa frente à antiga, à qual se avantajava pelo uso da matemática
(precisão e rigor frente às “qualidades ocultas”), pelo recurso à experimentação
e às aplicações práticas (caráter empírico e utilidade frente à “especulações
estéreis”), pela demonstrabilidade e pelo seu progresso. No entanto, carecia-se
de uma adequada compreensão das relações entre ciência e filosofia, ou seja,
da distinção e complementaridade dos respectivos objetivos e enfoques.
As dificuldades não eram pequenas, devido ao desenvolvim ento
fragmentário tanto da ciência como da epistemologia. Compreende-se assim que,
até os nossos dias, se propusessem explicações tão diferentes sobre as relações
entre ciência e filosofia e, portanto, sobre a filosofia da natureza. Só mais
recentemente é que surgiram circunstâncias mais favoráveis.
Emmanuel Kant (1724-1804) deu uma guinada decisiva no problema do
conhecimento. Convencido da validade definitiva da física de Newton, deu-se
conta, concomitantemente, de que os conceitos científicos são construídos por nós
e, por isso, correspondem ao nosso modo de representara natureza. Porém, insistiu

6. Encontra-se uma síntese do “caso Galileu” e de suas implicações em: ARTIGAS. Mariano. Ciencia,
razón y fe, 4a. ed., Madrid: Palabra, 1992 (item “Galileo: un problema sin resolver”, págs. 15-36). Cfr.
BRANDMÜLLER, Walter. Galileoy la lglesia, Madrid: Rialp. 1987.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 31

exageradamente no aspecto “subjetivo” dos nossos conceitos, interpretando desse


modo as ideias de substância, qualidade e finalidade. A filosofia da natureza ficou,
então, demasiado sujeita às nossas representações subjetivas. Kant insistiu em que
não podemos conhecer “as coisas em si mesmas”; estas ideias assentaram as bases
do idealismo pós-kantiano que, especialmente por obra de Hegel, provocaram um
divórcio radical entre ciência e filosofia.
A filosofia da natureza renasceu com o romantismo e o idealismo, no final
do século XVII e início do XIX, sob a forma de uma Naturphilosophie que reagiu
ao mecanicismo e sublinhou, acertadamente, o vital, o orgânico e o sistema da
natureza. Porém, contaminou estas instituições com um traço panteísta e com
uma crítica à ciência real, o que provocou outro sério desacordo entre os
cientistas e os filósofos.
A “Filosofia da Natureza” de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-
1831) é a segunda parte da sua “Enciclopédia das ciências filosóficas ”. Hegel
sustenta uma filosofia idealista que interpreta a realidade como o progressivo
desenvolver-se da ideia. A Natureza é concebida por Hegel como um momento
do deslocamento da ideia: concretamente, o momento no qual a ideia se reveste
de “exterioridade”. Hegel parece propor uma concepção um tanto negativa da
natureza: dentro do sistema idealista, a natureza aparece como uma “contradição
não resolvida”, e se afirma que “a ideia, nesta forma de exterioridade, é
inadequada a si mesma”.
Quando Hegel aborda temas concretos, torna-se difícil segui-lo. Além
disso, criticou diferentes aspectos da ciência que se desenvolvera até o seu tempo,
propondo alternativas pouco convenientes. De fato, como testemunhava em 1862
o físico Hermann Helmholtz, Hegel contribuiu decisivamente para a ruptura
moderna entre ciência e filosofia: “Os filósofos acusavam os cientistas de
estreiteza mental, e os cientistas acusavam-nos de loucos. Com isto, os homens
de ciência começaram a comentar a conveniência de extirpar do seu trabalho
toda espécie de influência filosófica; e alguns, mesmo os talentos mais agudos,
chegaram a condenar totalmente a filosofia, não só como inútil, mas como
positivamente daninha, além de fantasiosa. O resultado foi - é forçoso confessá-
lo - que não contentes em repudiar as pretensões ilegítimas que o sistema
hegeliano queria se atribuir sobre todas as demais áreas do saber, pretendendo
que todas fossem subordinadas a ele, ignoraram as justas reclamações da
filosofia, isto é, o seu direito de criticar as fontes do conhecimento e a definição
das funções do entendimento”7. Não é de se estranhar que este clima favorecesse
o desenvolvimento de uma mentalidade positivista.

7. Apud DAMPIER, W. C. Historia e ciencia, Madrid: Tecnos, 1972, pág. 318.


32 Filosofia da Natureza

Augusto Comte (1798-1857), pai do positivismo, formulou sua “lei dos


três estágios” pelos quais, segundo ele, a humanidade passou; o estágio atual e
definitivo é o “científico” ou “positivo”, no qual nos abstemos de perguntar sobre
as causas últimas das coisas e nos limitamos ao que é acessível à ciência positiva:
formular leis, que são relações constantes entre fenômenos observáveis. Assim,
ficam superados os dois estágios prévios, o “mítico-religioso” e o “abstrato-meta-
físico”, que responderi am à carência de instrumentos adequados para com-
preender e controlar cientificamente a natureza. Não há lugar para uma filoso-
fia que não seja uma simples reflexão metodológica e unificadora das ciências.
O positivismo representa o extremo oposto a Hegel. No entanto, os
extremos encontram-se: ambos são intentos monopolísticos injustificados, de
sinais contrários, que não admitem a complementaridade entre ciência e filosofia.
Compreende-se que o positivismo exercesse certa fascinação sobre os
cientistas e filósofos que desejavam evitar elucubrações fantasiosas, pois propõe
que se deve ater aos fatos, ao “positivo” ou “dado”, e às suas relações, assegu­
rando, assim, o rigor das ciências, que não teriam nada a ver com as elucubrações
filosóficas. No entanto, trata-se de uma visão simplista da ciência, considerando
que sempre existem pressupostos filosóficos, tanto ontológicos como
gnosiológicos, que são condições necessárias da atividade científica (e que são
retrojustificados pelo progresso científico). Além disso, é necessária uma
interpretação dos métodos e resultados das ciências para avaliar o seu alcance e
conseguir uma cosmovisão unitária. Por fim, os dados puros não existem (sempre
intervêm as interpretações) e a ciência ultrapassa o campo do observável.
Definitivamente, a “ciência positiva” nunca existiu e não pode existir, e
a ciência contemporânea não existiría se tivesse seguido os preceitos comteanos.
Por outro lado, a lei dos três estágios, ainda que goze de certa popularidade,
corresponde a um molde preconcebido com demasiado simplismo: as relações
entre ciência, filosofia e teologia foram e continuam sendo muito mais
importantes e complexas do que esta lei afirma.

2.3 O impacto filosófico do evolucionismo, a física quântica e a


relatividade

A filosofia da natureza enfrentou um novo desafio com o surgimento do


evolucionismo, especialmente após 1859, ano em que foi publicada “A origem
das espécies” de Charles Darwin. O evolucionismo marcou uma direção
importante na filosofia da natureza e do homem ao sublinhar o problema do
naturalismo e da finalidade. Entre os autores que concentraram as suas reflexões
em torno à evolução, destacam-se Bergson e Teilhard de Chardin.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 33

Em 1907, Henri Bergson (1859-1941) publicou “A evolução criadora”,


no qual sustenta que os gregos interpretaram o tempo em função da eternidade,
seguindo o que, de acordo com Bergson, é o procedimento natural da nossa
inteligência, que foi feita para a ação: decompor o devir real em momentos
estáticos e tentar recompor a realidade mediante uma articulação desses instantes.
Porém, este “método”, semelhante ao cinematográfico, não é útil para alcançar
a realidade autêntica, que é, precisamente, o devir, o processo, a evolução; ao
contrário dos gregos, supõe que todas as coisas já estão dadas de uma vez por
todas.
O ju ízo de Bergson está condicionado por sua tese básica, segundo a qual
o devir forma a trama da realidade, tratando-se de um devir criativo, tal como o
que acontece na vida interior humana: um impulso vital que atravessa tudo, de
modo que os seus resultados são realmente novos e imprevisíveis.
Bergson repete esta tese uma e outra vez, mas não a fundamenta
seriamente. Ela parece apoiar-se nas posturas críticas do mecanicismo, que
costumam acompanhá-la; é como se rejeitar o mecanicismo fosse equivalente a
provar esta tese, o que não é correto.
Sem dúvida, Bergson tem razão nas suas críticas ao mecanicismo e
sublinha, também com razão, a importância do devir real na explicação da
natureza. Sustenta a importância da interioridade e rebela-se diante de um
pensamento que considera suficientes as explicações baseadas na exterioridade
dos fenômenos repetíveis. Porém, a alternativa que propõe é demasiadamente
etérea e fragmentária: limita-se a estabelecer um paralelismo entre a via psíquica
do ser humano, na qual se dá a liberdade e a criatividade, e uma evolução, que
se identifica com o desdobramento de um impulso vital. Dessa forma, afirma
que a única maneira de compreender a realidade é situar-se no interior dessa
corrente vital mediante uma intuição que supera a inteligência analítica.
O “processualismo”, que centra a sua atenção no devir natural e histórico,
adquiriu grande importância na atualidade, seguindo os passos de Henri Bergson,
Alfred North Whitehead e Charles Hartshorne. Esta teoria destaca aspectos
im portantes da realidade, mas necessita ser com plem entada com uma
consideração mais atenta das dimensões estruturais e estáveis.
Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955) assumiu a evolução como um fato
e propôs uma interpretação finalista e cristã. Deixando de lado as possíveis
dificuldades teológicas da obra de Teilhard, é interessante sublinhar, no âmbito
da filosofia da natureza, a importância que ele atribui à “interioridade”. Com
efeito, afirma que a ciência só considerou até agora a “exterioridade” da natureza,
e, para completá-la, é necessário considerar a “interioridade”: esta é a sua
assertiva central.
34 Filosofia da Natureza

Teilhard de Chardin desenvolveu essa explicação em torno da “lei da


complexidade-consciência”, que entende ser bem estabelecida no plano da
experiência. Segundo esta “lei”, aos progressivos graus de organização da
matéria (exterioridade) correspondem progressivos graus de consciência
(interioridade). Sobre esta base, afirma que existe alguma forma de consciência
(pampsiquismo) em todos os níveis da natureza e que a evolução consiste no
progressivo desenvolvimento de uma “energia espiritual” que, em determinados
pontos críticos, produz saltos qualitativos: especialmente na origem da vida e
ainda mais na origem do homem, na qual a reflexão consciente revela-se com
as suas consequências especificamente humanas. Trata-se de uma evolução que
possui uma direção ascendente até formas superiores de organização material
(exterioridade) e de consciência (interioridade): é, portanto, uma verdadeira
“ortogênese”. Finalmente, projeta as suas ideias para o futuro: afirma que nos
encontramos na nova era da humanidade, que tende a um novo ponto crítico de
integração em tomo a um centro pessoal e transcendente que denomina “Ponto
Ômega”, de caráter divino.
A obra de Teilhard ressente-se de certa falta de precisão metodológica:
apresenta uma síntese científica, filosófica, poética e teológica na qual nem
sempre é fácil discernir o que corresponde a cada enfoque e qual é o fundamento
das conclusões a que chega. Entretanto, as ideias sobre a “interioridade” do
natural são importantes, ainda que se encontrem misturadas com certo
“pampsiquismo” pouco consistente.
Nos começos do século XX, a física quântica e a teoria da relatividade
provocaram uma avalanche de novas ideias na filosofia da natureza e nas
ciências. Demonstraram que a física clássica, que se considerava como um
edifício definitivo ao qual só era necessário adornar melhor, somente é válida
para determinados âmbitos de fenômenos: quando estudamos os componentes
microfísicos da matéria, devemos utilizar a física quântica; e quando intervêm
velocidades muito grandes, recorremos à teoria da relatividade. O impacto
filosófico destas duas teorias foi enorme, pois proporcionam conhecimentos
acerca de aspectos da natureza que se encontram muito distantes da experiência
ordinária, mas que afetam conceitos básicos da filosofia da natureza.

2.4 O renascimento da filosofia da natureza na época contemporânea

No primeiro terço do século XX, os neopositivistas do círculo de Viena


propuseram que se reduzisse a filosofia à análise lógica da linguagem científica.
Numa linha abertamente cientificista, afirmaram que a ciência natural contém
todo o conhecimento válido acerca da natureza. Entretanto, não é difícil perceber
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 35

que esta doutrina é contraditória, já que, se lhe fossem aplicados os seus próprios
cânones, careceria de sentido, pois esta não é uma conclusão extraída das ciências
naturais.
A tentativa mais sistemática de formular uma filosofia da natureza de
acordo com o progresso das ciências é, provavelmente, de Nicolai Hartmann
(1882-1950). Em 1950, ele publicou a sua “Filosofia da natureza’’ (volume IV
da sua “Ontologia ”), concebida como uma “teoria especial das categorias” que,
com um matiz neokantiano mas realista, depende do estado dos conhecimentos
científicos em cada momento e renuncia a uma metafísica positiva. Hartmann
completou a sua filosofia da natureza com “O pensar teleológico ”, obra póstuma
publicada em 1954, na qual expõe uma crítica sistemática contra a finalidade.
Na sua primeira fase, Hartmann foi neokantiano. Mesmo que depois tenha
incorporado ao seu pensamento elementos da fenomenologia e sustentado contra
Kant o valor realista do conhecimento, nota-se em sua obra uma forte influência
kantiana. Frente à existência de Deus, manteve uma postura agnóstica. Em certas
ocasiões, situa-se numa linha próxima de Aristóteles; no entanto, critica as ideias
aristotélicas acerca da substância, das formas, dos fins, considerando-as perten­
centes a uma metafísica que ele julga inválida. Segundo Hartmann, a metafísica
trata de questões que não admitem resposta, porque vão além do que podemos
conhecer das coisas: só uma ontologia que nunca chegasse ao nível metafísico
e nem a respostas definitivas seria possível. Trata-se de uma filosofia hipotética
e provisional, que procura analisar e esclarecer os problemas adotando, como
método, a análise das categorias do nosso pensamento. Neste contexto, a filosofia
da natureza é concebida como análise das categorias especiais, como uma
reflexão filosófica acerca dos conhecimentos proporcionados pelas ciências, e
que, por isso, participa da permanente provisoriedade destes conhecimentos.
Esta filosofia da natureza contém análises interessantes. Ao mesmo tempo,
a negação da metafísica aparece de modo explícito a cada vez que se trata dos
problemas clássicos: são submetidas a uma crítica severa as ideias aristotélicas
e escolásticas acerca da substância, da potência e do ato, da análise do
movimento, das formas, da causalidade e dos fins, afirmando que correspondem
a uma perspectiva superada na qual se pretendia estabelecer relações entre a
natureza e o divino. Na obra “O pensar teleológico ”, Hartmann articula uma
crítica sistemática contra a finalidade na natureza, de acordo com as mesmas
ideias antimetafísicas.
Durante as últimas décadas do século XX deu-se um notável renascimento
da filosofia da natureza. São muitas, por exemplo, as publicações em torno ao
indeterminismo na natureza; à emergência e à auto-organização; à finalidade
natural e ao argumento teleológico; à origem do universo; à criação e ao
36 Filosofia da Natureza

argumento cosmológico; às relações mente-corpo. Os protagonistas destas


discussões são, frequentemente, cientistas e epistemólogos, que concebem a
reflexão filosófica como uma discussão racional que prolonga as conquistas da
ciência e da epistemologia. Trata-se de autores de tendências muito díspares,
cujas obras alcançam, em certas ocasiões, uma grande difusão8.
Este novo auge da filosofia da natureza deve-se, em grande parte, à
existência de uma nova cosmovisão. Com efeito, pela primeira vez na história
dispomos de uma cosmovisão científica rigorosa e completa e com importantes
implicações filosóficas.
Afirmar que a cosmovisão atual é rigorosa e completa não significa
afirmar que sabemos tudo. Porém é certo que pela primeira vez na história
dispomos de conhecimentos bem comprovados acerca de todos os níveis da
natureza e das suas relações mútuas: basta pensar na microfísica, na astrofísica,
na cosmologia, na biologia molecular, nas teorias morfogenéticas. Não há dúvida
que muitas incógnitas permanecem; porém conhecemos uma parte importante
do esqueleto básico, tanto no aspecto sincrônico (estado atual da natureza) como
no diacrônico (desenvolvimento histórico).
A cosmovisão atual sublinha a importância do dinamismo da matéria, a
existência de pautas espaciais e dinâmicas, a morfogênese, a evolução, a auto-
organização, a sinergia (cooperação), a emergência (frente ao reducionismo), a
direcionalidade, a informação. Por fim, percebe-se um novo paradigma
científico, que supera definitivamente o mecanicismo e proporciona uma base
muito adequada tanto para a reformulação dos problemas clássicos da filosofia
natural como para o estudo de novos problemas que advêm dos avanços das
ciências.

3. O conceito de natureza

A cosmovisão atual proporciona uma excelente base se para propor uma


caracterização da natureza que servirá como fundamento para as demais
reflexões filosóficas contidas neste livro.

8. Podem ser mencionados, a título de exemplo: Ludwig von Bertalanffy, llya Prigogine. René Thom,
Hermann Haken, Michael Ruse, Edward Wilson, Stephen Hawking, Johns Barrow, Roger Penrose. Richard
Darwkins, Karl Popper.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 37

3.1 Os sentidos de “natureza” e “natural”

O substantivo “natureza” possui dois sentidos principais: por um lado,


designa “a natureza de algo” (é o que chamaremos de sentido metafísico), e por
outro, indica “a Natureza” como o conjunto dos seres físicos (sentido físico).
No primeiro sentido (metafísico), fala-se da “natureza de algo” para indicar
o característico deste algo, ou seja, a sua índole própria, o que lhe pertence de tal
modo que sirva para distingui-lo de todos os demais. O “algo” de que se fala pode
ser qualquer coisa: com efeito, fala-se da natureza do homem, de um problema,
de uma disciplina científica e, inclusive, da natureza de Deus. Trata-se, portanto,
de um sentido que se aplica a realidades muito distintas: pode aplicar-se a tudo.
Por essa razão, falamos, neste caso, do sentido metafísico do conceito de natureza,
porque não se limita ao físico, material, corpóreo, mas pode aplicar-se também ao
espiritual e ao sobrenatural. Sob este enfoque, o conceito de natureza é semelhante
ao de “essência”, que expressa o modo básico de ser algo.
No segundo sentido (físico), fala-se da “natureza” para designar o conjunto
dos seres e processos naturais que, em geral, se identificam com o corpóreo ou
material. Ainda que este sentido seja suficientemente claro para as necessidades
da linguagem ordinária, apresenta problemas se for utilizado de modo rigoroso,
porque depende do que se entende por “ser natural”, ou seja, do sentido que se
dê ao adjetivo “natural”. A análise deve deslocar-se, portanto, do substantivo
“natureza” para o adjetivo “natural”. Mas, a que atribuímos o qualificativo de
“natural”?
O termo “natural” pode designar:
a) O natural como o espontâneo, que responde a um princípio interior.
Considera-se algo como “natural” se corresponder ao modo de ser próprio de
um sujeito. Pode tratar-se de uma propriedade ou de um modo de atuar. No
primeiro caso, é natural ao homem, por exemplo, ser racional, porque a
racionalidade é uma capacidade específica do ser humano. No segundo caso, é
natural uma atividade que tem uma origem interior, de tal maneira que, ainda
que esteja condicionada por circunstâncias externas, diz respeito a um núcleo
interno que se desenvolve com uma autonomia própria. Em ambos os casos, o
natural equivale ao espontâneo e opõe-se ao que é violento ou forçado. Este
sentido do natural aplica-se tanto ao material como ao espiritual.
b) O natural como distinto do artificial. O natural é definido muitas vezes
como aquilo que não depende da intervenção humana, em oposição ao artificial,
que é um resultado da atividade do homem.
c) O natural como distinto do espiritual. É frequente qualificar algo como
“natural” para distingui-lo do “espiritual” ou de conceitos relacionados com o
38 Filosofia da Natureza

espiritual, tais como o “racional” ou o “livre”. Neste sentido, o natural identifica-


se com o material ou o corporal, que pertencem ao nível físico.
d) O natural como distinto do sobrenatural. Por fim, o natural contrapõe-
se ao sobrenatural. É natural à pessoa humana ter dimensões espirituais, porque
essas dimensões pertencem ao seu modo de ser, ainda que sejam o resultado de
uma ação divina. No sentido contrário, é sobrenatural um milagre ou, em geral,
qualquer efeito da ação divina que ultrapassar o que corresponda aos seres pelo
seu modo próprio de ser. Na vida ordinária, frequentemente se identifica, de
modo pouco preciso, o espiritual como o sobrenatural.
A análise acima exposta mostra que os termos “natureza” e “natural” não
têm um significado unívoco. Na continuação proporemos uma caracterização
do natural - já substantivando o termo - que permitirá distingui-lo, de um lado,
do artificial e, de outro, do espiritual9.

3.2 Caracterização do mundo físico

A nossa caracterização centra-se em dois aspectos básicos do natural: a


existência de um dinamismo próprio e de pautas estruturais. Trata-se de duas
dimensões reais do natural, que se manifestam amplamente tanto na experiência
ordinária como no conhecimento científico. O natural possui um dinamismo
próprio, cujo desenvolvimento segue pautas temporais e produz estruturas
espaciais que, por sua vez, são fonte de novos desenvolvimentos do dinamismo
natural. Portanto, o natural pode caracterizar-se mediante o entrelaçamento entre
o dinamismo e a estruturação espaço-temporal, de tal modo que as estruturas
espaço-temporais girem em tomo das pautas específicas que se repetem.
A natureza possui um dinamismo próprio, independente da intervenção
humana, que se desenvolve através de uma grande variedade de processos de
acordo com pautas espaciais e temporais. Dinamismo e estruturação são duas
características básicas da natureza que se encontram estreitamente relacionadas:
as estruturas são o resultado do desenvolvimento do dinamismo e também são
fonte de novos desenvolvimentos do dinamismo. O entrelaçamento do dinamismo
e da estruturação proporciona uma chave decisiva para se conseguir uma
representação fidedigna da natureza.

9. Esta caracterização é original e foi publicada pela primeira vez em: ARTIGAS, Mariano. La
inteligibilidad de la naturaleza, 2ª. ed., Pamplona: EUNSA, 1995: no capítulo I deste livro analisa-se a proposta
e nos capítulos restantes são expostas suas implicações.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 39

a) O dinamismo natural

A natureza tem uma consistência própria. Podemos intervir nos processos


naturais, mas não podemos modificar as suas leis. De modo negativo, a autonomia
do natural implica uma independência em relação à intervenção humana. De mo­
do positivo, expressa que as entidades naturais possuem um dinamismo próprio.
O termo dinamismo provém do grego dynamis, que significa força, poder,
capacidade. Afirmar que as entidades naturais possuem um dinamismo próprio
equivale a afirmar que não são sujeitos meramente passivos aos quais o movi­
mento é acrescentado como algo externo, mas que possuem uma atividade
própria, um dinamismo interno que não depende somente das ações exercidas
sobre elas.
O dinamismo natural pode ser considerado tanto no nível da experiência
ordinária como no das ciências.
Diante da experiência ordinária, o dinamismo próprio manifesta-se nos
diversos âmbitos da natureza: é patente nos viventes, nos astros, nos fenômenos
atmosféricos, no ar, na água e também na terra, cujos terremotos e erupções
vulcânicas demonstram o seu dinamismo.
Por outro lado, os conhecimentos científicos atuais manifestam com clareza
que o dinamismo é uma característica básica das entidades naturais em todos os
níveis, tanto no nível microfísico (partículas subatômicas, átomos e moléculas)
como no macrofísico (entidades observáveis). Os entes microfísicos não são
entidades passivas e nem imutáveis. Os compostos físico-químicos, dos minerais
até as estrelas, passando pelos líquidos e gazes, possuem um dinamismo que, em
determinadas ocasiões, permanece oculto, pois existem estados estáveis de equi­
líbrio: mas sempre que se trate de equilíbrios dinâmicos, que podem se alterar
quando se dão as circunstâncias apropriadas. Por fim, o dinamismo é espe­
cialmente patente nos viventes.
As considerações anteriores demonstram que não existe uma matéria
puramente inerte ou passiva. Ainda que muitas entidades apareçam ante a
experiência ordinária como se fossem matéria inerte, desprovida de atividade
própria e meramente passiva, uma análise mais atenta demonstra que a matéria
inerte só é inerte em relação a certas condições e pontos de vista particulares.
Na realidade, são entidades que se encontram em estados de equilíbrio: os seus
componentes naturais têm um dinamismo que pode se manifestar em outras
circunstâncias, mas, em estado de equilíbrio, as forças são compensadas e não
produzem efeitos perceptíveis.
No âmbito filosófico, afirmar o dinamismo próprio das entidades naturais
não é nenhuma novidade. De algum modo, já se encontra na concepção
40 Filosofia da Natureza

aristotélica, foi claramente afirmado por Leibniz10, e, nos tempos mais recentes,
foi amplamente sublinhado tanto na perspectiva científica como na perspectiva
filosófica11.
As afirmações precedentes parecem ir de encontro a uma ideia geralmente
admitida acerca dos viventes, já que a vida costuma ser definida como
automovimento. Dizer que todo natural possui um dinamismo próprio não dilui
a diferença entre os viventes e os não-viventes?
Na verdade, a vida não apenas supõe um dinamismo próprio, mas também
uma organização de componentes que cooperam de modo unitário e permitem
a realização das funções próprias dos viventes. Por conseguinte, possuir dina­
mismo próprio não significa possuir vida.

b) Pautas estruturais

Se o dinamismo é uma característica fundamental das entidades naturais,


a estruturação não é menos importante12. Diante da experiência ordinária, a
natureza parece recortada por estruturas espaço-temporais e o progresso
científico pode ser sintetizado como um conhecimento cada vez mais amplo e
profundo das estruturas naturais. Para obter uma caracterização fidedigna da
natureza, é imprescindível ter em conta a estruturação.
O significado do termo estrutura é muito amplo13. Em geral, estrutura é
uma distribuição de partes mutuamente relacionadas que formam um todo
unitário.
A estruturação característica do natural possui dimensões espaciais e
temporais: as entidades naturais possuem configurações espaciais e o dinamismo
desenvolve-se na dimensão temporal. Ainda que na vida ordinária o termo “estru­
tu ra” costum e ser utilizado em sentido espacial, ao falarm os aqui de

10. Cfr. LEIBNIZ, Gottfried W. "De primae philosophiae Emendatione, et de Notione Substantiae", in
GERHARDT, C. J. Die philosophischen Schriflen von Gottfried Wilhelm Leibniz, Hildescheim: Georg Olms,
1965, vol. 4. págs. 469-470.
11. Por exemplo, Antonio Millán Puelles afirma que "nenhum ente é absolutamente inoperante... Um
ente absolutamente inoperante seria um ente que nem sequer faria algo para se manter em seu ser. Seria,
portanto, um ente mantido, em sua própria entidade, por outro ou outros. Além disso, todo o seu ser se reduziría
a «ser mantido» e a sua entidade seria, por conseguinte, uma absoluta ou pura passividade, um completo
«deixar-se fazer»". PUELLES, A. Millán. Léxicofilosófico, Madrid: Rialp, 1984, pág. 436. Por sua vez, Juan
Enrique Bolzán propôs uma reformulação da filosofia da natureza, na qual coloca o dinamismo do ser físico
em primeiro plano: BOLZÁN, J. E. Fundamentación de una ontologia de Ia naturaleza, Buenos Aires:
Sapientia, 41, 1986, págs. 121-132.
12. Jean Marie Aubert sublinha a importância da estruturação dos entes naturais como uma base sólida
para os raciocínios da filosofia da natureza. Cfr. AUBERT, J. M. Filosofia de Ia naturaleza, 6a. edição,
Barcelona: Herder, 1987, págs. 301-319.
13. Cfr. CRUZ CRUZ, Juan. Filosofia de la estruetura, 2a. edição, EUNSA, Pamplona, 1974.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 41

“estruturação” abordamos tanto as dimensões espaciais como as temporais, ou


seja, tanto as entidades como os processos.
Existe na natureza uma grande variedade de estruturas, que, em muitas
ocasiões, têm caracteres comuns que se repetem. A natureza está construída em
torno de estruturas repetitivas, características que aqui denominamos pautas ou
padrões (patterns). As pautas têm uma importância capital para se representar
adequadamente a natureza.
Diante da experiência ordinária, a natureza aparece como um conjunto
de seres que têm estruturas bem definidas. O caso mais claro é o dos viventes,
que se caracterizam precisamente por possuir uma estrutura unitária na qual as
diferentes partes desempenham funções específicas e funcionam de acordo com
ritmos temporais característicos. O âmbito dos seres não-viventes também se
encontra marcado pela estruturação espaço-temporal.
O progresso científico amplia o nosso conhecimento da estruturação
espacial e temporal da natureza, inclusive em âmbitos que se encontram muito
distantes da experiência ordinária. Os exemplos podem ser multiplicados com
facilidade e não é necessário sequer recorrer a casos concretos: qualquer
conquista científica é um exem plo desse tipo. Com efeito, na ciência
experimental buscam-se conhecimentos que podem se relacionar com o controle
experimental, mas esse controle só se torna possível quando existem aspectos
que, pelo menos a princípio, se repetem; portanto, quando existem pautas. Dessa
forma, quanto mais a ciência progride, maior é o âmbito dos fenômenos que se
relacionam com o controle experimental e mais amplo é o nosso conhecimento
das pautas espaciais e temporais. A natureza não só se encontra profundamente
marcada pela estruturação, mas também pela existência de estruturas que se
repetem, ou seja, de pautas.14
O termo estrutura é mais amplo que pauta. Na realidade, qualquer
disposição espacial e temporal do natural tem uma estrutura. Portanto, a
estruturação não equivale à existência de pautas. Falamos de pautas quando
encontramos estruturas que se repetem. A princípio, qualquer estrutura natural
é repetível: basta que se repitam as condições que provocaram a sua existência
e isto é sempre possível. Entretanto, costumamos falar de pautas só quando as
estruturas se repetem de fato.

14. "Nosso mundo está cheio de pautas (patterns). Se tivéssemos que descrever a propriedade fundamental
da matéria do universo em uma única frase, teríamos que dizer que a matéria está formada - ou criada - de tal
modo que mostra um desenvolvimento continuamente acelerado de pautas": BRESCH, Casterns. "What is
Evolution?" in ANDERSEN, S. e PEACOCKE, A. (editores) Evohition and Creation, Aarhus: Aarhus
University, 1487. pág. 36.
42 Filosofia da Natureza

Nosso mundo não é um mundo indiferenciado, mais um entre muitos


mundos possíveis. É um mundo muito específico, que se encontra marcado em
todos os seus níveis por pautas igualmente específicas. A estruturação da
natureza está profundamente marcada pela existência de pautas. Na natureza,
nem tudo são pautas, porém tudo gira em torno das pautas. Esta afirmação
possui importantes implicações científicas e filosóficas, uma vez que expressa
o caráter altamente específico e singular do nosso mundo.
As estruturas espaciais referem-se à ordem que os componentes das
entidades naturais adotam e podem denominar-se configurações. As estruturas
temporais referem-se aos processos, ou seja, ao desenvolvimento temporal do
dinamismo natural. Muitos processos naturais desenvolvem-se de acordo com
pautas características, que podem denominar-se ritmos.

c) O entrelaçamento de dinamismo e estruturação

Como vimos, pode-se demonstrar que as entidades naturais possuem um


dinamismo próprio e uma estruturação espaço-temporal. Agora, o próximo passo
é afirmar que existe um entrelaçamento do dinamismo e da estruturação.
Tanto o dinamismo como a estruturação estão presentes em toda a natureza
e condicionam-se mutuamente: não se relacionam apenas de um modo externo,
mas encontram-se entrelaçados, interpenetrados, compenetrados. Neste sentido,
podemos afirmar que o desdobramento do dinamismo produz estruturas espaciais;
a estruturação espacial é origem de novos dinamismos; e o dinamismo natural en-
contra-se como que armazenado em estruturas espaciais, que possuem potencia­
lidades ou virtualidades cujo desdobramento depende das circunstâncias externas.
Existe uma proporção entre a organização espacial e o dinamismo. As
entidades naturais desenvolvem um dinam ism o que depende de sua
configuração. Nos viventes, a estrutura dos órgãos e aparatos torna possível o
desenvolvimento das suas atividades ou funções específicas.
O natural pode ser caracterizado mediante o entrelaçamento entre
dinamismo e a estruturação. Esta proposta significa, antes de tudo, caracterizar
o natural mediante a sua atividade. Com efeito, expressa que tipo de atividade
corresponde ao natural: a atividade natural diz respeito a um dinamismo próprio,
cuja verificação depende das circunstâncias, embora não provenha somente
delas. O desenvolvimento do dinamismo encontra-se interpenetrado com uma
estruturação espaço-temporal, de tal maneira que o dinamismo e a estruturação
se condicionam mutuamente, tal como foi explicado: o dinamismo desenvolve-
se de acordo com pautas temporais e as estruturas espaciais não apenas são o
resultado do desdobramento do dinamismo, mas também são fonte de novos
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 43

dinamismos. Portanto, o natural pode caracterizar-se pelo entrelaçamento de


dinamismo e estruturação.
A caracterização do natural em função do entrelaçamento entre o
dinamismo e a estruturação permite compreender que, em sentido estrito, não é
possível distinguir realmente a matéria e as leis do seu comportamento. Esta
distinção é legítima nas ciências, que adotam uma perspectiva metodológica
particular. Em sentido próprio, as leis encontram-se como que incorporadas ou
inscritas na matéria e a sua formulação corresponde a uma abstração. Para
formular leis científicas, é preciso limitar-se a situações experimentais que
permitam controlar os fatores que intervêm; e, embora as leis que se obtêm desse
modo correspondam à realidade, elas só podem ser válidas em circunstâncias
muito específicas e não esgotam o modo de ser do natural.

3.3 Delimitação do âmbito do natural

Veremos a seguir que a caracterização do natural proposta acima permite


diferenciar o natural em relação ao artificial e ao racional.

a) O natural e o artificial

Em sentido estrito, o artificial não tem um dinamismo próprio: somente o


têm as entidades naturais que o compõem. O artificial possui uma estruturação
espaço-temporal que corresponde a um projeto exterior, planejado pelo artífice.
Porém, essa estruturação não é o resultado de um dinamismo próprio. O
dinamismo natural tem uma consistência própria que não depende da vontade
humana: quando fabricamos artefatos, utilizamos o dinamismo natural, mas não
podemos mudá-lo.
Para dar maior exatidão às relações entre o natural e o artificial, é
necessário distinguir o modo de produção e os resultados. Com efeito, pode
suceder que a intervenção humana sobre a natureza produza entidades que sejam
idênticas às entidades naturais já existentes ou que, ainda que não existam
previamente, possuem a unidade estrutural e dinâmica característica das
entidades naturais. O artificial é, então, nossa intervenção no processo de
produção. Mas sequer nesses casos podemos modificar o dinamismo original
da natureza; somos capazes apenas de direcioná-lo. Podemos dizer que existe
uma gradação no natural e no artificial: além dos casos extremamente puros,
existem graus intermédios que participam de ambos os modos de ser. Porém,
todos os processos apóiam-se, em última análise, no dinamismo e na estruturação
próprios do natural.
44 Filosofia da Natureza

b) O natural e o racional

A atividade humana corresponde a um dinamismo que, embora seja


relacionado com estruturas espaço-tem porais, as transcende. O nosso
conhecimento intelectual inclui o sentido da evidência e da verdade, a capacidade
de refletir acerca dos nossos conhecimentos, a possibilidade de formular
argumentos e examinar a sua validade. A racionalidade permite-nos propor fins
e eleger meios a nós mesmos, ou seja, o exercício da vontade, que inclui a
liberdade, a capacidade de amar e o comportamento ético.
O exercício destas capacidades encontra-se relacionado com o natural.
Somos seres naturais, não espíritos puros. Entretanto, a racionalidade corres­
ponde a um dinamismo que transcende as condições espaciais e temporais. O
dinamismo natural encontra-se condicionado pelas pautas espaço-temporais,
ainda que a atividade racional possa superar, ao menos com a inteligência e com
a vontade, qualquer tipo de pautas naturais.
A nossa relação com a natureza é singular. Estamos submetidos às leis
naturais, embora também possamos contemplá-las a partir de fora, conhecê-las
e utilizá-las. Estamos im ersos na natureza, mas, ao mesmo tempo, a
transcendemos: podemos contemplá-la, conceituá-la, objetivá-la e controlá-la.

3.4 Propriedades do natural

Costuma-se dizer que o natural é corpóreo, sensível, material, espaço-


temporal, quantitativo e necessário (em contraposição ao livre). A análise destas
propriedades deixará claro que a caracterização do natural em função do entrela­
çamento de dinamismo e estruturação recolhe de modo suficiente o que estas
características significam e evita, ao mesmo tempo, os inconvenientes que
possam surgir quando se define o natural em função delas.

a) O corpóreo

Geralmente, define-se corpóreo como aquilo que tem dimensões espaciais,


ou seja, extensão. Sem dúvida, a extensão é uma importante característica das
entidades naturais. Mas, se identificarm os o natural com o corpóreo,
desconsideramos o dinamismo, que é um aspecto fundamental do natural.
Além disso, o termo corpo pode ser empregado para designar o estado
sólido da matéria e, por este motivo, é quase inevitável que, ao identificar o
natural com o corpóreo, desconsideremos os sistemas líquidos e gasosos, tão
naturais e importantes como os sólidos. E, da mesma forma, não poderiamos
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 45

qualificar como corpóreos os campos de força que, no entanto, são naturais e


desempenham uma função importante nas ciências e na natureza.
Existe outra dificuldade mais grave: ainda que a extensão seja algo que
pertence ao natural, não designa o seu modo próprio de ser, já que os artefatos
também são corpos. Portanto, o qualificativo “corpóreo” não permite distinguir
o natural e o artificial.
A caracterização em função do dinamismo e da estruturação não apresenta
esses inconvenientes. De fato, inclui o dinamismo próprio do natural; aplica-se
tanto às entidades como às propriedades e aos processos; abarca todos os estados
da matéria; estende-se não só às entidades corpóreas, mas também a qualquer
outro tipo de entidade natural, como aos campos de força; e permite distinguir
o natural com relação ao artificial.

b) O sensível

Em outras ocasiões, caracteriza-se o natural como o sensível. Neste caso,


acentua-se um importante aspecto da nossa experiência ordinária, na qual
consideramos como mundo físico o que pode ser captado pelos nossos sentidos.
Todavia, esta caracterização é incompleta e pouco profunda.
É incompleta porque exclui muitas entidades naturais, tais como as
entidades microfísicas, que não são acessíveis à observação direta. Isto pode ser
solucionado ampliando a noção de sensível, de forma que inclua também tudo
o que se relacione casualmente com o que podemos perceber mediante os nossos
sentidos. Esta ampliação é legítima, mas exige precisões nada triviais caso se
deseje dar-lhe um sentido rigoroso; pode-se objetar, por exemplo, que a
inteligência e a vontade humanas atuam sobre as entidades físicas, embora não
sejam entidades físicas.
Além disso, a caracterização não é profunda, porque as entidades naturais
não só possuem atributos sensíveis, mas também dimensões inteligíveis. E o
sensível refere-se às nossas possibilidades de observação, que são algo exterior
aos entes naturais; portanto, não reflete as características próprias do natural.
Estes inconvenientes são evitados quando o natural é caracterizado
mediante o dinamismo e a estruturação. Efetivamente, o dinamismo não se refere
ao nosso conhecimento, mas encontra-se na realidade. Ao incluir também a
estruturação espaço-temporal, expressa-se suficientemente o caráter material do
natural, evitando-se, ao mesmo tempo, definir o natural em função de nossas
capacidades cognoscitivas.
46 Filosofia da Natureza

c) O material

Frequentemente, o natural é caracterizado como o material. No entanto,


a pluralidade de sentidos que o conceito de matéria possui representa um sério
obstáculo para que isso seja perfeitamente correto.
Às vezes, o material é identificado com o sensível e o corpóreo. Neste
caso, encontraremos as dificuldades que já mencionamos a propósito destas duas
propriedades.
Em outras ocasiões, o material designa tudo aquilo que atua como
componente, ou seja, aquilo de que algo está feito. Este é um dos sentidos mais
clássicos de matéria na filosofia e, inclusive, na vida ordinária. Contudo, esta
caracterização é muito pouco adequada para caracterizar o natural.
Além disso, o material diferencia-se do imaterial. No entanto, o imaterial
pode ser natural: por exemplo, dá-se, no conhecim ento sensível, certa
imaterialidade que pertence, não obstante, ao nível natural.
Em seu sentido mais filosófico, o material distingue-se doformal. Porém,
o formal está na natureza, e pode mesmo ser considerado como uma característica
do natural mais importante ainda que o material, já que se refere à determinação
do modo se ser das entidades naturais.
Nestas considerações, parece preferível caracterizar o natural em função
do dinamismo e da estruturação: esta caracterização permite distinguir o natural
do racional e evita os equívocos mencionados, uma vez que pode incluir, sem
nenhum inconveniente, as dimensões imateriais e formais do natural.

d) O espaço-temporal

O natural inclui a estruturação espaço-temporal e, consequentemente,


referências ao espaço e ao tempo. O espaço-temporal expressa as dimensões
básicas dos entes naturais.
Porém, trata-se somente de dimensões que, mesmo pertencendo às
entidades naturais, não bastam para caracterizar o natural: com efeito, também
o artificial possui dimensões espaço-temporais. São, pois, condições necessá­
rias, mas não suficientes para a concepção do natural.
A estruturação espaço-temporal encontra-se interpenetrada com o
dinamismo natural: é origem, resultado e condição desse dinamismo. Portanto, o
aspecto espaço-temporal é fundamental do natural, mas não suficiente para
caracterizá-lo.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 47

e) O quantitativo

O quantitativo expressa as dimensões relacionadas à quantidade


(extensão, divisibilidade, localização, etc.), e é uma característica primária do
mundo físico.
Sem dúvida, qualquer definição da natureza deveria incluir uma referência
ao quantitativo. No entanto, do mesmo modo que acontece com o espaço-temporal
(estreitamente relacionado com o quantitativo), trata-se somente de uma condi­
ção necessária, já que também se dá no artificial e não basta para expressar as
características próprias do natural: com efeito, não abrange a existência do
dinamismo próprio do natural.
Ao contrário, a estruturação espaço-temporal, uma parte da caracterização
do natural que propusemos, inclui a referência ao quantitativo, sem reduzir o
natural a este aspecto.

f) O necessário

Por fim, às vezes, qualifica-se o natural como o necessário, em


contraposição ao racional, que está no âmbito da liberdade. Assim, alude-se ao
tipo de atividade própria do natural: seria uma atividade cujo desenvolvimento
seguiría pautas necessárias.
Contudo, ainda que seja legítimo contrapor a necessidade natural à
atividade livre própria do ser racional, isto significa pouco mais que a negação
da liberdade. Quando se diz que, diferentemente do ser livre, as entidades naturais
atuam de modo necessário, pretende-se, na realidade, ressaltar simplesmente que
nelas não se dá a liberdade própria do ser racional. Além disso, se se deseja
precisar o significado de necessidade natural, é necessário abordar os problemas
do determinismo, que não são nada triviais.
Ao contrário, nem o dinamismo nem a estruturação conduzem a uma ideia
determinista do natural: deixam sem solução o problema do indeterminismo. A
caracterização do natural mediante o dinamismo e a estruturação permite dis­
tinguir o natural do racional, evitando, ao mesmo tempo, os inconvenientes que
surgem quando se afirma que o natural se comporta de um modo rigidamente
determinista.

3.5 A caracterização aristotélica do natural


A caracterização do natural em função do entrelaçamento do dinamismo
e da estruturação abrange os aspectos essenciais da caracterização aristotélica
do natural, que apresenta a natureza como princípio interior de atividade.
48 Filosofia da Natureza

Vejamos como Aristóteles apresenta a sua ideia da natureza: “Entre as


coisas que existem, algumas existem por natureza, algumas por outras coisas.
Existem por natureza os animais e as suas partes, as plantas, os corpos ele­
mentares (terra fogo, ar e água), pois dizemos que estas coisas e as semelhantes
a elas existem por natureza... a natureza é o princípio e a causa do movimento
e do repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente, por si e não por
acidente”.15 Com as últimas palavras, Aristóteles afirma que o natural distingue-
se do acidental (ou seja, o causai, que resulta da coincidência fortuita de causas).
A natureza, segundo Aristóteles, é um princípio interno de atividade que
se dá somente nas entidades naturais (que costumam denominar-se substân­
cias) 16. As entidades naturais por excelência são os viventes, cujo desenvolvi­
mento e atividade correspondem a tendências internas.
O natural, segundo Aristóteles, distingue-se do artificial, que, enquanto
tal, não possui tendências internas (somente os seus componentes naturais as
possuem); do causai, que se produz pela coincidência acidental de causas
naturais e, portanto, não tende a fins determinados; e do violento, que procede
de causas exteriores, impedindo o desenvolvimento das tendências naturais e,
então, a realização do fim natural. O natural encontra-se estreitam ente
relacionado com as tendências para fin s determinados: a filosofia natural
aristotélica é teleológica, porque está centrada na finalidade das substâncias,
cada uma das quais com tendências interiores que, afinal, encontram-se
organizadas cooperativamente no sistema da natureza.
Estas ideias de Aristóteles estão unidas a uma cosmovisão que, em parte,
foi superada pelo progresso das ciências; por este motivo, afirma-se às vezes
que perderam seu valor17. Sem dúvida, a cosmovisão aristotélica inclui teorias
acerca dos quatro elementos, dos movimentos naturais e dos corpos celestes,
que não podem ser sustentadas na atualidade. Todavia, a caracterização
aristotélica da natureza não depende dessa cosmovisão e conserva, no que é
essencial, o seu valor18.
Que relação existe entre a caracterização aristotélica da natureza e a que
propusemos aqui? Ambas ressaltam o dinamismo interno no natural relativa­

15. ARISTÓTELES. Física, II, 1, 192 b 8-23.


16. Cfr. Ibid., 192 b 33-34.
17. Por exemplo, A. Mansion, um dos principais estudiosos modernos de Aristóteles, afirmou que a
definição aristotélica é demasiado frágil porque só se fundamenta numa análise muito sucinta da experiência
diária e da linguagem ordinária, acrescentando que a debilidade dessa definição repercute em toda a filosofia
natural de Aristóteles. Cfr. MANSION, A. Introduction à Ia physique aristotélicienne, 2". ed„ Paris: Vrin,
1945, pág. 101.
18. Cfr. PREVOST1, A. La Física cFArislòtil. Una ciência filosófica de Ia nalura, Barcelona:
Promociones Publicaciones Universitárias, 1984, págs. 207-239; QUEVEDO, A. "Ens per accidens
Contingência v determinación en Aristóteles, Pamplona: EUNSA, 1989, págs. 219-261.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 49

mente ao artificial. Além disso, ao afirmar que esse dinamismo se desenvolve


de acordo com pautas, sublinhamos também a sua direcionalidade, conceito que
se encontra relacionado com a finalidade aristotélica. Por outro lado, ainda que
Aristóteles não mencione a estruturação espaço-temporal quando define a
natureza, o contexto dá a entender que as entidades e atividades que ele menciona
existem em condições espaço-temporais. As coincidências são, portanto, muito
grandes e referem-se às ideias essenciais.
51

Capítulo II
As entidades naturais

O dinamismo e a estruturação não têm uma existência própria: existem


em alguns sujeitos, as entidades naturais. Há uma enorme variedade de entidades
naturais, com diferentes graus de individualidade, unidade e organização.
Para representar as entidades naturais, dispomos de dois conceitos:
substância, proveniente de uma longa tradição filosófica, e sistema, muito
empregado em nossa época. Utilizaremos ambos os conceitos e tentaremos
mostrar que a caracterização das entidades naturais como sistemas permite
representar a grande variedade de entidades que se dão na natureza e, ao mesmo
tempo, aplicar o conceito de substância aos sistemas unitários individuais.
No primeiro item, analisaremos a noção de sistema, as suas implicações
e os tipos de sistemas naturais. Na sequência, proporemos uma noção de
substância que corresponde aos sistemas naturais unitários e individuais. Na
última parte, veremos como a substancialidade se realiza nos diferentes níveis
da natureza.

4. Os sistemas naturais

U tilizarem os a noção de “ sistem a” para representar as entidades


individuais, seus agrupamentos e sua articulação na totalidade do sistema da
Natureza. A seguir, examinaremos o seu significado e os diferentes tipos de
entidades às quais se aplica, com uma especial atenção nos sistemas naturais.

4.1 A noção de sistema

O termo sistema provém do grego: syn (com, junto a) e hístemi (pôr,


colocar). Expressa a ideia de um objeto que está colocado junto a outro ou outros,
formando uma ordem, uma sucessão, um conjunto. Relaciona-se com síntese,
que significa composição, ordenamento, ajuste, harmonia. Utiliza-se para
designar um conjunto de regras ou princípios ligados entre si (por exemplo, um
sistema de governo); uma combinação de corpos e movimentos que, sendo
diferentes, formam um todo (por exemplo, o Sistema Solar); um conjunto de
órgãos ou partes similares que colaboram numa mesma função (por exemplo, o
sistema nervoso). Em geral, toda série, ordenamento, sucessão, é um sistema
52 Filosofia da Natureza

(político, filosófico, métrico): sistema é encadeamento, ordem, correlação,


harmonia.
Se não introduzíssemos maiores precisões, a noção de “sistema” seria tão
geral que poderia se aplicar, de certo modo, a qualquer conjunto cujos
componentes estivessem relacionados. Entretanto, costuma-se utilizá-lo com
frequência, sobretudo a partir da formulação da teoria geral de sistemas19, nos
casos em que existe uma unidade mais forte.
Precisa-se distinguir o uso cientifico e o filosófico da noção de sistema.
Na ciência experimental, cada disciplina adota uma perspectiva particular e, em
função dela, define os sistemas, as suas propriedades e os seus estados: por
exemplo, os sistemas da termodinâmica e os seus estados podem ser definidos
mediante a pressão, a temperatura e o volume; portanto, esses sistemas não são
uma representação completa das entidades naturais, pois só se referem aos
aspectos considerados pela respectiva disciplina. Ao contrário, a filosofia
considera os sistemas tal como se dão na natureza, sob o ponto de vista do seu
modo de ser fundamental (mesmo que isto não implique uma pretensão de
conhecê-los exaustivamente). Nossa reflexão levará em conta, como é lógico,
os conhecimentos proporcionados pelas ciências, embora se dirija aos sistemas
naturais e procure determinar os seus modos de ser, a partir de uma perspectiva
filosófica.

4.2 Tipos de sistemas naturais

Existe uma enorme variedade de sistemas na natureza. Não pretendemos


esgotar sua classificação; isto seria uma tarefa enciclopédica que, por si mesma,
não possui nenhum interesse filosófico. O que interessa à filosofia é analisar os
tipos gerais de sistemas naturais e estudar as características peculiares dos
sistemas que possuem uma unidade mais forte, pois são estes sistemas que fazem
com que a natureza tenha uma organização muito especial.
A tipologia proposta a seguir limita-se a diferenciar dois grandes grupos
de sistemas em função da integração dos componentes em um sistema: portanto,
os graus de individualidade e de unidade. Denominaremos sistemas unitários
os sistemas individuais cujos componentes integram-se num modo de ser
unitário; e analisaremos outros sistemas que, embora possuam certa unidade,

19. Esta teoria baseia-se nos trabalhos de Ludwig VON BERTALANFFY. Pode ser conferida em suas
obras: General System Theoiy, New York: George Braziller, 1969; Perspectivas en Ia teoria general de
sistemas. Madrid: Alianza, 1986. Encontra-se uma análise dos conceitos centrais da teoria em: ROBBINS.
S. S. e OLIVA, T. A. "The Empirical Identification of Fifty-one Core General Systems Theory Vocabulary
Components", in General Systems, 28 (1983-1984), págs. 69-76.
As entidades naturais 53

não são entidades individuais: as misturas, as agregações, os sistemas de ordem


e os ecossistemas.

a) Sistemas unitários

Muitas entidades naturais são autênticos sistemas unitários, porque


existem nelas verdadeiras novidades estruturais e dinâmicas: formam-se novos
padrões estruturais em consequência das interações dos componentes e as
características do sistema não se reduzem à mera agregação ou soma aritmética
das características dos componentes. Estes sistemas são individuais, têm uma
nova estrutura unitária e um novo dinamismo próprio. São denominados sistemas
unitários porque possuem um modo de ser unitário e por sua atividade ser própria
do sistema enquanto tal.
Atualmente, de modo geral, admite-se como um fato que em muitos
sistemas surgem novidades que não se reduzem à mera justaposição dos
componentes, mas nos quais se dá uma emergência de novas características.
Existem , nos diferentes níveis da natureza, sistem as que são uma mera
justaposição de componentes, uma vez que possuem propriedades que não se
encontram nos componentes e possuem, além disso, uma estruturação e um
dinamismo próprios do sistema como tal.
Há, nos sistemas unitários diferentes graus de unidade e organização.
Alguns possuem uma especial unidade, tanto no aspecto dinâmico como no
estrutural; são sistemas individuais que possuem um alto grau de integração,
cooperação e direcionalidade. Este é o caso, sobretudo, dos viventes.
As duas características principais dos sistemas unitários são a indivi-
dualidade e a unidade. A individualidade não significa independência total em
relação às demais entidades, mas certo grau de independência: possuir estru-
turação e dinamismo próprios. A unidade refere-se à integração efetiva dos com-
ponentes no sistema e manifesta-se tanto na estruturação (holismo ou caráter
de totalidade) como no dinamismo (cooperação).

b) Outros sistemas

Além dos sistemas unitários, outros sistemas naturais possuem certa


unidade, embora não sejam entidades individuais. É o caso das misturas, das
agregações, dos sistemas de ordem e dos ecossistemas. Nestes casos, os com­
ponentes conservam sua individualidade e seus caracteres básicos e o sistema
possui um grau de individualidade, unidade e integração menor que no caso dos
sistemas unitários. A noção de sistema aplica-se a eles em sentido lato; não
54 Filosofia da Natureza

obstante, é possível aplicá-la, pois existem relações estruturais que implicam


certa unidade.
Nas misturas, os componentes mantêm a sua individualidade, sem formar
um sistema unitário. Mas é evidente que esta característica geral admite muitos
graus. O grau mais inferior consiste numa simples justaposição; neste caso, a
noção de sistema só pode ser aplicada em um sentido muito genérico, que não
ajuda muito. Todavia, em alguns casos há uma unidade maior, podendo-se falar
de sistemas em sentido lato: por exemplo, as agregações naturais da água dos
mares e rios costumam ser bastante homogêneas e, mesmo que não formem novas
pautas químicas, existem nelas estruturas e dinamismos de tipo sistêmico.
Nos sistemas de ordem , os componentes são sistemas individuais
completamente diferenciados, que se encontram ordenados mediante relações
estáveis, de modo que as interações entre eles dão lugar a situações nas quais
existem aspectos estáveis. Este é o caso, por exemplo, do Sistema Solar, no qual
as órbitas dos planetas seguem pautas regulares.
Os ecossistemas constituem o objeto da ecologia. Um ecossistema é um
sistema complexo que inclui todo um conjunto de subsistemas de diversos tipos.
Possui certa unidade porque entre os seus componentes existem relações de inter­
dependência e possui, além disso, uma dinâmica própria20.
A partir de agora, centraremos a nossa atenção nos sistemas unitários,
que, propriamente, são as entidades ou substâncias naturais.

5. As substâncias naturais

Desde a Antiguidade o conceito de substância é utilizado para designar


as entidades naturais. Trata-se de um dos conceitos centrais da filosofia e foi
objeto de numerosas interpretações em todas as épocas. Mostraremos agora que
as considerações expostas no item acerca dos sistemas naturais lançam novas
luzes sobre o conceito de substância e a sua aplicação na atualidade.

20. A noção dc ecossistema foi formulada por Arthur G. TANSLEY em seu artigo "The Use and Abuse
of Vegetational Concepts and Terms”, in Ecology, 16 (1935), págs. 284-307, no qual afirmava: "as redes
vitais, ajustadas a determinados complexos ambientais, são verdadeiras unidades, às vezes muito integradas,
que constituem os núcleos viventes de sistemas, no sentido que os físicos dào a esta palavra... Dentro de cada
sistema há intercâmbios de muitas classes, não só entre os organismos, mas também entre o mundo orgânico
e o inorgânico. Estes ecossistemas, como preferimos chamá-los, podem ser de muitas classes e tamanhos,
formando uma das categorias dos distintos tipos de sistemas físicos do Universo, que vão desde o Universo
como um todo até o átomo". Cfr. PECO, B. verbete "Ecossistema” in: AA. VV. Diccionario de Ia naturuleza,
Madrid: Espasa-Calpe, 1993, págs. 198-202.
As entidades naturais 55

5.1 A noção de substância caracteristicas da substância

Propomos, em primeiro lugar, uma caracterização de substância que


servirá como base para as ulteriores reflexões.
As substâncias podem ser caracterizadas como entidades cujo modo de
existem por si mesmas!!
ser possui três notas: subsistência, sujeitualidade e unidade.
A subsistência significa que a substância possui um ser próprio. Isto as
diferencia dos acidentes, como o tam anho ou a cor, que não existem
separadamente, mas somente como determinações de um sujeito subsistente.
A sujeitualidade significa que a substância é o sujeito ao qual se atribuem
as propriedades e a atividade. Encontra-se estreitamente relacionada com a
subsistência; com efeito, o sujeito ao qual se atribuem propriedades e atividade
é a entidade que tem subsistência ou ser próprio. subiectum: fundamento das
propriedades
A unidade própria da substância consiste na posse de uma essência ou
modo de ser unitário, que permite identificar o sujeito e permanece mesmo nas
Essência ou modo de ser
mudanças acidentais. específico
Estas notas resumem-se na caracterização clássica de substância como
aquela entidade a cuja essência compete ser em si e não em outro. Afirma-se
que a substância possui um modo de ser unitário, uma essência, à qual
corresponde subsistir com um ser próprio. Ao contrário, aos acidentes compete
ser em outro: não têm ser próprio, pois são determinações da substância.

5.2 A substancialidade na filosofia aristotélica

O conceito de substância ocupa um lugar central na filosofia de Aristóteles


e, apesar das críticas das quais foi objeto ao longo dos séculos, a caracterização
aristotélica da substância ocupa um lugar privilegiado na atualidade21. Trata-se
de um tema central da metafísica; nesta obra, abordaremos somente a sua
aplicação às entidades naturais.
Aristóteles entendeu a questão acerca da substância como o problema
central da filosofia, uma vez que equivale a determinar o que é o ente, o que há
na realidade, e o que é propriamente a realidade.
Com efeito, segundo Aristóteles, ente se diz em vários sentidos: essência,
quantidade, qualidade, etc., mas o seu primeiro significado é a essência, que

2 1. A importância das ideias aristotélicas a respeito da substância para o estudo da natureza encontra-se
afirmada em muitos estudos atuais, a partir de perspectivas que, por sua vez, diferem em importantes aspectos
da nossa. Pode-se ver, por exemplo: ESP1NOZA, M. “Critique de la Science antisubstancialiste", in Theoria,
5 ( 1990), pág.s. 67-X4 e “La catégorie naturelle ultime", in Revue de Métaphysique et de Monde, 98 (1993),
págs, 367-393.
56 Filosofia da Natureza

significa a substância. A ideia central é que, quando dizemos o que é algo, não di­
zemos que seja branco ou quente, nem que mede três metros, mas que é um homem
ou uma planta, e todo o resto chama-se ente por ser quantidades, qualidades ou
afecções da substância; o que não é substância não tem existência própria e não
pode se separar da substância, de modo que o ente, em seu sentido primário, é a
substância. Somente a substância tem existência própria; além disso, as demais
categorias supõem a substância; conhecemos algo, sobretudo, quando conhece­
mos o que é. Portanto, a substância é o objeto primeiro do estudo filosófico22.
Definitivamente, o termo “substância” remete ao modo de ser dos entes
que têm um ser próprio. Por exemplo, ser planta ou ser homem implica um modo
de ser substancial, diferentemente do que expressam os acidentes, como ser
branco ou medir cem metros. A substância não inere em outro e, portanto, não
se predica de outro (o termo “inerir” significa que algo tem o ser em outro, que
é um acidente de um sujeito substancial). A substância é o ente capaz de subsistir
separadamente, autônomo, em si e por si. É algo determinado, não universal
ou abstrato. Tem unidade intrínseca e não é um mero agregado de partes
múltiplas. É ato, atualidade, não potencialidade sem atualizar23.
Quando Aristóteles aplica a noção de substância aos entes concretos, ou
seja, quando se pergunta quais são as substâncias, responde que os entes nos quais
a substância se dá mais claramente são os animais, as plantas e suas partes, os
corpos naturais (fogo, água, terra e outros deste gênero) e suas partes e compostos
(o céu e suas partes, os astros, a Lua, o Sol)24.
Segundo Aristóteles, no âmbito material só os entes naturais são subs­
tâncias. A substância distingue-se das meras agregações, nas quais os compo­
nentes conservam a sua essência. E distingue-se também dos entes artificiais
ou artefatos, que não possuem uma unidade intrínseca, mas somente funcional.
A perspectiva aristotélica não inclui a criação; portanto, não proporciona
uma explicação última das substâncias. Segundo Aristóteles, o primeiro motor
move como causa final, mas não produz o ser. Tomás de Aquino utilizou as ideias
aristotélicas, mas integrou-as numa perspectiva metafísica diferente, centralizada
na ideia de criação. A substância material é inteligível porque encontra a sua
razão de ser na criação, na inteligência e vontade divinas. A criação corresponde
à difusão da perfeição e bondade divinas, à sua participação pelas criaturas (e
especialmente pelo homem, criatura racional capaz de conhecer e amar a Deus)
e esse plano faz com que a realidade criada seja inteligível.

22. Cfr. ARISTÓTELES. Metafísica, VII, 1, 1028 a 10 - b 7.


23. Cfr. Ibid., VII, 3, 1029 a 7 ss.
24. Cfr. Ibid.. VII, 2, 1028 b 8-13.
As entidades naturais 57

A concepção tomista a respeito da substância utiliza as ideias aristotélicas,


integrando-as, porém, numa perspectiva nova, que enriquece notavelmente a de
Aristóteles. A doutrina do Doutor Angélico gira em tomo do actus essendi, “ato
de ser” da criatura, que é recebido por participação do Ser divino. Deus não tem
o ser, Ele é o Ser, seu modo de ser - sua essência - consiste na plenitude do Ser
e, através da criação, produz o ser das criaturas. As substâncias criadas remetem,
tanto na sua entidade como na sua inteligibilidade, ao seu ser, que é próprio,
mas recebido de Deus, e seu ser realiza-se de acordo com os modos de ser
concretos expressos pela essência.

5.3 Substâncias e sistemas unitários

Caracterizamos os sistemas unitários como aqueles que possuem uma


individualidade claramente diferenciada e uma forte unidade. Mas as substâncias
possuem precisamente estas duas notas: são sujeitos individuais que possuem
unidade estrutural. Portanto, pode-se dizer que os sistem as unitários
correspondem à noção de substância. As substâncias são sistemas individuais
que possuem a unidade característica das totalidades, uma organização própria,
um modo de ser unitário; por essas razões podemos afirmar que os sistemas
unitários correspondem à noção de substância.
Há, na natureza, uma enorme diversidade de sistemas, muitos dos quais
não são unitários, mas são o resultado de um dinamismo que se desenvolve em
todos os sistemas unitários: compõem-se de sistemas unitários e são produzidos
por interações entre eles. Assim, é possível afirmar que, na natureza, nem tudo
é substância, mas tudo se articula em torno das substâncias.

5.4 Características das substâncias naturais

Neste tópico, trataremos das três características básicas das substâncias


naturais que já mencionamos (a subsistência, a sujeitualidade e a unidade),
examinando-as à luz da identificação das substâncias naturais com os sistemas
primários ou sistemas unitários.

a) A substância como entidade natural em sentido pleno

Entre as entidades naturais, os viventes ocupam uma posição privilegiada,


porque são os sistemas que mostram mais visivelmente a organização da
natureza; são sistemas individuais que possuem uma organização unitária, cujos
componentes cooperam de modo funcional. Outras entidades naturais possuem
58 Filosofia da Natureza

também uma forte unidade e podem ser qualificadas como sistemas unitários.
A identificação destes sistemas com as substâncias mostra que a noção de
substância designa o ente em sentido primário, a entidade natural que possui
um ser próprio e um modo de ser característico. A substancialidade é o modo
de ser básico e o sujeito das modificações acidentais. A substância, como ente
em sentido primário, expressa a entidade natural por antonomásia.
Por este motivo, a noção de substância é uma categoria básica para
conceber o mundo físico: expressa a entidade em sentido próprio e, portanto,
todas as coisas se referem a ela. Afirmar que a substância é a categoria central
equivale a dizer que os demais aspectos da natureza a supõem e se referem a
ela.
A existência real dos sistemas naturais unitários mostra que a substância
não é uma simples exigência do pensamento, mas que reflete modos de ser reais.
A substância natural não é uma entidade fantasmagórica incorporada aos dados
da experiência (como sustenta o empirismo), mas uma entidade real que é o modo
de ser primário ao qual remetem todos os demais modos de ser: as agregações
de substâncias e os acidentes.

b) A substância como sujeito do dinamismo natural

Os sistemas naturais unitários não são, de modo algum, sujeitos passivos;


ao contrário, o dinamismo da natureza manifesta-se de modo privilegiado nestes
sistemas, fonte de atividades específicas. O dinamismo não é um simples mo-
vimento exteriormente acrescentado aos sistemas primários, mas, por assim
dizer, é um desdobramento energético que se desenvolve de acordo com pautas.
Logo, se identificamos estes sistemas com as substâncias naturais, podemos dizer
que as substâncias são os sujeitos do dinamismo natural.
As substâncias são centros de dinamismo e de estruturação. O caminho
seguido pelas ciências assim o manifesta. De fato, a busca pelas organizações
unitárias que se encontram na origem dos processos e que são o seu resultado
natural ocupa um espaço especialm ente destacado nas ciências. Estas
organizações são os sistemas unitários. Neles manifesta-se de modo patente o
entrelaçamento entre o dinamismo e a estruturação, uma vez que possuem um
dinamismo unitário que corresponde à sua estrutura, e uma estrutura que é
resultado unitário de processos naturais.
Os sistemas unitários e, portanto, as substâncias são o resultado dos
desenvolvimentos do dinamismo natural. A sua existência depende de condições
específicas: se faltassem essas condições, o sistema não chegaria a existir ou,
se existisse, deixaria de existir. Isto equivale a afirmar que as substâncias naturais
As entidades naturais 59

não possuem uma consistência absoluta, independente das criaturas; seu ser e
sua atividade são contingentes na medida em que dependem de condições
contingentes. Por essa razão, quando falamos de substâncias naturais, não
afirmamos a existência de sujeitos imutáveis, indestrutíveis ou absolutamente
permanentes.
Definitivamente, as substâncias encontram-se imersas no dinamismo
natural, do qual são fo n te e resultado. Enquanto estiverem presentes as
condições que possibilitam a sua existência, conservarão a sua consistência e
desenvolverão o seu dinamismo através de processos que se denominam
mudanças acidentais, porque neles o caráter fundamental da substância não
muda. Pelo contrário, quando faltarem as condições necessárias para a sua
existência, ocorrerão mudanças substanciais, que consistem na transformação
da substância: o sistema perderá a sua consistência característica e surgirá outro
ou outros sistemas diferentes. A consistência própria de cada substância
relaciona-se com a sua unidade estrutural.

c) A substância como unidade estrutural

Já indicamos que uma característica básica da substancial idade é a unidade


estrutural; faltando esta unidade, não existe uma verdadeira substância, mas
somente uma simples agregação. Novamente, esta característica mostra-se
patente quando se identificam as substâncias com os sistemas naturais unitários,
aos quais denominamos unitários precisamente para sublinhar a sua unidade
estrutural.
A unidade estrutural implica certa ordem, especialmente forte quando
existe não somente uma ordem genérica, mas uma autêntica organização na qual
os componentes cooperam de modo funcional na existência e na atividade do
sistema. É o que sucede no caso dos viventes, cuja estrutura prevalece sobre os
componentes: considerados em sua materialidade concreta, os componentes
mudam continuamente, mas a estrutura fundamental permanece em meio a estas
mudanças. Além disso, a existência e a atividade de cada parte estão
condicionadas pela funcionalidade cooperativa das demais partes dentro da
organização estrutural unitária.
A substância possui, portanto, um modo de ser próprio, que se caracteriza
por uma unidade estrutural específica. Trata-se de um núcleo básico que pode
permanecer mesmo em meio às múltiplas mudanças que, então, não chegam a
modificá-lo (mudanças acidentais), mas também pode transformar-se em outro
modo de ser quando as condições requeridas deixam de ser verificadas {mudança
substancial).
60 Filosofia da Natureza

5.5. Mecanicismo, subjetivismo e processualismo


Examinaremos a seguir algumas concepções da substância que diferem
da que se expôs aqui: concretamente, as concepções do mecanicismo cartesiano,
do subjetivismo kantiano e do processualismo.
a) O mecanicismo cartesiano
O mecanicismo teve como precedentes os atomistas antigos (Leucipo,
Demócrito, Epicuro, Lucrécio Caro). No século XVII, quando nasceu a moderna
física matemática, foi defendido por cientistas e filósofos que o consideravam
como a filosofia coerente com a nova ciência. Teve grande influência durante
os séculos XVIII e XIX.
O filósofo que formulou do modo mais explícito a doutrina mecanicista
foi Descartes. As afirmações centrais do mecanicismo cartesiano são que a
substância corpórea reduz-se à extensão; que todas as propriedades das
substâncias corpóreas são redutíveis ao quantitativo, ou seja, à magnitude, forma
ou movimento; e que todo movimento reduz-se a movimento local, ou seja, ao
deslocamento das partes da matéria25.
Sob esta perspectiva, a natureza fica desprovida de dinamismo interno.
Mais exatamente, Descartes atribuía o movimento dos corpos a um impulso
original que Deus lhes havia comunicado ao criá-los, e acrescentava que, devido
à imutabilidade divina, essa quantidade de movimento permanecerá constante
ao longo do tempo26.
Por outro lado, o mecanicismo cartesiano elimina a distinção entre o
natural e o artificial: a todo corpóreo seriam aplicados os mesmos princípios;
por exemplo, os viventes seriam basicamente semelhantes a qualquer outro tipo
de máquinas. A única distinção que Descartes admite é a que se dá entre o
corpóreo-material e o espiritual. De acordo com este dualismo radical, o ser
humano estaria composto por duas substâncias completas, corpo e alma, que se
comunicariam de modo extrínseco, sem chegar a compor uma única substância.
Descartes definiu substância como “uma coisa que existe de tal modo que
não tem necessidade de nenhuma outra para existir”27. No entanto, esta definição
é confusa. De fato, o próprio Descartes percebeu em seguida que, em sentido
estrito, esta definição só pode ser aplicada a Deus, pois as criaturas necessitam
do concurso divino para existir.

25. Cfr. DESCARTES. R. Los princípios de lafilosofia, la. parte. n. 53 (in Oeuvres, editadas por ADAM,
Ch & KTANNERY, P„ Paris: Vrin, 1964. tomo IX-2. pág. 48). e 2a. parte, n. 23 (ibid., pág.75).
26. Cfr. Ibid., 2a. parte. n. 36 (in Oeuvres. tomo 1X-2, págs. 83-84).
27. "Une chose qui existe em telle façon qu'elle n'a besoin que de soi-même pour exister”: DESCARTES,
R. Los princípios de Iafilosofia, op. cit., la. parte. n. 51 (in Oeuvres, op. cit., tomo 1X-2, pág. 47).
As entidades naturais 61

Descartes afirmou que a existência do eu pensante é a certeza básica e o


fundamento de toda certeza ulterior. O eu pensa, duvida, entende, concebe,
afirma, nega, quer, imagina, sente; é uma substância pensante ou res cogitans.
A substância material, ao contrário, é uma res extensa; seu caráter essencial é a
extensão e as qualidades não são mais que afecções causadas no sujeito
cognoscente pela matéria. As substâncias têm um atributo principal, que constitui
a sua essência; no caso da alma, este atributo é o pensamento, e no caso dos
corpos, é a extensão28.
A identificação da substância corpórea com a extensão é problemática,
posto que a extensão é uma característica acidental e não permite fundamentar
a unidade que exige a substância. Descartes afirmou que a extensão corresponde
à ideia clara e distinta que temos dos corpos; entretanto, trata-se antes de uma
imagem que pode ser representada e estudada geometricamente. Em seu afã de
proporcionar uma base filosófica para a nova ciência matemática da natureza,
Descartes reduziu a substância material aos aspectos geométricos. Não obstante,
essa redução não pode ser fundamentada com rigor, além de ocasionar sérias
dificuldades. Por exemplo, apresentam-se problemas relativos ao conhecimento
da substância: como seria possível conhecer uma substância material depois de
despojá-la de todas as suas propriedades, reduzindo-a à pura extensão? Isto vai
de encontro com a experiência.
Na perspectiva cartesiana, a substância material carece de dinamismo
interno e de tendências, ficando reduzida a um substrato passivo e inerte. Esta
ideia foi a base de uma grande parte das críticas posteriores contra a
substancialidade, que refutam a existência das substâncias naturais sem perceber
que, na realidade, só estão rechaçando as ideias de René Descartes.
A imagem mecanicista não passa de um modelo explicativo parcial, com
sérias limitações inclusive no âmbito da física matemática. As ideias básicas do
mecanicismo foram superadas. De fato, na física clássica já existiam fatores -
como as forças e os campos de força - que dificilmente podiam se compaginar
com o mecanicismo. Entretanto, o êxito da nova física frequentemente foi
interpretado como uma prova favorável às ideias mecanicistas. Foram necessá­
rios vários séculos de espera para que no âmbito científico se manifestassem
claramente as insuficiências do mecanicismo. As revoluções científicas do século
XX, especialmente a física quântica e a teoria da relatividade, mostraram que
os modelos mecânicos são somente um tipo possível de modelos: representam
apenas alguns aspectos da natureza e são inaplicáveis no estudo de muitos outros
fenômenos.

28. Cfr. //>/</, n. 53 (in Oruvrcs, op. cit., tomo IX-2, págs. 48).
62 Filosofia da Natureza

A identificação do corpóreo com uma matéria inerte e passiva, reduzida


à pura extensão e exterioridade, é um resíduo do mecanicismo cartesiano, que
exerceu um papel muito importante no pensamento ocidental.

b) O subjetivismo kantiano
Segundo Kant, a substância é uma das categorias a priori, que não têm
sua origem na experiência e são condições de possibilidade da experiência. O
conhecimento é organizado de acordo com o seguinte processo: a sensibilidade
só proporciona impressões desorganizadas e, para pensar, necessitamos organizar
as impressões sensíveis; num primeiro passo, ordenamo-las no espaço e no
tempo, que são formas a priori da sensibilidade; e, num segundo passo,
formulamos conceitos que são também a priori e cumprem a função de fazer
com que a experiência seja inteligível. A substância é um destes conceitos; uma
forma pura que não corresponde a algo real, mas somente ao nosso modo de
conceber: não podemos pensar sem noção de substância, que expressa o que
perm anece através das mudanças. Esta noção nos permite organizar a
experiência de modo inteligível. Não podemos representar as mudanças sem um
sujeito, e é a este sujeito que se refere a categoria de substância.
Na perspectiva kantiana, a substancialidade é uma condição a priori do
conhecimento, que nos permite pensar a permanência dos fenômenos no tempo
e possibilita toda determinação do tempo. A substância é concebida como um
substrato passivo e inerte, sem vida própria: é uma noção que se refere à
permanência dos fenômenos no tempo.
As ideias kantianas estão condicionadas pelo valor que a física de Newton
tinha aos olhos de Kant. Ao imaginar que a física newtoniana tinha um valor
definitivo, Kant procurou fundam entá-la filosoficam ente; a substância
corresponde à matéria newtoniana. O seu quantum ou quantidade permanece;
isto corresponde à constância da massa newtoniana concebida como quantidade
de matéria. Porém, o progresso científico posterior mostrou os limites da física
newtoniana e, portanto, os limites da abordagem kantiana, que pretendia
justificar a validade definitiva desta física.
Kant percebeu corretamente o aspecto construtivo da ciência matemática
da natureza. Este aspecto é muito importante: os conceitos da física matemática
não se obtêm somente por abstração, nós os construímos. Compreende-se que,
ao utilizar o conceito de substância como fundamento da ciência, também
afirmasse que este conceito é uma construção nossa. Kant detém o mérito de
ter assinalado que, para valorizar o conhecimento da natureza, é necessário con­
siderar o nosso modo de conceber. Todavia, não conseguiu explicar o real valor
do nosso conhecimento.
As entidades naturais 63

A abordagem kantiana é condicionada pelo falso dilema entre “ser derivado


totalmente da experiência sensível” e “ser totalmente obra da inteligência”. A
sensibilidade e o entendimento, que por si mesmos estariam totalmente separados,
seriam unificados mediante certas categorias intelectuais cujo valor é difícil de
justificar. Na realidade, existe uma continuidade e interação muito maior entre o
conhecimento sensível e o intelectual, de modo que conhecemos intelectualmente
as substâncias naturais através dos seus acidentes. Sem dúvida, a substância é uma
categoria mental; mas pode ser utilizada para representar a realidade.

c) Processualismo e energetismo

Desde o século XVII, a ciência experimental destacou a importância de


conceitos tais como as forças e a energia, que se referem ao dinamismo natural.
Em nossa época, algumas doutrinas vêm ganhando importância, como o
dinamismo, o energetismo e o processualismo, que sublinham, respectivamente,
a relevância das forças, da energia e dos processos, ou seja, dos aspectos
dinâmicos da natureza.
Estas doutrinas representam uma reação saudável frente ao mecanicismo.
No entanto, em algumas ocasiões, chega-se a exageros, visto que parecem
substancializar o dinamismo, negando a consistência dos aspectos estruturais
da natureza. Por exemplo, de acordo com algumas formas de processualismo, o
estável na natureza não representaria nada além de momentos parciais dentro
de um contínuo devir, que seria a autêntica realidade natural.
Um dos representantes clássicos do processualismo foi Henri Bergson. O
pano de fundo de toda a sua obra é um dualismo que contrapõe o estático e o
dinâmico, e no qual triunfa o dinâmico. Diante do mecanicismo, Bergson subli­
nhou com acerto a importância dos aspectos dinâmicos, mas levou a sua reação
ao extremo de afirmar, de algum modo, a substancialização da mudança. Bergson
criticou, acertadamente, o fato de se atribuir a alguns aspectos da realidade uma
imobilidade absoluta. Afirmou, novamente com acerto, que o dinamismo não é
algo que se acrescenta a uma realidade imóvel. Contudo, talvez devido ao caráter
polêmico das suas reflexões, chegou a uma conclusão dificilmente aceitável: afir­
mou que “há mudanças, mas não há, sob a mudança, coisas que mudem: a mudança
não necessita de um suporte. Há movimentos, mas não há objeto inerte, invariável,
que se mova: o movimento não implica um móvel”29. Certamente, não há sob a
mudança um objeto inerte e invariável, mas há um sujeito ativo e variável.

29. BERGSON, H. Elpensamiento e Io moviente, Buenos Aires: Editorial La Pleyade, 1972, págs. 120-
121.
64 Filosofia da Natureza

Da mesma forma que Bergson, Alfred North Whitehead (1861-1947)


representou a natureza como um processo, um contínuo devir. Whitehead define
a substância como processo de atividade; a existência de um ente real está
constituída por sua atividade de devir. A duração deve ser inerente à natureza
da substância. Por essa razão, sustenta que “um ente real é um processo e não é
descritível em termos da morfologia de um material (stuff)"30. O ente real é o
ente ativo e a natureza última das coisas é a atividade. A substância é atividade.
Encontra a justificação deste ponto de vista, antes de tudo, na ciência física.
Whitehead continua a seguir as ideias de Bergson ao adotar uma
cosmovisão evolutiva na qual a natureza é criativa. A categoria do último é a
criatividade ou ação criadora; pura atividade, que carece de caráter próprio
(como a matéria aristotélica), mas não se dá sem algum caráter. Para Whitehead,
a substância é um agir que possui uma particular forma ou caráter; não pode
haver um agir sem caráter ou forma, nem vice-versa. Em Whitehead há uma
proporção entre criatividade ou atividade e caráter ou forma semelhante à que
se dá em Aristóteles entre matéria e forma.
Segundo Whitehead, a atividade é a condição última da natureza. O agir
não é separável do agente; não pode haver agente sem ações: a essência do agente
implica seu agir. Seja o que for, o agente será determinado pelo caráter de suas
ações. Sob esta perspectiva, o agente é o resultado das suas ações. O ser de um
ente real é constituído pelo seu agir. Ser e devir não são separáveis. O ser inclui
o devir, é constituído pelo devir. O modo como um ente surge do devir constitui
o que é; este é o principio do processo. A metafísica de Whitehead é uma
elaboração do implicado no princípio do processo.
Portanto, chega-se a uma filosofia do processo. A atuação do ente real
deve ser autocriadora. A natureza ontológica última de um ente real ou substância
é a atividade de autocriação. Toda atividade é autoconstituição de um agente.
A autocriação não é algo isolado ou auto-suficiente; a substância deve estar
relacionada internamente com outros entes, dos quais deriva o seu caráter: um
caráter emergente. Esta perspectiva é também uma filosofia do organismo, que
sublinha a interconexão de todos os entes reais. Dá-se um processo evolutivo
criador de novas sínteses emergentes.
A cosmovisão de Whitehead é evolutiva, organicista e emergentista. São
características às quais se concede uma grande importância na atualidade,
conforme a imagem evolucionista da natureza. Estes aspectos, sublinhados
também por Bergson, são integrados por Whitehead numa filosofia difícil, um

30. WHITEHEAD, A. N. Process and Reality. An Essay in Cosmology, New York: Ilarper & Row, 1960,
pág. 55.
As entidades naturais 65

tanto confusa e com certa tendência panteísta, que goza de um grande prestígio
na atualidade.
Nesta cosmovisão, é interessante como se destacam a unidade real de cada
entidade e do conjunto de todas as entidades, o caráter processual da realidade,
a centralidade da ação e a rejeição da imagem mecanicista-atomista. Entretanto,
encontram-se dificuldades devidas à desvalorização da consistência própria de
cada substância, à crítica unilateral da noção clássica de substância, à noção de
autocriação e à tendência panteísta. Nesta filosofia processualista, os aspectos
estruturais e estáveis da realidade são fulminados.
Em determinadas ocasiões afirma-se que o natural consistiria, em última
análise, na energia, um substrato último de tipo dinâmico, cuja concentração
produziria os corpos (partículas subatômicas, átomos, moléculas, corpos
maiores, etc.). Este energetismo encontra-se na linha do dinamismo e do
processualismo. Em seu favor cita-se a equivalência entre massa e energia,
consequência da teoria da relatividade e que se manifesta, por exemplo, na
produção de partículas subatômicas a partir da energia e no processo inverso.
Propõe-se identificar a energia com a matéria prima da tradição filosófica, co­
mo se este conceito pudesse concretizar-se agora numa realização física.
Neste caso, tudo estaria feito de energia e as partículas não seriam mais que
energia concentrada31. Às vezes acrescenta-se que, como as diferentes formas
de energia transformam-se umas em outras, a matéria tem a natureza de um
processo32.
Estas afirmações enquadram-se dentro da crítica ao mecanicismo atomista
e, neste contexto, têm certa validade. O mecanicismo atomista afirmava que a
matéria está composta de partículas indivisíveis que não estariam sujeitas a
nenhuma transformação: só poderiam deslocar-se. Na realidade, o mundo
microfísico é enormemente dinâmico.
Entretanto, isto não justifica reduzir a matéria à energia. Com efeito, a
energia e as partículas das quais a física fala não correspondem a conceitos
intuitivos nem filosóficos: são construções que, ainda que se refiram à realidade,

31. Wemer Heisenberg, um dos físicos que formularam a mecânica quântica na década de 1920, sustentou
que “todas as partículas elementares são formadas pela mesma substância, ou seja, pela energia. São as formas
que a energia deve tomar para converter-se em matéria”. HEISENBERG, W., SCHRÕDINGER, E., BORN,
M. e AUGER, P. Discussione sulla física moderna, Torino: Einaudi, 1959, pág. 17.
32. Conforme diz Karl Poppcr, “a matéria não é uma substância, já que não se conserva: pode-se destruir
e criar. Mesmo as partículas mais estáveis, os núcleons, podem se destruir por colisão com suas antipartículas,
transformando a sua energia em luz. A matéria é, então, energia muito comprimida, transformável em outras
formas de energia e, por conseguinte, possuiu a natureza dc. um processo, dado que pode ser convertida em
outros processos tais como a luz e, certamente, o movimento e o calor.”, POPPER, K. R. - ECCLES, J. C. El
yo y su ccrcbro, Barcelona: Labor, 19X0, pág. 7.
66 Filosofia da Natureza

o fazem através de mediações conceituais e experimentais cujo significado não


pode invadir diretamente o âmbito filosófico33.
O energetismo é sugestivo, sobretudo se lhe atribuímos um sentido mais
metafórico que literal. O energetismo e o processualismo destacam, com razão,
que o dinamismo encontra-se inscrito no próprio coração da natureza e que os
aspectos individuais e estruturais da natureza estão englobados no desenvol­
vimento de um dinamismo natural que dá lugar a um grande processo cósmico.
Todavia, em algumas ocasiões parecem reduzir a natureza aos seus aspectos
dinâmicos, negando a consistência dos aspectos estruturais. Na realidade,
somente a combinação do dinâmico e do estrutural é capaz de proporcionar uma
representação adequada da natureza.

6. Determinação das substâncias naturais

Até o presente momento, fizemos referência à existência de entidades que


podem ser qualificadas como “sistemas unitários” ou “substâncias”. Analisamos
as suas características principais e aludimos a alguns exemplos ilustrativos. Para
alcançar uma perspectiva mais completa, questionaremos agora sobre que entida­
des naturais podem ser qualificadas como substâncias, tendo em conta que, de
acordo com a nossa abordagem, esta pergunta pode ser traduzida por outra: que
sistemas podem ser qualificados como sistemas naturais unitários?
Esta pergunta é acompanhada de um indubitável interesse filosófico, que
se deve a três razões. Primeiramente, as noções de sistema e de substância
ficariam em um plano demasiado abstrato se a sua aplicação às entidades naturais
não fosse exemplificada. Em segundo lugar, o estudo destes exemplos propor­
ciona uma base sólida para conseguir uma representação fidedigna da natureza,
sobre a qual possa prosseguir a ulterior reflexão filosófica. E, em terceiro, na
medida em que este estudo obriga a uma aplicação concreta das noções de
sistema e de substância, essas noções serão enriquecidas.
Conforme já destacamos, as notas básicas dos sistemas naturais unitários
são a individualidade e a unidade. A unidade pode referir-se aos aspectos
estruturais (unidade estrutural) ou dinâmicos (unidade operativa, muito
relacionada com a direcionalidade). Portanto, essas características nos servirão

33. De fato, a equação de Einstein é uma relação matemática entre magnitudes físicas: a massa (não a
matérial e a energia. Indica que os valores destas magnitudes relacionam-se mediante a fórmula E = mc2, na
qual E é energia, m massa e r a velocidade da luz no vácuo. Não é, portanto, uma afirmação sobre os conceitos
de matéria e energia em sentido filosófico, mas de magnitudes que se definem de acordo com os procedimentos
da física matemática.
As entidades naturais 67

como critérios de substancialidade. Vamos considerar como se manifestam à


experiência ordinária e ao conhecimento científico.

6.1 A substancialidade ante a experiência ordinária

Os antigos aplicavam o conceito de substância, antes de tudo, aos viventes,


e as opiniões acerca da matéria inorgânica variavam em função das suas ideias,
muito precárias, acerca dos elementos e dos compostos. A consolidação no
século XVII da física matemática e do mecanicismo - que se apresentava como
seu aliado filosófico - supôs o abandono da noção de substância: a atenção passa
a centrar-se nas propriedades quantitativas da matéria, que podiam ser estudadas
através dos conceitos matemáticos, e mesmo os viventes foram considerados
como simples agregações de componentes físicos. Até a primeira parte do século
XX não existiam conhecimentos seguros acerca da estrutura microfísica da
matéria, e foi preciso esperar até meados do século para se atingir um
conhecimento detalhado das bases físico-químicas da vida. Este progresso
científico foi acompanhado, além disso, pelo reconhecimento da importância
fundamental que na natureza desempenham as dimensões holísticas e direcio­
nais dos sistemas. Definitivamente, pela primeira vez, estão presentes as
condições para se determinar com rigor o modo de ser dos sistemas naturais.
Em consideração aos conhecimentos científicos atuais, é possível
sustentar que, entre as entidades acessíveis ao nosso conhecimento ordinário,
apenas os viventes são sistemas naturais unitários; as demais entidades são
agregações ou fragmentos. Assim, explica-se a existência de tantas incertezas
quando se pretendia aplicar a noção de substância aos seres inanimados.
Contudo, existem na natureza outros sistemas unitários, mas estes não se
manifestam ante a experiência ordinária e aparecem somente como resultado
da investigação científica: são entidades microfísicas (átomos, moléculas,
macromoléculas), que possuem uma notável unidade estrutural, mas costumam
existir como partes de agregações ou de sistemas maiores.
De qualquer maneira, é certo que a experiência ordinária não basta para
determinar de modo rigoroso quais sistemas podem ser qualificados como
sistemas unitários. Por este motivo, consideraremos a seguir, à luz dos conheci­
mentos oferecidos pelas ciências, que tipos de sistemas unitários existem nos
diferentes níveis da natureza.
68 Filosofia da Natureza

6.2 A substancialidade diante das ciências

Para uma maior clareza, distinguimos três níveis da natureza: o biológico,


que abrange todos os viventes; o microfisico, que inclui as entidades inanimadas
de dimensões muito pequenas, não observáveis diretamente; e o macrofisico,
que compreende as entidades inanimadas de maior tamanho.

a) A substancialidade no nível biológico

Os viventes são os sistemas naturais que possuem o maior grau de


individualidade. Ainda que alguns existam em colônias - verdadeiros sistemas
nos quais se percebe uma repartição de funções entre os componentes - , geral­
mente possuem uma individualidade bem definida em relação às demais enti­
dades. Os viventes possuem, também, uma grande unidade, tanto estrutural como
dinâmica: no aspecto estrutural, os componentes dos viventes são membros de
um organismo estruturado de acordo com um plano unitário; e, no aspecto dinâ­
mico, esses componentes realizam funções cooperativas que se apóiam mutua­
mente e contribuem parta a atividade unitária do vivente.
Consequentemente, ainda que, em alguns casos, a individualidade seja
diminuída ou a organização seja rudimentar, cabe afirmar que os viventes são
sistemas naturais unitários e que o conceito de substância lhes é aplicado com
propriedade. Sem dúvida, trata-se do caso mais claro de substâncias naturais.
A principal dúvida que se apresenta neste nível é a possível redução dos
viventes a sistemas cibernéticos. Descartes afirmou que os viventes são máqui­
nas; reduzia-os a uma simples combinação de componentes físicos, não diferen­
ciada essencialmente da que existe numa máquina mecânica. Ainda que essas
ideias mecanicistas sejam inadequadas para explicar as características dos viven-
tes, em nossa época voltaram a se apresentar de um modo mais sofisticado: levan­
do em conta os conhecimentos atuais acerca de sistemas cibernéticos, nos quais
existem propriedades como a retroalimentação e a homeostase, e advertindo ser
desnecessário adjudicar aos viventes alguma característica que ultrapasse o
material, pareceria possível sustentar que os viventes não passam de sistemas
cibernéticos com uma organização especialmente sofisticada34.
Evidentemente, os viventes são sistemas cibernéticos e os avanços na com­
preensão destes sistemas lançam muitas luzes sobre diversos aspectos dos viven-
tes. Mas isto é plenamente compatível com a nossa caracterização do natural,

34. Esta tese é defendida extensamente, a partir de uma perspectiva que pretende estar de acordo com a
filosofia tomista, em: CHALMF.L, Patrich. Biotogie actuelle elphitosophie ihomiste. Paris: Téqui, I‘)X4.
As entidades naturais 69

das entidades naturais, dos sistemas unitários e das substâncias naturais. Não é
compatível, no entanto, com um mecanicismo de tipo cartesiano, que reduz o
vivente a uma simples agregação de partes que não chegam a formar uma nova
unidade estrutural e dinâmica, nem um novo modo de ser35.

b) A substancialidade no nível microfisico

As entidades do nível microfísico são as partículas subatômicas, os


átomos, as moléculas e as macromoléculas. Vamos considerá-las nesta ordem.
As partículas subatômicas que compõem a matéria são, segundo o
denominado “modelo padrão” que está muito bem provado atualmente, seis tipos
de leptons ou partículas ligeiras e seis tipos básicos de quarks que, por pares ou
trios, compõem as partículas mais pesadas. Estas partículas, assim como as com­
postas de quarks (como o próton e o nêutron), correspondem a quatro interações
fundamentais (nuclear forte, nuclear fraca, eletromagnética e gravitacional),
várias delas muito efêmeras (duram pequenas frações de segundo). Além disso,
é muito difícil determinar a natureza de todas elas, apesar de conhecermos bem o
seu comportamento em muitos casos; por exemplo, manifestam propriedades
tanto de ondas como de partículas, sem que seja possível atribuir-lhes um estatuto
claro (novas teorias, mais profundas que as atuais, estão sendo propostas, mas a
comprovação é ainda muito difícil nestes tipos de experimentos).
Com isso, pode-se dizer que algumas das partículas mais estáveis,
especialmente o próton, o nêutron e o elétron, cujas propriedades estão bem
determinadas (massa, carga, vida média, modos de interação), podiam ser
consideradas substâncias, ao menos quando existem de modo independente.
Essas três partículas podem existir em estado livre, mas, além disso, são os
componentes dos átomos; quando fazem parte de átomos, podem ser conside­
radas como parte de um novo sistema unitário: o átomo36.
Existem, na natureza, noventa e dois tipos básicos de átomos, com estru­
turas bem definidas: um núcleo que costuma ser muito estável, composto de
prótons e nêutrons e uma periferia onde se encontram elétrons que ocupam níveis

35. De fato, na obra mencionada na nota anterior, Chalmal chega à mesma conclusão: afirma que os
viventes são sistemas cibernéticos e critica algumas idéias "vitalistas". mas, ao mesmo tempo, rechaça o
mecanicismo cartesiano e sustenta que os viventes são substâncias: Cfr. ibid., págs. 312-313 e 318-319.
36. Encontra-se uma discussão mais detalhada deste tema em: ART1GAS, M. El problema de Ia
siihslancialidad de Ias partículas elemenlales, Roma: Pontifícia Universidade Lateranense, 1987. Uma
perspectiva também realista, mas diferente da anterior é encontrada em: HARRÉ, R. Varieties o f Realism,
Oxford: Blackwell, 1986 (que tem pontos de contato com o "experimentalismo” sustentado por Ian I lacking,
exposto, por exemplo, em 1IAUK1NG, 1. Representing andIntervening, Cambridge: Cambridge University
Press, 1983).
70 Filosofia da Natureza

de energia bem determinados pelas leis quânticas. Pode-se dizer que, quando
existem de modo independente, são verdadeiros sistemas unitários (e, portanto,
substâncias), já que possuem uma estruturação unitária característica, com seu
correspondente dinamismo unitário. Além disso, tanto a sua estruturação como
as propriedades que dependem dela são bastante estáveis.
As moléculas são compostas de átomos e também possuem uma
estruturação e um dinamismo próprios, unitários e distintos do que seria uma
mera agregação; para separar seus componentes é necessário provocar processos
que alteram as conexões que mantêm unidos os componentes destes sistemas.
Algo semelhante ocorre com as macromoléculas (como os componentes
bioquímicos dos viventes: proteínas, ácidos nucléicos, etc.), cuja estrutura e
dinamismo têm um caráter muito específico, porque possuem uma organização
muito complexa. É fácil aplicar as noções de sistema unitário e de substância
tanto às moléculas como às macromoléculas.
Em resumo, os sistemas microfísicos possuem uma estrutura e um
dinamismo unitários e, por este motivo, pode-se aplicar a eles os conceitos de
sistema unitário e de substância, ao menos quando possuem uma existência mais
ou menos independente. Esta última precisão é importante, porque, em muitos
casos, fazem parte de outros sistemas e, embora costumem conservar muitas das
suas propriedades, são componentes integrados em estruturas unitárias superiores
que são novos sistemas unitários.
c) A substancialidade no nível macrofisico
A partir do nível microfísico - excetuando-se os viventes os novos
estados da matéria geralmente são produzidos por agregação de sistemas micro-
físicos. Portanto, compreende-se que, com exceção dos viventes, a matéria que
se apresenta à nossa experiência ordinária costume consistir em estados de agre­
gação que não são propriamente sistemas unitários. Daí as dificuldades frequen­
temente encontradas quando se procura aplicar o conceito de substância às
entidades não-viventes.
Nos níveis mesofisico (entidades visíveis e não demasiadamente grandes)
e macrofisico (grandes dimensões) do mundo inorgânico, existem sistemas que
possuem diferentes graus de unidade, integração, dinamismo e funcionalidade
que, em geral, são agregações, nas quais existem diferentes substâncias em
combinações heterogêneas. Vamos mencionar alguns exemplos, que poderiam
ser multiplicados.
No âmbito geofísico, os minerais são, em muitos casos, agregados de
diferentes substâncias químicas e, às vezes, contêm alguma ou algumas
substâncias em estado mais ou menos puro; costuma ser necessário submetê-
As entidades naturais 71

los a processos particularmente laboriosos para se conseguir substâncias


químicas em estado puro: mas, mesmo neste caso, os sólidos são agrupamentos
de átomos ou moléculas unidos por forças. A Terra em seu conjunto, junto com
a atmosfera, forma um sistema que, embora seja bastante heterogêneo, é também
muito específico, de modo que permite a existência da vida; dentro dela existe
uma grande variedade de sistemas e subsistemas, entre eles os ecossistemas que
incluem combinações peculiares de entidades viventes e não-viventes37.
No âmbito astrofísico, as estrelas possuem um núcleo no qual radica a
sua estrutura e atividade (reações nucleares de fusão que condicionam as
características de cada estrela) e, devido ao seu enorme tamanho, nas zonas mais
externas encontram-se muitos componentes cuja união com o sistema é
relativamente débil. A estrutura do Sol e a sua correspondente atividade são
fatores essenciais para a existência da vida na Terra: não só porque determina a
temperatura e, com ela, muitas outras características de nosso meio, mas,
também, porque as cadeias tróficas - nas quais uns seres dependem de outros
para nutrição - se baseiam em última análise na existência de viventes capazes
de utilizar a energia solar para produzir compostos químicos.

6.3 Analogia e graus de substancialidade

O conceito de substância não é aplicável univocamente (sempre e


exatamente no mesmo sentido), mas analogicamente (ou seja, de acordo com
um sentido que é em parte igual e em parte diferente).
Com efeito, se o conceito de substância é aplicável a entidades tão
diferentes como os viventes e as entidades microfísicas, isto se deve ao fato de
existir em todas elas certo grau de individualidade e unidade. Mas também é
evidente que não se utiliza de modo estritamente unívoco em todos estes casos.
A noção de sistema unitário tem um conteúdo bem definido, mas é bas­
tante ampla e pode referir-se a sistemas muito diferentes. Ainda que estes sis­
temas tenham características comuns, diferem em aspectos que podem ser muito
importantes.
O conceito de substância predica-se segundo analogia, porque existem
diferentes graus de individualidade e de unidade. Já observamos que há nos
viventes uma organização unitária especialmente consistente e, portanto, neles
se realiza em grau máximo a substancialidade; no entanto, mesmo neste âmbito,
também existem graus diferentes de individualidade e unidade. No âmbito micro-

37. Seguindo a hipótese de Caia proposta por James Lovelock, alguns afirmam que a biosfera (o ambiente
tia água, terra e ar, onde se dá a vida à nossa volta) é um sistema único, como um grande organismo. Entretanto,
náo parece possível considerá-la como um sistema unitário individual, tal qual uma substância.
72 Filosofia da Natureza

físico, há uma forte unidade em muitas entidades que, porém, nem sempre pos­
suem uma individualidade claramente diferenciada, pois costumam existir como
componentes de sistemas maiores.
Estas pontualizações, longe de serem triviais, permitem perceber qual é
o significado filosófico da substancialidade na natureza. O conceito de subs­
tância, que gira em tomo da individualidade e da unidade, representa a existência
de sistemas holísticos que possuem um modo de ser unitário: os seus compo­
nentes, embora em parte mantenham os seus caracteres próprios, encontram-se
integrados num novo sistema que possui uma unidade nova, na qual existem
propriedades emergentes e um dinamismo cooperativo. As modalidades do
holismo são enormemente variadas, mas sempre refletem uma característica
comum: a existência de entidades que possuem uma essência ou modo de ser
unitário e que, portanto, são os sujeitos do dinamismo natural.
A negação da substancialidade conduz a uma representação atomizada
da natureza, que se dissolve num conjunto de qualidades ou processos parti­
culares. Pelo contrário, a natureza constitui um grande sistema composto por
sistemas particulares que, de um modo ou outro, articulam-se ao redor de siste­
mas unitários ou substâncias. A aplicação do conceito de substância mostra que
na natureza existem muitos sistemas unitários, mutuamente relacionados e inte­
grados em sistemas gerais, até chegar ao sistema total da natureza. Além disso,
mostra que esses sistemas unitários ou substâncias são sujeitos que possuem
modos específicos de ser. Esta representação da natureza constitui a base de uma
reflexão metafísica na qual ocupam um posto central as noções de essência e
ato de ser e que encontra seu sentido último na participação do ser.

6.4 Objeções anti-substancialistas

Entre as críticas que se dirigiram contra a substancialidade, destacam-se


duas, com uma especial importância também na atualidade: a crítica empirista
e a processualista.
a) O conhecimento das substâncias
David Hume (1711-1776) formulou, a partir de sua posição empirista, uma
crítica radical ao conceito de substância. Afirmou que a ideia de substância reduz-
se a um conjunto de qualidades particulares unidas pela imaginação; tratar-se-ia
de um simples nome que impomos a esse conjunto para conservar a sua memória38.

38. Cfr. HUME. D. Treatise of Human Nalure, Oxford, Clarendon Press, 1975, pág. 16. Uma exposição
clara e uma penetrante crítica destas idéias de Hume encontra-se em: CONNEL, R. J. "An Empirical
Consideration of Substance”, in LavaI théotagique etphitosophique, 34 ( 1978). págs. 235-246.
As entidades naturais 73

Esta crítica é corolário da teoria empirista do conhecimento, segundo a


qual somente as qualidades que se manifestam pela experiência sensível têm
um valor objetivo. No entanto, desenvolvida coerentemente, esta teoria deve
afirmar que as qualidades existem sem um sujeito e, portanto, sustentará de
algum modo que possuem certa existência própria. De fato, esta conclusão enqua­
dra-se nos escritos de Hume39. No entanto, isto equivale a substancializar as
qualidades, o que não soluciona nenhum problema, mas introduz uma dificuldade
insolúvel: não se compreende como poderiam existir qualidades sem um sujeito
substancial.
Também numa linha relacionada com o empirismo, algumas críticas à
noção de substância acusam-na de vacuidade científica; tratar-se-ia de um
conceito inútil que, de fato, não seria utilizado pelas ciências. Contudo, a biologia
supõe-no; a química utiliza-o em sentido bastante próprio, ainda que não se ocupe
dele filosoficamente; e na física matemática utilizam-se modelos ideais, mas,
quando se aplicam ao estudo de matéria concreta, empregam-se conceitos
equivalentes ao de substância.
Nas formulações científicas não é usual aparecer o conceito de substância.
Todavia, na ciência, admite-se implicitamente a existência de substâncias e
acidentes. Em certas ocasiões, como ocorre com a química, a caracterização das
substâncias corresponde com grande exatidão à noção filosófica; ao contrário, não
é possível estabelecer correspondências inequívocas na microfísica. Em qualquer
caso, é lógico que o conceito de substância não se estude filosoficamente nas for­
mulações científicas, já que as ciências adotam uma perspectiva não-filosófica;
mas encontra-se suposto pelas ciências: com efeito, o estudo da natureza funda-
menta-se na existência dos sistemas unitários ou substâncias e o progresso cien­
tífico proporciona um conhecimento cada vez mais detalhado deles.
A crítica empirista oferece-nos uma oportunidade para pontualizar que a
substância é conhecida através dos acidentes, que manifestam a substância e
seu modo de ser essencial. O que aparece diretamente à experiência são os
acidentes, mas acidentes que pertencem a um sujeito. Certamente, para conhe­
cer o modo de ser próprio do sujeito substancial requer-se um estudo das suas
propriedades, o que poderia levar ao engano de que somente conhecemos
propriedades, nunca substâncias; mas a negação da substância conduz inevita­
velmente à substancialização das propriedades acidentais, algo realmente
impossível.

39. Cfr. HUME, D. Treatise ofHnman Nature, op. c i t pág. 222.


74 Filosofia da Natureza

b) Substâncias e processos

Outras críticas centram-se na acusação de coisismo ou fixismo, como se


a afirmação das substâncias equivalesse a afirmar a existência de sujeitos que
estivessem fora do contínuo fluxo de mudanças que ocorre na natureza. Estas
críticas provêm da filosofia processualista, segundo a qual os processos são o
núcleo da natureza e nada pode encontrar-se subtraído deles.
A acusação de “fixismo” não se relaciona em nada com a ideia de
substância que aqui expomos, mas proporciona uma nova ocasião para
precisarmos qual é a consistência no ser própria das substâncias e que relações
existem entre as substâncias e os processos.
A persistência ou duração temporal não é uma nota adequada para
caracterizar filosoficamente a substância. O conceito de substância refere-se à
consistência no ser. Sem dúvida, a persistência manifesta, em muitos casos, essa
consistência: embora a estabilidade acompanhe em muitos casos a substanciali-
dade, isto não sucede necessariamente e podem existir entidades verdadeiramen­
te substanciais que tenham uma duração mais ou menos efêmera. A substância
possui uma estabilidade relativa, em função do tipo de sistema natural de que
se trata em cada caso e das circunstâncias que o rodeiam. A consistência no ser
não está em função da duração ou persistência.
Por outro lado, a substância não é inalterável. As substâncias naturais
estão sujeitas a mudanças acidentais, nas quais a substância permanece porque
o ente continua sendo essencialmente o mesmo, mas muda acidentalmente: a
substância é sujeito de mudanças e é algo cambiante, não imutável. Nas mudan­
ças acidentais, a substância muda, não substancialmente, mas acidentalmente.
Tudo isso se compreende sem dificuldade quando se relacionam as substâncias
com os sistemas naturais unitários, como estamos fazendo aqui: estes sistemas
são o resultado de processos e fonte de novos processos, não se encontram de
nenhum modo subtraídos do fluxo das mudanças.
De acordo com a caracterização do natural mediante o entrelaçamento do
dinamismo e da estruturação, devemos sublinhar que a substância não é um
substrato passivo e inerte. Ao contrário, é o sujeito primeiro do ser, centro de
articulação do dinamismo e da estruturação, e nele toda atividade tem o seu
desenvolvimento.
As substâncias físicas são, ao mesmo tempo, fonte e produto do dina­
mismo natural. Como reação aos reducionismos mecanicistas, deve-se destacar
o aspecto dinâmico da realidade, muito relacionado com os conhecimentos cientí­
ficos atuais. Mas o dinamismo natural desenvolve-se em torno das substâncias,
não se opõe a elas. A atividade dinâmica das substâncias produz outras
As entidades naturais 75

substâncias que, por sua vez, têm seu dinamismo próprio. Não tem sentido opor
ser e devir, estabilidade e dinamismo: são aspectos complementares que se
exigem mutuamente.
A partir do ponto de vista científico, as entidades naturais são sistemas
em equilíbrio. A estabilidade corresponde a equilíbrios de energia e pode se
alterar. Em cada nível de composição da matéria, encontram-se sistemas estáveis,
que correspondem a equilíbrios de energia. O desequilíbrio energético é fonte
de processos e o equilíbrio não significa a ausência de forças ou de dinamismo,
mas significa que as forças estão compensadas. Deste modo, explica-se como a
estabilidade e o dinamismo se combinam. Os equilíbrios referem-se sempre a
condições determinadas; portanto, a estabilidade dos entes físicos não é absoluta
e deixa de existir se as condições não se mantêm dentro dos limites exigidos
por cada situação de equilíbrio.
77

C apítulo III

O dinamismo natural

A natureza está marcada em todos os seus níveis pela mudança; nenhum


dos seus aspectos está subtraído ao devir, que adota uma enorme variedade de
modalidades. Contudo, estas transformações giram em torno de pautas dinâ­
micas específicas, de tal modo que o nosso mundo possui uma organização muito
singular: existem muitos processos unitários, que constam de fases coordenadas
cuja utilidade só pode ser explicada na medida em que existem potencialidades
específicas e uma informação que guia o desenvolvimento do dinamismo natural.
Na natureza, existem potencialidades específicas cuja atualização conduz
a uma hierarquia de níveis que possuem uma complexidade organizativa cres­
cente. A construção da natureza revela-se, assim, como um grande processo
global de auto-organização, no qual são produzidas autênticas novidades
emergentes; e tudo isto é possível graças ao armazenamento e desenvolvimento
de informação.
Na primeira parte deste capítulo, analisaremos os processos naturais e a
existência de pautas dinâmicas. Na segunda, após examinarmos as modalidades
do devir natural, analisaremos os processos em termos de potencialidade e atua­
lidade. Na terceira, por fim, exemplificaremos o conhecimento que possuímos
dos processos unitários na atualidade e examinaremos, à luz das ideias anteriores,
alguns aspectos do devir natural que se relacionam com a emergência de
novidades.

7. Processos Naturais

Os sistemas naturais nunca se encontram completamente isolados; além


disso, na medida em que possuem um dinamismo próprio, interagem entre si. Daí
surgem as mudanças tal como acontecem na natureza: o devir natural é o resultado
de interações, nas quais os dinamismos que intervêm se integram e produzem um
resultado comum. Definitivamente, a estrutura básica de qualquer mudança
natural consiste em interações pelas quais se chega a estados de equilíbrio.
Existe uma enorme variedade de interações. No entanto, todas se desen­
volvem de acordo com pautas, através de processos que possuem um caráter
muito específico.
78 Filosofia da Natureza

7.1 Noção de processo natural

A simples enumeração das diferentes mudanças que acontecem na natu­


reza seria uma tarefa enciclopédica. O que nos interessa é analisar as principais
modalidades dessas mudanças, destacando, especialmente, os processos uni­
tários que consistem numa sucessão coordenada de fases sucessivas, porque
aqui se manifesta, com especial clareza, o caráter específico da natureza na qual
vivemos.
Ainda que, em determinadas ocasiões, qualquer mudança seja denominada
“processo”, utilizaremos este termo para designar uma mudança que consta de
uma série de passos articulados que vão desde um estado inicial até um estado
final. Supõe-se, portanto, que os passos que constituem um processo encontrem-
se coordenados e que a sua sucessão possua certa unidade. Neste sentido, pode-
se definir o processo como o “conjunto das fases escalonadas de um fenômeno
natural ou de uma operação artificial”40; ou também como uma “série escalonada
de operações para se atingir um objetivo determinado” ou uma “transformação de
um sistema”41.
É fácil perceber porque centramos a nossa atenção nos processos. Com
efeito, se considerarmos o devir de uma maneira geral, o que aparece diante dos
nossos olhos é uma enorme variedade de mudanças cujo estudo detalhado
corresponde mais adequadamente às ciências. De fato, ainda que em muitos
tratados filosóficos seja estudado o devir em geral, pode-se comprovar que,
quando se propõem os problemas filosóficos, ainda que talvez nem sempre nos
demos conta expressamente, o que se considera são processos unitários que
possuem características específicas.
Na natureza, há uma enorme diversidade de processos. Muitos deles são
extremamente complexos e podem ser divididos em subprocessos; além disso,
desenvolvem-se continuamente, de modo que determinar onde acaba um
processo e começa outro depende, em certa medida, do ponto de vista adotado.
O que interessa à perspectiva filosófica é, sobretudo, estudar aquelas
características dos processos que permitem compreender as propriedades básicas
do nosso mundo e, principalmente, porque possui uma organização enormemente
específica que toma possível a vida humana. Consequentemente, os processos
que mais interessam à filosofia são os que têm, de modo mais evidente,
dimensões holísticas e direcionais.

40. REAL ACADEMIA ESPANOLA, Diccionario de Ia lengua espanola, 21a. ed., Madrid: Espasa-
Calpe, 1992, pág. 1185.
41. REAL ACADEMIA DE CIÊNCIAS EXACTAS, FÍSICAS E NATURAL.ES. Vocabulário cientifico
y técnico, Madrid: Espasa-Calpe, 1990, pág. 566.
O dinamismo natural 79

Existem na natureza muitos processos com um alto grau de unidade e de


direcionalidade, tanto em seu ponto de partida como em seu término e em seu
desenvolvimento: o seu começo e o seu término são situações bem determinadas
e o trânsito do estado inicial ao estado final desenvolve-se de modo característico.
Estas características apresentam-se, sobretudo, nos viventes: o seu desenvolvi­
mento desde as primeiras fases até à maturidade é um grande processo claramente
unitário e direcional e a sua atividade está cheia de relações funcionais que
manifestam também a unidade e a tendencialidade próprias dos organismos. No
entanto, o progresso científico permite conhecer também muitos processos unitá­
rios e direcionais no nível físico-químico.
É evidente que não podemos atribuir aos processos naturais o mesmo tipo
de direcionalidade que se verifica nos processos guiados pela razão humana; os
processos racionais e os artificiais estão guiados pela busca consciente de um
fim, algo que não ocorre nos processos naturais: os processos racionais consistem
no encadeamento mental de ideias e os artificiais correspondem a um projeto,
possuindo, portanto, uma direção deliberadamente imposta pelo agente. Ao
contrário, os processos naturais provêm de agentes irracionais e não se pode
atribuir a eles a finalidade característica do comportamento racional.
Contudo, os processos naturais desenvolvem-se de um modo direcional
e conduzem a resultados que possuem um alto grau de organização: ainda que
não sejam racionais em sentido estrito, manifestam certa racionalidade nos seus
resultados e no modo de alcançá-los. Estes são os aspectos que mais interessam
à reflexão filosófica.

7.2 Processos naturais e pautas dinâmicas

Acabamos de indicar que os processos naturais não se desenvolvem de


modo errático: os dinamismos atuam de acordo com pautas, a sua interação tam­
bém corresponde a pautas e o resultado dos processos articula-se em torno de
pautas. Portanto, para representar fielmente os processos naturais, é preciso
considerar as pautas específicas que guiam o seu desenvolvimento e os seus
resultados: denominá-las-emos de pautas dinâmicas, para distingui-las das pau­
tas referentes às configurações espaciais.
Para compreender essas pautas, é muito ilustrativo o conceito de informa­
ção. Com efeito, o nosso conhecimento das pautas dinâmicas é representado
mediante leis que equivalem a programas de atuação. Neste sentido, as leis con­
têm uma informação sobre o possível curso dos processos; esta informação
expressa as possibilidades do dinamismo natural quando acontecem deter­
minadas condições concretas: corresponde, então, a algo real.
80 Filosofia da Natureza

O conceito de informação costuma ser utilizado em três contextos que,


embora relacionados, são diferentes. Em primeiro lugar, tanto na vida ordinária
como nas ciências da informação, relaciona-se com a comunicação de mensagens
e, portanto, com a ação de informar alguém acerca de conteúdos que têm um
significado. Em segundo lugar, a teoria da informação estuda aspectos tecno­
lógicos da transmissão e tratamento de mensagens, utilizando conceitos matemá­
ticos relacionados com a teoria da probabilidade. Em terceiro lugar, nas ciências
experimentais utiliza-se cada vez mais um conceito de informação que equivale
aproximadamente a um programa que guia a atividade natural: este conceito co­
meçou a ser utilizado na biologia quando se descobriu a existência da informação
genética e se estendeu tanto a outros domínios da biologia como também da física
e da química. Utilizaremos aqui o conceito de informação no terceiro sentido42.
Nas interações naturais, é possível reconhecer os elementos típicos da
informação: sinais, código, armazenamento, comunicação, interpretação e inte­
gração. O nosso conhecimento destes fatores está longe de ser completo, mas
conhece-se o suficiente em alguns casos para afirmar a sua existência em outros.
A informação encontra-se armazenada nas estruturas espaciais, cuja con­
figuração equivale a um programa ou a instruções que determinam como agir
diante de cada tipo de sinais. A estrutura de cada sistema determina certas dispo­
sições internas, cuja atualização depende das interações que intervêm em cada
caso concreto.
Nas interações, as respectivas informações integram-se ou combinam-se
num resultado único; combinam-se os dinamismos e estruturações, dando lugar
a novas pautas informativas.
Neste contexto, sobretudo quando se pensa nos sinais, nos códigos, na
comunicação e na interpretação da informação, é difícil evitar o uso de conceitos
antropomórficos. No entanto, trata-se de um antropomorfismo que não oferece
maior dificuldade, contanto que não se perca de vista o seu caráter metafórico.
Por exemplo, as entidades fisico-químicas não possuem um conhecimento nem
uma linguagem semelhante aos nossos; porém, em um sentido metafórico mas
real, conhecem e comunicam-se: um elétron “sabe” que se encontra dentro de
um campo eletromagnético, “conhece” que o campo tem determinadas

42. Uma análise interessante do conceito de informação na biologia encontra-se em: SCHUSTER, P.
“Biological Information. Its Origin and Processing", iir. WASSERNABB, C. e RORGDORFF. B. (editores).
The Science and Theology o f Information, Genebra: Labor et Fides. 1992, págs. 45-57. Sobre a extensão do
conceito de informação a outros âmbitos científicos, cfr. DEL RE, G. “Complexity, Organization, Information”,
in COYNE, G. V. e SCHMITZ-MOORMANN, K. (editores). Origins, Time & Complexit, Part 1, Genebra:
Labor et Fides, 1994, págs. 83-92. Sem dúvida, existe o perigo de utilizar o conceito de informação de modo
impreciso e indiscriminado, porém, a solução não consiste em abandonar este conceito, mas em utilizá-lo
adequadamente.
O dinamismo natural 81

características e, consequentemente, os seus possíveis modos de comportamento;


mesmo assim, quando uma partícula chega a um átomo como uma determinada
energia, o átomo detecta-a, “reconhece” as suas características e reage conforme
as pautas correspondentes. Isto não tem nada a ver com um “pampsiquismo”
que atribua uma consciência a estas entidades físico-químicas; simplesmente,
reflete aspectos da realidade para cuja concepção somos forçados a utilizar uma
linguagem metafórica e equivale a reconhecer que não existe uma matéria
puramente inerte ou passiva, uma vez que toda entidade material contém uma
informação que guia as suas interações.
Qualquer pauta dinâmica corresponde ao desenvolvimento de uma
informação armazenada estruturalmente; portanto, pode ser chamada “pauta
informativa”. Contudo, podemos distinguir dois grandes tipos de pautas dinâ­
micas: as leis dinâmicas, que representam o comportamento dos diversos siste­
mas em determinadas condições, e as pautas informativas em sentido mais
estrito, que correspondem ao desenvolvimento de estados sucessivos e supõem
um elevado grau de organização.
Em qualquer ramo da ciência existem muitas leis dinâmicas, o que põe
em relevo a função básica que as pautas dinâmicas desempenham na natureza.
Ainda que correspondam à realidade, estas leis não têm uma existência “sepa­
rada”: encontram-se “incorporadas” aos sistemas naturais, de cujo comporta­
mento são abstraídas. Portanto, não devemos nos surpreender que, por mais exa­
tas que sejam, possuam um caráter meramente aproximativo.
Nos sistemas que dispõem de um elevado grau de organização, sobretudo
nos viventes, existem processos que constam de uma série complexa de passos
sucessivos, mutuamente coordenados. Neste caso, encontramo-nos diante de
pautas informativas que implicam todo um programa de atuação. As pautas infor­
mativas consistem em instruções que guiam o desenvolvimento do dinamismo
natural. O caso típico é a informação genética, que equivale a uma pauta infor­
mativa armazenada numa pauta estrutural (a estrutura espacial do DNA) e guia
o desenvolvimento de todo um conjunto de pautas dinâmicas particulares (os
processos de transcrição e tradução do DNA), as quais, ao mesmo tempo, têm
como resultado a produção de novas pautas estruturais (das proteínas) que, nova­
mente, desenvolvem outras pautas dinâmicas (os processos nos quais intervêm
as proteínas) e assim sucessivamente. Portanto, na informação genética, o dina­
mismo e a estruturação entrelaçam-se através de pautas informativas.
Na atividade guiada pela informação genética, cada passo é dado de acor­
do com leis físico-químicas particulares (leis dinâmicas), mas faz parte de pro­
cessos que se desenvolvem de acordo com um programa. Durante o desenrolar
deste programa (que se estende ao longo de toda a vida do organismo), produzem-
82 Filosofia da Natureza

se muitos processos nos quais se formam e regeneram substâncias bioquímicas,


células, tecidos, órgãos e sistemas: trata-se de um processo global que inclui
aspectos cooperativos, holísticos e direcionais.

7.3 Sinergia, organização e tendências

Com efeito, a existência de pautas informativas exige a ação conjunta de


muitos componentes: só assim é possível que uma estrutura espacial contenha a
informação armazenada e que esta informação se desenvolva numa série de pas­
sos coordenados. A existência de sinergia ou ação cooperativa não é somente uma
condição necessária para que existam pautas informativas; deve possuir, além
disso, caracteres muito específicos, de tal modo que possa acontecer o agrupa­
mento, tanto simultâneo quanto sucessivo, de uma grande quantidade de fatores.
Uma ação cooperativa deste tipo só pode ocorrer se existe um elevado
grau de organização; deve tratar-se, além disso, de uma organização estável.
Atualmente, conhecemos com detalhe muitos aspectos da organização dos
viventes e da cooperação entre os seus componentes, e esse conhecimento mostra
claramente a enorme sutileza da organização dos viventes e a cooperação entre
os seus componentes.
A sinergia e a organização põem de manifesto a existência de tendências.
Não é necessário agora abordar com detalhes o problema da finalidade; limitamo-
nos a indicar que, se a existência de pautas dinâmicas já é um indício de dire-
cionalidade, a existência de pautas operacionais que guiam o desenvolvimento
de processos unitários cujas fases encontram-se coordenadas é um indício muito
maior.

8. O devir: ato e potência

Os processos naturais podem ser explicados como uma atualização de


potencialidades. Esta explicação foi introduzida por Aristóteles para explicar
as mudanças naturais e ocupa ainda um lugar central na filosofia da natureza.

8.1 Ser e devir

A natureza possui aspectos estruturais e dinâmicos: combina o ser do que


já existe com o devir no qual se produzem as mudanças.
Na filosofia anterior a Aristóteles, propôs-se como compaginar o ser e o
devir. Aristóteles sustentou a resolução deste problema mediante os conceitos de
ser em potência e ser em ato. Ser em potência significa que existe uma capacidade
O dinamismo natural 83

ou virtualidade que, dadas as condições oportunas, pode conduzira ser em ato. Há


um paralelismo entre esta ideia e o desenvolvimento dos viventes a partir dos
zigotos e dos embriões. Com efeito, nos estágios iniciais, o zigoto ou o embrião
é muito diferente do que será ao fim de certo tempo, mas possui capacidades que
irão se atualizando, de modo que se produzirá, finalmente, um novo ser.
O paralelismo adquire especial significado na atualidade graças ao conceito
de informação. A existência de informação permite compreender que, mesmo
quando o estado inicial não se assemelha ao resultado final, o resultado pode
produzir-se porque existem informações que guiarão toda uma série de processos
que conduzirão à produção do novo ser.
A explicação aristotélica aplica-se de um modo muito claro aos processos
unitários, aos quais já nos referimos. Todavia, dado que também pode ser
aplicado a outras modalidades do devir, consideraremos agora estas modalidades
antes de continuarmos nossa análise da potencialidade e da atualidade.

8.2 Modalidades de devir

Os aspectos dinâmicos da natureza são comumente designados mediante


termos que, embora estejam relacionados entre si, possuem significados dife­
rentes: “devir”, “mudança” “movimento”, “transformação”, “mutação”, “proces­
so”. O uso destes termos varia segundo os diferentes autores e contextos.
Costuma-se falar de “devir” num sentido muito amplo para expressar que
todas as entidades encontram-se submergidas no fluxo das mudanças. Fala-se
de “mudança” para designar qualquer tipo de variação. O termo “movimento”
designa, às vezes, qualquer mudança, mas utiliza-se habitualmente num sentido
mais estrito para designar a mudança de lugar ou posição, ou seja, o movimento
local. Os termos “transformação” ou “mutação” destacam que a mudança afeta
um sujeito. Finalmente, o termo “processo” é utilizado para designar o conjunto
das fases sucessivas que conduzem desde um estado inicial até um estado final.
Obviamente, o significado mais amplo corresponde aos termos “devir” e
“mudança”. Ambos relacionam-se estreitamente com o “movimento”, porque
sempre supõem algum movimento ou mudança de posição. O termo “processo”
designa uma realidade articulada: implica uma série de passos que conduzem a
um resultado; portanto, em qualquer processo acontece uma série de mudanças
e movimentos.
Ao estudar as entidades naturais, já aludimos à distinção entre dois tipos
de mudanças: a acidental, que acontece quando uma substância conserva a sua
identidade, mas muda algum aspecto acidental; e a substancial, que supõe o
desaparecimento de uma substância e a sua transformação em outra diferente.
84 Filosofia da Natureza

Além disso, costuma-se distinguir três tipos de mudança acidental: a mudança


de lugar, também denominada movimento local ou simplesmente movimento-, a
mudança na quantidade, que pode ser de aumento ou de diminuição; e a mudança
nas qualidades, que se denomina alteração.
Entre estas mudanças existe uma ordem. A mais primária mudança é o
movimento local, pois implica somente um deslocamento e porque pode ocorrer
mesmo que não haja outras mudanças mais profundas; ao contrário, qualquer
outra mudança na natureza implica necessariamente a existência de movimento
local: é impossível que alguma coisa natural mude sem que nenhuma de suas
partes se mova. A seguir, encontra-se a mudança na quantidade, que só supõe o
movimento local, e a mudança de qualidade que supõe os dois anteriores.
Finalmente, o mais profundo movimento é a mudança substancial.
Na mudança acidental, a substância muda, mas só acidentalmente, sem que
chegue a afetar sua identidade ou modo de ser essencial; são, por exemplo, todas
as mudanças que ocorrem em um ser vivo enquanto mantém a sua identidade. Na
mudança substancial, a substância muda radicalmente, já que deixa de existir uma
e começa a existir outra; é o que acontece, por exemplo, quando morre uma planta.
A mudança substancial vem preparada por uma série de mudanças
acidentais que, quando chegam a ser suficientemente intensas, provocam a
mudança da identidade substancial.
O fato de uma mudança ser acidental não significa que seja pouco
importante; significa somente que o sujeito desta mudança não deixa de existir
segundo um modo de ser essencial. Indubitavelmente, existem mudanças
acidentais que são muito superficiais, embora outras, ao contrário, possam afetar
seriamente o sujeito substancial.
Estas ideias aristotélicas podem ser integradas facilmente na perspectiva
contemporânea. Com efeito, exigem que se levem em consideração os conceitos
de substância e acidente. Conforme vimos, a aplicação do conceito de substância
é fácil no caso dos viventes e dos sistemas microfísicos; o mesmo acontece,
portanto, quando se busca determinar a existência de mudanças substanciais.
Evidentemente, este esclarecimento é interessante quando se aplica às
mudanças nas quais é possível determinar o sujeito substancial concreto. Se dese­
jarmos centrar a atenção na organização da natureza (e, portanto, em sua racio­
nalidade), é de especial interesse considerar, como fizemos anterionnente, os pro­
cessos e a articulação das suas diferentes fases; mas uma perspectiva não exclui
a outra: de fato, os processos naturais constam, em última instância, de mudanças
substanciais e acidentais, e pode-se dizer inclusive que a explicação aristotélica
da mudança em termos de potencialidade e atualidade (que consideraremos a
seguir) corresponde principalmente ao que denominamos processos unitários.
O dinamismo natural 85

8.3 Potencialidade e atualidade

Sem dúvida, a doutrina de potência e ato é uma das principais contribui­


ções de Aristóteles e um importante aspecto do pensamento filosófico, que é
empregado mesmo por aqueles que não compartilham outros aspectos da
filosofia aristotélica.
Aristóteles utilizou esta doutrina, aplicável a muitos outros problemas,
para explicar o devir. Consideraremos agora este aspecto; em seguida, alguns
significados do ato e da potência que têm especial interesse para a filosofia da
natureza e, depois, mostraremos que a explicação dos processos como
atualização de potencialidades adquire um novo realce quando os consideramos
à luz do conceito de informação.

a) O devir como atualização de potencialidades

Como recordamos, alguns dos primeiros filósofos negaram a realidade


da mudança. Argumentaram que a mudança supõe uma novidade no ser,
acrescentando que esta novidade não pode surgir do nada e que, portanto, surge
de algo que já existia: concluíram destas premissas que não existe uma mudança
real, mas só aparente. Uma vez que esta conclusão é incompatível com os dados
da experiência, dever-se-ia afirmar que a experiência não nos proporciona um
conhecimento autêntico da realidade; portanto, existiria uma dicotomia entre a
verdadeira realidade - acessível somente ao conhecimento intelectual - e o
mundo das aparências sensíveis. Esta foi a linha seguida por Parmênides.
Os atomistas gregos (Leucipo e Demócrito) tentaram explicar a natureza
mediante a combinação dos átomos e do vazio. Afirmavam que os átomos são
entidades imutáveis e indivisíveis (este é o significado do termo grego “átomo”)
que constituem, em última análise, a trama da natureza. A única mudança real
seria o movimento local e a natureza poderia ser explicada mediante o desloca­
mento e as combinações dos átomos: as entidades naturais seriam o resultado
da combinação dos átomos e os processos se reduziriam ao deslocamento das
partes materiais.
Aristóteles procurou conciliar as exigências da razão e dos sentidos ao
afirmar a realidade da mudança tal como se apresenta na experiência e ao tentar
explicar racionalmente como isso é possível. A sua explicação do devir é baseada
nos conceitos de potência e ato. Ser em ato significa possuir uma determinação
e ser em potência significa que, embora não possua esta determinação, existe a
capacidade real de possuí-la. Sob esta perspectiva, a mudança é a atualização
de uma potencialidade. Ser em potência é algo intermediário entre o puro não
86 Filosofia da Natureza

ser e o ser em ato, posto que se tem a capacidade de ser o que ainda não é. Ser
em potência tem, além disso, certa conotação teleológica ou finalista, uma vez
que significa a posse de capacidades ou disposições relativas a específicos tipos
de atos, ou seja, a existência de certa direcionalidade: quando as condições
adequadas estão presentes, as potencialidades atualizam-se: a mudança é
justamente este processo de atualização.
Segundo a definição clássica de Aristóteles, a mudança é o ato do ente
em potência enquanto está em potência43. Isto significa que o ponto de partida
é um ente que não possui uma determinação em ato, mas tem a potencialidade
ou capacidade de chegar a possuí-la e que a mudança não acontece quando esta
potencialidade se atualiza, mas precisamente enquanto está se atualizando. Por
isto, não afirma somente que a mudança é o ato do ente que está em potência;
acrescenta, além disso, que é justamente este ato, mas enquanto o ente é em
potência, ou seja, está atualizando a sua potencialidade: quando possuir a
determinação final em ato, cessará a mudança.
A dificuldade para conceituar o movimento decorre do fato de se tratar de
algo atual, existente na realidade, mas que consiste precisamente no trânsito de
uma potencialidade a uma atualidade. É difícil fixar-se conceitualmente algo que
flui. Aristóteles afirmou que a mudança “é uma espécie de atualidade, ou atuali­
dade do tipo descrito, difícil de alcançar, mas não incapaz de existir”44. Esta
afirmação de Aristóteles responde à dificuldade recém mencionada que se
apresenta ao analisar o devir; com efeito, trata-se defixar conceitualmente uma
realidade dinâmica. Ao definirmos o devir, não devemos perder de vista que nos
referimos a um fluxo real, não redutível a uma simples soma de sucessivos estados
estáticos.
Em cada entidade existem diferentes potencialidades. Uma potencialidade
concreta não se atualiza sempre, mas só quando os fatores requeridos se encontram
presentes. A existência de uma potencialidade é uma condição necessária, embora
não suficiente, para que aconteça um determinado processo. Mas, mesmo se não
atualizado, permanece uma capacidade real. De algum modo, equivale a uma
tendência, uma vez que significa a existência de certas possibilidades específicas
que, se são atualizadas, conduzem a um resultado determinado.
A ideia de potencialidade é muito geral. Não é um substituto dos
mecanismos físicos mediante os quais se realizam os processos, nem representa
uma evasão filosófica para evitar investigações detalhadas. É uma concepção
de um modo de ser que é preciso admitir para explicar racionalmente a

43. ARISTÓTELES. Física, III, 1,201 a 10.


44. thid.. 2. 202 1. 1-3.
O dinamismo natural 87

possibilidade da mudança. Aristóteles apresentou a explicação do devir em um


nível ontológico, considerando-o como um modo de ser que se explica em função
de uma potencialidade, ou seja, o modo de ser próprio daquele que se encontra
em caminho de chegar a ser algo que não era anteriormente. Assim compreende-
se que Aristóteles afirmasse que “há tantos tipos de movimento e mudança
quantos são os significados da palavra e”45 e que “há tantas espécies de
movimento e de mudança como de ente”.46

b) As noções de potência e ato

Ainda que o estudo pormenorizado da potência e do ato seja reservado à


metafísica, é muito conveniente introduzir três precisões que ajudarão a
compreender o alcance desta doutrina e a sua aplicação à filosofia natural.
Primeiramente, se desejamos falar com precisão, mais que de “potência”
e “ato”, devemos falar de ser em potência e ser em ato. Com efeito, “potência”
e “ato” não designam coisas ou aspectos das coisas, mas modos de ser: algo está
em potência ou está em ato.
Em segundo lugar, “potência” e “ato” são conceitos relativos que fazem
referência a alguma determinação, qualidade ou perfeição: algo está em potência
ou em ato em relação a alguma determinação. Por conseguinte, quando falamos
de potência ou de ato, devemos dizê-lo em relação a algo, ou seja, a um ponto
de referência a respeito do qual algo está em potência ou em ato.
Por fim, “potência” e “ato” também são relativos entre si: algo está em
potência em relação a um ato, ou seja, tem a capacidade de chegar a ser o que este
ato significa. A potência sempre se refere a um ato. Entretanto, a relação inversa
nem sempre é correta; com efeito, ainda que sempre se dê um passo de potência a
ato nas mudanças naturais, pode existir um ato que não seja o resultado de um
processo de atualização de potencialidades: este caso não existe na natureza, mas
a reflexão metafísica mostra que a natureza remete, em última análise, a um Ser
que é Ato puro - sem mistura de potência - , que tem o ser por si mesmo. Este
caminho baseia-se na filosofia natural de Aristóteles e foi utilizado por Tomás de
Aquino em sua primeira via para se chegar à prova da existência de Deus.

c) Tipos de potência e ato


Por outro lado, costuma-se distinguir do is tipos de potência e ato, segundo
se apliquem estas noções ao ser ou ao agir.

45. //>/</., I, 201 18-9.


46. AKISTÓTia.i:s. Mctajisicíi, XI, 9, 106.4 h 13-14.
88 Filosofia da Natureza

Quando se pensa no ser, fala-se de potência passiva e de ato primeiro. A


potência passiva refere-se à possibilidade ou capacidade de chegar a ser de um
modo determinado e estar em ato primeiro significa que possui esse modo de ser.
Quando se pensa no agir, fala-se de potência ativa e de ato segundo. A
potência ativa é uma capacidade de agir de um modo determinado e o ato segundo
refere-se à operação mediante a qual efetivamente se exercita de fato esta
capacidade.
O ato prim eiro corresponde à potência passiva e o ato segundo
corresponde à potência ativa.
Obviamente, a potência ativa pertence sempre a um sujeito que já possui
um modo de ser determinado e, portanto, que tem este modo de ser em ato
primeiro. Além disso, tal como expressa o conhecido aforismo, o agir segue ao
ser. o ato segundo (o agir, a operação, a atividade) é proporcional à potência
ativa (a capacidade de atuar deste modo) e esta é proporcional ao modo de ser
(o que algo é em ato primeiro, seu modo de ser).

9. Os processos unitários na natureza

A ciência experimental adota uma perspectiva analítica que consiste em


decompor os fenômenos. Por este motivo, quando estuda os processos,
facilmente perde de vista o seu caráter unitário. Se a isto é acrescentado que o
progresso científico se realiza de modo fragmentário, ao estudarmos fenôme­
nos particulares e alcançarmos pouco a pouco teorias mais gerais que relacionam
diferentes âmbitos da natureza, compreende-se que aumenta o perigo de esquecer
mais ainda a unidade dos processos e, assim, as suas dimensões holísticas e
direcionais.
De fato, demorou muito tempo até que conseguíssemos conhecimentos
seguros acerca dos processos unitários que, de maneira geral, incluíssem leis e
teorias pertencentes a diferentes âmbitos. Apenas na época recente foi possível,
graças à soma de muitos conhecimentos particulares nas diversas disciplinas,
um conhecimento detalhado dos processos unitários da natureza.
Consideraremos abaixo alguns exemplos de processos unitários, com o
objetivo de ilustrar o lugar central que ocupam na natureza e de mostrar os novos
panoramas que se abrem à reflexão filosófica na atualidade. Estes exemplos
permitem mostrar que, na cosmovisão atual, os diferentes níveis da natureza
encontram-se relacionados e que a emergência de novos níveis é consequência
de um grande processo de auto-organização da natureza no qual a informação
desempenha um papel central.
O dinamismo natural 89

9.1 Os processos unitários diante da experiência ordinária

Diante da experiência ordinária, manifestam-se dois grandes tipos de


processos unitários: por um lado, os que se referem aos viventes, e por outro, as
mudanças periódicas na biosfera e nos astros.
Comecemos pelos viventes. Os mecanismos precisos dos processos vitais
só começaram a ser conhecidos nas últimas décadas. Apesar disso, sempre foi
evidente a existência de muitos processos: a geração, o desenvolvimento, as
diferentes funções dos organismos, a regeneração de partes lesadas, a reprodução.
Trata-se, sem dúvida, de processos unitários.
Também é fácil determinar a existência de muitos processos à nossa volta
que, embora possuam uma unidade menor que os processos vitais, também
contam com certa unidade. Nesse sentido, basta considerar a circulação do ar e
da água, incluindo os processos de vaporização e condensação, as chuvas e
tempestades, as estações, as marés. E, a respeito aos astros, os movimentos da
abóbada celeste e dos planetas sempre foram motivo de admiração e impulsio­
naram m uitos estudos detalhados que, finalm ente, desem bocaram na
consolidação da moderna ciência experimental.
Todos estes processos apareciam na Antiguidade como a manifestação
de forças um tanto misteriosas, pois desconheciam seus mecanismos concretos.
O posterior progresso científico provocou um “desencantamento” da natureza,
que era explicada, cada vez mais, mediante forças naturais. Este desencantamen-
to consistiu, em grande parte, na redução dos processos naturais à soma de
miniprocessos que podiam ser explicados por meio das leis que a ciência
descobria: assim se perdia de vista o caráter unitário dos processos. A natureza,
contemplada sob uma perspectiva analítica, parecia reduzir-se a uma gigantesca
máquina cujo funcionamento poderia ser compreendido, como um relógio,
através do comportamento e o encaixe das suas peças.
Contudo, o progresso científico mais recente pôs em relevo que os pro­
cessos naturais têm uma unidade maior do que a que se pode observar na expe­
riência ordinária. É justamente este o fato que se encontra na base do ressurgi­
mento atual da filosofia da natureza. A situação pode ser sintetizada deste modo:
se pudéssemos visualizar o que as ciências nos revelam acerca dos processos
naturais, ficaríamos muito mais espantados que os antigos diante do insólito
espetáculo que se representaria diante dos nossos olhos. Com efeito, por trás de
cada planta, de cada animal, de cada estrela, do solo onde crescem as plantas,
das águas dos rios e dos mares, do a r que nos circunda, descobriríamos um sem-
fim de miniprocessos concatenados que, em muitos casos, constituiriam um
espetáculo verdadeiramente espantoso. É lógico, portanto, que as interrogações
90 Filosofia da Natureza

metafísicas e teológicas, que pareciam ter sido eliminadas pelo progresso


científico, retomem. A seguir, ilustraremos a nova situação que nos é apontada
pelas ciências na atualidade.

9.2 Os processos unitários diante das ciências

Abordaremos abaixo vários tipos de processos unitários que realçam a


conexão entre os diferentes níveis da natureza.

a) Processos holísticos

Na verdade, qualquer processo unitário tem caracteres holísticos. Neste


momento, faremos referência aos processos especialmente relacionados com a
organização dos sistemas unitários, porque possibilitam a sua existência e o
desenvolvimento da sua atividade. Embora os exemplos sejam tão numerosos
quanto se desejar, mencionaremos apenas alguns.
Têm grande importância os processos relacionados com a homeostase,
ou seja, com a manutenção das condições internas dos viventes através dos
intercâmbios com o meio externo. A homeostase relaciona-se com a auto-
regulação do sistema em relação às condições externas e é alcançada graças a
processos de retroalimentação, nos quais o estado do sistema é controlado
mediante mecanismos reguladores. Fala-se de homeostase fisiológica para
designar a tendência de um organismo a manter as condições fisiológicas diante
das condições ambientais flutuantes, e de homeostase do desenvolvimento para
significar a tendência das pautas de desenvolvimento de um organismo a produzir
um fenótipo normal apesar da possibilidade de as circunstâncias variarem.
É interessante assinalar a relação entre a homeostase e a direcionalidade.
Com efeito, a homeostase significa a existência de tendências para determinados
estados. Os mecanismos que possibilitam a homeostase explicam o caráter
holístico e direcional dos processos implicados.
Nos processos holísticos há uma coordenação entre as sucessivas fases.
Ocorrem não apenas nos organismos, mas também em muitos dos seus
componentes que, frequentemente, se comportam como sistemas unitários. Este
é o caso das células que compõem um organismo: encontram-se coordenadas,
mas cada uma com certa autonomia e nela se produzem continuamente processos
unitários que tornam possível o seu funcionamento e as suas relações com outras
células. Dessa forma, por exemplo, em um organismo humano existem cerca
de 10 trilhões de células, distribuídas em mais de 250 tipos (nervosas, sanguíneas,
musculares, etc.). Cada célula possui núcleo e citoplasma. O núcleo contém a
O dinamismo natural 91

informação genética nos cromossomos. O citoplasma contém orgânulos que


realizam múltiplas funções, cada uma supondo diferentes processos unitários.
Uma atividade permanente é a biossíntese, processo através do qual os materiais
biológicos são construídos a partir dos componentes que chegam à célula; as
mitocôndrias atuam como centrais energéticas nas quais se produz energia
aproveitável; nos ribossomos são sintetizadas as proteínas de acordo com as
instruções provenientes do núcleo; através da membrana plasmática ocorrem
os processos de comunicação externa, mediante procedimentos de entrada e saída
enormemente específicos.
Em cada uma das atividades que acabamos de mencionar há processos
que possuem unidade própria e se encontram coordenados com muitos outros.
Para isso, a informação desempenha uma função muito importante nestes
processos. Por exemplo, a comunicação entre as células realiza-se de modos
muito específicos, através da informação armazenada, transmitida, processada
e integrada; é um dos casos nos quais se utiliza a metáfora “da chave e da
fechadura” para expressar o caráter específico e coordenado das interações47.
Existem muitos processos unitários em cada uma das células de um orga­
nismo e, além disso, encontram-se coordenados. O mesmo acontece nos tecidos,
órgãos e sistemas que possuem graus superiores de organização e, portanto, são
sedes de processos ainda mais complexos e coordenados. Por exemplo, o sistema
nervoso é o sistema integrador por excelência e a sua complexidade é paralela
à da respectiva espécie animal; o do homem é mais complexo: só no córtex
cerebral há cerca de 30 bilhões de neurônios, cada um dos quais com umas 3.000
sinapses ou uniões entre células. O cérebro humano possui uma organização
espantosa, responsável por coordenar todo o organismo (sentidos, linguagem,
motricidade...) através do processamento de informação. Estima-se que no córtex
cerebral humano existam entre 1014e 1015conexões sinápticas. O funcionamento
do cérebro somente é possível porque existe uma sofisticada coordenação entre
uma variedade enorme de processos de diferentes níveis de organização.
Definitivam ente, os conhecimentos atuais acerca dos organismos
demonstram existir uma grande variedade de processos unitários, coordenados

47. “Os biólogos aceitam que as células se reconheçam entre si graças à existência de pares de estruturas
complementares situadas na sua superfície: uma estrutura acomodada na superfície de uma célula porta
informação que a estrutura de outra pode decifrar, ideia que generaliza a hipótese da chave e da fechadura,
formulada em 1897 por Emil Fisher, para descrever a especificidade das interações entre enzimas e substratos.
Paul Ehrlich ampliou-a em 1900 para explicar a elevada especificidade das reações do sistema imunológico.
E, em 1914, Franck Rattray Lillie, da Universidade de Chicago, fez uso da mesma hipótese para destacar o
reconhecimento mútuo de óvulo e espermatozóide. Desde 1920, a hipótese da chave e da fechadura converteu-
se num dos postulados centrais da biologia molecular”. SHARON, N. e LIS, H. “Carbohidratos en el
reconocimiento celular”, Investigacióny ciência, n. 198, março de 1993, pág. 20 (grifos nossos).
92 Filosofia da Natureza

entre si, tanto no nível das células como no dos tecidos, órgãos, sistemas e de
todo o organismo. Estes processos desenvolvem-se através de mecanismos físico-
químicos; portanto, a existência e coordenação dos processos unitários estendem-
se também ao nível físico-químico. Ainda que as perspectivas abertas pelas
ciências nesta direção já sejam muito notáveis, é evidente que estamos somente
começando a explorá-las.

b) Processos funcionais

Afuncionalidade refere-se à atividade das partes emfunção do todo. Entre


as funções dos viventes encontram-se a respiração, a nutrição, o transporte, a
excreção, a coordenação nervosa, a coordenação hormonal e a defesa
imunológica. Algumas são conhecidas desde a Antiguidade, outras foram
descobertas na época moderna, mas o conhecimento detalhado dos seus
mecanismos remonta a uma época recente.
Os sistemas e aparatos dos viventes caracterizam-se pela sua função.
Estão integrados por órgãos, e estes por tecidos. As diferentes funções sublinham
a existência de múltiplos processos unitários, coordenados em outros de níveis
superiores, assim como a importância da informação no desenvolvimento das
funções.
Logicamente, os processos unitários têm especial importância nos siste­
mas que coordenam diferentes aspectos do organismo e é fácil perceber a sua
relação com a informação. Os exemplos podem se multiplicar facilmente. Sc
considerarmos o sistema nervoso, por exemplo, as explicações científicas recor­
rem frequentemente a ideias relacionadas com a informação, quando afirma que
“o sistema nervoso é uma rede de comunicação que permite ao organismo intera­
gir com o seu entorno de modo apropriado. Possui componentes sensoriais que
detectam estímulos procedentes do ambiente externo, componentes integradores
que processam os dados sensoriais e a informação armazenada na memória e
componentes motores que geram movimentos e outras atividades... A unidade
funcional do sistema nervoso é o «neurônio»... A atividade neuronal e nervosa
está codificada e a informação é passada de um neurônio a outro mediante trans­
missão sináptica”48. Se analisarmos detalhadamente as atividades que ocorrem
no sistema nervoso, encontraremos uma incrível coordenação de processos
unitários que supõem o arm azenam ento, codificação e decodificação,
transm issão e integração de informação. Algo semelhante acontece se

48. BERNH, Robert M. e LEVY, Mathhew N. Fisiología, 2a. reimpr., Buenos Aires: Editorial Médica
Panamericana, 1987, pág. 56 (grifos nossosl.
O dinamismo natural 93

analisarmos as funções do sistem a endocrinológico, que estão também


estreitamente relacionados com a coordenação49.
Estes exem plos bastam , sem entrarm os em mais detalhes, para
percebermos que existe uma grande cooperação e coordenação entre muitos
processos unitários. Em muitos casos, conhecem-se os agentes que desencadeiam
os processos e que realizam, portanto, uma função de sinalização; estes agentes
transportam a informação e comunicam-na às entidades receptoras, que atuam
de acordo com a informação recebida. Por exemplo, além de outros agentes bem
conhecidos desde algum tempo, têm uma grande importância na atualidade os
novos conhecimentos que se referem aos neurotransmissores e aos genes
reguladores. Toda a física e a química estão envolvidas nos mecanismos que,
mediante o processamento da informação, estão na base das funções dos
viventes. Pode-se observar novamente a existência de funções holísticas e
direcionais nos processos unitários funcionais.

c) Processos morfogenéticos

A morfogênese refere-se à formação dos sistemas unitários e das suas


partes. Um dos casos principais de morfogênese é a reprodução ou replicação
dos viventes e outro é o desenvolvimento dos viventes desde as suas primeiras
fases.
Neste âmbito, nosso conhecimento avançou de modo espetacular a partir
de 1953, ano em que James Watson e Francis Crick descobriram a estrutura em
dupla hélice do DNA (ácido desoxirribonucléico), a macro molécula responsável
pelo programa genético. O DNA dos cromossomos contém um program a
genético, codificado na estruturação do DNA, enormemente ampla, cuja
informação desloca-se em função das circunstâncias. Os processos que dependem
do DNA não repercutem somente nas funções do organismo, mas em sua própria
constituição, já que regulam a fabricação dos seus componentes.
O funcionamento do programa genético baseia-se no tratamento da
informação50. O programa equivale a um texto escrito somente com quatro letras
(as quatro bases nitrogenadas que se alinham ao longo das cadeias do DNA),
cuja sucessão determina o tipo de produtos resultantes da execução do programa.

49. Ihid., págs. 478-479.


50. "As principais funções tio núcleo guardam uma relação direta com o tratamento da informação; abran­
gem também a conservação e, se fosse necessário, a restauração da biblioteca genética - especialmente a trans­
crição- um processo muito seletivo e complexo pelo qual se lêem certas instruções do armazém em que se encon­
tra a informação e se envia ao citoplasma para sua expressão. ()s genes exercem a sua influência dominante sobre
a célula através destes mecanismos". DE DUVE, Christian. La célula viva, Barcelona: Labor, 1988. pág. 19.
94 Filosofia da Natureza

Cada célula contém, em seu núcleo, o jogo completo dos cromossomos próprios
da espécie e em cada cromossomo encontra-se o DNA, composto de fragmen­
tos denominados “genes”; as células humanas contêm mais de trinta mil genes,
o que supõe aproximadamente três bilhões de bases (as letras do alfabeto
genético). Escrevendo somente a letra correspondente a cada uma das bases, o
código genético ocuparia, no caso de um vírus simples, que codifica oito
proteínas, uma página; no caso de uma bactéria, com três mil genes, ocuparia
duas mil páginas. No caso do homem, com trinta mil genes, ocuparia um milhão
de páginas. É fácil perceber que se trata de uma autêntica biblioteca, com uma
grande quantidade de informações ou instruções necessárias para a execução
de múltiplas funções do programa.
A partir da informação contida no código genético, realizam-se os
processos de transcrição, tradução, regulação, duplicação e correlação de
erros. Alguns genes são reguladores: guiam a expressão de outros genes, estão
relacionados com os planos dos órgãos e da estrutura corporal. De fato, em cada
processo, só se ativa e se transcreve uma pequena fração de genes, de acordo
com as ordens recebidas do citoplasma e de mensageiros produzidos por outras
células. O núcleo e o citoplasma interagem de modo coordenado, formando um
sistema cibernético. Por fim, existe uma hierarquia - que apenas agora se
começa a conhecer - de níveis de controle e execução, coordenada em cada fase
dos processos51.
Só nos referimos a alguns aspectos gerais da morfogênese, que se estende
também, por exemplo, aos processos de regeneração. Estas considerações são
suficientes para mostrar a existência de muitos processos unitários, coordenados
numa sucessão de níveis organizacionais, cujo dinamismo é guiado pela
informação armazenada estruturalmente.

d) Processos cíclicos

Os processos cíclicos são tipos especialmente interessantes de processos


unitários: desenvolvem-se em sequências temporais periódicas. Assim,
manifestam um tipo de unidade que se encontra na base de toda atividade da
natureza: a unidade dos ritmos temporais. As pautas que se referem ao
desenvolvimento no tempo, ou seja, aos ritmos temporais, têm, ao menos, a
mesma importância que as pautas espaciais e delas depende essencialmente o
desenvolvimento do dinamismo natural.

51. Sobre este tema, cfr. DE ROBERTIS, E. M. e WRIGHT, C. V. E. “Genes com homeobox y el plan
corporal de los vertebrados”, in Investigación y ciência, n. 168, setembro de 1990, págs. 14-21; BEARDSLEY,
T. “Genes inteligentes”, in Investigacióny ciência, n. 181, outubro de 1991, págs. 76-85.
O dinamismo natural 95

Há pautas temporais por todos os lados. Por exemplo, as divisões


celulares, mediante as quais novas células são produzidas, desenvolvem-se de
acordo com pautas temporais. Nas últimas décadas, deram-se os primeiros passos
para conhecer o desenvolvimento do controle do ciclo celular em alguns
organismos simples; a alternância de fases está dirigida por reações químicas
autogeradas no citoplasma: trata-se de um “oscilador”, um “relógio” que, com
grande regularidade, provoca contrações periódicas52.
Avançou-se muito no conhecimento dos ritmos biológicos. Não são
apenas fenômenos isolados; pelo contrário, toda a atividade dos viventes está
estreitamente relacionada com a existência de ritmos. Compreende-se facilmente
por que é assim; com efeito, a organização temporal é indispensável para que
se realizem de modo sucessivo e coordenado as diferentes funções.
O estudo destas estruturas temporais (os ritmos biológicos) fez nascer
um ramo científico denominado “cronobiologia” . O funcionamento dos
organismos inclui, de um lado, mecanismos rítmicos internos e, de outro,
mecanismos que permitem ajustar os ritmos internos às condições externas.
Alguns ritmos, como o respiratório e o cardíaco, têm manifestações externas
facilmente observáveis; outros foram descobertos graças ao progresso das
ciências. Há os de frequência baixa (com períodos desde 6 dias até vários anos),
média (períodos entre 30 minutos e 6 dias) e alta (desde 0,5 milissegundos até
30 minutos). Os ritmos de frequência alta, como a respiração e o ritmo cardíaco,
são muito sensíveis à temperatura e sua geração depende das propriedades dos
neurônios e redes neuronais de caráter oscilador e repercutente53.
De fato, embora sejam escassos os conhecimentos bem estabelecidos
acerca dos mecanismos dos ritmos biológicos, sua importância está fora de
dúvidas. Mais uma vez, neste caso, encontramos processos unitários nos quais
há uma grande coordenação e que se baseiam em mecanismos físico-químicos
também com caráter de processo unitário coordenado. Estes mecanismos são
os osciladores, ou seja, sistemas que possuem um comportamento periódico,
no qual se repetem uma e outra vez os mesmos movimentos. A existência de

52. Cfr. MURRAY, A. W. e KIRSCHNER, M. W. “Control dei ciclo celular", in Investigación y ciência,
n. 176, maio de 1991, págs. 26-33. Na página 33 encontram-se as seguintes afirmações: “Tanto as leveduras
como as células somáticas de organismos pluricelulares possuem mecanismos para atrasar a entrada em mitose
até que não se replique o DNA e se repare qualquer lesão que tenha sofrido”; “Já sabemos que. em células
somáticas e em embriões avançados, a decisão de replicar o DNA na interfase é sujeita a uma finíssima
regulação, como sucede também com a decisão de iniciar a mitose [...]. [Para esta segunda decisão.] a célula
calcula se cresceu o bastante e pode proceder sem medo à replicaçâo do DNA e. portanto, à mitose. [...] O
passo pelo ponto de arranque está tão controlado como o passo pela mitose [...] acha-se também submetido
ao controle de nutrientes, hormônios, e fatores de crescimento” (grifos nossos).
53. Cfr. DELGADO, .1. M. “Ritmos biológicos", in TRESGUERRES, J. A. E. (editor) Fisiologiahumana,
Madrid: Interamcrcana-McGraw llill, 1992, págs. 1170 c I 174.
96 Filosofia da Natureza

osciladores isolados não é suficiente para explicar os fenômenos naturais; muitos


fenômenos de grande importância só podem ser compreendidos graças à
existência de osciladores acoplados, nos quais existe uma concatenação que
solidariza todos os osciladores54. Também neste caso desempenha uma função
crucial a sinergia ou ação cooperativa, uma ponte entre os fenômenos físico-
químicos e os biológicos e que manifesta o caráter holístico e direcional dos
processos unitários.
Há muitos outros processos particulares com um caráter oscilatório ou
periódico, ainda que não se encontrem organizados de um modo tão cooperativo
como os anteriormente mencionados. Na realidade, seria impossível compre­
ender o funcionamento da natureza se estes fenômenos periódicos não
existissem. Também têm grande importância os ciclos biogeoquímicos - tais
como a circulação de elementos fundamentais para a vida através dos diferentes
componentes da natureza que desempenham uma função central para
compreender, sob a perspectiva ecológica, a cooperação dos múltiplos fatores
que integram o sistema da natureza.

9.3. A gênese da natureza

A natureza é composta de níveis hierarquizados de organização crescente,


em cada um dos quais existem pautas características.
Na cosmovisão atual, a construção da natureza pode ser contemplada
como o resultado de um vasto processo de autoorganização, no qual se produzem
sucessivos níveis de organização e a informação desempenha um papel central.

a) A emergência de novidades

Como surgem os novos tipos de organização?


Um modo de compreender o problema consiste em pensar que a novidade
não é outra coisa senão o desenvolvimento de algo que de algum modo já
preexistia; como um tapete enrolado é desenrolado ou deslocado, sem que
propriamente comece a existência de algo que não existia previamente. Sem
dúvida, algumas mudanças são deste tipo, mas em outros produz-se algo
realmente novo. A potencialidade não equivale à preexistência do ato que se

54. “Podemos falar de osciladores acoplados de um a outro extremo do mundo natural, mas são
especialmente conspícuos nos seres vivos: as células marca-passo do coração, as células secretoras de insulina
do pâncreas, as redes neuronais do cérebro e da medula espinhal que controlam condutas rítmicas como a
respiração, a circulação ou a mastigação”. STROGATZ, S. H. e STEWART, I. "Osciladores acoplados y
sincronización biológica”, in Investigcición y ciência, n. 209, fevereiro de 1994. pág. 54.
O dinamismo natural 97

produzirá. A explicação aristotélica das novidades exige considerar - como o


próprio Aristóteles indicou - todas as causas e condições que intervêm nos
processos.
Para explicar a novidade, temos que levar em conta todas as interações
existentes entre as entidades que concorrem num processo. Por exemplo, nos
processos em que se forma um composto químico, produzem-se interações que
não existiam quando os componentes estavam isolados, o que explica a
possibilidade de surgirem novas propriedades. Assim, uma molécula de água
tem propriedades que não se reduzem à soma das propriedades do oxigênio e
do hidrogênio; entretanto, as novas propriedades surgem de modo natural quando
o oxigênio e o hidrogênio interagem em determinadas condições.
Além disso, a informação contida nos componentes dos processos pode
integrar-se em novas pautas unitárias. Compreende-se, portanto, que se possam
produzir autênticas novidades verdadeiramente imprevisíveis se considerarmos
somente os fatores que intervêm e esquecermos a sua capacidade de integrar-se
formando um novo resultado unitário.
Neste sentido, alguns autores insistiram, com razão, no caráter criativo
dos processos naturais. Todavia, deve-se evitar interpretar de modo demasia­
damente antropomórfico o termo “criativo”. Este termo significa que os proces­
sos naturais podem desembocar em resultados novos, diferentes de tudo o que
existia anteriormente. Porém, não há razão alguma para se afirmar que, mediante
estes processos, possa surgir qualquer resultado, como se a natureza atuasse com
liberdade. Tampouco se pode dizer que o desenvolvimento natural dos processos
se realiza de modo completamente auto-suficiente: se desejamos explicar
corretamente a “criatividade” da natureza, devemos abordar o problema da sua
fundamentação radical e, portanto, da sua relação com a ação divina.
Por conseguinte, a explicação dos processos como sendo atualização de
potencialidades, entendida à luz do desenvolvimento do dinamismo natural
dirigido por informação que se integra em novas pautas, permite afirmar que
nos processos naturais se produzem autênticas novidades. Deste modo, lança-
se nova luz sobre o importante problema da “emergência”. No entanto, subsistem
as interrogações metafísicas acerca da explicação radical destes processos e dos
seus resultados.

b) A auto-organização da natureza

A propósito da integração das pautas em sucessivos substratos, costuma-


se falar de uma auto-organização espontânea da natureza. O tema da auto-
organização suscita grande interesse, tanto no âmbito científico como no filo­
98 Filosofia da Natureza

sófico. Trata-se, na realidade, de um amplo conjunto de temas55. Só no âmbito


da física, compreende um conjunto de problemas que se referem a uma nova
fronteira da física: o problema da complexidade56.
A fascinação que exerce o tema explica-se porque, por um lado, põe em
relevo o dinamismo interno e direcional da natureza e, por outro, alimenta a
esperança de estender as explicações físicas até o âmbito humano.
A experiência de auto-organização na natureza não é nova. Mais ainda,
corresponde a experiências muito primitivas. Com efeito, o âmbito biológico é
pródigo neste tipo de fenômenos, podendo-se afirmar inclusive que o mundo
dos viventes é o mundo da auto-organização. As sementes que se convertem em
árvores, a concepção e o desenvolvimento dos animais, as diferentes funções
biológicas e, enfim, todo o mundo dos viventes, são manifestações da capacidade
que a natureza possui de se auto-organizar. Se atualmente o tema da auto-
organização alcança um interesse especial, isto não se deve à descoberta da sua
existência. Deve-se a que se esteja alcançando, pela primeira vez na história,
certa compreensão dos mecanismos básicos implicados nos fenômenos da auto-
organização, de tal maneira que é possível afirmar a sua existência no nível físico-
químico e relacionar este nível com o biológico57.
Os fenômenos de auto-organização sublinham o dinamismo interno das
entidades naturais, o seu entrelaçamento com a estruturação e a cooperação entre
os diferentes elementos e níveis. Mostram, além disso, que existe uma
informação que se armazena nas estruturas naturais e que se desenvolve e
combina com os processos.
Os conhecimentos acerca da auto-organização não eliminam os problemas
metafísicos; ao contrário, convidam a apresentá-los novamente. Por exemplo:
como as entidades físicas sabem qual a sua identidade e de que modo podem se
comportar? (é óbvio o sentido metafórico do verbo saber neste contexto); como
se formam pautas muito sofisticadas mediante a interação de forças puramente
naturais? Neste sentido, Paul Davies refere-se à “singular propensão da matéria
e da energia a auto-organizar-se em estruturas e pautas coerentes” e afirma: “É
como um milagre da natureza que enormes reuniões de partículas, submetidas

55. Essa amplitude temática foi posta em relevo no Colóquio de Cerisy ocorrido entre 10 e 17 de junho
de 1981 em torno da auto-organização. Os textos do Colóquio foram publicados com o título: L 'auto-
organisation: de Iaphysique aupolilique, Paris: Editions du Seuil, 1983.
56. Os principais temas relacionados com a auto-organização no âmbito da física estão tratados em:
DAVIES, P. (editor). The New Physics, Cambridge: Cambridge University Press, 1989, capítulos 7 a 12.
57. Pode-se ver uma síntese de fenômenos relacionados com a auto-organização em: ARTIGAS, Mariano.
La inteligibilidadde Ia naturaleza, 2a. ed.. Pamplona: EUNSA, 1995, capítulo II.
O dinamismo natural 99

somente às forças cegas da natureza, sejam capazes de se organizarem em pautas


de atividade cooperativa”58.
O progresso das ciências não proporciona uma resposta completa a estas
interrogações. Em última análise, o estudo da atividade natural sugere a
existência de uma espécie de inteligência inconsciente. Novamente, temos de
indicar que se trata de uma metáfora, visto que a expressão, se interpretada
literalmente, é contraditória. A metáfora refere-se à existência de uma
informação que dirige c controla. Trata-se de um fato patente, que ultrapassa os
limites das ciências.

c) O progresso como desenvolvimento da informação

É fácil relacionar os processos unitários com as pautas informativas, já


que ambos se exigem mutuamente.
Por um lado, não se compreende como poderia existir um processo
unitário, que suponha uma sucessão coordenada de passos, se não existisse algum
tipo de programa que guiasse o desenvolvimento do processo, o que é
precisamente uma pauta informativa.
Por outro, uma pauta informativa consiste em instruções armazenadas
estruturalmente, de cujo desenvolvimento resultam uma série de pautas
dinâmicas coordenadas; portanto, um processo unitário.
O procedimento típico das ciências experimentais consiste na adoção de
uma perspectiva analítica, na qual se dividem os processos de tal modo que os
seus componentes possam ser isolados; deste modo é possível estudar de modo
sistemático, investigando como variam os diversos fatores em condições
experimentais controladas (portanto, isolando os aspectos que interessam, de
modo que todos os demais sejam excluídos da consideração). Este procedimento
é extraordinariamente eficaz e permite conseguir muitos conhecimentos
particulares que, de outro modo, seriam inacessíveis. Mas, do ponto de vista
filosófico, existe o perigo do reducionismo, que tende a reconstruir a natureza
como uma simples soma das transformações particulares que se possam estudar
mediante a perspectiva analítica. Deste modo, perde-se de vista o mais
característico da natureza: a existência de uma organização que, no aspecto
dinâmico, se mostra por meio de processos unitários - entendidos como uma
série articulada de passos que conduzem desde um estado inicial preciso até outro
estado final igualmente concreto - de um modo direcional.

$8. Cfr. DAVIES, P. “The New Physics: A Synthesis”, in DAVIES, P. (editor) The New Physics, op.
cit., págs. 4-5.
100 Filosofia da Natureza

O progresso recente das ciências evidenciou que, embora a perspectiva


analítica conserve toda a sua importância para conhecer pautas dinâmicas
particulares (leis), podemos também estudar cientifi camente muitos processos
unitários que correspondem a pautas informativas. Este novo panorama só se
descortinou nas últimas décadas, graças aos avanços das teorias morfogenéticas.
À luz deste progresso, as reflexões filosóficas de épocas anteriores acerca do
devir adquirem um novo relevo: perceberam as insuficiências que surgiam da
perspectiva analítica e, no seu lugar, adquirem uma importância singular as
abordagens que sublinham os aspectos holísticos, sinergéticos e direcionais dos
processos naturais. Além disso, o conceito de informação permite compreender
muito melhor estes aspectos, que até agora pareciam envoltos num certo ar de
mistério.
A atualização de potencialidades é mais bem compreendida quando a
consideramos à luz do conceito de informação, entendido como um programa
ou um conjunto de instruções que estão armazenadas nas estruturas naturais e
que dão lugar a comportamentos específicos em cada situação concreta. A
explicação aristotélica conserva a sua validade e, à luz dos conhecimentos
científicos atuais, é especialmente adequada para harmonizar as perspectivas
científica e filosófica.
Com efeito, a existência de uma informação armazenada estruturalmente,
cujo desenvolvimento depende dos fatores externos que intervêm em cada caso,
permite compreender que o efeito possa preexistir de algum modo sem que exista
em miniatura e sem que os processos estejam univocamente determinados. A
existência de pautas informativas permite compreender que os resultados se
produzam mediante o desenvolvimento de um plano preexistente e, ao mesmo
tempo, que este desenvolvimento seja compatível com a produção de verdadeiras
novidades, já que implica a confluência de múltiplos fatores que dificilmente
serão sempre idênticos.
101

C apítulo IV

A ordem da natureza

A natureza é um grande sistema. Possui diferentes níveis de organização,


relacionados através de múltiplas conexões. Pode-se afirmar que a ordem é uma
característica básica da natureza, e uma das mais importantes: as ciências
pressupõem a existência dessa ordem e procuram conhecê-la detalhadamente,
e a filosofia da natureza concentra-se, em boa parte, na reflexão acerca da ordem
natural.
Entretanto, a natureza não está organizada sob qualquer ponto de vista;
não é difícil, com efeito, encontrar desordem junto com a ordem. Portanto, a
reflexão filosófica sobre a ordem natural deve ser precedida por um exame prévio
que permita determinar as suas características reais.

10. A ordem natural

A nossa reflexão sobre a ordem natural com eça com alguns


esclarecimentos sobre o conceito de ordem e sobre as principais modalidades
de ordem que existem na natureza.

10.1 O conceito de ordem

O conceito de ordem é uma das formulações clássicas que não só


sobreviveu até à época moderna, mas que ainda ocupa um lugar destacado nas
discussões científicas e filosóficas atuais59.
Ordem indica unidade na diversidade; refere-se a partes diferentes que
guardam certa proporção. Entretanto, ao falar de unidade c de disposição já se
utilizam conceitos relacionados com a ordem. Qualquer intento de definir a
ordem sem utilizar conceitos que a incluam de algum modo está destinado ao
fracasso; com efeito, algo que não possuísse nenhum tipo de ordem seria um
caos absoluto. Porém, um caos deste tipo é impensável: nem sequer podemos
representar uma realidade cujos componentes não estivessem relacionados

59. Encontra-se uma análise filosófica do conceito de ordem em: SANGUINETI, Juan José. Lafilosofia
ciei cosmo in Tommaso J Ai/nino. MiIAo: Ares, 1986, págs. 29-48.
102 Filosofia da Natureza

mediante algum tipo de ordem. Quando dizemos caos, entendemos sempre um


caos relativo, uma situação que possui um elevado grau de desordem, pois uma
desordem absoluta não pode realmente existir.
Assim, a ordem abarca toda a realidade, e, por este motivo, chegou-se a
afirmar que se trata de um conceito quase transcendental60. Em consequência,
não se pode definir ordem sem partir, de algum modo, de ideias prévias que já a
suponham. É possível, no entanto, precisar algumas das suas características mais
importantes.
Uma delas é o caráter relacionai. O conceito de ordem é relacional: diz-
se sempre em relação a algo, é relativo a algum critério que se toma como
referência. É possível atribuir diferentes graus de ordem a uma mesma situação
de acordo com o ponto de vista adotado. Neste sentido, os livros de uma biblio­
teca podem ser classificados por matérias, autores, tamanhos, cores ou por
combinação destes e de outros fatores; quando se trata de uma biblioteca pessoal,
cada um tem os seus próprios critérios e acontece com frequência que uma dis­
posição aparentemente desordenada, que não responde a critérios manifestos, é
mais útil e, para a pessoa, a mais ordenada. Portanto, a ordem é relativa: sempre
que se fala de ordem, trata-se de uma ordem em relação a algum critério
determinado.
Consequentemente, existem muitos tipos de ordem. Levando em conta
que o nosso interesse é estudar a ordem natural, analisaremos a seguir os tipos
básicos de ordem que se verifica na natureza.

10.2 Tipos de ordem na natureza

Sem dúvida, existe um elevado grau de ordem na natureza: a nossa vida


cotidiana o comprova e as ciências descobrem muitos aspectos desta ordem que
são inacessíveis à experiência ordinária.
A ordem natural dá-se em três graus sucessivos de complexidade: a
estruturação, as pautas e a organização.

a) Ordem e estruturação

A estruturação espaço-temporal é uma dimensão básica do natural. As


entidades naturais possuem configurações espaciais; os processos desenvolvem-
se numa sucessão temporal; e tanto as configurações espaciais como as suces-

60. Cfr. KUHN, H. "Orden" in KRINGS, H„ BAUMGARTNER. H. M„ W1LD. C. e outros. Conceptos


fundamentales de filosofia. Barcelona: Herder 1978, tomo II, págs. 693-694.
A ordem da natureza 103

sões temporais supõem algum tipo de componentes ou fases que se encontram


relacionadas entre si. Neste sentido, todo ente natural possui algum tipo de ordem
espacial e temporal; mesmo o que parece mais desordenado é sujeito de relações
espaciais e temporais.
A estruturação espaço-temporal é uma característica muito geral que afeta
os seres naturais e admite muitas modalidades. Duas delas, especialmente
importantes, são as pautas e a organização.

b) Ordem e pautas

Utilizamos os termos “pauta” ou “padrão” para designar as estruturas


espaciais ou temporais que, de fato, se repetem na natureza. Denominamos
“configurações” às pautas espaciais e “ritmos” às pautas temporais.
As pautas relacionam-se, portanto, com a repetição, que é um aspecto
central da ordem. Afirmamos que existe ordem sempre que algo se repete. Pode
referir-se à repetição de uma configuração espacial existente em diferentes
sistemas ou a um ritmo temporal que se encontra em diferentes processos.
As pautas relacionam-se com a regularidade. Uma configuração ou um
ritmo supõe a existência de sistemas ou processos naturais que possuem uma
determinada estruturação produzida de modo natural e que, por este motivo, se
repetem em diferentes casos individuais.
Na natureza, as pautas desempenham uma função essencial. Teoricamen­
te, podemos pensar em mundos que possuam muito menos pautas que o nosso.
Porém, a natureza que de fato conhecemos, e que torna possível a nossa exis­
tência, está marcada por pautas em todos os seus níveis e em todos os seus
fenômenos. Embora, conforme advertimos, nem tudo seja pauta na natureza, tudo
se articula em torno das pautas. As ciências buscam, precisamente, o conheci­
mento detalhado destas pautas e cada avanço científico significa a descoberta
de novas pautas na natureza.
Definitivamente, a ordem natural gira em torno das pautas espaço-
temporais: as configurações espaciais e os ritmos temporais.

c) Ordem e organização

Todavia, existe outro dado fundamental na ordem natural: a existência


não só de pautas, mas de organização.
A ordem não equivale à organização. A ideia de organização tem um
sentido ativo, que nem sempre se encontra na ideia de ordem e sugere algo mais
elaborado que uma simples ordem genérica. A organização é um caso particular
104 Filosofia da Natureza

de ordem, um tipo especialmente forte de ordem, que se dá quando existem


componentes estruturados que cooperam de modo funcional, ou seja, quando
existe unidade e cooperação entre os componentes de um sistema. É o tipo de
ordem que se dá nos sistemas cujos membros cooperam para sua manutenção e
atividade, realizando funções específicas que contribuem para estes objetivos.
O caso típico de organização natural é o dos viventes, cujos sistemas
físicos se denominam, precisamente, organismos. Há, neles, uma individualidade
típica, acompanhada de unidade, cooperação c funcionalidade. Contudo, a
organização não é exclusiva do nível biológico; também se dá no nível físico-
químico.
A distinção entre ordem e organização é a chave para o estudo da natureza.
Com efeito, o que é verdadeiramente importante acerca da natureza não é possuir
certa ordem: na verdade é impensável um universo sem nenhum tipo de ordem.
O importante é que a natureza possui um grau muito elevado de organização,
que chega até extremos surpreendentes: o conhecimento ordinário atesta-o e as
ciências ampliam de modo notável o nosso conhecimento deste fato.

10.3 Ordem e organização na natureza

Os conhecimentos atuais colocam-nos numa posição muito vantajosa em


relação aos que nos precederam. Na época antiga, a filosofia natural encontrava-
se seriamente limitada pela escassez de conhecimentos concretos acerca da
natureza, e daí advinham muitos equívocos. Até o século XVII, o progresso das
ciências era muito fragmentário, de modo que os novos conhecimentos não
permitiam formular uma representação fiável da natureza em seu conjunto.
Agora, os conhecimentos científicos acerca dos diferentes níveis da natureza e
das suas relações múltiplas permitem, pela primeira vez na história, formular
uma cosmovisão rigorosa, que abarca os aspectos básicos da organização da
natureza.
Consideraremos agora como está organizada a natureza. Para isso, dis-
tinguiremos, em primeiro lugar, os níveis que a constituem e, depois, analisare­
mos como se integram estes níveis na unidade característica da natureza.

a) A diversidade de níveis naturais

Para atingir o objetivo proposto, que consiste em obter uma representação


geral da natureza, é importante definir os níveis naturais a partir do ponto de
vista da sua organização. Distinguiremos três níveis da natureza: o nível físi co-
químico, o nível astrofísico e o nível biológico.
A ordem da natureza 105

O nível físico-químico
O nível físico-químico consta, antes de tudo, de componentes microfisicos,
cujas dimensões impedem que se possa observá-los diretamente: as partículas
subatôm icas, os átomos (compostos por partículas), as m oléculas e as
macromoléculas (compostas por partículas e átomos). A partir desses com­
ponentes, formam-se agregados, que podem se apresentar em estado sólido,
líquido ou gasoso, conforme seja a intensidade da força que una os componentes
microfísicos entre si.
Mais adiante, analisaremos os conhecimentos atuais sobre a composição
da matéria e os problemas relacionados com este tema.

O nível astrofísico
O nível astrofísico é formado por estrelas, que se agrupam em galáxias, e
de planetas. As estrelas contêm um núcleo no qual ocorrem, a uma temperatura
de milhões de graus Celsius, reações de fusão nuclear nas quais núcleos de
hidrogênio se fundem produzindo núcleos de hélio e liberando uma grande
quantidade de energia. Por essa razão, as estrelas têm luz própria e podem ser
vistas da Terra, ainda que se encontrem a distâncias imensas de nós. Ao contrário,
os planetas são simples agrupamentos de matéria em estado sólido, líquido e
gasoso; não possuem luz própria.
Calcula-se que no universo existam aproximadamente cem milhões de
galáxias e que cada uma contenha entre um milhão e um bilhão de estrelas. Estão
situadas a milhões de anos-luz umas das outras. As galáxias mais próximas da
Terra são as nebulosas de Magalhães; a Grande nebulosa está a 170.000 anos-luz
e a Pequena nebulosa está a 200.000 anos-luz de nós (um ano-luz é a distância que
percorre a luz em um ano, à velocidade de 300.000 quilômetros por segundo). A
seguinte em proximidade é a galáxia de Andrômeda, a 2,2 milhões de anos-luz.
A nossa galáxia tem cerca de 150 milhões de estrelas. O diâmetro do disco
é de uns 90.000 anos-luz e a espessura central é de uns 10.000 anos-luz. A sua
idade é 12 bilhões de anos aproximadamente.
As galáxias são compostas por estrelas, que foram originadas pela
concentração gravitacional do gás interestelar, composto principalmente por
hidrogênio e hélio. Com um simples olhar, podemos observar cerca 6.500
estrelas. A estrela mais próxima de nós encontra-se na constelação do Centauro
e está a uma distância de uns 4 anos-luz. Apenas onze estrelas estão a menos de
10 anos-luz da Terra. A maior estrela visível a olho nu é a “epsilon A urigae”,
com um diâmetro de 3 bilhões de quilômetros e a 3.400 anos-luz de distância
da Terra; ainda que seja enorme, vê-se da Terra como um pequeno ponto, devido
à grande distância que a separa dc nós.
106 Filosofia da Natureza

O Sol é uma estrela de tipo médio. Tem um raio aproximado de 696 mil
quilômetros e encontra-se a uns 150 milhões de quilômetros da Terra. Como
resultado das reações termonucleares do seu núcleo, perde a cada segundo cerca
de 5 milhões de toneladas de matéria, convertidas em energia. Está em plena
atividade há pelo menos uns 5 bilhões de anos e ainda lhe resta combustível para
cerca de 20 bilhões de anos.
As estrelas contêm quase toda a matéria conhecida. São enormes
agregados de matéria que atuam segundo princípios físico-químicos bastante
simples: fenômenos que se desenvolvem em tomo ao núcleo estelar, que funciona
como um gigantesco forno de fusão termonuclear. Têm seu ciclo de formação,
desenvolvimento e desintegração: a sua vida, ainda que costume ser muito longa,
atravessa por diferentes etapas e tem um fim. Nos processos que se desenvolvem
no interior das estrelas formam-se os materiais básicos que servem para a
construção dos planetas e dos viventes. Além disso, a vida que conhecemos
depende da energia que proporciona uma só estrela, o Sol.
As condições de um planeta como a Terra correspondem a leis físico-
químicas. Tendemos a pensar que as condições nas quais vivemos são
absolutamente estáveis. Contudo, em escala cósmica, as condições atuais da
Terra são muito singulares e correspondem a uma fase que teve um começo e
terá um fim. É provável que as condições na Terra tenham sofrido em outras
épocas mudanças bruscas devidas a impactos com outros objetos. Em qualquer
caso, as condições atuais, que tornam possível a vida, dependem da intensidade
de energia que chega do Sol: no futuro, quando mudarem, não mais haverá as
condições necessárias para todas as formas de vida que agora conhecemos,
inclusive para a nossa.
Um dos aspectos que mais chama a atenção no âmbito astrofísico é a
imensidão do universo e, ao mesmo tempo, a semelhança dos processos físico-
químicos que se desenvolvem nas estrelas. Trata-se de um nível de organização
relativamente simples; sem dúvida, no enorme volume das estrelas, desenvol-
vem-se processos muito variados, mas os princípios básicos que os regem podem
ser compreendidos com certa facilidade utilizando-se os conhecimentos atuais
sobre o nível físico-químico. Evidentemente, antes que, já avançado o século
XX, se desenvolvesse a física nuclear, era muito pouco o que se podia saber a
respeito da autêntica natureza e atividade das estrelas.

O nível biológico
A organização da natureza alcança sua máxima expressão no nível
biológico, cuja sutileza se conhece cada vez melhor na atualidade, graças aos
grandes avanços da biologia molecular.
A ordem da natureza 107

Não é preciso voltar aos dados e exemplos acerca da composição e do


funcionamento das células, da informação genética e dos organismos, já expostos
ao estudarmos os processos naturais. Ao contrário, é oportuno sublinhar a
continuidade entre o nível biológico e o nível fí sico-químico, pois a peculiaridade
do nível biológico não está nos seus componentes, mas no tipo de organização.
Encontramos aqui um novo motivo para destacar também o caráter
altamente específico do nívelfí sico-químico. Com efeito, a vida que conhecemos
é possível graças à existência de propriedades físico-químicas muito singulares.
Destacam-se, especialmente, as propriedades do carbono, que permitem uma
enorme quantidade de combinações consigo mesmo e com outros elementos
químicos e, deste modo, a existência das biomoléculas, que se encontram na base
dos fenômenos biológicos.
As estruturas biológicas formam uma grande cadeia - com múltiplas
ramificações - de sistemas e subsistemas que possuem uma organização muito
específica e que desenvolvem um dinamismo altamente cooperativo. Correspon­
dem a princípios estruturais relativamente simples, mas muito eficientes. Por
exemplo, a informação genética de cada organismo encontra-se armazenada nos
genes, codificada mediante um simples “alfabeto” de quatro “letras”: as quatro
bases nitrogenadas que se encontram ao longo do DNA dos genes. A atividade
das proteínas, que desempenham múltiplas funções nos organismos, depende
de sua estrutura tridimensional específica, e esta, por sua vez, encontra-se
determinada pelos componentes da proteína, cuja essência explica a estrutura
adotada pelo sistema. O mundo bioquímico consta de um número relativamente
pequeno de componentes, que bastam para que se formem estruturas muito
específicas e sofisticadas.
Neste âmbito, é evidente o entrelaçamento entre o dinamismo e a estrutu­
ração. Com efeito, a atividade biológica depende das estruturas específicas que
constituem os organismos desde o nível molecular até o nível dos tecidos, órgãos
e sistemas.

b) A estratificação dos níveis naturais: continuidade e gradualismo

De acordo com as considerações expostas, é possível ver com clareza que


existe uma unidade básica de composição e uma estratificação dos níveis. O
nível físico (microfísico) encontra-se na base de todos os demais, o nível químico
é o estrato seguinte, e, a partir do nível físico-químico, existem duas séries dife­
rentes de entidades: por um lado, as entidades maiores que continuam perten­
cendo ao mundo físico-químico (as estrelas, a Terra e os planetas); e, por outro,
os viventcs.
108 Filosofia da Natureza

Além disso, é evidente que os diferentes níveis estão relacionados entre


si. Vimos que o nível físico-químico faz parte dos demais níveis, além do qual
existem outros tipos de relações: por exemplo, os viventes dependem da energia
solar e das condições físico-químicas que tornam a Terra habitável. Não existe
nenhum nível totalmente independente dos demais.
Entre os diferentes níveis existe, ao mesmo tempo, distinção e continui­
dade. Existe uma estratificação, de modo que os níveis inferiores integram-se aos
superiores. Portanto, pode-se falar de continuidade, de gradação e de hierarquia.
Cada nível pode ser considerado como condição de possibilidade dos
níveis seguintes, de acordo com a ordem indicada. Nem tudo incluído em cada
nível é condição necessária para os níveis seguintes, mas os seus aspectos básicos
o são: as entidades, propriedades e processos básicos do nível físico possibilitam
o nível químico, e o mesmo ocorre com o nível químico em relação ao astrofísico,
com este em relação ao geológico, e com este em relação ao biológico.
Um nível pode ser condição de possibilidade sob dois aspectos: porque
proporciona os constituintes ou as condições externas que possibilitam sua
existência. Assim, as entidades físico-químicas básicas (partículas, átomos,
moléculas) encontram-se na base de tudo o mais, como seus constituintes. O
nível astrofísico proporciona os constituintes do geológico, que proporciona,
além do mais, as condições que tornam possível o nível biológico. Neste nível,
existem muitas relações de ambos os tipos entre os diferentes organismos: por
exemplo, as plantas são imprescindíveis para a existência dos animais e do
homem, porque somente elas são capazes de sintetizar os componentes orgânicos
- necessários para todos os demais viventes - a partir de elementos inorgânicos
(os organismos “heterótrofos” dependem dos “autótrofos” que, por assim dizer,
alimentam-se diretamente da energia solar e dos elementos contidos no solo).
Por outro lado, existe uma hierarquia de organização entre os níveis. Não
se trata de uma estratificação puramente linear ou de magnitude, de uma mera
sucessão de agregações, pois existem relações mais complexas de organização.
Não há muito sentido, por exemplo, perguntar o que é superior ou mais perfeito,
se uma estrela ou a Terra, se um elefante ou uma águia. Porém, pode-se afirmar
que os compostos físico-químicos possuem uma maior organização que os
componentes fundamentais e, sobretudo, que os organismos do nível biológico
possuem uma organização muito superior à existente nos demais níveis.
Evidentemente, o homem ocupa o posto superior nesta hierarquia. Às vezes
critica-se esta afirmação rotulando-a de “antropocêntrica”, argumentando que
a Terra não ocupa nenhum lugar privilegiado no universo e que o homem, como
ser biológico, não é superior a todos os demais seres em todos os aspectos; mas
isto não afeta o fato óbvio e indubitável da supremacia hierárquica do homem
A ordem da natureza 109

sob o ponto de vista, puramente natural, de sua superioridade organizativa sobre


qualquer outro ser (por pressuposto, a superioridade é essencial se as dimensões
espirituais são levadas em conta).

11. A estrutura físico-química

Os componentes físico-químicos constituem a base de todas as entidades


e processos naturais. Por este motivo, a análise da composição físico-química
da natureza tem especial interesse.

11.1 A composição da matéria

Ainda que os antigos tenham proposto teorias acerca da composição da


matéria, um conhecimento fiável da composição da matéria só foi possível
quando, a partir do século XIX, dispôs-se de noções suficientes de física e
química. De fato, a teoria atômica moderna começou a ser formulada no início
do século XIX.
a) Panorama histórico da física dos elementos
O conhecimento dos elementos é um tema central desde a Antiguidade.
Os pré-socráticos propuseram explicações tais como a teoria dos quatro ele­
mentos, cuja influência durou dois mil anos, e a teoria atômica que, em alguns
aspectos, esteve sempre presente ao longo dos séculos, desempenhando certa
função na formulação da teoria atômica científica no início do século XIX. A
composição da matéria, sempre objeto de investigação científica, foi acompa­
nhada, também desde a Antiguidade, por trabalhos empíricos: por exemplo, as
técnicas para trabalhar os metais. As técnicas empíricas antigas permitiram o
conhecimento de nove elementos químicos: sete metais (outro, prata, cobre,
ferro, chumbo, estanho e mercúrio) e dois não-metais (enxofre e carbono).
Embora não os conhecesse como elementos, obteve-se a base empírica que
possibilitou o ulterior desenvolvimento da ciência experimental.
No século XVIII, antes da formulação das teorias que estabeleceram
definitivamente a química moderna e dispondo de recursos experimentais ainda
precários, realizaram-se sérios trabalhos científicos de primeira categoria que
levaram a isolar o cobalto (1736), o zinco (1746), o níquel (1751) e o magnésio
(1774); outras pesquisas de semelhante envergadura permitiram a descoberta
de três gazes básicos: o nitrogênio (1772), o oxigênio (1774) e o hidrogênio
(1776). Também se descobriu o grupo dos metais tungstênio, molibdênio, urânio
e cromo, assim como os elementos telúrio, nióbio, tântalo e vanádio.
110 Filosofia da Natureza

A teoria atômica proposta por John Dalton em 1808 baseava-se num


século e meio de trabalhos prévios na química, e foi se consolidando durante o
século XIX. Em 1869, Dimitri Mendeleiev formulou a tabela periódica dos
elementos, que são os tipos fundamentais de átomos que constituem a matéria.
Nesta tabela, os elementos encontram-se organizados por grupos que têm
propriedades semelhantes. Como a tabela de Mendeleiev não estava completa,
o interesse por continuar preenchendo suas lacunas provocou o descobrimento
de novos elementos como o escândio, o gálio e o germânio, nos 15 anos que
seguiram a sua predição teórica, e facilitou também outras descobertas, tais como
os elementos artificiais, produzidos a partir de 1940.
A obtenção dos elementos transurânicos, que se encontram na tabela
periódica depois do urânio (portanto, com o número atômico superior a 92), é
um exemplo das pesquisas realizadas graças ao desenvolvimento de altas
tecnologias. O primeiro destes elementos artificiais foi produzido em 1940 a
partir de experimentos sobre a fusão do urânio. O progresso na construção de
aceleradores de partículas levou a várias outras descobertas na mesma linha.
Ainda que a ideia de átomo tenha sido proposta por Demócrito na
Antiguidade, os átomos da ciência moderna têm pouco a ver com as ideias
antigas. Os antigos chamavam de átomo os componentes últimos da matéria,
pensando que eram autênticos elementos indivisíveis; pelo contrário, os átomos
que a ciência atual estuda são sistemas bastante complexos e não são elementos
últimos: compõem-se de partículas subatômicas, às vezes denominadas partí-
culas elementares, embora se saiba que muitas delas estão compostas e que
possivelmente nenhuma delas seja realmente elementar.
As moléculas são formadas por átomos unidos por conexões químicas de
diversos tipos. Na natureza, existem 92 tipos de átomos (nos laboratórios conse-
gue-se produzir mais, ainda que frequentemente tenham uma vida média muito
efêmera), e um grande número de moléculas e macromoléculas.
A seguir, examinaremos as ideias atuais sobre os componentes elemen­
tares da matéria.
b) Teorias científicas atuais sobre os componentes microfísicos
De acordo com o modelo padrão, muito bem comprovado experimen­
talmente, os componentes básicos da matéria são os quarks e os leptons. A
combinação de quarks produz as partículas mais pesadas (como os prótons e os
nêutrons), e os leptons são partículas ligeiras (como os elétrons).
O núcleo dos átomos está composto por prótons e nêutrons, e, em tomo
do núcleo, encontram-se elétrons, em número igual ao de prótons do núcleo e
ocupando diferentes níveis de energia. Assim, a matéria ordinária está composta
A ordem da natureza 111

por três partículas: os prótons, os nêutrons e os elétrons. A respeito deste nível


de composições é preciso notar duas características importantes.
A primeira é a especificidade da organização das partículas que compõem
os átomos. Num átomo neutro, os prótons do núcleo determinam sua carga
elétrica positiva, e existe um número igual de elétrons carregados negativamente.
Além disso, há na natureza menos de 100 átomos (o hidrogênio tem um próton
em seu núcleo, o hélio tem dois e cada novo elemento tem um próton a mais),
cujas propriedades estão agrupadas por família de acordo com o número de
elétrons de sua última órbita. A distribuição dos elétrons em estratos ajusta-se
ao “princípio de exclusão” da mecânica quântica (proposto pelo físico Wolfgand
Pauli), segundo o qual não é possível encontrar dois elétrons em estado idêntico;
assim, à medida que aumenta o número de prótons do núcleo, aumenta também,
em igual número, o de elétrons, cuja organização específica dá razão às proprie­
dades do átomo correspondente. Portanto, a matéria encontra-se organizada de
um modo muito específico já desde o nível dos átomos.
Outra importante característica é que, na realidade, as partículas subatô­
micas não correspondem exatamente ao conceito intuitivo de partícula, uma
vez que, em muitos fenômenos, atuam como ondas. Trata-se, pois, de entidades
microfísicas que só em parte correspondem ao conceito clássico de corpúsculo.
As teorias atuais sobre as entidades microfísicas são “teorias de campos”, e as
partículas são concebidas como os “quantos” destes campos, ou seja, como enti­
dades muito peculiares que não correspondem exatamente a nenhuma entidade
da experiência comum. São construções científicas altamente sofisticadas que
não coincidem com as imagens ordinárias. Em algumas ocasiões propôs-se
considerá-las como “energia concentrada”; embora esta expressão não tenha um
sentido científico exato, pode ser útil para compreender que a composição da
matéria, em último termo, não corresponde a partículas imutáveis que se
justapõem: antes, corresponde a entidades dinâmicas que interagem e produ­
zem, em muitos casos, novas estruturas unitárias.
As partículas subatômicas atuam entre si mediante quatro interações
básicas: a nuclear forte, que mantém unido o núcleo do átomo; a nuclear fraca,
que intervém em fenômenos muito específicos como a radioatividade; a eletro­
magnética, que atua entre partículas com carga elétrica e é responsável pela
coesão dos átomos e das moléculas, e, em geral, de muitas propriedades da maté­
ria; e a gravitacional, que tem efeitos importantes na atração de corpos com
massa apreciável. O alcance das duas forças nucleares é pequeníssimo: só atuam
no interior dos núcleos atômicos. Ao contrário, o alcance das forças eletromag­
néticas e gravitacionais é muito grande, ainda que a intensidade das respectivas
interações decresça com a distância.
112 Filosofia da Natureza

As partículas dentro dos átomos, e os átomos dentro das moléculas,


encontram-se ligados por forças elétricas. Não se deve pensar num modelo de
tipo mecanicista, já que as ligações não equivalem a uma mera justaposição de
partes de matéria. Os átomos e as moléculas são estruturas dinâmicas, já que a
sua coesão é devida a forças e podem reunir-se formando novas estruturas
unitárias. Nem ao menos se pode dizer propriamente que os átomos sejam
agregados de partículas e que as moléculas sejam agregados de átomos.
As moléculas também estão unidas entre si por forças elétricas. As forças
intermoleculares são nulas fora da esfera de ação molecular, atrativas dentro
desta esfera até um ponto no qual se anulam, e repulsivas daí em diante. Existem
as de curto e de longo alcance.
Os compostos maiores são as moléculas ou simplesmente os átomos que
não chegam a formar moléculas. As macromoléculas (proteínas, carboidratos,
lipídios, ácidos nucléicos) estão formadas por muitas moléculas, unidas por
ligações químicas, que constituem uma estrutura unitária; as menores contêm
até 200 átomos e as maiores têm milhares de átomos ligados de modo repetitivo:
este é o caso das biomoléculas (como as proteínas e os ácidos nucléicos), que
desempenham uma função fundamental nos organismos viventes.
Por fim, existem substâncias puras, com uma composição e propriedades
fixas, bem definidas; misturas, com duas ou mais substâncias puras, de modo
que os componentes mantenham as suas propriedades; e agregações, que são
muito variados.
Definitivamente, no nível físico-químico existem sucessivos níveis de
organismos, desde os átomos até as moléculas, as macromoléculas e os compostos
químicos, que correspondem a componentes e interações muito específicos. A
organização físico-química não corresponde a uma simples máquina mecânica
cujas peças estão justapostas; corresponde, antes, a sistemas que possuem
propriedades holísticas, atividade cooperativa e uma grande capacidade de
integração. Portanto, o nível físico-químico está completamente marcado pelo
dinamismo e pela estruturação, entrelaçados nos diversos tipos de sistemas.

c) Teorias de unificação

A ciência experimental progride de modo fragmentário: para avançar, é


preciso delimitar problemas particulares. Quando se dispõe de um conjunto de
conhecimentos novos, é possível planejar a sua integração numa nova teoria que
os sintetize.
É isto o que acontece com as teorias que estudam as interações funda­
mentais. A física de Newton, formulada no século XVII, incluía uma teoria da
A ordem da natureza 113

gravidade. Mais tarde estabeleceram-se diversas leis referentes à eletricidade e


ao magnetismo; na segunda metade do século XIX, Maxwell unificou-as
mediante sua teoria do eletromagnetismo. No século XX, Einstein formulou,
com sua teoria geral da relatividade, uma nova teoria da gravidade, e, além disso,
desenvolveram-se teorias sobre as forças nucleares forte e fraca. As tentativas
de unificar estas teorias conduziram, por enquanto, à formulação da teoria
eletrofraca, que mostra a possibilidade de unificar o eletromagnetismo e a força
nuclear fraca; e a diferentes intentos de unificar a teoria eletrofraca com a força
nuclear forte, mediante as teorias de grande unificação, que em todo caso
permanecem numa fase de tentativa. Em um terreno muito mais hipotético
situam-se os intentos de unificar as três forças mencionadas com a gravidade,
mediante as teorias da gravidade quântica, que são chamadas assim porque
pretendem combinar a teoria da gravidade e a física quântica, âmbito no qual
estão formuladas as teorias das outras três forças.
As tentativas de formular essas teorias de unificação não correspondem
somente a um interesse teórico. Com efeito, segundo os modelos geral mente
admitidos sobre a formação do universo, nos primeiros momentos depois da
grande explosão, as quatro forças fundamentais encontravam-se unidas,
indiferenciadas, num estado que corresponderia às hipotéticas teorias da
gravidade quântica. Mediante sucessivas rupturas de simetria, haveriam se
separado primeiramente a gravidade e as outras três forças, que, no entanto, se
encontrariam unificadas no estado descrito pelas teorias da grande unificação,
e depois teriam se separado a força nuclear forte e as outras duas forças, descritas
pela teoria eletrofraca.
Consequentemente, avançar nas teorias de unificação significaria
conhecer melhor como se desenvolvem os processos nos primeiros instantes da
existência do universo. A situação física que então existiu não pode ser estudada
diretamente; entretanto, se as teorias de unificação correspondem aos aconteci­
mentos primitivos, os experimentos que permitam submetê-las à verificação
empírica são como um laboratório no qual se põe à prova as teorias sobre a
formação do universo na sua fase inicial.
Existem dificuldades para realizar experimentos que sirvam para testar
estas teorias, porque é necessário criar, em condições controladas, processos com
uma energia muito elevada. O custo econômico destes experimentos é enorme.
De fato, as esperanças que na década de 1990 foram depositadas no SSC
(Supercolisor Supercondutor - Superconducting Super Collider), que começou
a ser construído no Texas, com um túnel subterrâneo de 87 quilômetros de
circunferência, viram-se frustradas quando, depois de construída uma parte da
instalação, o Congresso revogou a decisão anterior e suspendeu a execução deste
114 Filosofia da Natureza

projeto. Portanto, os experimentos necessários para submeter ao controle


experimental as novas teorias sobre a constituição da matéria podem ser
realizados somente, por enquanto, melhorando as instalações já existentes,
principalmente no laboratório europeu do Cem de Genebra e no Fermilab de
Chicago nos Estados Unidos.

11.2 Mecanicismo, dinamismo e energitismo

Quando se estuda filosoficamente a composição da matéria, costuma-se


opor, em um lado, o mecanicismo, que concebe a matéria basicamente como
passiva e reduz a natureza aos choques e impulsos mecânicos, e em outro, o
dinamismo e o energitismo, que sublinham o caráter básico das forças e da
energia, situando-se no pólo oposto ao mecanicismo.
O termo “dinamismo” significa, neste contexto, uma teoria, um sistema
de filosofia natural, que reduz toda a natureza, em último termo, a “forças”. Ao
contrário, aqui utilizamos este termo em outro sentido: destacamos que o natural
possui um “dinamismo próprio” ou “dinamismo interno”, que não depende
somente, nem primariamente, de ações externas; não se trata de um sistema de
pensamento, mas de uma característica concreta que o natural possui e que é
difícil expressar de modo distinto.
Já nos referimos ao mecanicismo e ao energitismo quando estudamos as
entidades naturais. Os conhecimentos atuais sobre a composição da matéria
mostram que as explicações da natureza proporcionadas pelo mecanicismo e pelo
energitismo são demasiado parciais: só representam alguns aspectos da natureza,
omitindo outros.
Perante a ciência atual, a matéria mostra-se dotada de um dinamismo
interno que nada tem a ver com a rigidez que o mecanicismo atribuía a ela. No
entanto, também não é adequado representar a matéria sob a ótica de doutrinas
puramente dinamistas, na linha do energetismo, que a reduzem completamente
à energia.
Qualquer representação fidedigna na natureza deve incluir os dois
aspectos, o dinâmico e o estrutural, estreitamente relacionados sem serem
redutíveis um ao outro.
A matéria encontra-se estruturada em diferentes níveis de organização,
como consequência do dinamismo dos seus componentes. O dinamismo da
matéria desenvolve-se de acordo com pautas e produz estruturas que, por sua
vez, são fonte de novos tipos de dinamismo.
A ordem da natureza 115

11.3 Problemas filosóficos relacionados com a física quântica

Em determinadas ocasiões, afirma-se que a ciência corrige a experiência


ou o senso comum, e que chega a invalidar convicções que pareciam firmemente
assentadas. Concretamente, muitas vezes apela-se à física quântica para afirmar
que as noções clássicas acerca do ser e da causalidade perderam seu valor.
Afirma-se, por exemplo, que a física quântica invalida o princípio da
causalidade e também a própria noção de uma realidade objetiva e independente.
Alguns dos pioneiros da física quântica, como Nils Bohr e Werner Heisenberg,
desprezaram essas interpretações ao afirm ar que, uma vez que todos os
experimentos estão submetidos às leis da mecânica quântica e, portanto, às
relações de indeterminação, a mecânica quântica mostra que o conceito de
causalidade não mais pode ser aplicado e que termos como “ser” e “conhecer”
perdem o seu significado não ambíguo, pois não se pode adscrever uma realidade
independente (no sentido físico ordinário) nem aos fenômenos, nem aos agentes
de observação. Aparentemente, a física exige prescindir de conceitos básicos
do sentido comum, e que este não pode ser utilizado para julgar se os enunciados
da física são corretos. Isto é certo?
Sim e não. Quando se trata de enunciados que superam as possibilidades
do conhecimento ordinário, é óbvio que a sua validade deve ser apreciada
mediante os métodos específicos da ciência correspondente. No entanto, estes
métodos utilizam necessariamente os recursos básicos de todo conhecimento
válido, ou seja, a experiência e a lógica. Uma analogia pode ilustrar bem isto.
Em uma corrida de 100 metros rasos pode-se utilizar controles técnicos especiais
para verificar quem chegou em primeiro lugar, e, em certas ocasiões, pode ser
imprescindível fazê-lo. Porém, estes dispositivos eletrônicos não teriam sentido
sem o conhecimento ordinário: sabe-se que existe uma pista, que os atletas
correm e chegam à meta em certa ordem. Estes dados do conhecimento ordinário
são a base indispensável para aplicar os controles técnicos. De modo semelhante,
os métodos e resultados da física pressupõem a existência de uma realidade
exterior, diferente do pensamento do físico, e que nela se dá uma ordem natural,
de acordo com leis objetivas, de modo que tudo o que ocorre tem uma causa
que o provocou. É necessário supor, além disso, que existe por parte do físico a
capacidade de conhecer a realidade e raciocinar logicamente de modo correto.
Sem estes pressupostos, a física não teria sentido.
Os problemas filosóficos relativos à mecânica quântica surgiram desde
os começos da sua formulação, em tomo de 1927. Pretendia-se prescindir de
fatores inobserváveis, como as trajetórias das partículas subatômicas e utilizar
somente magnitudes observáveis, como as mudanças de energia que se registram
116 Filosofia da Natureza

nos fenômenos atômicos e que seguem as leis da quantificação. Acrescentou-


se a isto a impossibilidade de proporcionar representações intuitivas dos
fenômenos microfísicos, de tal modo que os modelos corpuscular e ondulatório
são ambos parciais. Além disso, o princípio de indeterminação de Heisenberg
estabelece limites relativos à precisão com que podem ser medidos pares de
variáveis conjugadas, tais como a posição e o momento de uma partícula. Por
fim, segundo a interpretação probabilística, a teoria não pode proporcionar
predições sobre o comportamento das partículas individuais nos casos singulares,
mas tão somente probabilidades que se referem a conjuntos de acontecimentos.
Neste contexto situou-se a polêmica de 1927 entre Einstein e Bohr, e seu
desenvolvimento à raiz do experimento imaginário proposto por Einstein e dois
colaboradores (Podolcki e Rosen) em 1935 (denominado, pelas iniciais dos três
autores, experimento EPR). Einstein sustentava que a mecânica quântica deve
ser superada por uma nova teoria que restabeleça o realismo e o determinismo
- tal como ele os entendia - . Bohr sustentava a opinião contrária. O
ressurgimento da polêmica com motivo das desigualdades formuladas por John
Bell em 1965, levou a idealizar e realizar experimentos capazes de decidir os
problemas apresentados. Ainda que os experimentos de Alain Aspect e dos seus
colaboradores pareçam ter inclinado, desde 1982, a balança a favor de Bohr, as
discussões continuam61.
Existem nessas discussões problemas que se referem à física, sobre o
alcance de todas as atuais teorias quânticas. Há, mesmo assim, problemas
filosóficos acerca do indeterminismo na natureza, que surgem por causa da física
quântica. No entanto, isso tudo não afeta a afirmação do realismo e da
causalidade, estritamente filosóficas e que devem ser aceitas para que a física
tenha sentido. O problema do indeterminismo e da causalidade são diferentes:
uma coisa é afirmar que tudo deve ter uma causa real (causalidade em sentido
filosófico) e outra muito diferente é afirmar que todas as causas naturais atuam
de acordo com leis determ inistas (no sentido da física clássica ou do
determinismo associado a ela). A existência da causalidade não oferece dúvidas,
ainda que o indeterminismo seja um problema aberto.

61. A bibliografia sobre estes temas é muito ampla. Podem-se ver sínteses e discussões, por exemplo,
em: Le monde quantique (obra coletiva dirigida por S. Deligeorges). Paris: Editions du Seuil, 19X4; SELLERI,
Franco. El debate de Ia teoria cuántica, Madrid: Alianza, 1986. Na primeira, B. D’Espagnat expõe uma
interpretação que parece opor-se ao senso comum em sua acepção ordinária. Na segunda, Sallcri mostra-se
partidário de futuras mudanças na teoria quântica, apresentando argumentos que, no entanto, não parecem
totalmente convincentes.
A ordem da natureza 117

12. Unidade e ordem no universo

As ciências proporcionam, na atualidade, um conhecimento de cada um


dos níveis naturais e de suas relações que, não sendo de forma alguma exaustivo,
permite elaborar uma cosmovisão unitária que está carregada de consequências
tanto científicas como filosóficas. Examinaremos agora alguns aspectos e conse­
quências da cosmovisão científica atual.

12.1 Unidade de composição e dinamismo nos sistemas naturais

A unidade da natureza é um dos aspectos que mais sobressai na cosmo-


visão atual e se manifesta, em primeiro lugar, na unidade de composição das
entidades naturais.
Com efeito, os componentes básicos das entidades naturais são os
mesmos: as entidades microfí sicas (partículas subatômicas, átomos, moléculas).
Não se encontram todas em todos os sistemas, nem com a mesma abundância
ou com a mesma estruturação; mas se trata de um mesmo conjunto de compo­
nentes fundamentais de todos os sistemas. Desde a Antiguidade formularam-se
teorias acerca desta unidade de composição, mas somente na atualidade, pela
primeira vez, alcançou-se um conhecimento autêntico a seu respeito.
Os componentes microfísicos não podem ser representados como porções
de matéria imutável ou inerte. Um mesmo átomo, por exemplo, encontra-se em
muitos estados diferentes nas diversas estruturas das quais faz parte: está
integrado nelas, compartilha elétrons com outros átomos, etc. Seria possível
dizer-se, inclusive, que os átomos e as moléculas estudados nas ciências são tipos
gerais que correspondem aproximadamente às situações concretas, enormemente
variadas e dinâmicas.
Há, além disso, unidade e dinamismo, porque as leis dos níveis básicos
continuam a atuar nos níveis de maior organização. Além disso, conhecem-se
leis aplicáveis em todos os níveis: por exemplo, o princípio da conservação da
massa e da energia. As quatro interações básicas intervêm nos fenômenos de
todos os níveis: as forças nucleares no âm bito dos núcleos; a força
eletromagnética num âmbito amplíssimo que vai desde a estrutura dos átomos
e das moléculas à coesão dos diversos estados da matéria; a gravidade em todos
os fenômenos nos quais os efeitos das massas são apreciáveis.
A unidade de composição e de dinamismo são dois aspectos da unidade
da natureza em seu duplo aspecto dinâmico e estrutural. Ambos os aspectos estão
interpenetrados, tal como corresponde ao entrelaçamento entre dinamismo e
estruturação.
118 Filosofia da Natureza

12.2. O universo

A natureza não é um simples conjunto de seres heterogêneos. Uma das


suas características mais notáveis é a unidade. Não existe somente uma unidade
de composição e de dinamismo; existe, além disso, uma unidade de tipo superior,
que nos permite falar do universo como um grande sistema.
a) A noção de cosmos ou universo
Os antigos contemplaram o mundo como um cosmos ou universo, ou seja,
não como um simples agrupamento de seres, mas como uma unidade baseada na
cooperação dos diferentes fatores e numa hierarquia na qual a pessoa humana
ocupava o lugar mais alto. A natureza aparece, assim, na experiência ordinária,
que testemunha o nosso protagonismo no universo. Todavia, o ulterior progresso
das ciências pôs em dúvida a noção espontânea de universo e a substituí-la por uma
noção científica que, presumivelmente, teria importantes implicações.
Diante da experiência ordinária, parece claro que o homem é o centro do
universo. Tudo sugere que o resto do universo existe em função do homem.
Contudo, esta ideia foi criticada em nome do progresso científico, como se fosse
própria de uma m entalidade prim itiva, superada pelos conhecim entos
proporcionados pelas ciências. Os fatores decisivos desta mudança foram dois.
O primeiro refere-se ao universo: a Terra não é, como se afirmava na Antigui­
dade, o centro do universo, mas um planeta submerso na sua imensidão. O se-
gundo provém das teorias evolucionistas, segundo as quais o homem seria um
animal a mais entre outros, um resultado das leis naturais através do processo
da evolução biológica.
No entanto, a reflexão filosófica mostra que o primeiro fator, que se refere
ao lugar da Terra, é irrelevante para julgar a posição do homem no universo (a
não ser que se procure determinar somente a sua localização física). O segundo
fator, referente ao evolucionismo, tampouco tem demasiada importância se
admitirmos que, seja qual for a origem do seu organismo, o homem possui certas
características que o põem acima do resto da natureza; a própria existência da
ciência é uma das provas mais contundentes a este respeito.
Neste sentido, existe uma ordem absoluta no universo, que é a ordem
hierárquica. A pessoa humana encontra-se no topo de toda a natureza; somos
seres naturais que, ao mesmo tempo, transcendemos a natureza: somos seres
naturais que se elevam essencialm ente acima da natureza através do
conhecimento intelectual, da vontade e da liberdade. Não é difícil constatar que,
se levarmos em conta as características específicas da pessoa humana, encon­
tramos na natureza um tipo de ordem que já não é relativa. Entretanto, esta ordem
A ordem da natureza 119

fundamenta-se sobre uma hierarquia que transcende o nível estritamente natural:


precisamente por este motivo inclui aspectos absolutos.
b) Finitude e infinitude do universo
A pergunta sobre a finitude ou infinitude do universo sempre atraiu a
atenção dos cientistas e filósofos. Na Antiguidade grega, a finitude relacionava-
se com a perfeição, de maneira que esta finitude seria um aspecto da perfeição
do universo. Todavia, o nascimento da física clássica no século XVII pareceu
favorecer a ideia de um universo homogêneo e infinito. No século XVIII, Kant
afirmou que tanto a infinitude do universo como a própria infinitude apresentam
aporias que não somos capazes de resolver.
No século XX, alguns avanços da ciência abriram novos panoramas para
este problema, que pode ser considerado com relação ao espaço e ao tempo.
Com relação ao espaço, a teoria da relatividade parece sustentar que o
universo poderia ser finito, mas ilimitado, como se estivesse encerrado em torno
de si mesmo de tal modo que, por muito que avancemos uma direção, nunca encon­
traríamos um limite último. É como alguém que se encontra sobre uma superfície
esférica: pode viajar indefinidamente em qualquer direção, mas nunca chegará ao
fim. De qualquer forma, esta comparação não soluciona todos os problemas.
No que se refere ao tempo, os modelos do universo que receberam cada
vez mais aceitação entre os cientistas a partir da segunda metade do século XX
contemplam o universo com uma idade limitada, calculada em torno de quinze
bilhões de anos. O universo parece ter uma história e uma evolução a partir de
uma origem no tempo. Todavia, com isto o problem a não se resolve
completamente, visto que resta explicar a origem da grande explosão inicial:
sempre será possível pensar que pode provir de um estado anterior, diferente,
da matéria e energia do universo. A ciência por si só não se encontra em
condições de negar esta possibilidade.
Também no caso do tempo, formulou-se uma proposta semelhante à da
teoria da relatividade em relação ao espaço. Concretamente, Stephen Hawking
sugeriu que, de acordo com as hipotéticas teorias da gravidade quântica, poderia
suceder que o universo fosse limitado no tempo e que, por sua vez, não se pudesse
acrescentar um momento concreto para a sua origem , porque, ao nos
aproximarmos mais e mais deste momento, o próprio conceito ver-se-ia alterado.
Do ponto de vista filosófico, o universo é finito porque é um conjunto de
criaturas limitadas. Em sentido estrito, apenas Deus pode ser infinito. A
eternidade de Deus não é uma duração ilimitada: Deus encontra-se fora do tempo
e o tempo não existe independentemente do universo. A estes dois efeitos, pouco
importa a magnitude espacial e temporal do universo, cujo ser necessariamente
120 Filosofia da Natureza

depende de Deus. Por outro lado, quando os cristãos admitem que o tempo tenha
se originado com o universo e que este não tem uma duração ilimitada, fazem-
no com o apoio na revelação e não em demonstrações científicas ou filosóficas.

12.3 Cosmos físico e mundo humano

A natureza proporciona as condições necessárias para a existência e para


o desenvolvimento das potencialidades da pessoa humana. Pode-se dizer que,
com o homem, chegamos a um nível essencialmente superior ao que tem o resto
da natureza, com a qual o homem se encontra profundamente ligado. Na cultura
contemporânea, uma das ciências que se desenvolveu é a ecologia, que sublinha
a interdependência de todos os componentes da natureza.
a) A Terra como ecossistema da vida
Ainda que não tenhamos explicações definitivas acerca da origem da vida
sobre a Terra, é evidente que a própria existência da vida e o seu desenvolvimento
numa enorme variedade de formas são possíveis porque na biosfera existem
condições físico-químicas muito específicas.
A biosfera está formada pela crosta terrestre junto com seus limites na
atmosfera e nos oceanos: uma superfície de vários quilômetros onde a vida existe
tal como a conhecemos. Ainda que compreenda muitíssimos componentes indivi­
duais diferentes, as relações de dependência de uns com os outros são muito
grandes, podendo-se falar da biosfera como um grande sistema. Segundo as
opiniões mais extremas, sustentadas pelos partidários da hipótese Gaia - proposta
por James Lovelock -, dever-se-ia considerar a biosfera como um autêntico
sistema unitário, um verdadeiro organismo. Sem necessidade de adotar uma
posição tão radical, os avanços das ciências põem em relevo que a unidade
existente entre os diferentes níveis e indivíduos que compõem a natureza é muito
mais forte do que as aparências indicam.
Os exemplos desta interconexão são tão abundantes como se desejar. Do
ponto de vista físico-químico e geológico, a Terra apresenta um conjunto de
condições muito específicas que possibilita a existência e o desenvolvimento
da vida: estas condições referem-se às leis fundamentais da física e da química
e às características do nosso planeta62.

62. Pode-se ver um estudo amplo e pormenorizado deste tipo de características em: BARROW, John e
TIPLER, Frank J. The Anthropic Cosmological Principie, Oxford: Clarendon Press, 1986.
A ordem da natureza 121

b) Ecologia e movimento ecológico

A ecologia é uma disciplina científica que estuda os ecossistemas,


sistemas naturais que abarcam um conjunto de viventes que formam certa
unidade de interdependência.
O conceito de ecossistema é muito amplo, podendo ser aplicado a uma
enorme quantidade de sistemas diferentes: desde um açude ou um bosque até a
biosfera em seu conjunto. A delimitação de ecossistemas concretos depende,
em grande parte, do objetivo proposto ao estudá-lo.
A ecologia é, por sua própria natureza, um ramo interdisciplinar da ciência,
já que deve utilizar dados provenientes da física, da química, da geologia e da
biologia. O âmbito de problemas que abarca também é enorme, ainda que utilize,
como princípio unificador, uma perspectiva que outorgue a prim azia à
conservação da riqueza e variedade da natureza, evitando o que possa danificá-la.
É neste ponto que o movimento ecológico se apresenta como defesa da
natureza. A importância que adquiriu se deve, em boa parte, à tomada de
consciência dos estragos que o progresso tecnológico causa na natureza se não
for conduzido de modo racional e controlado.
Existem diferentes motivos para promover o respeito à natureza: um
teórico e outro prático. O motivo teórico fundamenta-se na unidade que há entre
todos os seres da natureza: o sentimento de que somos parte da natureza conduz
a uma atitude de respeito compatível com a sua utilização racional para as
necessidades humanas, e este respeito pode relacionar-se com uma atitude
religiosa, que, em determinadas ocasiões, teve manifestações históricas bem
conhecidas. O motivo prático relaciona-se com os inconvenientes que surgem,
na atualidade e para as gerações futuras, se os recursos naturais forem utilizados
de modo irresponsável.
O movimento ecológico aponta, com frequência, para problemas reais.
De fato, em nossa época, avançou-se muito na tomada de consciência destes
problemas. A sua solução apresenta, às vezes, dificuldades que exigem sérios
esforços. Do ponto de vista da cosmovisão científica atual e do seu impacto
filosófico, a perspectiva ecológica encontra sério apoio na unidade da natureza
e na interdependência mútua dos seus constituintes. Do ponto de vista religioso,
o mandato divino de dominar a terra, recolhido pelo cristianismo, não pode ser
tomado como escusa para fomentar uma exploração indiscriminada da natureza,
uma atitude de desprezo aos outros viventes ou uma atitude irresponsável
relativamente às gerações futuras. Ao contrário, o personalismo filosófico e a
perspectiva religiosa podem ajudar a evitar excessos de certas posições
ecologistas que apresentam reivindicações dificilmente justificáveis, como exigir
122 Filosofia da Natureza

um tratamento aos animais de acordo com uns pressupostos direitos que se


poriam num nível igual ou semelhante aos direitos humanos.

12.4 A nova cosmovisão

Viemos examinando alguns aspectos da cosmovisão atual, tais como o


lugar central da emergência da auto-organização na gênese da natureza, da
continuidade e do gradualismo dos diferentes níveis naturais e a unidade de
composição e de dinamismo nos sistemas naturais. Vamos acrescentar agora
algumas considerações complementares.

a) Teorias do caos, da complexidade e da auto-organização

Já mencionamos alguns dos avanços mais significativos da ciência


contemporânea que costumam ser resumidos sob o título de complexidade. Sob
este termo costuma-se abarcar todo um conjunto de avanços relacionados com
a morfogênese, ou seja, com a origem de novas formas: consegue-se explicar
cientificamente como surgem novas modalidades de ordem a partir de estados
de menor ordem.
As teorias do caos determinista, assim como a termodinâmica de
processos irreversíveis e a sinergética, estudam a formação de novas estruturas
em certas condições que implicam descontinuidades ou pontos críticos. Estas
teorias estendem-se a muitos fenômenos de tipo cooperativo e mostram que a
formação de novas pautas depende da atividade cooperativa entre diferentes
sistemas. Uma das ideias mais importantes das teorias do caos é a que - ainda
se tratando de sistemas que seguem leis deterministas - a sua evolução é
intrinsecamente imprevisível: só se poderia examinar a posição do sistema num
futuro distante se as condições iniciais fossem conhecidas com total precisão, o
que é impossível segundo o princípio de indeterminação da mecânica quântica.
A isso se acrescenta que pequenas diferenças nas condições iniciais acabam
produzindo uma evolução muito diferente dos respectivos sistemas.
Portanto, estas teorias apontam para um cosmovisão na qual a emergência
de novidades é a consequência de processos de auto-organização impossíveis
de serem reduzidos a ações de tipo determinista.
Nos diferentes níveis da natureza há uma verdadeira emergência ou
novidade com relação aos seus componentes. Em cada nível existem caracterís­
ticas novas que os componentes não apresentam: novas estruturas holísticas e
novos tipos de dinamismo, novas propriedades. Isto é um fato que se reconhece
sem dificuldade, independentemente das explicações que dele se dêem.
A ordem da natureza 123

A ideia de auto-organização desempenha um papel central na cosmovisão


atual. A auto-organização corresponde à formação de estruturas como resultado
do desenvolvimento de dinamismos naturais. Portanto, encontra-se estreitamente
relacionada com a caracterização do natural em função do dinamismo e da
estruturação.
A novidade atual radica no fato de se conhecerem muitos fenômenos de
cooperação nos níveis da física e da química e de se conhecerem cada vez com
mais profundidade as bases físico-químicas dos fenômenos biológicos. Em siste­
mas que mantêm intercâmbios energéticos com o exterior, podem aparecer novas
formas de organização: são sistemas fora do equilíbrio, nos quais aparecem
comportamentos coletivos de seus componentes, de tal modo que, em determi­
nadas condições, surge uma nova forma de organização.
Os fenômenos de auto-organização relevam a existência de cooperação,
tendência e direcionalidade na natureza. Portanto, convidam a reapresentar os
problemas acerca das formas e dos fins.

b) Cooperação, sutileza e informação

A integração dos níveis manifesta que existe uma cooperação entre todas
as entidades naturais e entre os diferentes níveis. Por exemplo, o nível biológico
necessita dos níveis físico e químico para a sua composição interna, do geológico
para o seu hábitat e do astrofísico como fonte de energia. Os diferentes níveis
formam um conjunto unitário no qual existem muitas relações cooperativas.
Além da cooperação entre os diferentes níveis contínuos, graduais e
hierárquicos, há outro aspecto da natureza com grande importância para avaliar
a sua perfeição: a sutileza da organização. Com efeito, em cada nível existem
processos muito específicos que se desenvolvem em passos coordenados e
possibilitam a organização singular do nosso mundo. Este desenvolvimento do
dinamismo natural pode ser contemplado em função de uma informação que se
armazena e se desenvolve estruturalmente em torno de pautas.
Por exemplo, no nível físico-químico, com muito poucos componentes e
leis básicas se obtém uma imensa variedade de compostos que tornam possível a
existência dos demais níveis de organização. Esse nível básico de organização
corresponde a pautas específicas, que podem ser contempladas como princípios
estruturais que já conhecemos com certo detalhe; não é o resultado de uma espécie
de caos. Existe o acaso no sentido de coincidência acidental de diferentes dinamis-
mos, mas cada um dos dinamismos e a integração entre eles desenvolvem-se de
acordo com pautas. Os princípios estruturais básicos são simples - interações
básicas, como o princípio da exclusão, os princípios da conservação, etc. mas
124 Filosofia da Natureza

ao mesmo tempo explicam a construção de uma enorme variedade de compostos


muito específicos que constituem a base dos demais níveis.
Algo semelhante ocorre com os demais níveis. Definitivamente, a
organização da natureza corresponde a uma informação que se codifica e
armazena estruturalmente, se desenvolve, se combina e se integra.
Portanto, a organização da natureza m ostra a existência de uma
racionalidade que, além do mais, é muito sofisticada. Quanto mais as ciências
progridem, melhor conhecemos os princípios estruturais da ordem natural e mais
claramente se revela a sua racionalidade e sutileza.
c) Fatores aleatórios na natureza
Tanto a ordem como a desordem são conceitos relacionais, definidos em
cada caso de acordo com critérios particulares. A ordem da natureza não é
absoluta. Há ordem, mas também há desordem (que tampouco é uma pura
desordem ou caos absoluto). A mistura de ordem e desordem (relativos) é a
norma geral nos diferentes níveis da natureza.
Por exemplo, a regularidade refere-se sempre a alguns aspectos e não a
outros. A regularidade das configurações espaciais é sempre relativa; a matéria
em estado cristalino possui propriedades geométricas específicas que podem ser
consideradas ordenadas quando as contemplamos sob certos critérios, mas não
sob qualquer critério. Algo semelhante acontece com a regularidade dos
processos; o movimento retilíneo uniforme possui uma ordem que, ao contrário,
não existe no movimento retilíneo acelerado nem no movimento ao longo de
uma circunferência, e a inversa também é correta. Estas considerações também
são aplicáveis às leis.
As forças naturais não são forças simplesmente cooperativas. Em muitos
casos opõem-se e dão lugar a dinamismos concorrentes. A ordem resultante
depende das forças que prevalecem e, em geral, de como os dinamismos se
integram em cada caso.
Além disso, existem fatores aleatórios nos processos naturais. A
complexidade dos fatores que intervêm na maioria dos processos basta para o
percebermos. As coincidências dos dinamismos particulares não são uma
consequência necessária de modo algum. Neste sentido, a existência e a relevân­
cia de fatores aleatórios são indubitáveis: há, na natureza, acaso, entendido como
coincidência de causas independentes (não nos referimos aqui à providência
divina, que se encontra em outro nível e se estende a tudo, porque Deus é a Causa
primeira do ser de tudo o que existe).
Entretanto, não seria adequado atribuir uma causalidade propriamente
dita ao acaso. O acaso pertence às causas impróprias ou acidentais. Isto significa
A ordem da natureza 125

que tudo o que ocorre tem causas próprias, também o que dissemos que acontece
com o acaso. Se concentrarmos a atenção só nas causas naturais dos fenômenos,
podemos afirmar não só que existem fatores aleatórios, mas que eles existem
abundantemente e que contribuem em grande medida para a produção da ordem
que observamos na natureza. Mas isso não tem nada a ver com outorgar à
desordem ou ao caos em sentido próprio uma função causai. É possível, inclusive,
pensar que, às vezes, a desordem é consequência de um excesso de ordem, que
tem lugar quando vários tipos diferentes de ordem ocorrem num mesmo
processo63.
Essas reflexões permitem compreender que, quando afirmamos que a
natureza possui uma organização muito sutil e sofisticada, não esquecemos a
existência de muitos aspectos que, sob determinados pontos de vista, são
desordenados ou casuais. Além disso, permitem desfazer alguns equívocos que
se baseiam em ideias simplórias acerca da ordem e da desordem. Isto acontece,
por exemplo, quando se afirma que a ordem natural haveria surgido por acaso a
partir de um caos primordial, identificando umas condições físicas violentas com
uma situação caótica64. Na realidade, que uns determinados efeitos sejam
produzidos por choques entre milhões de partículas em contínua agitação não
equivale a um caos em sentido estrito, ao menos que se afirme que estes choques
e seus efeitos não sigam nenhuma pauta natural: mas a ciência prova exatamente
o contrário.

d) A singularidade da ordem natural

Para a experiência ordinária, a natureza manifesta uma ordem muito


específica. O progresso científico conduz a um conhecimento muito mais
surpreendente e preciso desta ordem.
Algo pode ser considerado específico, em sentido amplo, quando se refere
a uma espécie ou tipo determinado. Neste sentido, tudo o que existe é específico,
já que tem um modo de ser definido. Um problema mais interessante surge
quando perguntamos se a natureza é específica num sentido mais restrito, que
significa algo muito singular ou um caráter excepcional. Para responder a esta
interrogação, devem-se considerar as características dos diferentes níveis
naturais, porque cada um deles possui caracteres específicos diferentes.

63. Cfr. WEISS, P. “Some Paradoxes Relating toOrder”, in KUNTZ, P. G. (editor). The Concepl o f Order,
Scattlc-London: The Univcrsity of Washington Press, 1968, pág. 16.
64. (Tr. MORIN, li. Et Método. /. l.o naturaleza de ht Naturaleza, Madrid: Ediciones Cátedra, 1981,
págs. 76-78 e 82.
126 Filosofia da Natureza

No nível astrofísico, o funcionamento das estrelas corresponde a um


mesmo tipo de processo: as reações termonucleares de fusão, nas quais núcleos
de hidrogênio se fundem para formar núcleos de hélio. O esquema básico é o
mesmo em todas as estrelas. A sua magnitude, estratificação e outros processos
dependem das condições de cada caso, mas respondem também às mesmas leis
físico-químicas. Portanto, o comportamento de quase a totalidade da matéria do
universo, que se concentra nas estrelas, segue uma ordem que não tem nada de
singular; reproduzem-se, antes, os mesmos tipos de processos em muitos bilhões
de estrelas. A distribuição das estrelas nas galáxias responde também a princípios
simples, já que depende fundamentalmente das forças gravitacionais; e o mesmo
ocorre com a distribuição das galáxias.
No nível geológico, existe uma ordem muito mais singular, ao menos de
acordo com nossos conhecimentos atuais. Não conhecemos nenhum outro
planeta que tenha características semelhantes às da Terra. Isto não significa que
não existem; inclusive, se existissem muitos planetas semelhantes seria difícil
detectá-los, já que se encontrariam a grandes distâncias de nós e careceri am de
luz própria. Por conseguinte, neste terreno podemos falar de uma ordem muito
singular: até o momento, única. Contudo, a existência de outros planetas
semelhantes não significaria nenhuma surpresa do ponto de vista das leis
científicas. A singularidade da Terra refere-se à ocorrência de algumas condições
muito ajustadas, que tomam o desenvolvimento dos viventes possível; bastariam
pequenas mudanças em algumas destas condições para que a vida, tal como a
conhecemos, se torne inviável.
O nível biológico é ainda mais singular. Neste caso, a singularidade não
se refere apenas aos tipos de viventes, mas à própria existência da vida. Uma só
célula é algo muito mais complexo e organizado que qualquer entidade do nível
físico-químico; os organismos mais desenvolvidos são, de longe, as entidades
mais complexas do nosso universo. E as condições físico-químicas que
possibilitam a vida são muito singulares.
Por fim, no caso do homem, a singularidade chega a ser enorme. A vida
humana só é possível dentro de um âmbito muito estreito de condições e o
organismo humano tem um caráter enormemente singular.
O término deste breve trajeto pode revelar-se surpreendente. Com efeito,
podemos concluir que o nosso mundo é muito simples quanto à sua composição
e leis básicas, muito repetitivo nas macroentidades do nível astrofísico, muito
singular no que se refere ao nosso hábitat imediato e enormemente sofisticado
na organização dos viventes e, especialmente, do homem. Portanto, em nosso
mundo coexistem uns aspectos básicos relativamente simples e uns resultados
enormemente singulares.
A ordem da natureza 127

Pode-se afirmar que o nosso universo é muito singular. Assim o é porque


os seus componentes e leis fundamentais, por um lado, são relativamente simples
e, por outro, possibilitam a construção de resultados enormemente variados,
organizados e cooperativos. Para dizê-lo em poucas palavras, parece que não
se pode fazer mais com menos esforço. Mesmo supondo que não existam outros
seres inteligentes em todo o universo e supondo que as condições que tomam
possível a nossa vida sejam o resultado de processos evolutivos, a existência de
bilhões de galáxias e estrelas seria um gasto simples e baixo e talvez
imprescindível para que pudessem desenvolver todos os processos necessários
à nossa existência.
129

C apítulo V

O ser do natural

Conhecemos a natureza através das suas manifestações no espaço e no


tempo, ou seja, através de estruturas espaço-temporais que captamos mediante
os nossos sentidos. Mas a natureza não se reduz a estas dimensões: possui uma
espécie de força ou energia que está “armazenada” nas estruturas espaciais e se
desenvolve no tempo.
Estas duas facetas já estavam presentes quando caracterizamos o natural
em função do dinamismo e da estruturação. Advertimos então que se trata de
dois aspectos interpenetrados ou entrelaçados, já que a peculiaridade da natureza
é precisamente este entrelaçamento. O dinamismo natural não é isolado: sua
existência e seu desenvolvimento encontram-se intimamente relacionados com
a estruturação espaço-temporal.
A caracterização do natural por meio do dinamismo e da estruturação é,
sem dúvida, filosófica. Ao longo desta análise, utilizaremos agora os conceitos
de matéria e forma, que no decorrer dos séculos permaneceram como um
instrumento muito valioso para a análise filosófica do natural. A título de
introdução, abordaremos o nível próprio desta análise filosófica da natureza.
13. Níveis de compreensão da natureza

As ciências proporcionam um conhecimento detalhado da natureza. A


filosofia toma este conhecimento, juntamente com o proporcionado pelo senso
comum, como base para a sua reflexão sobre a natureza. Esta reflexão adota uma
perspectiva distinta da que utilizam as ciências, mas ambas são complementares.

13.1 Análise científica e reflexão metafísica

a) A perspectiva científica

A ciência experimental consolidou-se no século XVII adotando um méto­


do que supunha renunciar ao conhecimento das essências, substituindo-o por
uma perspectiva que combina a matemática e a experimentação.
Apesar do enorme êxito da ciência experimental, na atualidade encontram-
se amplamente difundidas interpretações instrumentalistas e convencionalistas,
segundo as quais as ciências proporcionariam somente instrumentos conceituais
130 Filosofia da Natureza

que possibilitariam o domínio controlado da natureza e que, no melhor dos casos,


só poderi am ser consideradas como conjecturas mais ou menos plausíveis acerca
das características da realidade.
Os problemas relativos ao alcance das ciências surgem por três motivos
principais. Em primeiro lugar, o recurso à matemática parece limitar o
conhecimento científico aos aspectos quantitativos; consequentemente, afirma-
se em determ inadas ocasiões que as ciências não proporcionam um
conhecimento autêntico da realidade. Em segundo lugar, a validade das teorias
científicas é comprovada mediante dados experimentais que se referem a
condições concretamente factíveis; costuma-se concluir daí que nunca se podem
estabelecer definitivamente a verdade das teorias, que teriam sempre um caráter
hipotético ou conjetural. Em terceiro lugar, tanto para formular as teorias como
para apresentar e interpretar os experimentos, é necessário recorrer às nossas
construções que, ao menos em parte, são convencionais e revisáveis. Portanto,
parece que as teorias teriam somente um valor instrumental.
Entretanto, as ciências experimentais produzem conhecimentos autênticos
sobre a natureza. De fato, possuímos muitos conhecimentos bem comprovados,
que permitem o desenvolvimento de tecnologias de alta precisão. As dificuldades
mencionadas são reais. Porém, cm muitos casos pode-se chegar a uma certeza
prática; isto ocorre, por exemplo, quando uma teoria proporciona boas
explicações e predições, especialmente se são exatas, se dizem respeito a
fenômenos independentes e se são coerentes com os resultados de outras teorias
bem comprovadas.
Quando se dispõe de construções cuja formulação e comprovação são
rigorosas, de acordo com os critérios expostos, pode-se afirmar que correspon­
dem à realidade e que, portanto, são verdadeiras. Contudo, esta correspondência
não significa ser uma réplica exata da natureza. Trata-se de uma verdade con-
textual, porque as construções só têm sentido dentro de um contexto teórico e
experimental que nós definimos e que supõe a adoção de pontos de vista particu­
lares. Portanto, é uma verdade parcial, que não esgota o que se pode dizer sobre
a natureza. Mas tudo isso não impede que seja uma verdade autêntica, que nos
revela aspectos reais da natureza. Deste modo, compreende-se que a ciência expe­
rimental proporcione conhecimentos que são, ao mesmo tempo, autênticos,
parciais e perfectíveis65.
No entanto, conhecimento adquirido mediante a ciência experimental não
esgota o que podemos saber acerca da natureza. Evidentemente, possui limites, que

65. Para uma explicação ampla destes problemas, cfr. ARTIGAS, Mariano. Filosofia da ciência
experimental. A objetividade e a verdade nas ciências, op. cit., capítulo 6.
O ser do natural 131

são uma consequência da limitação voluntária da perspectiva científica. O mesmo


motivo que explica o êxito da ciência experimental explica também os seus limites.
Com efeito, a perspectiva científica exclui deliberadamente as dimensões que não
possam se relacionar com o controle experimental. Assim, excluem-se do seu
âmbito as dimensões ontológicas, que se referem ao modo de ser do natural, e as
dimensões metafísicas, relacionadas com o fundamento radical da natureza, com
as leis gerais do ser e com o espírito e a liberdade da pessoa humana.

b) A perspectiva da filosofia da natureza

Poderia parecer que as ciências possuem o monopólio do estudo da


natureza, já que a filosofia não dispõe de métodos especiais para conseguir
conhecimentos inacessíveis ao método científico. A ciência experimental
ocuparia o lugar da antiga filosofia da natureza ou a absorveria ao seu âmbito
de competência.
O positivismo do século XIX e o neopositivismo do século XX tentaram
reduzir todo conhecimento válido ao da ciência natural, e concebiam as leis
científicas como simples relações entre fenômenos observáveis. Não obstante,
hoje em dia se aceita que a ciência positiva, ou seja, a ciência tal como é des­
crita pelo positivismo, não existe. Em cada passo da atividade científica
necessitamos de criatividade, interpretações e valorações. Um cientista
positivista poderia ser substituído por um computador, cujo funcionamento
dependeria, no entanto, da programação de um cientista não positivista. Na
ciência busca-se um conhecimento autêntico da natureza, mas este objetivo não
pode ser alcançado mediante procedimentos automáticos. A ciência experimental
atua sobre uns pressupostos filosóficos e o progresso científico retroage sobre
estes pressupostos. A ciência e a filosofia adotam perspectivas diferentes, mas
existe uma interação entre elas em todos os níveis.
Neste contexto, a reflexão filosófica é necessária, antes de tudo, para a
avaliação do conhecimento científico. Com efeito, a reflexão sobre os métodos
científicos, sobre os pressupostos gerais da ciência e os pressupostos particulares
utilizados em cada caso e sobre a interpretação dos resultados obtidos, incluem
fatores filosóficos. A reflexão filosófica também é necessária se se deseja
formular uma cosmovisão, ou seja, uma representação da natureza na qual se
refletem as suas características fundamentais. E torna-se imprescindível quando
se abordam os problemas ontológicos, referentes às características básicas do
modo de ser da natureza.
As interrogações ontológicas acerca da natureza apresentam-se hoje em
dia com tanta força como nas épocas anteriores. Em linhas gerais, costumam
132 Filosofia da Natureza

coincidir com os problemas clássicos acerca da substancialidade, da causalidade,


das qualidades, do espaço, do tempo, da teleologia, da origem do universo. Assim
como em outras épocas, colocam-se também os problemas tipicam ente
metafísicos a respeito do espírito, da liberdade e da transcendência. Pode-se
afirmar que, na atualidade, existe um consenso geral acerca da existência destas
interrogações genuinamente filosóficas.

13.2 A compreensão metafísica do natural

Vamos tratar de alguns problemas filosóficos com os quais a reflexão


filosófica sobre o ser do natural se depara, especialmente quando se relacionam
com a matéria e a forma, objetos deste capítulo.

a) Unidade e pluralidade

Um desses problemas é o da unidade e da pluralidade. Em nossa caracte­


rização da natureza sublinhamos, desde o princípio, que o natural possui uma
estruturação espaço-temporal, e que, na natureza, as pautas - estruturas que se
repetem - possuem uma especial importância.
Com efeito, a ordem natural gira em tomo destas pautas que se repetem
em casos numericamente diferentes. Esta pluralidade de realizações de umas
pautas unitárias semelhantes leva-nos a distinguir as notas que caracterizam uma
pauta, que formam uma unidade, e as suas realizações concretas, que podem ser
múltiplas. Isso, por sua vez, nos leva a distinguir as determinações formais, que
correspondem às notas definidoras das pautas, e as condições materiais, cor­
respondentes às suas realizações numericamente diferentes.
Um caso particular é a realização individual de modos de ser específicos
que são comuns a muitos indivíduos. A especificidade e a individualidade levam,
novamente, aos conceitos de forma e matéria.

b) Dinamismo e interação

Destacamos também o dinamismo como um caráter fundamental do


natural. A natureza é um mundo de interações e o que é aparentemente estático
corresponde aos estados de equilíbrio.
As interações resultam do dinamismo das entidades naturais. O dinamismo
corresponde ao modo de ser destas entidades e desenvolve-se de acordo com
este modo de ser, marcado pela materialidade. O ser e a atividade do natural
encontram-se enraizados em condições materiais e realizam-se no espaço c no
O ser do natural 133

tempo. Também neste sentido, a consideração da matéria e da forma é importante


para compreender o modo de ser do natural e da atividade que lhe corresponde.

c) As quatro causas e a concausalidade

Entendemos algo se somos capazes de responder às perguntas acerca do


porquê, o que equivale a conhecer as suas causas. Algo é inteligível na medida
em que se possam assinalar as causas que a expliquem.
N este contexto, a teoria aristotélica da causalidade proporciona
importantes sinalizações, porque de algum modo abarca os diferentes tipos de
perguntas que podem ser feitas acerca dos entes naturais. Com efeito, as causas
material e formal referem-se à sua composição e modo de ser, a causa eficiente
ao seu dinamismo e a causa final à sua direcionalidade. As nossas perguntas
acerca da natureza correspondem a aspectos destes quatro tipos de causas.
A ciência experimental proporciona amplos conhecimentos relativos à
composição da matéria, tanto pelo que se refere aos elementos componentes
como pela sua estruturação em sistemas. Além deles, acerca da atividade da
matéria - através das leis que regem os processos - e da direcionalidade das
entidades e processos - em seu duplo aspecto de tendências e de cooperação -
. Trata-se, portanto, de conhecimentos que se referem às quatro causas aristo-
télicas. Neste sentido, é indubitável que as ciências apresentam explicações au­
tênticas aos fenômenos naturais e que, consequentemente, manifestam a
inteligibilidade da natureza, alcançando dimensões que permanecem inacessíveis
ao conhecimento ordinário. Por sua vez, a reflexão filosófica examina sistema­
ticamente esta causalidade, determinando o conceito de causa, os seus distintos
tipos e as modalidades da sua atuação.

14. Condições materiais e determinações formais

Os conceitos de matéria e forma foram empregados desde a Antiguidade,


sobretudo por Aristóteles, para expressar o modo de ser do natural. Vamos
examiná-los à luz da cosmovisão atual.

14.1 Dimensões de tipo material na natureza

Em primeiro lugar, iremos considerar as dimensões de tipo material, o


conceito de matéria e as características do material.
134 Filosofia da Natureza

a) Extensão, duração e mutabilidade

Dimensões materiais são as próprias da estruturação espaço-temporal.


Dessa forma, portanto, a extensão - base da estruturação espacial -, a duração
- base da estruturação temporal - e o movimento - que relaciona o espacial e o
temporal - 66. Ao estudarmos estas três noções, consideramo-las como as
condições fundamentais da matéria.
Em primeiro lugar, todo o material possui uma extensão e, portanto, uma
magnitude. Somos capazes de imaginar pontos materiais, e isso é um recurso
amplamente utilizado nas ciências. No entanto, não existem pontos inextensos
na natureza: todos os seres materiais possuem extensão e magnitude. Conse­
quentemente, o material é divisível - pode ser dividido indefinidamente - , e as
partes que são obtidas nunca serão inextensas (na prática, essa divisibilidade
esbarra com limites físicos). É importante assinalar, por outro lado, que os
diferentes modos de ser do natural se encontram associados a magnitudes
típicas: os átomos, as moléculas, as macromoléculas biológicas, as células e os
organismos possuem uma magnitude determinada ou, ao menos, a sua magnitude
encontra-se dentro de certos limites fora do quais não podem existir as respec­
tivas entidades. Além disso, existe, nos sistemas unitários, uma continuidade
entre as suas partes: ainda que possam conter “incrustações”, existe uma con­
tinuidade mínima que é necessária para a existência do sistema.
Em segundo lugar, o material implica duração, ou seja, uma extensão ou
dispersão temporal. Aplicam-se a este caso, com as oportunas mudanças, as
reflexões anteriores sobre a extensão espacial. Concretamente, os processos natu­
rais têm uma duração e, portanto, uma magnitude temporal. São divisíveis em
partes, ainda que os processos unitários encontrem-se associados a durações
típicas e neles exista uma continuidade; são processos que se desenvolvem desde
um ponto inicial a um ponto final de acordo com tendências naturais, e dependem
de pautas temporais definidas.
Em terceiro lugar, a materialidade implica movimento. Qualquer ser
material pode mudar e, ordinariamente, está submetido a mudanças contínuas,
ainda que às vezes sejam quase imperceptíveis. Além de poder mudar em aspec­
tos acidentais, é possível também uma mudança substancial, se as condições
necessárias para sua existência desaparecem. Todo ser natural está submetido
ao devir. Por este motivo, sempre se considerou a mutabilidade como caracte­
rística fundamental dos seres materiais. Os conhecimentos atuais ilustram esta

66. Aristóteles afirmou que “a ciência da natureza trata sobre as extensões, o movimento e o tempo”.
Cfr. Física, 111,4, 202 b 30-31.
O ser do natural 135

mutabilidade; sabemos, com efeito, que em todas as entidades, mesmo nas mais
estáveis, ocorrem contínuas mudanças, pelo menos no nível microfísico.

b) O conceito de matéria

Procuraremos agora dar uma maior precisão aos significados do conceito


de matéria. Os esclarecimentos terminológicos, neste caso, são decisivos. Com
efeito, muitas dificuldades em tomo do conceito de matéria podem ser evitadas
se distinguimos dois sentidos diferentes, que correspondem ao seu uso adjetivo
e substantivo.
Em sentido adjetivo, uma coisa é “matéria” se possui dimensões materiais:
extensão, duração e mutabilidade (e as demais relacionadas com estas). Um modo
de ser como este pode ser designado como “material”, e o conjunto das condições
que o constituem é a “materialidade”.
Contudo, tanto na vida ordinária como na filosofia, é frequente falar da
“matéria” como substantivo. Mas este modo de falar induz facilmente a confu­
sões. De fato, não existem seres que sejam somente um conjunto de dimensões
materiais, porque estas dimensões não têm uma existência própria: são dimen­
sões materiais de sujeitos que possuem modos de ser específicos, não redutíveis
a estas condições. Quando se fala de “materialidade” parece que se indica, ao
contrário, um ser ou vários seres concretos; no entanto, estes seres são aqueles
dos quais se pode predicar o adjetivo “material”: são os seres materiais.
Insistimos que a materialidade não possui um ser próprio, ou seja, não
existe nenhum ser puramente material. Quando falamos de seres materiais, não
podemos pensar que se reduzem completamente às condições materiais: esta
redução é impossível, porque estas condições não podem ser substancializadas,
não podem existir de modo independente. A extensão, a duração, a mutabilidade
e as demais condições que se relacionam com elas, só podem existir como
aspectos do modo de ser. As entidades naturais possuem modos de ser que
abrangem estas condições, mas não se reduzem a elas.
Apontaremos agora alguns equívocos que o conceito de matéria provoca
nas ciências e na filosofia67.
Nas ciências, a matéria designa, em determinadas ocasiões, o conjunto dos
seres que as ciências físico-químicas estudam; excetuam-se, então, os viventes,
apesar de também serem materiais. Por outro lado, quando os físicos falam de
matéria referem-se, em geral, às partículas subatômicas: opõem a “matéria” à

67. Encontra-se uma série de estudos sobre a evolução do conceito científico e filosófico de matéria em:
McMl H I IN, E (editor). TheConccptof Mattcr, Notre Dame (Indiana): University ofNotre Dame Press, 1963.
136 Filosofia da Natureza

“energia”; de modo pouco feliz, fala-se da “materialização da energia” para


designar processos relacionados com a equivalência entre massa e energia, dando
a impressão de que a energia não é algo material (o que não tem sentido).
Em outros casos, usam-se os conceitos de “massa” e “matéria” como se
fossem quase equivalentes. Esta confusão parte do próprio Newton, que definiu
a massa como “quantidade de matéria”: uma definição desafortunada que subsis­
tiu durante séculos e ainda encontra-se em manuais, por não resultar em nenhum
problema propriamente científico. Em nossa época, falou-se de uma crescente
“desmaterialização” da ciência, para sublinhar a importância crescente que têm
na ciência contemporânea as explicações baseadas em forças, campos de forças
e energia. Definitivamente, se se deseja delimitar o que as ciências dizem acerca
da “matéria”, é imprescindível precisar os diferentes usos deste conceito e
advertir os equívocos aos quais se presta de fato.
No âmbito filosófico, o conceito de matéria frequentemente conduz a
equívocos ainda maiores, porque se costuma atribuir-lhe um significado
dependente do mecanicismo cartesiano: identifica-se a matéria, por um lado, com
as condições materiais e, além disso, com as substâncias naturais; despoja-se o
natural, portanto, do seu dinamismo próprio. Esta matéria empobrecida vem a
ser um sujeito passivo e inerte, reduzido à pura exterioridade: esta é a ideia que
o mecanicismo propõe para as substâncias naturais. Apesar das críticas sofridas
pelo mecanicismo, esta ideia de matéria constituiu o pano de fundo de muitas
construções filosóficas e o seu impacto ainda é sentido na atualidade. A ideia
de “matéria” costuma ser utilizada como sinônimo de “matéria inerte”, carente
de dinamismo próprio: e esta matéria completamente inerte não existe.

c) Matéria primeira e segunda

Em sua etimologia latina, o termo “matéria” relaciona-se com a mãe


(“mater”) que proporciona os elementos a partir dos quais se forma um novo
scr. Na filosofia aristotélica, o conceito de matéria significa, em geral, aquilo
do qual algo estáfeito. Corresponde à ideia do “material” ou dos “componentes”
de que algo consta ou com os quais algo é fabricado. E costuma-se distinguir a
“matéria primeira” e a “matéria segunda”.
Concretamente, fala-se de matéria primeira (ou “matéria prima”) para
designar um substrato comum a todos os corpos, que permanece inclusive em
mudanças substanciais; e de matéria segunda para designar as substâncias
naturais, que vêm a ser o substrato que permanece através das mudanças
acidentais. Vamos analisar que sentido se pode atribuir a estes conceitos à luz
de nossa concepção do natural.
O ser do natural 137

Se as mudanças ocorridas na natureza são verdadeiras mudanças, e não uma


sucessão de criações e aniquilamentos, para explicar as mudanças é necessário
admitir que em todas elas há um substrato permanente que inicialmente carece
da forma, adquirida mediante a mudança. Para determinar o que é substrato, temos
de distinguir dois casos: a mudança acidental e a substancial. Através da mudança
acidental, uma substância adquire determinações acidentais, chega a ser isto ou
aquilo; o substrato que permanece é a substância (não muda seu modo de ser
essencial, mas muda acidentalmente): enquanto sujeito de mudanças acidentais,
a substância denomina-se matéria segunda.
Na mudança substancial, uma nova substância é produzida; embora esta
mudança suponha mudanças acidentais (de configuração, aumento, subtração,
composição e alteração), através delas produz-se um novo ser: também aqui deve
existir um substrato porque há continuidade entre o ponto de partida e de chegada,
e se não houvesse um substrato comum a ambos, não existiria uma transformação,
mas uma sucessão de aniquilamentos e criações. Por analogia ao que ocorre na
mudança acidental, o substrato das mudanças substanciais chama-se matéria
prima. Este substrato é conhecido por analogia: relaciona-se com a substância
como o bronze com a estátua, a madeira com a cama, o material informe com a
coisa formada68.
O conceito de “matéria prima” é difícil. Há três passagens em que
Aristóteles o precisa69.
Na primeira, afirma: “Chamo, com efeito, matéria ao primeiro sujeito de
cada coisa e de cada ser, a partir do qual, como de um elemento constitutivo, se
faz ou vem a ser algo, e não de maneira acidental”70. Trata-se, pois, de um fator
essencial da constituição das substâncias. Esta definição é resultado da análise
da mudança; neste contexto, a matéria é o substrato último da mudança. Mas,
quais são as suas características?
Aristóteles refere-se a elas quando diz: “entendo por matéria o que, em
si, não é nem algo, nem quantidade, nem nenhuma outra coisa das que
determinam o ente. Pois é algo do que se predica cada uma destas coisas, e cujo
ser é distinto do de cada uma das categorias (pois todas as demais coisas
predicam-se da substância, e esta, da matéria); de sorte que o último não é, em
si, nem algo, nem quanto, nem nenhuma outra coisa; nem tampouco as suas
negações, pois também estas serão acidentais”71. Esta definição refere-se à predi-

68. Cfr. ARISTÓTELES, Física, I, 7.


69. Aristóteles alude à matéria primeira também em outros lugares: cfr. Física, IV, 9,217 a 23; Acerca do
céu, 111,6 e 7; Acerca chi geração e da corrupção, 1,3 ,3 17b 16,23, e II, 4; Acerca da alma, II, 1,412 a 7,9.
70. ARISTÓ TELES, Física, I, 9, 192 a 31 -11.
71. ARISTÓTELES, Metafísica, VIL 3. 1029 a 20-26.
138 Filosofia da Natureza

cação, e ressalta que a matéria é um sujeito indeterminado ao qual não se podem


atribuir determinações concretas.
Por fim, Aristóteles sublinha que a matéria prima é o sujeito último do
que as coisas se compõem: “quando dizemos de algo não que é «tal coisa», mas
«de tal coisa»... por exemplo, a caixa não é de terra nem terra, mas é de madeira...
Mas, se há algo primeiro, do que já não se diz, com referência a outro, que é de
tal coisa, isto será a matéria prima”72.
Definitivamente, a matéria prima aristotélica apresenta-se como um
substrato último relacionado com a composição dos corpos e com a mudança
substancial. É concebido por analogia com o substrato das mudanças acidentais.
Não possui determinações próprias. A tudo isso se acrescenta que tem um caráter
potencial: é pura potencialidade, precisamente porque carece de determinações
e por ser sujeito de diferentes atos. Que sentido pode ter esta doutrina à luz da
nossa concepção do natural?
É possível interpretar a matéria primeira como equivalente à materialidade
dos corpos73. Com efeito, não é um componente físico determinado, mas
expressa o caráter básico que todos os entes materiais têm em comum.
A noção de “materialidade” expressa que os corpos são entes materiais,
e, portanto, que têm as características que se atribuem à matéria em geral:
extensão, divisibilidade, localização, duração e mutabilidade - tanto acidental
como substancial -. Contudo, os corpos têm estas características enquanto são
corpos reais, com determinações atuais; a materialidade pura não existe isolada:
existem somente entidades que têm um ser realizado em condições materiais.
De acordo com esta interpretação, a matéria prima designa as “condições
materiais ” nas quais os seres naturais existem. Desde já, estas condições
referem -se a características concretas, mas a “m aterialidade” designa
simplesmente o modo de ser do que existe neste tipo de condição74. Sob esta
perspectiva, ainda que a matéria prima suponha um uso substantivo do conceito
de matéria, o seu conteúdo refere-se principalmente ao uso adjetivo.
Por conseguinte, ao falarmos da matéria prima referimo-nos a um modo
de ser, um modo de ser comum a todos os entes naturais. Contempladas sob esta

72. ARISTÓTELES, Metafísica, II, 7, 1049 a 18-26.


73. Juan Enrique Bolzán propôs uma interpretação semelhante, concluindo que “parece mais adequado
falar não de uma ‘matéria’ - como substantivo, tal como se ela fosse um dos constituintes do ente - mas de
sua materialidade como uma de suas notas”: BOLZÁN, J. E. “Corpo, matéria, materialidade”, Filosofia oggi,
14(1991), pág. 516.
74. Esta interpretação coincide com a proposta por Jesús Garay quando afirma que "a matéria é
simplesmente a relação de umas determinadas condições chamadas materiais relativas à forma, já que estas
condições enquanto tais, também são formais”: GARAY, J, de. Los sentidos de ta forma en Aristóteles,
Pamplona: EUNSA. 1987, pág. 219.
O ser do natural 139

perspectiva, as afirmações aristotélicas a respeito da matéria prima possuem um


sentido claro: a materialidade é um modo de ser que pertence essencialmente
aos entes naturais (aspecto constitutivo); é o âmbito no qual se produzem as
transformações materiais (substrato das mudanças substanciais); refere-se às
condições materiais de modo geral, não a modos de ser específicos (é substrato
indeterminado); e os entes materiais podem se transformar, a princípio, em
qualquer outra coisa material (potencialidade pura).
Conforme afirmamos, a noção de “matéria segunda” refere-se ao substrato
das mudanças acidentais, ou seja, à substância. Isto não significa, de modo algum,
que este sujeito seja imutável. Ao contrário, os acidentes são determinações do
sujeito e, portanto, quando acontece uma mudança acidental, o sujeito muda;
mas não muda essencialmente o seu modo de ser, não se transforma num outro
tipo de substância: muda acidentalmente. Nas mudanças acidentais, a substância
muda, mas só acidentalmente.
Esta afirmação é importante porque se refere a um problema que conduziu
a mal-entendidos. Efetivamente, pareceria que a afirmação da existência de um
substrato substancial nas mudanças acidentais, deveria supor a imutabilidade
deste substrato (porque permanece através da mudança). E, sobre esta base,
chega-se facilmente a conclusões que esvaziam de conteúdo a noção de
substância: ou afirma-se que a substância é só uma categoria mental que não
corresponde à realidade, porque somente uma ideia pode ter uma permanência
absoluta e ser imutável, ou nega-se simplesmente a validade do conceito de
substância.
Por outro lado, a “matéria segunda” é uma substância natural, uma entidade
que possui um modo de ser e certas virtualidades específicas não redutiveis às
condições materiais. Já advertimos que não existem substâncias puramente
materiais, pois a materialidade não é um modo de ser completo: expressa somente
umas dimensões do modo de ser do natural.
Trata-se também de uma afirmação importante, que poderia chocar caso
se concebesse a realidade dividindo-a em dois compartimentos completos em
si mesmos e que se excluem: a matéria concebida de modo cartesiano, ou seja,
reduzida às condições materiais, e o espírito concebido como um sujeito que só
poderia atuar sobre a matéria “desde fora”. Para já, se a matéria fosse reduzida
à pura exterioridade, o espírito só poderia atuar sobre ela exteriormente, porque
não haveria outra possibilidade: neste caso, a ação divina não afetaria a
interioridade do natural (porque não existiri a esta interioridade), e a ação da alma
humana sobre o corpo seria semelhante à do cavaleiro ou timoneiro, que só
podem aluar e dirigir de um modo externo. Esta perspectiva conduz a sérias
dificuldades na antropologia e na teologia natural.
140 Filosofia da Natureza

Além de problemática, essa perspectiva é pouco satisfatória para a filosofia


da natureza, porque despoja as substâncias naturais das dimensões relacionadas
com a sua interioridade: pareceria que a atribuição de uma interioridade signifi­
caria cair em alguma forma de pampsiquismo ou panteísmo, porque a interioridade
seria um atributo exclusivo do espírito. Porém, neste caso, deveríamos esquecer
que os seres naturais possuem um dinamismo próprio; que, de modo enigmático,
mas real, “conhecem” o seu próprio modo de ser e o dos outros seres, e “sabem”
como se comportar em cada circunstância; que são sujeitos de tendências; que
estas tendências têm às vezes um caráter cooperativo e possibilitam a existência
de processos morfogenéticos nos quais novos modos de ser são produzidos; que
em muitos seres naturais existe uma “informação” armazenada, que se desenvolve
através de processos unitários muito complexos e sofisticados. Enfim, deveríamos
esquecer uma parte muito importante, talvez a principal, do modo de ser do natural.

d) Características do natural

Faremos agora uma análise de algumas características da natureza e do


nosso conhecimento ao seu respeito que se encontram estreitamente relacionadas
com a materialidade.
Em primeiro lugar, as condições materiais relacionam-se com a poten­
cialidade, porque todo o material é mutável: pode transformar-se não só aciden­
talmente, mas também substancialmente. Neste sentido, afirma-se que a matéria
é principio de passividade, pois implica a possibilidade de receber novas
determinações. Aristóteles afirma que “a matéria enquanto matéria é passiva”75.
Além disso, que as coisas materiais, “se têm um princípio de movimento, é um
princípio não de mover-se ou de agir, mas de passividade”76. Entretanto, esse
passo não se opõe ao reconhecimento do dinamismo próprio nos seres naturais.
Basta advertir que a afirmação anterior diz respeito à “matéria enquanto matéria”,
ou seja, às condições materiais consideradas com independência da interioridade.
Refere-se a uma consideração genérica da materialidade, e não ao modo de ser
completo dos seres naturais.
Em segundo lugar, costuma-se dizer que a matéria é o princípio de indi-
viduação nas substâncias naturais. Isto parece contraditório porque a individua­
lidade é determinação e concretização e esta afirmação parece opor-se à indeter-
minação e à potencialidade. Entretanto, quando se fala da matéria como “prin­
cípio de individuação”, fala-se da individualidade numérica dos seres naturais.

75. ARISTÓTELES, Acerca da geração e da corrupção, I, 7, 324 b 18.


76. ARISTÓTELES, Física, VIII, 4, 255 b 30-31.
O ser do natural 141

Cada substância tem o seu próprio modo de ser, mas qualquer modo de ser natural
é, a princípio, repetível em diferentes indivíduos: responde a um “tipo" genérico.
Neste sentido, um mesmo “tipo” existe individualizado em seres que possuem
umas dimensões materiais concretizadas no espaço e no tempo: ainda que o
“tipo” (as determinações do modo de ser) seja o que caracteriza um indivíduo,
as determinações materiais concretas explicam que o mesmo tipo pode existir
em indivíduos numericamente diferentes. Por isso, ao se falar da matéria como
princípio de individuação, é comum acrescentar que se trata da “matéria deter­
minada pela quantidade” (materia quantitate signata). Assim, sublinha-se que
não se trata das condições materiais indeterminadas, mas determinadas em uma
quantidade concretizada espacial e temporalmente.
Em terceiro lugar, diz-se - e compreende-se facilmente - que a materia­
lidade implica contingência, ou seja, ausência de necessidade. Por um lado,
porque o material é mutável e, de fato, está submetido a circunstâncias que podem
provocar mudanças. E, por outro, porque esta mutabilidade se estende inclusive
à essência dos seres materiais, que podem deixar de ser o que são e se trans­
formarem em outros seres diferentes. Na perspectiva aristotélica, a individuação
material também representa um caminho que permite aos seres materiais imitar
os incorruptíveis, porque um mesmo modo de ser pode perpetuar-se através da
multiplicação numérica. Os viventes, mediante a geração, transmitem o seu modo
de ser a outros indivíduos e, deste modo, perpetua-se a espécie, ainda que os
indivíduos pereçam. Sob esta perspectiva, costuma-se afirmar que a matéria
implica necessidade; mas esta necessidade não se opõe à contingência que aca­
bamos de examinar. Significa determinação no modo de agir, ausência de
liberdade. Não nos deteremos agora nos problemas do indeterminismo: qualquer
que seja a sua solução, é evidente que a autoconsciência e a liberdade supõem
um modo de ser que transcende as condições materiais.
Em quarto lugar, a materialidade relaciona-se com a existência do impre­
visto na natureza. De fato, facilmente ocorrem mudanças nas condições materiais
e, assim, introduz-se certo acaso que se opõe à regularidade perfeita. A expe­
riência mostra que as nossas possibilidades de atuação encontram-se limitadas
pelas contínuas variações das condições materiais.
Em quinto lugar, a materialidade implica, por um lado, a existência de
limites ao nosso conhecimento, e por outro, a possibilidade de um conhecimento
mensurável e controlável. No primeiro sentido, Aristóteles afirma que “a matéria
enquanto tal é incognoscível”77. Com efeito, algo se conhece através da sua
atividade; mesmo as propriedades que parecem passivas, como a cor, corres­

77. ARISTÓTELES, Metafísica, VII. IO. !036a8-9.


142 Filosofia da Natureza

pondem a interações: a cor é percebida graças ao reflexo da luz sobre os corpos.


A materialidade expressa condições exteriores, prescindindo do dinamismo e
da atividade; essas condições não são cognoscíveis por si mesmas, mas mediante
a atividade que se desenvolve através delas. Além disso, ainda que a exterio-
ridade possibilite o conhecimento sensível (e, portanto, todo o nosso conheci­
mento), também impõe limites: só conhecemos imediatamente aqueles aspectos
da natureza que são acessíveis aos órgãos dos nossos sentidos; para conhecer
os demais aspectos, devemos recorrer a procedimentos indiretos.
Contudo, a materialidade tem também seu sentido positivo em nosso
conhecimento da natureza. É ela que possibilita o estudo quantitativo e expe­
rimental que se encontra na base das ciências. Com efeito, a materialidade pro­
porciona a base para a enumeração e o estudo matemático da natureza. Refere-
se a dimensões com uma magnitude espaço-temporal e que, portanto, podem
ser divididas, somadas, submetidas a cálculo. Podemos estudar matematicamente
os aspectos materiais da natureza e, ao contrário, os aspectos qualitativos não
podem ser tratados diretamente deste modo: podem ser estudados de modo
matemático apenas indiretamente, na medida em que se relacionam com o
quantitativo.
A materialidade toma possível, afinal, a experimentação. O material pode
ser estudado mediante experimentos porque seu comportamento manifesta-se
através de uma atividade regular, não livre. Os experimentos científicos devem
ser repetíveis, de modo que possamos estudar como mudam, em condições
controladas, alguns aspectos dos fenômenos em função das mudanças de outros.
Obviamente, os aspectos relacionados com o espírito e a liberdade não podem
ser estudados com este método, que se aplica, ao contrário, somente ao material.
As considerações recém expostas permitem compreender por que se pode
utilizar o método matemático e experimental para estudar os aspectos da natureza
que se relacionam com a materialidade, e por que este método não pode ser
utilizado para estudar outros aspectos que, por outro lado, são acessíveis à
reflexão filosófica.

14.2 Dimensões de tipo formal

Analisaremos agora as dimensões formais e os significados do conceito


de forma. Levando em conta a estreita relação que existe entre o material e o
formal, essa análise corresponde em grande medida à que se realizou a propósito
do material e a completa: matéria e forma são, nos entes materiais, como duas
faces da mesma moeda.
O ser do natural 143

a) Configuração, consistência e sinergia


A extensão espacial, a duração temporal e o movimento são dimensões
materiais que se referem à distensão exterior, à multiplicidade de componentes.
As dimensões formais, em contrapartida, referem-se à coerência interior, à
unidade: a configuração reflete a unidade espacial dos componentes, a
consistência relaciona-se com a manutenção da unidade através dos processos
temporais, e a sinergia expressa a cooperação dos diferentes componentes e
processos. Analisaremos agora estas três dimensões formais básicas.
Configuração é estruturação espacial; define-se como a disposição das
partes que compõem uma coisa e lhe dão sua aparência própria. Os entes naturais
são extensos, mas as suas partes não se distribuem ao acaso: dispõem-se em
configurações características. Nos sistemas unitários, a configuração corresponde
a pautas espaciais típicas que se repetem nos diferentes sistemas individuais. A
configuração (dimensão formal) corresponde à extensão (dimensão material) e
complementa-se com ela: se existisse somente extensão, o natural reduzir-se-ia a
uma multiplicidade desconexa de partes distendidas no espaço; mas o natural
encontra-se estruturado de acordo com pautas espaciais. O nosso conhecimento
visual depende completamente do reconhecimento destas pautas; a ciência
experimental supõe sua existência e a confirma: busca conhecer pautas espaciais
inacessíveis à experiência ordinária, e em muitos atinge o seu objetivo.
Consistência relaciona-se com duração temporal; define-se como duração
estável. A estabilidade dos sistemas naturais depende da conexão entre as suas
partes: se esta conexão é débil, a estabilidade será efêmera. A consistência
(dimensão formal) corresponde à duração (dimensão material). Não existe uma
consistência absoluta na natureza: tudo está submetido ao desgaste, às interações,
à divisão. A estabilidade corresponde a uma coesão interior que se mantém
através das interações. Os viventes possuem uma organização que os capacita
para provocar ativamente as condições que favorecem sua estabilidade.
Sinergia refere-se à organização espaço-temporal; significa cooperação. A
organização dos sistemas naturais depende da cooperação dos componentes numa
unidade funcional. A sinergia (dimensão formal) corresponde ao movimento
(dimensão material); expressa a unidade dos diferentes movimentos que ocorrem
num sistema. A unidade dos sistemas é tanto mais forte quanto maior for a
cooperação das partes componentes e dos processos que neles se desenvolvem.
b) Significados do conceito de forma
O formal e o material são correlativos; por este motivo, podemos distinguir
o uso adjetivo e o substantivo da forma, do mesmo modo e no mesmo sentido
que fizemos no caso da matéria. Existe, no entanto, uma diferença importante:
144 Filosofia da Natureza

no âmbito da natureza material, o formal sempre existe em condições materiais,


mas nada impede que possam existir seres que careçam de matéria, ou seja, seres
espirituais. Os dois casos são, pois, assimétricos: é impossível que existam seres
cujo modo de ser se reduza à pura materialidade, mas é possível existirem seres
espirituais, cujo modo de ser não apresente condições materiais. Evidentemente,
não nos ocuparemos destes seres, porque o natural é material; mas devemos nos
referir à espiritualidade humana: a pessoa humana pertence à natureza, mas, ao
mesmo tempo, a transcende.
Assim como a “materialidade” expressa algo que existe em condições
materiais, ou seja, que algo é “material” (uso adjetivo do conceito de “matéria”),
de modo semelhante a “formalidade” refere-se às determinações peculiares do
modo de ser. ser átomo, proteína, animal, branco, condutor elétrico, etc.
Nos entes naturais, estas determinações não existem fora das condições
materiais. Não subsistem de modo independente, nem se unem à materialidade
de modo exterior: o formal e o material estão interpenetrados, entrelaçados,
formando uma realidade unitária. Não se trata de uma simples justaposição de
duas realidades completas e diferentes. Somente uma realidade completa subsiste
com um ser próprio: a substância individual, que possui determinações formais
que existem em condições materiais.
Assim, quando se estuda o modo de ser humano, é necessário introduzir
ulteriores esclarecimentos que permitam a reflexão sobre as peculiaridades da
pessoa e de suas dimensões espirituais.
Já aludimos à assimetria entre o material e o formal em um caso concreto
(o dos seres espirituais). Porém, esta assimetria é muito mais ampla. Isto se deve
a que, enquanto as condições materiais são genéricas e, em certo sentido, comuns
a todos os seres naturais (extensão, duração, movimento), as determinações
formais são particulares e específicas. As determinações formais essenciais são
diferentes em cada tipo de ser, e as acidentais também expressam distintos modos
de ser. Por esse motivo utilizamos termos diferentes em ambos os casos: falamos
condições no caso do material, e determinações no âmbito formal.
É importante destacar que as formas substanciais e acidentais dos entes
materiais não são entes completos, não possuem uma subsistência própria, não
são sujeitos em sentido estrito; com isto presente, não há inconveniente em falar
da “forma” ou “das formas” em sentido substantivo. No entanto, convém não
esquecer que a linguagem substantiva facilmente conduz ao esquecimento do
verdadeiro significado das formas. As críticas dirigidas durante séculos ao
conceito de forma (desde Descartes) baseiam-se, em grande parte, no equívoco
que tentamos evitar: pensar erroneamente que as formas dos seres materiais
denotam entidades ou partes de entidades. Por esses motivos, parece melhor
O ser do natural 145

utilizar, sempre que for possível, uma linguagem que evite o perigo de
substancializar as formas.

c) Forma substancial e acidental

O conceito de forma é central na filosofia aristotélica78. Muitas vezes, o


termo “forma” refere-se à aparência exterior de uma coisa, e relaciona-se com
a sua “figura”; este sentido de forma corresponde a uma das espécies do acidente
“qualidade”. Mas há também um sentido muito mais amplo, que designa
qualquer determinação dos modos de ser. Assim, se se trata de um modo de ser
substancial, fala-se de “forma substancial”, e se se trata de acidentes, de “forma
acidental”.
No nível físico, a forma é correlativa à matéria, é o que a determina; por
conseguinte, aos diferentes tipos de matéria correspondem diferentes tipos de
forma. Concretamente, à “matéria prima” corresponde a “forma substancial”, e
à “matéria segunda” as “formas acidentais” (no plural, porque uma mesma
substância possui diferentes determinações acidentais).
Na filosofia aristotélica, afirma-se que aforma substancial é ato essencial
das espécies naturais. As substâncias materiais possuem uma essência ou modo
de ser fundamental que diferencia os distintos tipos de substância (cachorro,
orquídea, água, etc.). Essas essências não são simples, mas compostas: existem
em condições materiais (matéria primeira), e incluem as perfeições que
determinam o modo de ser específico (forma substancial). Matéria eform a não
são entes completos nem partes físicas; são princípios que se comportam como
potência e ato: a matéria prima é o princípio potencial e indeterminado, e a
forma substancial é o princípio atual e determinante.
A forma substancial refere-se ao modo de ser unitário da substância e ao
conjunto de possibilidades de atuar que corresponde ao modo de ser. É ato,
energia, natureza ativa.
Ao mesmo tempo, e precisamente por expressar o modo de ser específico,
a forma substancial corresponde ao conceito e à definição da substância: à ideia
que expressa o modo de ser específico de cada substância. De fato, Aristóteles
utiliza dois termos diferentes para se referir à forma: “morfé” (forma) e “eidos”
(ideia). Ainda que em uma primeira aproximação haja uma clara correspondência
entre os significados destes dois termos, eles não são idênticos. Não nos
deteremos aqui em um problema a respeito da interpretação do pensamento

78. Encontra-se um bom estudo desta questão na obra já citada de Jesús DE GARAY, Los sentidos de
In formo en Aristóteles.
146 Filosofia da Natureza

aristotélico. Para o nosso propósito, é suficiente advertir que aforma substancial


é um princípio real, o princípio determinante da essência das substâncias
materiais; que matéria e form a são co-princípios da essência, como princípio
potencial e atual respectivamente; e que a ideia ou definição de uma essência
deverá incluir uma referência a ambos co-princípios.
Na perspectiva aristotélica, a forma substancial é a “responsável” pela
estruturação unitária das substâncias, pelo seu modo de agir e pelas suas
tendências.
É importante notar que a forma substancial só se dá nos entes naturais
(que são substanciais). Um agregado não possui uma unidade substancial, um
modo de ser unitário, e, portanto, não possui forma substancial. Tampouco a
possuem os artefatos, cuja unidade corresponde a um projeto externo, a uma
ideia humana: ao menos que, através de processos artificiais, se produza uma
verdadeira substância. A forma substancial aristotélica corresponde a um aspecto
central da realidade: o modo de ser característico de cada tipo de substâncias.
U tiliza-se a expressão “forma acidental” para designar qualquer
determinação acidental. Portanto, todo acidente pode ser denominado “forma
acidental”. Neste caso, há também o perigo de “coisificar” os acidentes, e este
perigo está relacionado, de novo, com o uso substantivo dos termos, quando se
fala da “quantidade”, das “qualidades”, etc., como se fossem sujeitos ou
entidades.
Os acidentes são determinações de um sujeito substancial, de uma
substância individual. Esse sujeito é extenso, divisível, branco, possui todo um
conjunto de qualidades. Não tem sentido substancializar os acidentes. O uso de
uma terminologia apropriada pode ajudar a evitar esse perigo.
As formas acidentais comportam-se como ato com relação à substância,
que está em potência relativamente a elas. São determinações, modos de ser
acidentais e, portanto, referem-se a ser em ato. A substância, sendo um sujeito
atual, está em potência em relação às diferentes formas acidentais, que podem
mudar sem que mude o modo de ser essencial da substância. Assim como a forma
substancial é ato da matéria prima, as formas acidentais são ato da matéria segunda
(ou substância).
d) Características das formas
E xam inarem os agora algum as características da natureza que
correspondem ao conceito de forma.
Em primeiro lugar, a forma relaciona-se com o ser. Já destacamos que
as formas não são entes completos. Na terminologia clássica, fala-se de um ens
quod ou ente que (no plural, entia quibus) para designar os entes ou sujeitos
O ser do natural 147

propriamente ditos, e de ens quo ou ente pelo qual (no plural, entia quibus) para
designar os princípios do ente, que não são entes nem sujeitos. De acordo com
esta terminologia, a forma é um ens quo, ou seja, um ente pelo qual algo é ou
tem o ser ou tem um determinado modo de ser. Essa terminologia continua sendo
substantiva - já que se fala das formas como “entes” - , mas sublinha
expressamente que se trata de entes em um sentido especial: não são entes
completos, mas determinações do ente. Definitivamente, é importante reafirmar
que as formas não existem por conta própria. O que existe são as substâncias
individuais, que possuem um modo de ser especialmente determinado (forma
substancial) que se realiza em condições materiais (matéria prima).
Enquanto as formas são determinações do modo de ser, pode-se dizer que
os entes têm o ser “através” das formas. O ditado clássico “a forma dá o ser”
(forma dat esse) não pode ser entendido como se previamente à sua existência
material a forma tivesse um ser próprio e, num certo momento, o “comunicasse”
à matéria ou ao ente. O que tem o ser, age e se transforma, é a substância
individual. Porém, é necessário acrescentar que a forma se refere a um ser real;
podemos explicar como funciona uma célula, mas a célula viva possui um ser
real que não se reduz às nossas explicações: “ser célula” é um “modo de ser”, e
convém sublinhar que é um modo de “ser”. Nesse sentido, é certo que a forma
dá o ser, embora seja preciso evitar as possíveis interpretações substantivas ou
coisistas desta expressão.
Nessa mesma linha, deve-se advertir que, quando se afirma que a forma
é causa (“causa formal”), isto não significa que a forma cause ao modo da causa
eficiente ou agente. A causa formal é a determinação do modo de ser. Porém,
trata-se de uma determinação real, de um modo de ser real.
Em sentido próprio, as formas não se geram nem se corrompem. A forma
existe quando começa a existir o ente ao qual corresponde, e deixa de existir
quando este ente se transforma em outro diferente. Diz-se que as form as
materiais se “deduzem ” da potencialidade da matéria; isto significa que não
possuem um ser próprio, independente: são “produzidas” a partir das trans­
form ações que têm a m atéria como substrato, são o resultado destas
transformações. Os conhecimentos atuais sobre a “auto-organização” da matéria
referem-se à produção de novas estruturas e padrões de atividade que surgem
como consequência das interações cooperativas dos componentes.
Advertimos, novamente, que estas considerações se referem às “formas
materiais”, ou seja, às formas dos seres naturais que incluem condições materiais
e não podem existir fora delas. Quando consideramos o caso da alma humana
espiritual, devem-se acrescentar novas considerações a respeito das dimensões
espirituais e suas implicações.
148 Filosofia da Natureza

Em segundo lugar, aforma relaciona-se com a estrutura. A forma poderia


ser identificada com a “estrutura” dos entes materiais? A estrutura relaciona-se
com o modo de ser dos entes naturais e é um fator de certo modo “im aterial”,
porque se refere à organização dos componentes. Parece possível, portanto,
relacioná-la com a forma.
Sem dúvida, a estrutura dos entes materiais tem estreita relação com o
conceito clássico deforma. Mais evidente ainda é esta assertiva se caracterizar­
mos estes entes como sistemas. Segundo a teoria dos sistemas, um sistema é carac­
terizado pelo conjunto das inter-relações entre os seus componentes, interligados
em uma estrutura unitária. Um sistema é mais que a justaposição dos componentes:
possui propriedades que não existem nos componentes nem resultam da mera
adição das propriedades dos componentes; tem características teleológicas, já que
existem leis estruturais que favorecem a estabilidade de determinados aspectos.
Isto é especialmente manifesto nos viventes, mas ocorre também em outros siste­
mas, inclusive no mundo atômico regido por leis quânticas. Essas características
favorecem a aproximação entre as noções de estrutura e de forma.
Não obstante, é conveniente precisar dois aspectos desta relação. Primeiro,
ao falarmos de “estrutura”, referimo-nos à “organização” de um sistema, que
abrange não só a estrutura espacial (configuração) mas também as dimensões
temporais (processos cooperativos dos componentes do sistema). O outro aspecto
é a não-identificação desta “organização espaço-temporal” com a “forma”; é
como o “plano” correspondente ao conjunto das relações espaciais e interações
que existem no sistema: sem dúvida, este plano corresponde ao “modo de ser”
do sistema, mas o conceito de forma refere-se diretamente a este modo de ser, e
não se reduz aos seus aspectos concretos.
Em terceiro lugar, as formas relacionam-se com os fins. Na produção
artificial, existe um “modelo” que serve de base para a construção do produto.
De modo semelhante, na natureza, pode-se dizer que a forma é o modelo segundo
o qual se os entes naturais são produzidos. Na geração dos viventes, a forma do
gerante é o princípio da geração, de acordo com pautas determinadas, e, ao
mesmo tempo, é o fim da geração, porque se produz um ser que tem a mesma
forma específica do gerante. Na produção de substâncias não-viventes, a forma
do produto é também o fim, o término para o qual o processo tende.
Por conseguinte, a forma e o fim podem ser identificados nos processos
naturais. Nos viventes, identificam-se porque a forma do gerante e a do gerado
coincidem especificamente. Nos não-viventes, identificam-se enquanto a forma
é a meta das tendências dos componentes, o término do processo.
Esta relação entre forma e fim é importante pois mostra que a consideração
das formas se encontra em estreita conexão com a dos fins. As críticas às formas
O ser do natural 149

geralmente coincidem com as críticas à finalidade; e a defesa das formas conduz


facilmente à defesa da finalidade.
Em quarto lugar, perguntamos-nos que tipo de necessidade corresponde
àsformas. Na filosofia aristotélica, atribui-se às essências e, portanto, às formas,
certa necessidade e imutabilidade. Isso, no entanto, parece contrapor-se à cosmo-
visão atual, segundo a qual as entidades naturais resultam de processos
contingentes e, neste sentido, não seriam necessárias nem imutáveis.
Todas essas dificuldades relacionam-se com a cosmovisão aristotélica,
segundo a qual o mundo é eterno e também o são, de algum modo, as formas.
As mudanças consistiriam em gerações e corrupções individuais dirigidas pelas
formas e para as formas; surgiriam das formas e se orientariam para a produção
de formas, e, por assim dizê-lo, o repertório total de formas já estaria
definitivamente dado. Entretanto, o núcleo fundamental do conceito de forma
pode ser separado, sem dificuldade, destas ideias. De fato, essa cosmovisão foi
criticada pelos pensadores cristãos dos séculos XIII e XIV, e, inclusive, foi
objeto, nesta época, de condenação por parte das autoridades eclesiásticas. Estas
críticas referiam-se, sobretudo, à presumida necessidade e eternidade do mundo;
frente ao aristotelismo, sublinhou-se então a contingência e a finitude temporal
do mundo. Porém, os mesmos argumentos que há muitos séculos levaram à
afirmação da contingência do mundo poderiam ser utilizados agora para afirmar
a contingência das formas. Efetivamente, a partir de uma perspectiva metafísica
criacionista, não só o mundo em seu conjunto, mas as entidades naturais
concretas são contingentes. Para sustentar que as entidades naturais não se
dissolvem em um puro fluxo de processos e que contêm uma inteligibilidade,
não é necessário afirmar a eternidade das formas. Tampouco existe uma
correspondência entre a eternidade das ideias divinas e a eternidade das formas
das entidades naturais: são dois aspectos diferentes do problema.
A cosmovisão atual destaca a contingência das entidades naturais, que
são resultados contingentes dos processos naturais; portanto, destaca também a
contingência das formas. A eternidade e imutabilidade das formas não corres­
pondem à cosmovisão atual. Mas tampouco são imprescindíveis para admitir o
significado das formas tal como aqui foi explicado, nem para afirmar a
inteligibilidade da natureza, nem para afirmar a existência de uma ordem natural
em que haja uma hierarquia que culmina na pessoa humana.
Do mesmo modo, esta contingência não é contraditória com um conceito
de natureza humana que permita afirmar a existência de dimensões morais
estáveis. Com efeito, a moralidade relaciona-se com a existência de dimensões
metafísicas na pessoa humana, e estas dimensões assentam-se sobre condições
físicas concretas. Sustentar que estas condições físicas estão sujeitas a mudanças
150 Filosofia da Natureza

não é contraditório com a afirmação da sua existência atual. Para sustentar a


existência das dimensões metafísicas da pessoa humana e as correspondentes
dimensões morais, não é preciso afirmar que sempre se deram as condições físicas
sobre as quais se assentam.

15. A Estrutura hilemórfica

A estrutura hilemórfica já foi estudada ao considerarmos a matéria e a


forma. Agora completaremos este exame, especialmente no que se refere à
correlação entre matéria e forma, e ao valor do hilemorfismo.

15.1 O hilemorfi smo

Denomina-se “hilemorfísmo” a doutrina aristotélica segundo a qual a


essência das substâncias materiais é composta de matéria (hvlé) e forma (morfé).
Evidentemente, uma vez que se trata da essência das substâncias, a matéria da
qual se fala é a “matéria prima” e a forma é a “forma substancial”.
O conceito de “matéria” é utilizado por Aristóteles em diferentes contextos
ao longo de suas obras e não tem um significado unívoco. Tampouco existe una­
nimidade quanto às interpretações destes sentidos7980.Por exemplo, houve dúvidas
acerca da autenticidade da interpretação tradicional, segundo a qual existe uma
matéria prima única, comum a todos os corpos, substrato puramente indeter­
minado que entra na composição de todos os seres materiais, e inclusive se
afirmou que esta interpretação é alheia a Aristóteles.
Nesta linha, William Charlton examinou as passagens aristotélicas que
podem se referir à matéria prima e concluiu que não há espaço para a interpre­
tação tradicional: a matéria seria sempre, em Aristóteles, algo concreto e já
determinado. Afirma que a doutrina tradicional tem origem no Timeo platônico80:
teria sido produzida mediante a união da linguagem de Platão com o conceito
de Aristóteles acerca do fator material, ou seja, pela adaptação do substrato
aristotélico para que compreendesse a descrição platônica. Essa união teria sido

79. A esse respeito, efr.: CENCILLO, L. "Hyle Origen, concepto y funciones de Ia matéria en el
"Corpus Aristotelicum", Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1958; HAPP, H. "Hyle"
Studium zem aristotelischen Materie-Begriff Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1971; LESZL, W. “La
Matéria in Aristotele", In Rivista Crítica iti Storia delia Filosofia, 28 (1973), págs. 243-270 e 380-401; 29
(1974), págs. 144-170.
80. Cfr. PLATÀO, Timeo, 50 b 8-c3; 50 e 4-5; 51 a 4 - b2. Nestas passagens, Platão refere-se ao
receptáculo que recebe todas as coisas e nunca toma nenhuma forma, acrescentado que é por natureza a matriz
de tudo, c estruturado de diversas maneiras pelas coisas que lhe advêm, que se encontra fora de todas as formas,
que é a mãe de tudo, invisível e sem forma, receptivo dc tudo.
O ser do natural 151

obra dos estóicos, estaria bem estabelecida na filosofia sincretista do primeiro


século antes de Cristo e dos primeiros séculos depois de Cristo, teria sido reco­
lhida pela teologia cristã desde Santo Agostinho e se fossilizaria no comentário
de Calcídio ao Timeo, praticamente a única fonte de metafísica antiga até o
século XII81.
Adiantamos que a interpretação tomista do hilemorfismo situa-se no
marco de uma metafísica criacionista. Os conceitos tomistas foram tomados, em
boa parte, de Aristóteles; entretanto, neste caso, como em muitos outros, o
aristotélico é interpretado segundo uma metafísica que, em alguns aspectos
importantes, não é aristotélica.
Ao nos referirmos a estes problemas, percebemos que o objetivo de
apontar a interpretação do hilemorfismo aristotélico e de seu desenvolvimento
histórico não é uma tarefa simples. Por sua vez, temos examinado o hilemorfismo
procurando não trair o pensamento de Aristóteles nem a tradição aristotélica.
Continuaremos a nossa análise nesta mesma linha, prescindindo de uma exegese
histórica.

15.2 Correlação e unidade do material e do formal

Matéria e forma são conceitos correlativos: algo é matéria em relação a


uma forma e algo é forma em relação a uma matéria. Entende-se que a correlação
perfeita afeta somente os seres materiais e que nada impede a existência de seres
espirituais cuja essência consistirá em uma forma sem matéria82.
Portanto, no mundo físico (entes materiais), matéria e forma exigem-se
mutuamente e complementam-se. Não há matéria sem forma; caso houvesse,
existiriam certas condições materiais (extensão, duração, movimento) que não
afetariam nenhuma entidade, o que é impossível. Tampouco existe forma sem
matéria: um ser puramente espiritual não pertence ao nível físico ou material.
Temos sublinhado que os conceitos de matéria eforma não se referem a
“coisas ”. Pode-se acrescentar que, de algum modo, expressam “funções ”. Isto
significa que algo “desempenha o papel de” matéria em relação a uma forma
ou de forma em relação a uma matéria. Além disso, implica que matéria e forma
referem-se a um determinado nível. Assim, o que desempenha o papel de forma
em uma determinada perspectiva, pode funcionar como matéria sob outra: por
exemplo, a forma substancial é forma em relação à matéria prima, mas é como

81. Cfr. CHARLTON, W. Aristotle’s PhysicsBooksIandII, Oxford: Clarendon Press, 1970: Appendix:
“Did Aristotle Bclicve in Prime Matter?” pags. 129-145.
82. Aristóteles afirma que “a matéria é algo relativo; porque a tal forma, tal matéria”. Cfr. Física, II, 2,
194 b 8-9.
152 Filosofia da Natureza

matéria em relação às formas acidentais que a determinam em nível acidental.


No entanto, existe uma exceção: a matéria prima não desempenha a função de
forma em nenhum caso; ao contrário, as formas espirituais puras são
determinadas pelo ato de ser (não nos deteremos neste importante aspecto,
próprio da metafísica).
Por outro lado, a correlação entre matéria e forma é a que se dá entre
potência e ato. Com efeito, forma indica determinação e, portanto, ato; ao
contrário, potência significa algo indeterminado que é atualizado ou determinado
pela forma83.
Definitivamente, matéria e forma são conceitos “correlativos”, porque um
faz referência ao outro; “funcionais”, porque não expressam coisas, mas funções;
e “contextuais”, porque algo pode funcionar como matéria ou como forma em
diferentes contextos ou níveis de análise. Tudo isso significa que matéria eforma
constituem uma autêntica unidade: são como duas faces da mesma moeda, que
correspondem à “exterioridade ” e à “interioridade ” dos seres naturais.
Por conseguinte, matéria e form a não se unem como se fossem duas
entidades ou partes físicas. O modo de ser essencial refere-se a umas
determinações formais (forma substancial) que existem em condições materiais
(matéria prima) e os modos de ser acidentais referem-se a determinações for­
mais (formas acidentais) que afetam a uma substância (matéria segunda); mas
a substância com seus acidentes é um todo unitário. Não se pode dizer, como se
fossem partes físicas, que matéria prima, forma substancial, substância, ou
acidentes, existem separados ou se encontram justapostos.
Na verdade, diz-se que a forma “informa” a matéria, determina-a, atualiza-
a (note-se que, quando utilizamos esta linguagem substantiva, deve-se interpretar
com os matizes aos quais aludimos anteriormente). Daí que o conceito de forma
relacione-se com algumas características do conceito atual de “informação”. De
fato, em seu sentido atual, a inform ação pode ser entendida como o
“armazenamento” de “instruções” que se encontram contidas e que se expressam
mediante condições materiais, supondo uma dimensão acrescentada a estas
condições. Isso sucede, por exemplo, na informação genética contida na estrutura
dos genes. Neste sentido, a informação tem a ver com as leis, já que estas
“regulam” os processos físicos e seus resultados, se “realizam” nestes processos,
mas não se identificam com as entidades nem com os processos. As instruções
contidas nas diferentes entidades são “materializações” das leis.

83. “A matéria é potência e a forma ato": ARISTÓTELES, Acerca da alma, II. I, 412 a 9-10.
O ser do natural 153

15.3 Matéria e forma como causas

Na filosofia aristotélica, a matéria e a forma são consideradas como


causas: a causa material e a causa formal84. Contudo, a sua ação causai não
corresponde ao que ordinariamente se costuma denominar causa, que é a causa
agente ou eficiente: como não são entes completos, não possuem consistência
própria e não causam como o faz um sujeito agente que é uma substância.
Matéria e form a são causas enquanto “componentes ” que constituem o
natural: a matéria prima e a forma substancial constituem a essência das
substâncias materiais; a matéria segunda e as formas acidentais constituem a
substância com suas determinações. Se por “causa” se entende aquilo que influi
no ser do efeito, deve-se afirmar que matéria e forma são causas em sentido
próprio, pois constituem o modo de ser das substâncias naturais.
Pela mesma razão, matéria eforma são causas "intrínsecas"ou interiores,
porque se referem ao modo de ser. Isto não se opõe em nada a que a matéria se
relacione com a “exterioridade” das substâncias. Com efeito, as condições mate­
riais são intrínsecas ou interiores à substância, pertencem ao seu modo de ser pró­
prio; ademais, referem-se à extensão espacial e à duração temporal e, portanto, à
exterioridade em e através da qual a substância existe e atua85.
Assim, o significado de causa material e formal refere-se à causalidade
de dois “fatores” que são constitutivos intrínsecos das coisas e que se relacionam
como potência e ato.
Aristóteles expressou a unidade e a causalidade da matéria e da forma
mediante uma afirmação muito explícita: “a matéria última e a forma são a mesma
coisa, aquela em potência e esta em ato”86. Matéria e forma não coexistem, não
se unem, não são realidades diferentes que se encontram relacionadas, não exigem
um elo de união, não são componentes ao modo de partes fisicamente separadas:
o que possui um ser independente é a substância individual, cujo modo de ser
consiste em umas determinaçõesformais que existem em condições materiais.

15.4 Valor do hilemorfismo

Dizer que matéria e forma são causas reais, intrínsecas, constitutivas da


essência das substâncias naturais, equivale a afirmar o valor metafísico da
composição hilemórfica. Em outras palavras, esta composição não corresponde

84. Cfr. ARISTÓTELES, Física, II, 3; Metafísica, V, 4.


85. "Matéria é aquilo de que algo se faz e que permanece imanente nele": ARISTÓTELES, Física. II, 3,
194 b 24.
86. ARISTÓTELES, Metafísica, VIII, 6, 1045 b 18-19.
154 Filosofia da Natureza

só a uma construção mental útil para compreendermos a natureza, mas à


realidade das coisas, ainda que matéria e forma não sejam entes completos.
Poderia parecer que o hilemorfismo encontra dificuldades por causa do
progresso dos conhecimentos científicos acerca da composição da matéria.
Poder-se-ia pensar, com efeito, que a ciência substitui a teoria hilemórfica por
explicações formuladas em termos dos componentes e das suas configurações.
Neste caso, o hilemorfismo corresponderi a a uma cosmovisão superada: os
conhecimentos científicos bastariam para explicar os fenômenos naturais e as
tentativas de explicação filosófica seriam inúteis.
Na realidade, são dois níveis distintos de explicação e, ao mesmo tempo,
complementares. A ciência experimental adota uma perspectiva não só legítima,
mas imprescindível para progredir no conhecimento da composição da matéria
e das suas leis. E a perspectiva filosófica concebe estes conhecimentos referindo-
os aos modos de ser do natural.
Os conhecim entos atuais acerca da com posição da m atéria são
incompatíveis tanto com um mecanicismo que despoja a matéria de dinamismo
e interioridade, como com um processualismo que não admite a existência de
sujeitos estáveis. Pelo contrário, atualmente se favorece mais uma imagem da
natureza na qual desempenham um papel central as pautas, o dinamismo, a
organização e a informação. Esta imagem é plenamente coerente com o
hilemorfismo.
Na natureza existe uma imensa variedade de pautas, que se repetem em
diferentes condições materiais concretas. Atualmente são conhecidas inúmeras
pautas, tanto no âmbito microfísico como no macrofísico, e principalmente nos
viventes. Tudo isto corresponde bem à noção de forma enquanto modo de ser
que se repete em diferentes condições materiais individuais.
No entanto, em determinadas ocasiões, afirma-se que a energia poderia ser
considerada como equivalente à matéria prima tradicional: neste caso, tudo estaria
constituído por energia e as entidades materiais seriam energia “concentrada”.
Pretende-se justificar esta ideia com o recurso a alguns resultados da física, tais
como a equivalência entre massa e energia, a importância dos “campos” de forças,
a transmutação das partículas subatômicas entre si e a equivalência entre diferentes
formas de energia. Sem dúvida, estes aspectos sublinham o caráter básico da
energia. Porém, a energia de que trata a física é uma magnitude que se define em
relação com os métodos próprios da física e sua identificação com uma noção
filosófica extrapola muito o âmbito próprio da ciência experimental. Trata-se,
contudo, de uma ideia sugestiva, porque certamente muitos aspectos da realidade
material podem ser explicados em termos de energia. No entanto, a matéria prima,
entendida como “materialidade”, refere-se, de modo geral, às condições materiais,
O ser do natural 155

e a energia, como magnitude física, refere-se, ao contrário, a características


específicas da atividade natural.

15.5 Os graus do ser físico

Existem na natureza níveis de organização cada vez maiores que, embora


se realizem em condições materiais, contam com dimensões formais cada vez
mais acentuadas. Existem, de fato, graus de integração processual, ação
cooperativa, organização, unidade e potencialidade ativa ou capacidade de
atuação.
Os viventes possuem algumas dimensões formais peculiares. Existe uma
diferença qualitativa indubitável entre os viventes e os que não o são; e, dentro
dos viventes, entre os diferentes graus de vida. Ao ascender na escala, percebe-
se um progresso nas dimensões formais e, por conseguinte, um afastamento da
pura materialidade.
Se por “imaterialidade” entende-se esta acentuação das dimensões
form ais, pode-se sustentar a existência de uma escala ascendente de
imaterialidade. Mas, no mundo físico, esta imaterialidade não se refere a algo
que seja independente das condições materiais.
No caso da alm a humana, a relação entre “ im aterialid ad e” e
“espiritualidade” apresenta-se devido à existência de dimensões formais que
transcendem os condicionalismos materiais. Além disso, apresenta de que modo
é possível uma alma espiritual ser forma de um corpo material ou, em outras
palavras, como é possível as dimensões espirituais existirem em condições
materiais. Embora as dificuldades para conceber este fato não sejam pequenas,
não deveriam levar à negação da sua realidade, que pode ser comprovada
facilmente pela experiência.
Por outro lado, a existência de dimensões espirituais requer, para a sua
adequada explicação, uma causalidade que supere as possibilidades dos entes
materiais. A exigência de uma causalidade transcendente não se dá apenas no
caso da espiritualidade, mas também nos viventes inferiores. Porém, no caso
da espiritualidade, alude-se um título especial: o modo de ser próprio deste nível
é essencialmente superior aos modos de ser dependentes das condições materiais.

15.6 Racionalidade materializada

O hilemorfismo corresponde a diferentes níveis explicativos que, embora


guardem certa relação entre si, não se identificam: o primeiro refere-se à
mudança; o segundo, à constituição dos corpos; o terceiro, à multiplicidade de
156 Filosofia da Natureza

indivíduos entro de uma mesma espécie A estes três níveis, que se encontram
no âmbito físico, dever-se-ia acrescentar-se um quarto, caso se considere a
relação entre o âmbito físico e o metafísico.
Em primeiro lugar, o hilemorfismo foi formulado para explicar a
possibilidade da mudança. A necessidade de admitir um substrato em toda
mudança parece evidente, pois, caso contrário, não seria possível falar de
transformações, mas apenas de aniquilamentos e criações. Afirma-se, então, que
em toda mudança existe um sujeito que se encontra em potência para adquirir
uma forma e a mudança consiste precisamente no processo de atualização dessa
potencialidade. O sujeito desempenha a função de matéria em relação à forma
adquirida através do processo: trata-se da matéria prima nas mudanças
substanciais e da matéria segunda nas mudanças acidentais.
Em segundo lugar, aplica-se o hilemorfismo à construção dos corpos. Os
corpos naturais são essencialmente mutáveis e, portanto, têm de possuir a
composição de matéria e forma que, como acabamos de assinalar, explicam a
possibilidade da mudança. Os diferentes modos de ser são concebidos como
formas ou determinações da matéria.
Em terceiro lugar, o hilemorfismo explica a multiplicidade de indivíduos
dentro de uma mesma espécie. Se os corpos são constituídos por matéria e forma,
a forma refere-se ao que caracteriza cada espécie e a matéria às condições
concretas nas quais este tipo geral existe. Compreende-se, deste modo, que um
mesmo tipo de forma possa existir em indivíduos diferentes.
Estes três níveis explicativos concernem ao mundo físico e relacionam-
se entre si. Além desses, podemos considerar outro nível, referente à relação
entre o mundo físico e o metafísico. Sob esta perspectiva, o hilemorfismo reflete
a existência de uma gradação de perfeições em função dos distintos graus de
imaterialidade. E, à luz de uma metafísica criacionista, a natureza revela-se como
a realização, através de condições materiais, de um projeto racional. A
informação pode ser considerada como racionalidade materializada e os
diferentes graus de ser, como estratos que possibilitam a existência de uma
natureza cujo cume é um ser propriamente racional: a pessoa humana, que, ao
mesmo tempo em que existe em condições materiais, as transcende.
S egunda P arte
159

C apítulo VI

Dimensões quantitativas

O próprio ser das entidades naturais inclui condições materiais inti­


mamente relacionadas com a quantidade. O natural encontra-se distendido nas
condições materiais, tem quantidade: extensão no espaço e duração no tempo.
As dimensões quantitativas são as relacionadas com a quantidade: por
exemplo, a extensão, multiplicidade, divisibilidade, mensurabilidade, numera-
bilidade. Vamos considerar estas dimensões no presente capítulo, deixando a
reflexão sobre os conceitos de espaço e tempo para o seguinte.

16. As propriedades e relações das coisas materiais

Antes de examinar as dimensões quantitativas concretas, vamos considerá-


las em geral, a modo de introdução, sublinhando o seu caráter acidental, a sua
importância para o conhecimento das substâncias e a sua conexão com as demais
propriedades das substâncias.

16.1 A manifestação da substância através de suas propriedades

Os modos de ser acidentais, também chamados simplesmente “aciden­


tais”, definem-se em relação com a substância e com a essência.
Com relação à substância, que é o ente subsistente (possui “ser próprio”),
os acidentes não subsistem, não possuem um ser próprio, são determinações
da substância. Por exemplo, ser grande, pequeno, branco, resistente, não são
entes subsistentes: são propriedades que afetam um sujeito, uma substância. A
substância é o sujeito ou substrato dos acidentes.
Por sua vez, com relação à essência, que expressa o modo de ser funda­
mental de uma substância (ser homem, cachorro, magnólia, proteína, átomo),
os acidentes não pertencem à definição essencial. Isto não significa, porém, que
tenham pouca importância ou que não se relacionem com a essência; não há
dúvida que alguns acidentes têm uma importância secundária e se relacionam
apenas à distância com o essencial, mas outros, ao contrário, se encontram
estreitamente relacionados com a essência e possuem uma grande relevância:
este é o caso, como veremos adiante, da quantidade e de algumas qualidades.
De qualquer modo, os acidentes possuem muita importância no conhe­
cimento da substância c da essência. Com efeito, as substâncias e suas essências
160 Filosofia da Natureza

manifestam-se a nós através dos acidentes (magnitude, cor, resistência, etc.):


não as conhecemos diretamente, mas só indireta e parcialmente através das
propriedades acidentais.
Alguns acidentes são determinações da substância em si mesma e outros
expressam relações de uma substância com outra; por exemplo, possuir um
determinado tamanho não depende da relação com outras substâncias, mas
ocupar um determinado lugar expressa uma relação com os corpos circundantes.
Tanto uns como outros manifestam o modo de ser da substância.

16.2 O quantitativo e o qualitativo

O quantitativo e o qualitativo são duas dimensões que sempre se verificam


no natural. São dimensões acidentais, que não fazem parte da essência das subs­
tâncias; entretanto, nunca podem faltar, têm grande importância para determinar
o modo de ser do natural e encontram-se estreitamente relacionadas.
Na classificação aristotélica dos acidentes, a quantidade e as qualidades
ocupam uma posição de destaque, pois são considerados acidentes intrínsecos,
que se referem diretamente ao modo de ser (acidental) das substâncias. De fato,
as substâncias materiais sempre são extensas e possuem qualidades que
determinam o seu modo de ser.

a) O quantitativo

O quantitativo responde à pergunta: “quanto?”. Refere-se à magnitude de


algo: quanto mede, no aspecto espacial; quanto dura, no temporal; quanta
velocidade, relativamente ao movimento; quantos indivíduos, componentes ou
aspectos existem em um sistema ou em um conjunto de sistemas. E a magnitude
relaciona-se com o número.
Todos os seres naturais estão quantificados, possuem dimensões quan­
titativas: magnitude, extensão, número. Com efeito, o natural é material, e isto
implica ter dimensões quantitativas: a materialidade caracteriza-se, precisamente,
por sua referência a estas dimensões.
A estruturação espaço-temporal refere-se à materialidade e ao quanti­
tativo: supõe distensão no espaço e no tempo. Portanto, ao caracterizar o natural
em função do dinamismo e da estruturação, sublinhamos a função básica que o
material e o quantitativo desempenham para representar adequadamente a
natureza.
Dimensões quantitativas 161

b) O qualitativo

O qualitativo responde à pergunta: “qual?”, no sentido da “qualidade” ou


modo de ser de algo: quais são as suas características, as suas peculiaridades.
O natural possui propriedades qualitativas. De fato, não se esgota nas
dimensões quantitativas; não é possível que o natural se reduza completamente
ao quantitativo, porque as dimensões quantitativas não existem isoladamente,
não têm um ser próprio: existem somente como aspectos dos modos de ser do
natural.
O dinamismo relaciona-se com os modos de ser: supõe a existência de
algumas potencialidades ou capacidades de atuar que correspondem a modos
específicos de ser. Portanto, ao caracterizar o natural em função do dinamismo e
da estruturação, sublinhamos que possui virtualidades, modos de ser específicos
de tipo qualitativo, dos quais surge a atividade natural.

c) Relação entre quantitativo e qualitativo

Entre o quantitativo e o qualitativo há uma assimetria, semelhante à que


existe entre o material e o formal (e pelos mesmos motivos): nada impede a
existência de seres espirituais sem matéria que possuam qualidades também
espirituais (portanto, qualidades sem quantidade); ao contrário, não é possível
existirem seres materiais puramente quantitativos, sem qualidades de nenhum
tipo: não seriam seres naturais, mas puramente matemáticos.
No âmbito natural, o quantitativo e o qualitativo estão entrelaçados. Os
entes naturais possuem estruturação espaço-temporal, dimensões quantitativas.
Os modos de ser qualitativos não são qualidades puras, desligadas do
quantitativo: mesmo que se refiram a aspectos que não são diretamente
quantitativos, existem em condições materiais e, portanto, afetados pela
quantidade.
O quantitativo e o qualitativo, embora não sejam dimensões reais
diferentes, estão entrelaçadas no âmbito natural, como o material e o formal ou
a exterioridade e a interioridade. Além disso, tanto a quantidade como as
qualidades estão também intrinsecamente ligadas ao dinamismo e às relações
entre as entidades: de fato, a atividade das substâncias naturais depende do seu
modo de ser (o agir segue o ser) e o modo de ser das substâncias depende das
suas características quantitativas e qualitativas; e algo semelhante pode ser dito
acerca das relações de uma substância com outras. Isto não pode ser esquecido
quando, na continuação, estudarmos separadamente as dimensões quantitativas
e qualitativas.
162 Filosofia da Natureza

16.3 O quantitativo e o qualitativo no mecanicismo

A objetividade do qualitativo foi tratada antes mesmo de Aristóteles. Os


atomistas gregos afirmavam que a natureza é determinada completamente por
propriedades quantitativas como a extensão, a figura e o movimento local; o
qualitativo corresponderia somente aos efeitos que a matéria causa nos órgãos
dos sentidos e pertenceriam ao âmbito das impressões subjetivas. Também na
Antigüidade, os pitagóricos e, de algum modo, Platão, consideraram o
quantitativo como constitutivo básico da natureza, de tal modo que o estudo
matemático seria indispensável para se chegar a uma compreensão adequada
do natural.
Quando a ciência experimental moderna nasceu no século XVII, o
problema da objetividade das qualidades sensíveis foi colocado em primei­
ro plano. A nova ciência acompanhava-se de uma perspectiva mecanicis-
ta, apresentada como a nova filosofia natural, em polêmica com a antiga filo­
sofia qualitativa. As explicações mecanicistas baseavam-se no quantitativo, e
as qualidades eram consideradas impressões subjetivas carentes de objetividade.
O triunfo da nova ciência foi visto também como o triunfo da perspectiva
mecanicista e quantitativa, que veio a ser a filosofia natural aceita pela maio­
ria até fins do século XIX, ao menos nos ambientes mais relacionados com a
ciência.
Sob esta perspectiva, negou-se a realidade do que foi denominado de
qualidades secundárias (os “sensíveis próprios”, objeto dos sentidos externos:
cor, som, etc.), e sustentou-se que somente as qualidades prim árias (as
relacionadas com a quantidade: magnitude, figura, movimento) são reais. As qua­
lidades secundárias seriam somente impressões subjetivas causadas pelas
qualidades primárias em sujeitos dotados de um determinado aparato perceptivo.
Rechaçaram-se as formas aristotélicas como inúteis, consideradas como quali­
dades ocultas: seriam somente uma etiqueta que, sem nada explicar, apresentava-
se como explicativa, induzindo, portanto, ao erro e freando o progresso científico.
O empirismo daquela época defendia a mesma posição. Por exemplo, John
Locke (1632-1704) escreveu: “as idéias das qualidades primárias dos corpos são
semelhanças destas qualidades e os seus modelos realmente existem nos próprios
corpos; mas cm nada se assemelham às idéias que a qualidades secundárias
produzem em nós. Não há nada que exista nos próprios corpos que se pareça a estas
nossas idéias. Nos corpos que denominamos conforme estas idéias somente existe
um poder para produzir estas sensações em nós; e o que é doce, azul ou quente
segundo uma idéia, não é, nos corpos assim denominados, sem certo volume,
forma e movimento das partes insensíveis dos próprios corpos. Por exemplo, o
Dimensões quantitativas 163

fogo é caracterizado como quente, a neve é branca e fria e o maná é branco e doce
por causa das idéias que produzem em nós.”87.
Na época posterior, com freqüência continuou-se a negar a realidade das
qualidades e pretendeu-se justificar esta negação nos progressos da ciência
matemática da natureza.
Centraremos imediatamente a nossa atenção nos aspectos concretos das
dimensões quantitativas. Esta análise tentará demonstrar que o quantitativo não
existe separado do qualitativo e preparará o caminho para determinar o caráter
objetivo das qualidades.

17. A extensão dimensional

A quantidade é um acidente intrínseco, que se encontra em todas as


substâncias naturais, não se identifica com elas e que tem como efeito ou
manifestação principal a extensão, relacionada com as dimensões dos corpos.
Estes são os temas que abordaremos a seguir.
17.1. A extensão como propriedade básica das substâncias naturais
a) Substância, matéria e quantidade
As substâncias naturais existem em condições materiais. Temos
apresentado esta “materialidade” mediante o conceito básico de “matéria prima”,
que concerne às condições materiais em geral. A materialidade faz parte da
essência das substâncias naturais: encontra-se incluída no modo de ser básico
destas substâncias.
A materialidade refere-se às condições espaciais, às temporais e à sua
combinação no movimento. Mas refere-se a elas de modo genérico: quando se
afirma que algo é material, diz-se que existe somente neste tipo de condições.
Quando tratamos destas condições materiais de modo concreto, falamos
da extensão, da magnitude, da localização, da duração, etc. É fácil perceber que
estas dimensões concretas podem variar, ao menos dentro de certos limites, sem
que mude o modo de ser essencial da substância; neste sentido, diz-se que são
dimensões acidentais. E, para representar de modo unitário estas dimensões
acidentais quantitativas, utiliza-se o conceito de “quantidade” e fala-se de
“quantidade” das substâncias naturais.

87. LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding, livro II, capítulo VIII, n. 15 (a traduçào
foi extraída de: LOCKE, J. Ensayo sobre el entendimiento humano, Madrid: Editora Nacional, 1980, vol. I,
prtgs. 209-210).
164 Filosofia da Natureza

Quantidade, assim, é um acidente das substâncias naturais. Esta


afirmação inclui, implicitamente, outras duas: que a quantidade é um modo de
ser real e que este modo de ser não se identifica com o modo de ser das
substâncias.
Em primeiro lugar, vejamos por que a quantidade é um modo de ser real.
Por um lado, todas as substâncias naturais possuem dimensões espaciais; se não
as possuíssem, reduzir-se-iam a um ponto inextenso: porém, os pontos
inextensos, como os que se empregam na matemática, existem somente em nossa
mente, não são entidades reais. Por outro lado, as substâncias naturais possuem
também dimensões temporais; novamente podemos pensar em “instantes” sem
duração, mas também neste caso, quando aplicamos o conceito de “instante”
ao devir, trata-se de uma idealização da duração real. Podemos concluir que as
substâncias naturais possuem dimensões espaciais e temporais reais. No entanto,
quando falamos de “quantidade”, indicamos precisamente que as substâncias
possuem um modo de ser que inclui estas dimensões: trata-se, portanto, de um
modo real de ser.
Poderi a parecer que este modo de ser não somente é real, mas pertence
ao aspecto essencial das substâncias; com efeito, não corresponde à
“materialidade”, essencial às substâncias naturais? Afirmamos, no entanto, que
a quantidade é um modo de ser acidental, um acidente. De fato, já sublinhamos
que, quando falamos da quantidade, nos referimos às condições materiais
concretas das substâncias e que estas dimensões podem variar sem que mude o
modo essencial de ser: encontra-se, portanto, no nível dos acidentes.
É preciso acrescentar que, ainda que a quantidade expresse um modo de
ser acidental, é um acidente que afeta diretamente o modo de ser da substância
e, justamente por se referir à concretização da materialidade, está presente em
toda substância material. Neste sentido, costuma-se dizer que a quantidade é
um acidente intrínseco, diferentemente de outros acidentes (tais como uma
relação puramente externa ou a localização relativa a outros corpos). Além disso,
é um acidente derivado da matéria, o que destaca a sua relação com as condições
materiais das substâncias.
Por fim, costuma-se dizer ainda que a quantidade é o primeiro acidente
das substâncias naturais. Esta primazia refere-se ao caráter de “substrato” básico
que a quantidade possui e significa que os demais acidentes afetam a substância
“através” da quantidade. Por exemplo, a cor, a densidade, a visão ou qualquer
outra característica das substâncias naturais, existem em condições materiais,
afetam os corpos extensos e atuam através dos órgãos e processos distendidos
no espaço e no tempo. Assim, sublinha-se ainda mais o entrelaçamento entre o
quantitativo e o qualitativo.
Dimensões quantitativas 165

b) A extensão

Segundo a definição clássica, é extenso o que tem partes que estão umas
“fora” das outras (partes extra partes, em latim). É fácil perceber que esta
definição é quase uma tautologia, já que a ideia de partes mutuamente externas
limita-se a explicitar o que já implica a ideia de extensão. Mas é inevitável que
seja assim; com efeito, a extensão é um conceito primário que dificilmente pode
ser explicado com o uso de conceitos mais conhecidos.
A idéia de extensão relaciona-se com a experiência sensível, sobretudo
com a que provém da visão, da audição e do tato. É aplicável, sobretudo, às
entidades, embora, em sentido amplo, também se aplique na vida ordinária a
tudo o que implica distâncias espaciais. É precisamente neste sentido ampliado
que se encontra estreitamente vinculada ao conceito de espaço, analisado mais
adiante.
Neste âmbito, quase todas as discussões filosóficas centram-se em tomo
do espaço; da extensão como tal, não parece possível dizer muita coisa.
Entretanto, sublinharemos um aspecto que não costuma ser mencionado, embora
seja importante: a estruturação espacial.
Temos destacado desde o princípio deste capítulo que a estruturação é
um aspecto básico do natural. Além disso, dissemos que, embora nem tudo na
natureza seja pauta, tudo se articula em tomo das pautas. No âmbito espacial,
estas pautas são as configurações. Essas idéias desempenham uma importante
função dentro de uma representação fiel do natural. De fato, se considerarmos
tão somente a extensão em geral, obteremos uma imagem indiferenciada da
natureza; não obstante, a natureza possui modos de ser muito específicos que,
em grande parte, se manifestam através das configurações espaciais. Uma nova
menção à filosofia cartesiana ajudará a perceber a importância deste problema.

17.2 O reducionismo cartesiano

Descartes reduziu a substância material à extensão, pois a extensão era,


segundo a sua perspectiva, a idéia clara e distinta que podemos ter acerca da
substância material. As qualidades, ao contrário, seriam efeitos produzidos no
sujeito cognoscente como conseqüência da estrutura do seu modo de conhecer
e não possuiriam a objetividade própria do quantitativo, que, além disso, pode
ser estudado utilizando-se a matemática.
Já vimos que a negação das qualidades sensíveis acom panhou o
nascimento moderno da ciência experimental. Galileu negou a realidade objetiva
das qualidades sensíveis, pois elas variam nos distintos sujeitos, não são
166 Filosofia da Natureza

necessárias para o estudo matemático da natureza e porque podemos conceber


a substância corpórea sem qualidade, mas não sem figura e movimento88. Para
Descartes, a substância corpórea reduz-se à extensão, toda mudança reduz-se
ao movimento local e somente as figuras e os movimentos locais que possam
ser objeto de tratamento matemático são propriedades reais dos corpos89.
O mecanicismo identificou a substância corpórea com a extensão.
C onsequentem ente, a natureza reduzia-se a dim ensões quantitativas
indiferenciadas, que nada tinham a ver com o qualitativo. Essa imagem era
facilmente ligada com a negação pura e simples das qualidades: da mesma
maneira, negava-se a sua objetividade, e eram reduzidas às alterações provocadas
nos sujeitos cognoscentes por uma natureza “qualitativamente neutra” . A
redução mecanicista proporcionou a base para a negação de toda dimensão não
quantitativa e apresentou-se como se estivesse assegurada pela ciência mate­
mática da natureza, considerada o único caminho para conseguir conhecimentos
autênticos sobre a natureza.
Afirmamos, ao contrário, que a redução da substância corpórea à extensão
não é adequada à nossa experiência nem ao progresso da ciência. Que não há
adequação com a experiência é patente, pois conhecemos o natural através das
suas qualidades sensíveis. Porém, se consideramos a ciência, percebemos que
o material adota, em todos os seus graus de organização, configurações muito
específicas; portanto, não tem nada a ver com a imagem “indiferenciada” do me­
canicism o, própria de um estágio muito pouco desenvolvido da física
matemática.
Estas considerações evidenciam a existência de uma estreita relação entre
o quantitativo e o qualitativo. Equivalem, de fato, a afirmar que a extensão real
se articula em torno de pautas específicas e que uma extensão “homogênea” ou
“indiferenciada” corresponde mais a uma idealização.

17.3 Características do ente extenso

Comentaremos agora quatro características que se relacionam com a


extensão: a continuidade, a divisibilidade, a mensurabilidade e a individuação.

88. Cfr. GALILEI, Galileu. 11 saggiatore, in Opere, Firenze: Barbèra, 1899-1909, vol. VI, págs. 347-
348.
89. Cfr. DESCARTES, R. Los princípios de la filosofia, 2a. parte, n. 64 {in Oeuvres, editadas por Ch.
Adam e P. Pannery, Paris: Vrin, 1996, tomo VIII-1, págs. 78-79); Meditationes de prima philosophia, mcd.
3, ns. 45-46 {ibid., vol. VII, págs. 43-44).
Dimensões quantitativas 167

a) Continuidade

Ao estudar o significado de quantidade90, Aristóteles afirma que o


quantitativo é divisível em partes integrantes. Fala-se de quantidade discreta
se algo é divisível em partes descontínuas; se for finito, chama-se número e neste
caso fala-se de quantidade numérica. Fala-se de quantidade contínua se algo é
divisível em partes continuas; neste caso, fala-se de quantidade dimensional,
porque se refere à extensão dos corpos. A quantidade discreta dá origem ao
número e a quantidade contínua à linha, à superfície, ao volume, ao tempo, ao
lugar: trata-se da magnitude, que em uma dimensão é a longitude (linha), em
duas dimensões é a latitude (superfície) e em três dimensões é a profundidade
(corpo). No discreto, as partes estão separadas e não coincidem em nenhum limite
comum. No contínuo, as partes coincidem em um limite comum: as partes da
linha coincidem em um ponto, as da superfície em uma linha, o tempo presente
coincide com o pretérito e o futuro.
Nesta perspectiva, a extensão refere-se à quantidade contínua. Uma
substância tem uma unidade e tudo o que a compõe constitui uma continuidade.
Desde então, as partes de uma substância podem ser heterogêneas; basta pensar,
por exemplo, nos diferentes tecidos e órgãos de um vivente. Ademais, esta
heterogeneidade qualitativa ocorre entre as partes de uma mesma substância -
constituintes de uma unidade substancial - e não impede a existência de uma
continuidade quantitativa, porque todas as partes juntas constituem o modo de
ser unitário da substância.

b) Divisibilidade
Dado que a extensão consiste em ter umas partes fora de outras, tudo o
que é extenso é divisível. Efetivamente, não se entende como poderí amos chegar,
por divisão, a partes inextensas; nem sequer entende-se como poderi a existir um
ser material inextenso.
Referimo-nos, claro, à divisibilidade “em tese”. Na prática, esbarramos
com limites que impossibilitam continuar a divisão. Estes limites práticos
existem sempre, ainda que cada vez cheguemos a obter partes cada vez menores.
É possível até que exista algum tipo de limite infranqueável para a divisão física;
no entanto, nem sequer neste caso poderíamos afirmar uma indivisibilidade
absoluta: o material é extenso e, em tese, é sempre divisível, mesmo se, devido
às condições físicas, não for mais possível continuar o processo de divisão.

90. Cfr. ARISTÓTELES. Categorias, 6, 4 b 20 - 6 a 35; Metafísica, V. 13, 1.020 a 7-32.


168 Filosofia da Natureza

Uma objeção clássica consiste em dizer que, se o extenso pode ser dividido
indefinidamente, isto significaria que está composto de infinitas partes; neste caso,
entidades finitas estariam compostas de infinitas partes e deveriam ter uma exten­
são infinita, o que é contraditório. Este aparente paradoxo costuma aparecer sob
o título de divisibilidade do contínuo. A resposta é também clássica e consiste em
distinguir a “divisibilidade potencial”, que sempre pode prosseguir indefinida­
mente, e a “divisão atual”, que sempre proporcionará um número finito de partes:
nunca chegaremos a partes que, a princípio, sejam indivisíveis, de tal modo que
sempre será possível prosseguir a divisão, sem que, contudo, cheguemos a obter,
em nenhum momento, um número infinito de partes em ato.

c) Mensurabilidade

Todo o quantitativo é extenso, tem partes e, por conseguinte, pode ser


dividido e também medido. A divisibilidade implica a mensurabilidade.
Para medir algo, é preciso padronizar uma unidade e comprovar quantas
vezes esta unidade está contida no que se deseja medir. Isto é algo que sempre
pode ser feito, a princípio, quando o que se deseja medir é extenso.
O problema é muito mais complexo quando se procura medir algo que,
por si mesmo, não é quantitativo ou extenso. Este é o caso do espiritual e também
das qualidades materiais. Todavia, na medida em que o espiritual e o qualitativo
se relacionam com o material, podem ser objeto de medição indireta:
propriamente, mede-se o quantitativo, mas esta medida pode proporcionar
informação, ainda que indireta, sobre os aspectos qualitativos associados ao
quantitativo.
De fato, uma parte do processo que conduziu ao nascimento da ciência
experimental no século XVII foi o progresso, realizado durante vários séculos,
na medição indireta de qualidades.

d) Individuação
O quantificado tem uma individuação que se deve precisamente à
quantidade. Com efeito, tudo o que possui quantidade possui, automaticamente,
individuação, porque é extenso e tem umas partes individuais fora de outras.
Atribui-se a individuação das entidades materiais à materialidade e à
quantidade. Seguindo uma expressão clássica, pode-se dizer que o princípio de
individuação dos entes materiais é a matéria determinada pela quantidade
(materia quantitate signata). Assim, mesmo supondo hipoteticamente duas
entidades materiais com modos de ser completamente idêntico, elas serão
diferentes, pois este modo dc ser estará presente em dois indivíduos
Dimensões quantitativas 169

numericamente diferentes: cada um deles possuirá as suas próprias condições


espaço-temporais e a sua própria quantidade.

18. A pluralidade física

Aludimos à distinção aristotélica entre a quantidade discreta e a


quantidade contínua. Esta última, a quantidade contínua, coincide com a
quantidade dimensional c refere-se à extensão dos corpos; as reflexões do tópico
anterior centraram-se completamente nela. Vamos agora examinar a quantidade
discreta, que se dá quando algo é divisível em partes descontínuas e, se este algo
é finito, dá origem ao número e à quantidade numérica.

18.1 Unidade e multiplicidade

Referimo-nos à quantidade numérica ou discreta (aqui, “discreta”


significa “separada”) quando utilizamos números para designar unidades
materiais: por exemplo, quando falamos de duas árvores, três átomos, etc.
“Pluralidade” opõe-se a “unidade”, porque a pluralidade numérica refere-
se a um determinado número de seres: não a um, mas a vários ou muitos. No
entanto, cada um destes seres possui certa unidade; com efeito, se falamos de duas
árvores, é porque ambas são indivíduos, cada uma é “uma” árvore. Se não existisse
a unidade própria de cada ser, tampouco poderia existir a pluralidade que enumera
vários ou muitos seres.
Na reflexão anterior, utilizamos o termo “unidade” com dois significados
distintos, ainda que relacionados, denominados unidade transcendental e
unidade predicamental.
A unidade transcendental é o caráter unitário que um ser possui, a sua
unidade interna pela qual é precisamente “um” ser; a denominação unidade
transcendental na metafísica deve-se ao fato de ser atribuída a qualquer ente
que realmente seja “um” ente, material ou espiritual. Por isso, fala-se de unidade
“transcendental”, uma vez que não se trata de um conceito aplicável a todo ente
e transcende as distinções entre os entes. E por este mesmo motivo constitui um
objeto próprio da metafísica, estudado como uma das propriedades transcen­
dentais do ente.
A unidade predicamental é a unidade dimensional que os entes materiais,
as substâncias e os sistemas unitários possuem. Cada substância tem uma
extensão que se encontra separada das extensões próprias de outras substâncias.
Evidentemente, ambos os sentidos estão relacionados. Tomás de Aquino,
comentando Aristóteles, faz notar que a noção de unidade é analógica, pois se
170 Filosofia da Natureza

diz em sentidos parcialmente idênticos e parcialmente diferentes: a unidade trans­


cendental é aquela que se aplica a todo ente unitário (também, portanto, aos seres
espirituais) e a unidade predicamental é princípio do número, no terreno do
material quantitativo.

18.2 O número

O número é a medida da quantidade discreta (em grego, o termo


correspondente a “número” é “métron”, que significa “medida”). Para medir,
devemos dispor de uma unidade de medida e de uma multiplicidade à qual se
aplica a unidade: o número expressa quantas vezes esta unidade está contida na
multiplicidade que se mede.
Podemos nos perguntar se o número pode ser utilizado também para medir
a quantidade contínua, ou seja, a extensão. Parece que a resposta deve ser
afirmativa; com efeito, acaso não medimos a longitude das linhas, a área das
superfícies, a magnitude dos volumes?
Na realidade, para medir a quantidade contínua, reduzimo-la à quantidade
discreta: dividimo-la em partes reais ou imaginárias, aplicando procedimentos
numéricos à medição do contínuo. Por este motivo, a medição do contínuo nunca
é completamente precisa. Ao contrário, quando medimos a quantidade discreta,
limitamo-nos a enumerar ou contar os entes, que são numericamente diferentes
e podem ser contados com exatidão.
O número de coisas contadas costuma ser chamado de número enumerado
e o número abstrato que se utiliza para contar ou enumerar denomina-se
enumerador. Os números são abstratos, porque não representam nenhuma
entidade concreta, mas um procedim ento para contar as entidades e,
eventualmente, para medir as quantidades contínuas.
Há diferentes sistemas de numeração. O mais básico é o dos números
naturais, obtido por abstração de quantidades de um conjunto: por exemplo, a
partir da existência de três ou cinco ovelhas, abstraem-se os números “três” e
“cinco”, e aplicam-se para contar qualquer tipo de entidades. Os números naturais
servem como base para construções matemáticas mais abstratas.
De fato, as construções matemáticas relacionadas com os números estão
se ampliando. A partir dos números mais diretamente relacionados com a
experiência, como os números inteiros e os números fracionários positivos, que
se referem ao número de coisas que existem (dois, três, cinco) ou a suas frações,
introduziram o número zero, os números negativos, os números irracionais (que
não podem ser expressos como inteiros ou fracionais de inteiros), os números
complexos (que incluem uma parte real e outra imaginária, incluindo a parte
Dimensões quantitativas 171

imaginária e o número “i” que é a raiz quadrada de menos um) e outros tipos
de números cuja definição e uso são objeto da matemática.

18.3 O infinito quantitativo

Em relação à quantidade, surge o problema do infinito. Na experiência,


encontramos quantidades finitas, mas nada nos impede de pensarmos numa
quantidade sem fim, tanto na linha da quantidade contínua como na quantidade
discreta.
O infinito pode ser concebido como atual ou potencial. O infinito atual
consistiri a numa quantidade infinita existente em ato. O infinito potencial é uma
sucessão quantitativa indefinida; cada uma de suas partes é infinita, mas há a
possibilidade de continuar a sucessão indefinidamente.
A existência do infinito potencial está fora de dúvida. Assim o manifesta
a divisibilidade da quantidade contínua. Como vimos, ao dividir um corpo
extenso, obtemos sempre partes extensas, e esta operação pode ser repetida, em
tese, indefinidamente, já que todo extenso pode ser dividido ulteriormente (a
despeito da possibilidade física de realizar tais divisões). Porém, isso não
significa que os corpos extensos tenham infinitas partes; podem ser divididos
indefinidamente, mas sempre obteremos um conjunto finito de partes.
A existência do infinito atual tem sido objeto de discussão desde a
Antigiiidade, especialmente em relação à extensão e à duração do universo. A
cosmovisão antiga costumava representar o universo como finito e inclusive se
pensava que a limitação era uma qualidade das coisas físicas perfeitas. Com o
nascimento da ciência experimental moderna, passou-se a uma cosmovisão que
representava mais o universo infinito em extensão. Na época contemporânea, a
teoria da relatividade propõe um universo finito, mas ilimitado em sua extensão,
e a cosmologia científica inclina-se mais por um universo formado a partir de
um instante inicial, ainda que também se discuta a possibilidade de um universo
com uma duração limitada, mas sem fronteiras temporais. Além disso, não são
poucas as tentativas de completar a imagem do “nosso” universo com a possível
existência de “outros” universos, de modo que o problema da finitude e infinitude
espacial ou temporal volta a aparecer.
Estes problemas encerram enormes dificuldades, talvez insuperáveis para
a mente humana. No entanto, o mais importante do ponto de vista filosófico é
que a finitude ou infinitude quantitativa do universo não tem demasiada
importância no sentido de determinar o seu fundamento último. De fato, ainda
que o universo fosse atualmente infinito no espaço e no tempo, não seria auto-
suficiente: a auto-suficiência não é uma questão dc magnitude, mas de uma ordem
172 Filosofia da Natureza

distinta de perfeição. Isto foi claramente percebido por Tomás de Aquino quando
escreveu: “Ainda que Deus criasse um ser corpóreo infinito em ato, este ser
corpóreo seria infinito em sua quantidade dimensional, mas teria uma natureza
necessariamente determinada em sua espécie, que seria limitada precisamente
porque é uma coisa natural. E, conseqüentemente, não seria igual a Deus, cujo
ser e essência é infinito em todos os sentidos”91. Por este motivo, Tomás de
Aquino sempre sustentou que um universo que possuísse uma duração eterna
deveria igualmente ser criado por Deus, ainda que pela revelação o cristão saiba
que o universo teve um começo.
O infinito ocupa um lugar importante na matemática e foi objeto de
teorias nas quais se distinguiram tipos distintos de infinitude. Contudo, quando
se aplica a matemática à física e nos resultados aparecem quantidades infinitas,
os físicos devem encontrar meios de eliminá-las.

19. A quantificação no conhecimento científico

A ciência experimental apóia-se de modo muito especial nas dimensões


quantitativas da natureza: emprega a matemática para elaborar as suas teorias e
recorre à experimentação, que inclui a medição, para comprovar a validade das
teorias. Vamos agora examinar as características principais deste método e
também a sua validade.

19.1 Matemática, experimentação e medição

Para realizar um experimento científico, devemos isolar os sistemas que


desejamos estudar, de tal modo que possamos prescindir de qualquer interferência
e possamos observar o que acontece em condições bem controladas e repetíveis.
Na maior parte dos casos, um dos aspectos mais im portantes do
experimento é a medição. Em um experimento típico, procura-se determinar
como muda uma variável do sistema em função das mudanças de outras
variáveis; por exemplo, que valores assume a temperatura em função das
variações da pressão e do volume. Mesmo quando se trate simplesmente de
observar algo, a observação costuma estar unida a determinações de valores
numéricos, ao menos nos ramos mais desenvolvidos das ciências.
A medição requer a adoção de unidades, regras para interpretar os
resultados proporcionados pelos instrumentos, e instrumentos que sirvam para
medir. Tudo isso exige o emprego da matemática e não de um modo qualquer:

91. TOMÁS DE AQUINO. Quodl, IX. q. I, a. I, ad I.


Dimensões quantitativas 173

são necessárias estipulações ou convenções que nos permitam formular os


conceitos teóricos e as regras utilizadas na prática.
Com o objetivo de concretizar mais, vamos considerar o que são e como
se utilizam as magnitudes físico-matemáticas. Falamos, para simplificar, de
magnitudes físico-matemáticas, mas as reflexões que seguem valem para todas
as magnitudes utilizadas na ciência experimental: portanto, não só para a física,
mas também para a química, a biologia, etc.

19.2 As magnitudes físico-matemáticas

Tentamos conhecer a natureza, mas a natureza não fala; devemos,


portanto, construir uma linguagem que nos sirva para interrogá-la, a fim de que
nos responda em sua própria linguagem: os fatos. A linguagem científica, que
nos permite dialogar com a natureza, apóia-se em conceitos que, junto com seu
aspecto teórico, contêm uma referência aos resultados dos experimentos. Tais
conceitos são as magnitudes.
É usual distinguir três grandes tipos de conceitos científicos: os classif i-
catórios, os comparativos e os quantitativos. Mediante conceitos classificatórios,
tais como célula, aminoácido, íon, potássio, etc., dividimos em classes os sistemas
ou propriedades segundo possuam ou não determinadas características. Se
estabelecermos uma ordem, obtemos conceitos comparativos; por exemplo, ao
compararmos as massas com uma balança, estabelecemos critérios para delimitar
quando um sistema tem uma massa maior que a de outro. Se fixarmos escalas e
unidades, obtemos os conceitos quantitativos ou métricos, também denominados
magnitudes, que se definem em relação com teorias matemáticas e experimentos
repetíveis. Por exemplo, no caso da massa, é preciso especificar que se trata de uma
magnitude escalar e aditiva (aspectos matemáticos) e indicar métodos para medi-
la (aspecto experimental); assim deixa de ser um conceito intuitivo e converte-se
em uma construção teórica aplicável sempre que seja possível definir os aspectos
mencionados: nos quais se obteve inicialmente o primeiro conceito intuitivo de
massa, mas também de massa dos íons e, em geral, das partículas subatômicas, que
são entidades muito distantes da experiência ordinária.
A seqüência classificatório-comparativo-quantitativo não indica que os
conceitos classificatórios sejam somente um primeiro passo cuja utilidade se
reduza a facilitar a construção de magnitudes. Com efeito, muitos conceitos
classificatórios (como os já mencionados de aminoácido, íon e potássio) não
estão extraídos da experiência ordinária, mas são construídos com o uso dos
resultados teóricos e experimentais de diversas disciplinas e são conseqüência
de trabalhos nos quais intervêm conceitos quantificativos. Conseqüentemente,
174 Filosofia da Natureza

são possíveis diferentes definições do potássio, em função das propriedades


físicas e químicas que, por sua vez, se definem em função de todo um conjunto
de conhecimentos que progridem. Algumas definições são suficientemente claras
em relação a determinados níveis de problemas, enquanto que no nível da
investigação fundamental existem problemas ainda a serem resolvidos.
Surge, neste ponto, uma pergunta razoável: os conceitos da ciência
experimental estão univocamente definidos, de modo que as diversas definições
possíveis correspondem em último termo a uma única que as abarca? A resposta
exige matizações. Com efeito, quando uma disciplina está em seus começos, as
definições costum am ser pouco precisas e, quando se consegue um
desenvolvimento muito maior, multiplicam-se as definições precisas. Um
exemplo ilustrativo a respeito é o conceito de ácido, um dos mais importantes
na química e na biologia. Robert Boyle deu uma primeira definição em 1663,
fundamentando-a nos dados empíricos; em 1884, Svante Arrhenius propôs a
primeira definição conceituai; em 1923, Johannes Nicolaus Brönsted e Thomas
Martin Lowry definiram ácido como toda molécula ou íon que pode doar prótons;
este conceito inclui os ácidos Arrhenius e também cátions e ânions, e caracteriza
os ácidos em função do seu comportamento nas relações químicas; no mesmo
ano, Gilbert Newton Lewis definiu ácido como toda substância que contenha
um íon ou molécula capaz de aceitar algum par de elétrons externos doado por
uma base e, por sua vez, base é toda substância que contém um íon ou molécula
no qual existe um par de elétrons exteriores que possam formar um enlace
covalente com outro íon ou molécula. A definição de Lewis é a mais ampla e
considera como processos ácido-base alguns que não se encaixam nas outras.
Cada uma das definições mencionadas tem um interesse, em função do
tipo de problemas que se busca resolver. A situação em seu conjunto mostra que
podem coexistir definições diferentes de um mesmo termo (neste caso, ácido).
Poderiam utilizar-se termos diversos, mas isto provavelmente teria mais
inconvenientes do que vantagens para a atividade científica.
Importante é, pois, perceber que cada conceito tem um significado, que
abrange as notas que lhe são atribuídas, e uma referência, que indica que tipo
de entidade é representado pelo conceito. Como se viu no caso do ácido, um
mesmo termo científico pode ter vários significados coincidentes apenas em
parte, e várias referências que tampouco se identificam. Isto não constitui um
problema para a ciência, contanto que se delimite de modo adequado os distintos
significados e referências e se estabeleça como cada conceito será aplicado nas
diferentes situações.
Quando se estudam os conceitos básicos de uma disciplina, o problema
se aguça por existirem - tanto no plano teórico como no experimental - limites
Dimensões quantitativas 175

para as possibilidades de definir. Uma vez que para se formular um conceito é


preciso recorrer a outros, deverão existir alguns conceitos primeiros que se
definam por si mesmos. Poder-se-ia dizer que isto é factível recorrendo à
experimentação, ou seja, definindo os conceitos básicos somente mediante o
recurso a experimentos. Porém, também existem limites neste plano, já que todo
experimento exige que se admitam alguns pressupostos. Parece, pois, que se
chega a um beco sem saída, de modo que não seria possível definir rigorosamente
os conceitos científicos básicos e, portanto, tampouco os conceitos derivados a
partir deles. É assim realmente?
Se nos ativermos à pura lógica, sim. Se nos propusermos a estabelecer a
ciência experimental sobre uma base inamovível na quais os conceitos
fundamentais sejam produto de fatos e inferências lógicas, encontramos limites
infranqueáveis. Isto tem uma conseqüência de grande importância. Na
fundamentação da ciência experimental, necessariamente devem intervir
acordos, convenções ou estipulações. Entretanto, as estipulações necessárias
para estabelecer os conceitos científicos não são arbitrárias.
A construção dos conceitos científicos exige interpretações. Não é o
simples resultado da aplicação da lógica formal a fatos puros. Vamos examinar
em que medida isso afeta a validade das conclusões da ciência experimental.

19.3 Alcance do método físico-matemático

Sublinhamos que a construção das magnitudes científicas exige uma dose


de interpretação. Contudo, interpretação não significa arbitrariedade: as
estipulações que se adotam devem conduzir a teorias coerentes e a resultados
experimentais compatíveis com os dados obtidos na experimentação.
A necessidade de recorrer a estipulações não impede que possamos
conseguir um alto rigor científico. Se nos ativéssemos a considerações puramente
lógicas, poderiamos concluir que na ciência experimental não se realizam conhe­
cimentos seguros; de fato, esta interpretação um tanto relativista está amplamente
difundida na epistemologia contemporânea. Entretanto, é possível evitar este
relativismo se percebermos que existem critérios empregados pelos cientistas,
muitas vezes de modo implícito, que garantem a validade dos resultados obtidos.
Estes critérios podem ser reduzidos, em último termo, a cinco: a capaci­
dade explicativa, a capacidade predicativa, a precisão das explicações e pre-
dições, a variedade de provas independentes e o apoio mútuo entre diferentes
teorias. Estes são os critérios que se aplicam na prática científica. Ainda que
não garantam que as construções científicas sejam verdadeiras em todos os seus
aspectos, é muito difícil que uma construção falsa as corrompa. A sua aplicação
176 Filosofia da Natureza

conduz a construções científicas que, embora sejam aproximativas e perfectíveis,


aproximam-se progressivamente da verdade.
Para interpretar corretamente esta aproximação é preciso considerar que
a verdade científica sempre é contextual e, portanto, parcial. De fato, ainda que
as nossas teorias correspondam à realidade, não são simples cópias dela:
expressam-se mediante conceitos que, como estamos vendo, são nossas constru­
ções. Por conseguinte, para estimar a validade de uma teoria, é preciso considerar
o contexto conceituai no qual se formula. Assim, com estas precauções, podemos
afirmar que na ciência experimental conseguimos uma verdade autêntica, ou
seja, conhecimentos que correspondem à realidade.
Não se pode sequer dizer que a ciência experimental nos permite conhecer
somente os aspectos quantitativos e, portanto acidentais, da natureza. Sem dúvida,
utiliza métodos quantitativos sempre que é possível, mas temos visto que os
acidentes nos levam ao conhecimento das substâncias. De fato, através de métodos
quantitativos chegamos a conhecer já muitos aspectos da realidade que, de outra
maneira, nunca haveríamos conhecido: o movimento da Terra ao redor do Sol, que
implicou uma mudança radical na cosmovisão e em suas implicações filosóficas;
a natureza das estrelas, que na Antigüidade eram consideradas como pertencentes
a um mundo autônomo que freqüentemente se identificava com o divino; os
mecanismos fundamentais da vida, que se desenvolve graças a um programa
genético, que permitiu dissipar muitos mal-entendidos em tomo das semelhanças
e diferenças entre os viventes e os não-viventes; os componentes fundamentais da
matéria e as interações básicas; e muitos outros aspectos da natureza que
dificilmente podem ser considerados como meramente acidentais.

20. Filosofia da matemática

A partir do número e da qualidade dimensional constroem-se, respecti­


vamente, a aritmética e a geometria, de onde buscamos obter novos conhe­
cimentos através de demonstrações lógicas. Outros ramos da matemática desen­
volvem-se desde a Antigüidade e não cessam de progredir em nossos dias.
Desde a Antigüidade e até os nossos dias, foram propostas diferentes
interpretações acerca da natureza e do alcance da matemática.

20.1 Interpretações da matemática

Na Antigüidade grega, os pitagóricos perceberam que a natureza tem


importantes aspectos que podem ser representados matematicamente e, assim,
atribuíram ao número e à matemática um papel essencial na explicação da
Dimensões quantitativas 177

realidade. Esta linha foi, de algum modo, continuada pelo platonismo, segundo
o qual os objetos matemáticos eram considerados existentes num mundo ideal,
do qual participam as coisas sensíveis. Para Aristóteles, a matemática é o estudo
abstrato da quantidade que, embora exista no mundo físico, é considerada pela
mente fora da matéria sensível.
Os pioneiros da ciência m oderna no século XVII atribuíram uma
importância decisiva à matemática. Já vimos que Descartes chegou a identificar
a substância material com a extensão, o que lhe permitia justificar a função
insubstituível da geometria no estudo da natureza. Galileu afirmou que a natureza
é como um livro escrito em linguagem matemática. Desde a consolidação da ciên­
cia experimental naquela época, a matemática continuou o seu desenvolvimento
e propôs novas interpretações filosóficas que, em boa parte, giravam em tomo do
racionalismo e do empirismo. O racionalismo chegava, nos casos mais extremos,
a outorgar à matemática um caráter a priori, independente de toda experiência, en­
quanto que o empirismo sublinhava que a matemática depende da experiência.
Durante a segunda metade do século XIX, algumas importantes novidades
levaram os teóricos a repensar os conceitos fundamentais tanto da física quando
da matemática. Na física, chegou-se a pensar que a obra de Newton tinha um
caráter definitivo e que os ulteriores progressos só seriam acréscimos de novos
elementos a um edifício já construído; novas abordagens foram minando estas
idéias e prepararam o terreno para a teoria da relatividade e para a física quântica
que, desde o século XX, provocaram uma mudança radical na avaliação das
teorias físicas. Na matemática, desde a Antigüidade, admitia-se a validade da
geometria euclidiana, considerada inclusive como a geometria própria do mundo
real; todavia, mostrou-se que era possível construir geometrias não-euclidianas,
que eram logicamente consistentes e que foram aplicadas com grande êxito às
novas teorias da física.
Esta renovação da matemática e o desenvolvimento da lógica simbólica
conduziram a novas idéias na filosofia da matemática, nas quais intervieram
muitas vezes não só os filósofos, mas também os matemáticos. O logicismo tentou
reduzir a matemática a princípios meramente lógicos, chegando a identificar de
algum modo a matemática com a lógica. Oformalismo sublinhou a importância
da axiomatização, tentando uma autofundamentação da matemática na qual não
seria necessário recorrer a princípios intuitivos externos. Os famosos trabalhos
realizados por Kurt Gödel em torno de 1931 mostraram os limites com os quais
esbarra qualquer tentativa de formular sistemas matemáticos de forma totalmente
auto-suficiente, mesmo quando se trata de ramos simples da matemática. O
intuicionismo, por sua vez, rechaçava o platonismo dos lógicos; negava que os
entes matemáticos tivessem uma espécie de existência ideal própria e sublinhava
178 Filosofia da Natureza

que são o resultado das nossas construções mentais, motivo pelo qual também
estava em desacordo com os formalistas: em última instância, seria preciso
recorrer a certas intuições primitivas.
As correntes mencionadas deram lugar a abordagens sincréticas e a
matizações entre seus defensores. Em geral, admite-se que a matemática não é
redutível à lógica e tampouco parece correto afirmar que seja um conjunto de
construções meramente convencionais.
Sem dúvida, a matemática é construção nossa. Algumas de suas noções
mais elementares guardam estreita relação com a experiência: sobretudo os
números inteiros positivos e os fracionários. Entretanto, quando introduzimos uma
notação matemática abstrata e definimos operações que não se relacionam
im ediatam ente com a experiência, criam os um mundo que possui certa
consistência própria. Com efeito, uma vez que definimos um determinado sistema
matemático, podemos descobrir muitas propriedades e conclusões que pareciam
estar à espera de que as descobríssemos, porque são uma conseqüência do sistema
que construímos. Às vezes acontece que se descobrem conclusões cuja validade
parece clara e que, não obstante, não têm, de modo algum, vida própria.

20.2 Construção matemática e realidade

Devido a esta vida própria, a matemática tem, por si mesma, interesse;


desde a Antigüidade até os nossos dias, foi cultivada sem que se buscasse algo
alheio aos seus próprios objetivos. Mas, além disso, aplica-se com êxito ao estudo
da natureza e isto lhe confere um valor suplementar.
Se pensarmos em operações matemáticas que se reduzem a cálculos mais
ou menos intuitivos, é lógico que estas operações podem ser aplicadas à
resolução de problemas práticos. Entretanto, certo ar de mistério parece rodear
o emprego de teorias matemáticas abstratas para resolver problemas que também
são bastante sofisticados. Poder-se-ia dizer que existe um isomorfismo entre a
matemática e a natureza?
Hoje em dia não parece tão certo afirmar, como pensava Galileu, que a
natureza é como um livro escrito em linguagem matemática e que o cientista
deve empregar essa linguagem se quiser descobrir os seus segredos. Com efeito,
a matemática ampliou muito o seu âmbito desde a época de Galileu, e hoje
aplicam-se com êxito ao estudo da natureza muitas teorias que pouco ou nada
têm de intuitivo, e não se pode estabelecer uma correspondência clara entre estas
teorias e a realidade.
É certo que a matemática proporciona um instrumento extraordina­
riamente efetivo para o estudo da natureza, mas para explicar este êxito não é
Dimensões quantitativas 179

necessário pensar que existe um isomorfismo entre a matemática e a natureza.


A explicação é mais simples. A matemática proporciona um poderoso instru­
mento para definir magnitudes cujos valores podem ser medidos experimental­
mente, para relacionar magnitudes entre si e para realizar operações lógicas que
relacionam uns enunciados com outros. Desde o momento em que dispomos de
teorias matemáticas que permitam realizar tudo isso, a aplicabilidade da
matemática à realidade deixa de ser um mistério.
O que é mais misterioso no emprego da matemática nas ciências é que,
em determinadas ocasiões, as teorias físico-matemáticas conduzem à predição
de efeitos cuja existência não poderia ser prevista de nenhum modo e que,
entretanto, são uma conseqüência lógica da teoria e se comprovam com grande
precisão. Com razão costuma-se considerar este tipo de previsões como um dos
argumentos mais poderosos em favor da validade das teorias.
Quando se aplica a matemática nas ciências, geralmente se prescinde de
matizes que são importantes para o matemático puro e que, no entanto,
constituiriam um estorvo para quem trabalha na ciência experim ental.
Freqüentemente, a matemática pura é demasiado complexa para ser aplicada ao
estudo dos problemas reais e por isso deve ser simplificada. Requer-se uma
especial habilidade para aplicar os conceitos matemáticos aos problemas empí­
ricos, e parte desta habilidade consiste em simplificar a matemática para que,
conservando o rigor, se converta em um instrumento útil.
Esta é uma situação bem conhecida. Por exemplo, na segunda metade do
século XIX, John William Strutt (Lord Rayleigh) destacou-se em sua abordagem
matemática de problemas de dinâmica, acústica, ótica e eletricidade; embora
fosse graduado em matemática, considerava-a somente uma técnica auxiliar para
delinear os problemas do ponto de vista da física, e explicou este aspecto do
seguinte modo: “Nas investigações matemáticas tenho o costume empregar os
métodos que se oferecem naturalmente a um físico. O matemático queixa-se, e
às vezes (é preciso reconhecê-lo) com razão, de rigor deficiente. Mas este assunto
tem dois lados. Pois, por mais importante que seja conservar um nível
uniformemente elevado na matemática pura, pode ser conveniente ao físico, uma
vez ou outra, conformar-se com argumentos satisfatórios e, do seu ponto de vista,
concludentes. Para a sua mentalidade adestrada em uma distinta ordem de idéias,
o procedimento mais severo do matemático puro pode não lhe parecer mais
demonstrativo, mas menos”92. R. B. Lindsay comentou a respeito da educação

l12. RAYLHKilI, Lord. The Theiry ofSound. New York: Dover, 1945, prefácio. A citação foi extraída
de IIOWARD, John N. "Principalcs contribuciones de John Willian Strutt, tercer baron de Rayleigh'', in AR1S,
Rulhcrlbrd, DAV1S, lloward T. e STUHWLR, Roger II. (editores). Resortes de Ia creatividad cientifica:
cnsoyos sobre fundadores de Io ciência moderno, México: l-ondo de cultura econômica, 1989, pág. 150.
180 Filosofia da Natureza

matemática que Lord Rayleigh recebeu em Cambridge: “não era, em sentido


puro, uma matemática rigorosa, mas vigorosa"93.
O recurso à matemática, em si mesmo, tem com freqüência a forma de
uma estratégia de grande envergadura. Por exemplo, na física fundamental que
investiga a estrutura básica da matéria, têm grande importância as simetrias que,
ao mesmo tempo cm que se referem a fenômenos físicos, recebem um tratamento
matemático cheio de sutilezas, no qual ocupam um lugar especial as teorias de
gauge ou de calibre. Deste modo, desempenham uma importante função as
invariâncias que se mantêm ao passar de uma simetria global a uma local,
introduzindo novos cam pos, e esta operação m atem ática recebe uma
interpretação física. Tais estratégias implicam a adoção de todo um conjunto
de estipulações, mas se manifestam muito fecundas. Algo semelhante ocorre com
a renormalização, procedimento utilizado para eliminar as quantidades infinitas
que aparecem em certas teorias de campos; o seu emprego na década de 1940
permitiu ajustar os valores teóricos de certas magnitudes - como o momento
magnético do elétron - aos valores observados com um grau de precisão jamais
alcançado na história da física.
Tais meios, se por um lado parecem impor limites à objetividade, devido
aos aspectos convencionais que incluem, por outro, permitem estudar fenômenos
muito distantes da experiência ordinária mediante procedimentos intersubjetivos.
O que em princípio parece limitar a objetividade, em outro sentido é a sua
garantia. Em outras palavras, é precisamente o recurso a construções teóricas
de alto nível, com o que implica de convencional, o que permite formular as
teorias com um alto grau de intersubjetividade. Quando a matemática se adapta
aos problemas físicos, embora possa perder algo do rigor matemático, não há
nenhum problema em manter a intersubjetividade e em alcançar a verdade.
Ainda que a matemática não seja uma simples tradução da realidade,
constitui um poderoso instrumento para estudar tudo o que pode se relacionar
com os aspectos quantitativos e que fazem parte essencial da ciência
experimental.

93. lhicl. A frase ií extraída da Introdução de Lindsay íl obra de Rayleigh citada na nota anterior.
181

C apítulo VII
Espaço e Tempo

Na caracterização do natural que estamos propondo, o dinamismo próprio


e a estruturação espaço-temporal encontram-se entrelaçados. Ainda sobre as
dimensões quantitativas, vamos examinar agora outras dimensões, as que se
relacionam com o espaço e as que se relacionam com o tempo. Consideraremos
também a implicação mútua que existe entre essas duas dimensões.

21. L ocalização e espaço

As duas características espaciais básicas são a extensão, que se refere ao


aspecto interno das entidades, e a localização, que inclui relações com outras
entidades. Já estudamos a extensão e as características relacionadas com ela.
Agora estudaremos a localização e também o espaço, conceito abstrato
estreitamente relacionado com a extensão e a localização.

21.1 A presença local

A localização ou atribuição de um “lugar” sempre inclui relações de uns


corpos com outros, porque “onde” um corpo se situa depende da sua relação
com os corpos circundantes. Nem sempre esta localização é fácil na experiência
ordinária: com efeito, aprendemos a localizar os corpos mediante um conjunto
de experiências muito variadas e com um valor limitado; por exemplo, quando
tentamos situar os corpos distantes, facilmente cometemos erros importantes.
As ciências proporcionam procedimentos para conseguir localizações confiáveis
em muitos casos dificultosos, ou mesmo impossíveis para o conhecimento
ordinário. Mas a localização sempre se refere a um ponto de referência. É lógico,
portanto, que tradicionalmente se tenha afirmado que o acidente onde (ubi, em
latim) é extrínseco.
a) A noção aristotélica de localização
Na cosmovisão aristotélica, segundo a qual a Terra permanecia imóvel
no centro do universo, afirmava-se que os quatro elementos (fogo, ar, água e
terra) tendem para o seu “lugar natural” por sua própria natureza. A região natural
do fogo é a parte superior do mundo sublunar, fronteiriça com os astros; a do ar
é a região intermediária entre a anterior e a Terra; a da água encontra-se na
182 Filosofia da Natureza

superfície da Terra; e a do elemento “terra” encontra-se no centro da Terra. Cada


elemento tende a mover-se até o seu lugar natural e os corpos sublimares,
compostos dos quatro elementos, movem-se para um lugar ou outro em função
da sua composição. Os corpos celestes, ao contrário, estariam feitos de uma
matéria diferente dos quatro elementos (a “quinta essência”) e tinham uma
perfeição superior, participando de algum modo do divino; pensava-se que eram
ingênitos e incorruptíveis, e que possuíam um movimento circular e perpétuo
em suas próprias esferas: cada um giraria em sua própria esfera, sendo as
diferentes esferas concêntricas, com a Terra no centro, de tal modo que a última
esfera era a que continha as “estrelas fixas”. Ainda que as estrelas se movessem
em grandes velocidades, encontravam-se tão distantes de nós que as mudanças
em sua posição relativa só seriam percebidas ao longo dos séculos. Assim, elas
pareceriam encontrar-se sempre na mesma posição, sobre uma esfera que gira
ao redor da Terra, efeito que, na realidade, deve-se à rotação que a Terra realiza
sobre si mesma a cada vinte e quatro horas.
Essa cosmovisão teve uma grande influência durante dois mil anos, e foi
um dos aspectos criticados e superados pela nova ciência do século XVII. A partir
deste momento, o conceito de “lugar natural” e de “lugar” em geral deixou de
ter um especial interesse filosófico. Certamente, é muito importante para as
ciências determinar a localização dos corpos, mas este é um problema a ser
abordado com os instrumentos conceituais e experimentais próprios das ciências.
O que é relevante sob o ponto de vista das ciências não é estabelecer uma
localização “absoluta”; o que interessam são localizações relacionadas a sistemas
de referência.
Entretanto, a idéia aristotélica de localização corresponde à experiência
ordinária e expressa uma característica real das entidades naturais. Com efeito,
encontrar-se em um lugar determinado é algo acidental, mas real. Encontrar-
se em um lugar não é o mesmo que encontrar-se em outro. Ademais, ainda que
sob um ponto de vista puramente prático, a localização pode ter conseqüências
muito importantes.
Não é necessário admitir a cosmovisão aristotélica para perceber que a
localização é algo real e que a idéia aristotélica de “lugar” conserva seu interesse,
ainda que prescindamos dos quatro elementos e dos lugares naturais.
Aristóteles definiu o lugar como a superfície imóvel do corpo continente,
imediatamente contígua ao corpo localizado94. Este conceito permanece válido
contanto que notemos que não pretende se situar na linha das definições
científicas e que a “imobilidade” de que fala é sempre relativa. Trata-se de uma

94. Cfr. ARISTÓTELES, Física. IV. 4, 212 a 20.


Espaço e tempo 183

idéia próxima da experiência ordinária. Assim, considera-se que um peixe que


está na água permanece no mesmo lugar se não se move, ainda que a água que o
rodeia se desloque; evidentemente, sempre se pressupõe a existência de algum
ponto de referência, por exemplo, a rocha ou a costa e o fundo do mar, no caso
do peixe: portanto, a imobilidade da superfície circundante não é absoluta. Sem
dúvida, a definição elaborada por Aristóteles teria uma grande importância se a
sua cosmovisão fosse verdadeira; como não o é, a sua importância é menor, mas,
na medida em que a “localização” é real, o conceito de “lugar” também tem certa
realidade.

b) A localização como modo de ser acidental


Quando atribuímos uma localização aos corpos, referimo-nos a algo real,
ainda que seja acidental. Podemos dizer que a dotação de um lugar, ou seja, o
que tradicionalmente se denomina “acidente ubi" (ou “onde"), refere-se a um
modo de ser real, acidental e extrínseco, que consiste em uma determinação
real em relação às dimensões dos outros corpos.
É algo real, porque a localização supõe que um corpo se encontra em
contato com as dimensões dos outros corpos. Se admitimos que a mudança de
lugar, movimento local ou deslocamento é algo real, também devemos admitir
a realidade da localização, sem a qual não teria sentido falar de mudança de lugar.
É um modo de ser acidental, porque não afeta o modo de ser essencial da
substância. Desde já, a ocupação de um determinado lugar pode ter importantes
conseqüências e inclusive provocar uma mudança substancial, mas isto será
devido, em tal caso, a circunstâncias particulares.
Além de real e acidental, é um modo de ser extrínseco, porque é predicado
de um corpo em relação a outros. O que é intrínseco à substância é ter dimensões.
Que estas dimensões se encontrem em contato com as dimensões concretas de
outros corpos é algo extrínseco, que por si mesmo não afeta a constituição interna
da substância.
De qualquer maneira, a localização, em geral, é um modo de ser próprio
de todas as substâncias materiais. Os seres naturais existem em condições mate­
riais e uma delas, muito importante, é a sua circunscrição em um lugar. Por sua
própria natureza, o ente natural ocupa algum lugar.
A localização relaciona-se com a quantidade e, de algum modo, pode ser
considerada uma conseqüência dela. Não obstante, dado que a quantidade é um
acidente intrínseco, parece mais apropriado considerar a localização como um
acidente distinto da quantidade.
184 Filosofia da Natureza

c) Modos de presença não-localizada


Além da localização circunscricional, ou seja, a ocupação de um lugar
em relação às dimensões de outros corpos, existem outros modos de presença.
Alguns se referem às substâncias materiais e estão relacionados com a presença
local; outros se referem às criaturas espirituais e à presença de Deus no mundo
criado: ainda que o estudo destes últimos seja próprio da metafísica, também
nos deteremos neles porque a sua consideração ajuda a obter uma visão mais
completa das questões que estamos considerando95.
Em primeiro lugar, algo pode estar presente em outra coisa como a parte
quantitativa no todo de que fa z parte: assim, o coração está contido no corpo
de um homem ou de um animal. Evidentemente, há neste caso uma localização
circunscricional, mas, além disso, faz referência a uma unidade superior que
contém diversas partes relacionadas entre si. Isto tem grande importância ao
considerarmos a estruturação espaço-temporal própria do natural. Com efeito,
a natureza está organizada em torno de pautas especificas, o que implica na
existência de relações igualmente específicas entre a posição que as diversas
partes ocupam nas total idades.
Em segundo lugar, algo pode estar em outra coisa como um ato em seu
sujeito. Por exemplo, pode-se dizer que o acidente está na substância deste modo,
atualizando-a de um modo real ainda que não essencial. Este tipo de presença,
por si mesma, não é local nem circunscricional. Também se afirma, nesta linha,
que a substância se encontra totalmente em cada uma das partes dos corpos e
não se encontra localizada em nenhuma parte concreta. Sobre a alma humana,
diz-se que está toda em todo o corpo e em qualquer parte do corpo: por isso não
tem sentido buscar um ponto físico onde se unam a alma e o corpo: este ponto
ou lugar não existe, já que a alma, como forma substancial, informa todo o corpo
e cada uma das suas partes. Este modo de estar presente denomina-se, na termi­
nologia clássica, presença a modo de substância (per modum substantiae), indi­
cando precisamente que é assim que a substância está presente em todas as suas
dimensões físicas. Ainda que não se trate diretamente de uma presença circuns-
cricional, diz-se que é acidentalmente circunscricional, porque se refere a um
corpo localizado: assim, pode-se dizer que a alma se encontra nas dimensões às
quais se circunscreve o corpo e que “se move” quando o corpo se translada.
Estas idéias aplicam-se no âmbito da teologia, quando se considera a
presença real de Cristo na Eucaristia, onde Cristo está presente com a sua divin­
dade e com a sua humanidade, e, portanto, com a sua quantidade extensiva; mas

95. TOMÁS DE AQUINO aborda este tema em seu comentário à Física de Aristóteles: cfr. In Phys.,
IV, lectio 4.
Espaço e tempo 185

esta presença não está localizada circunscritamente: de modo milagroso, as


dimensões do corpo de Cristo não estabelecem contato com as dimensões dos
corpos circundantes e a presença de Cristo realiza-se neste caso a modo de
substância; isto permite compreender de algum modo que Cristo possa estar
presente realmente, mas não circunscritamente, em muitos lugares diferentes,
sob as espécies sacramentais, e que esteja presente em cada parte das espécies
sacramentais se estas se dividirem.
Em terceiro lugar, algo pode estar presente como um indivíduo que faz
parte de um conjunto ordenado. Quando se trata de substâncias materiais, este
tipo de presença relaciona-se estreitamente com o primeiro que mencionamos
e com a existência de estruturas e pautas espaciais. Porém, aqui nos referimos a
indivíduos completos, não somente a partes, e, além disso, neste tipo de presença,
também se pode incluir as substâncias espirituais.
Em quarto lugar, algo está presente em tudo o que recai sob o seu poder.
Deste modo, pode-se dizer que alguém com autoridade está presente de algum
modo no que está sob seu poder. Por exemplo, a autoridade legislativa está
presente em tudo que estiver regulado pelas leis promulgadas, na medida em
que estas leis possibilitam ou promovem a existência de determinadas situações.
Como todo o criado depende completamente de Deus, autor do ser de tudo o
que existe, Ele está presente em todo o criado, presença que abarca a ação
fundante pela qual Deus dá o ser a tudo e a providência ou o cuidado que Deus
tem de todos os seres de acordo com o seu plano.
Em quinto lugar, existe uma presença baseada na causalidade, pela qual
a causa está no efeito que produz e o efeito está de algum modo em suas causas.
Assim, o artista está presente em suas obras de arte, o conhecido no que conhece,
o amado em quem o ama, e reciprocamente. Dessa forma, Deus está presente
em todo o criado como sua Causa Primeira, autor do ser; trata-se da presença
mais íntima que existe, já que se estende a todo o ser de todos os entes, como
causa do próprio ser. Por este motivo, e levando em conta que o ser de Deus é
distinto do ser dos entes, pode-se dizer que Deus é mais íntimo a cada coisa do
que ela acerca de si mesma.
Também se pode dizer, portanto, que as criaturas estão em Deus, e muito
especialmente as criaturas espirituais, por sua estreita relação com Deus. Ao
concordarem com estas idéias, atualm ente alguns autores defendem um
panenteísmo que, em si mesmo, nada tem a ver com o panteísmo. Assim como o
expressam seus nomes, o panenteísmo (pan-en-teísmo) significa que tudo está
presente em Deus, o que, se se mantiver a distinção entre Deus e as criaturas, é
verdade e coincide com o expressado por São Paulo em seu discurso em Atenas.
Ao contrário, o panteísmo (pan-teísmo) significa que, de algum modo, tudo é
186 Filosofia da Natureza

Deus, parte de Deus ou a sua manifestação, o que é falso e impossível. Entretanto,


algumas versões do panenteísmo não parecem respeitar suficientemente a
distinção entre Deus e as criaturas quando, para explicar a ação de Deus no mundo,
apresentam uma imagem confusa de Deus; falam, por exemplo, de um “deus
bipolar” que, sem deixar de ser Deus, estaria sujeito à mudança, ao sofrimento,
etc.: este tipo de raciocínio encontra-se em algumas versões da “filosofia do
processo” (process philosophy) e da “teologia do processo” (process theology).
Em sexto lugar, algo está na presença de alguém quando se encontra
diante de sua vista ou, em geral, sob o seu conhecimento. Podemos ter presentes
coisas ou pessoas em um momento determinado, enquanto estiverem sob nosso
conhecimento. Também neste sentido, utilizado na vida ordinária, todo ente
criado encontra-se sob o conhecimento de Deus, uma vez que Ele conhece
perfeitamente tudo como causa primeira do seu ser; e nós podemos ter este modo
de presença de Deus quando nos sabemos vistos, escutados e atendidos
amorosamente por Ele96.

d) A não-localidade na física contemporânea


Atualmente, por motivos relacionados com a física, os problemas
referentes à localização alcançaram um novo auge. As discussões em torno da
“localidade” e da “não-localidade” na física quântica têm repercussões científicas
e filosóficas: relacionam-se com a possibilidade de ações físicas que se
propaguem a uma velocidade maior que a da luz e com a interpretação da física
quântica97. Trata-se, em poucas palavras, de saber até que ponto e de que maneira
estão conectados acontecimentos aparentemente independentes. Alguns
experimentos parecem indicar a existência, em alguns casos, de correlações que
não correspondem às idéias intuitivas98.
Apesar de se admitir que a física adota uma perspectiva diferente às da
metafísica e da teologia natural, alguns interpretam os resultados atuais referentes

96. TOMÁS DH AQUINO explica a onipresença do Criador no universo por essência, potência e
presença: cfr. Snmma Theotogiae, I, q. 8, aa. 1, 3 e 4.
97. É um problema difícil e muito debatido, sobre o qual não há unanimidade entre os cientistas. Existe
uma ampla bibliografia. Cfr.. por exemplo: RED] 1EAD, M. lncompteteness, nonlocality, andrealism, Oxford:
Oxfor Universitv Press, 1987. Sobre as repercussões, tanto científicas como filosóficas, deste problema, cfr.
SUÁREZ, A. '"Unentscheidbarkeit. Unbestimmtlieit. Nicht-Lokalitãt. Gibt es unverfügbare
Causalverbindungen in der physikalischen Wirklichkeit?", in REICHEL, H. C. e PRAT, E. (editores).
NaturWissenschft un Weltbild. Mathematik und Qnantenphysik in unserem Denk - und Wertesystem, Wien:
Verlag Holder-Pichler-Tempsky, 1992, págs. 223-264.
98. O experimento mais famoso neste sentido foi o realizado por Alain Aspect e sua equipe em Paris,
em 1982. Foi uma versão do experimento proposto por Einstein em 1935, a respeito das primeiras discussões
sobre a teoria quântica. Uma introdução a estes temas encontra-se em: ARTIGAS, M. El homhre a Ia luz de
Ia ciência, Madrid: Palabra, 1992 (capítulo "Hl microcosmos y el hombre"). págs. 47-70.
Espaço e tempo 187

à não-localidade na física quântica como um elemento que poderia lançar novas


luzes sobre a ação divina no mundo99.
Sob o ponto de vista filosófico, são temas submetidos a debate. Em todo
caso, a existência destas correlações parece sugerir novas perspectivas sobre a
unidade da natureza e das conexões estruturais entre seus componentes: portanto,
encontramos novamente uma imagem que contradiz àquela apresentada pela
analítica mecanicista.

21.2 O espaço

A partir da extensão dos corpos e das distâncias entre eles, construímos


uma noção geral de espaço que foi objeto de múltiplas interpretações tanto pelas
ciências quanto pela filosofia. Consideraremos, primeiramente, algumas interpre­
tações do espaço que tiveram especial importância. Em seguida, determinaremos
que tipo de realidade corresponde ao espaço e, por fim, examinaremos a natureza
e significado dos espaços matemáticos.

a) A noção de espaço

Na cosmovisão antiga, na qual o universo era representado com um


conjunto “fechado” de seres com limites fixos, o conceito de espaço tinha pouca
importância; o que realmente importava eram os “lugares” que ocupavam ou
para os quais os corpos tendiam. Ao contrário, quando a física matemática
afirmou-se no século XVII, a situação foi invertida: o universo era representado
como contido no espaço homogêneo e infinito da física newtoniana e, com isso,
o problema dos lugares naturais deixou de ter relevância.
Sob a autoridade de Newton e com base em um experimento que ele
considerava concludente (ainda que não o fosse realmente), admitiu-se um
espaço “absoluto”, com uma existência própria independente do seu conteúdo.
Neste contexto, apresentava-se o “movimento absoluto” relativo a esta referência
fixa. Além disso, identificou-se, de algum modo, o espaço absoluto com a
imensidão divina, afirmando que era uma espécie de sentido divino (“sensorium
Dei”) que serviri a de elo entre Deus e o mundo. Este foi um dos temas discutidos
na famosa correspondência entre Leibniz e Samuel Clarke, na qual Leibniz
criticava as doutrinas newtonianas e Clarke as defendia99100.

99. Cfr. DRIESSEN, Alfred & SUÁREZ, Antoine (editores). Mathematical Undecidability, Quantum
Nonlocality and the Question ofthc Existence ofGod, Dordrecht: Kluwer, 1997.
100. As cinco cartas de Leibniz e as respostas de Clarke encontram-se em: RADA, Eloy (editor), La
polemica l.cihniz-Clarkc, Mmlrid: Tniirus, 1980.
188 Filosofia da Natureza

Devido ao enorme êxito da fisica newtoniana, a idéia do espaço absoluto


foi aceita na ciência durante mais de dois séculos e teve importantes repercussões
filosóficas: por exemplo, influiu notavelmente na formulação da filosofia
kantiana. Kant notou corretamente que o espaço absoluto não poderia ter
existência própria, mas, convencido da verdade definitiva da física newtoniana,
sustentou que este espaço era uma das duas formas “a priori” da nossa
sensibilidade: o nosso aparato cognoscitivo estaria construído de tal maneira que
as sensações desordenadas captadas pelos nossos sentidos deveriam ser
integradas, numa primeira fase, por estas formas, a do espaço e a do tempo. Tais
formas eram “a priori”, o que indicava que a sua validade não derivava da
experiência. Sob o influxo de Kant, o espaço foi considerado como uma condição
básica do nosso conhecimento.
No final do século XIX e início do XX, foram apresentadas sérias dúvidas
no âmbito científico sobre o caráter absoluto do espaço (e do tempo). O
experimento de Michelson-Morley em 1887 e a posterior formulação da teoria
da relatividade especial por Albert Einstein em 1905 mostraram que o conceito
de espaço absoluto era inadequado. Uma das consequências da relatividade
especial é que as distâncias não possuem o mesmo valor quando medidas por
observadores que estejam em diferentes sistemas de referência. Além do mais,
na relatividade fundem-se, de algum modo, os conceitos de espaço e de tempo
em um contínuo espaço-temporal. Esta nova situação científica provocou novas
abordagens que atingiram também o âmbito filosófico.
A situação complicou-se novamente quando, em 1915, Einstein formulou
a teoria da relatividade geral. Com efeito, a relatividade geral foi interpretada
como uma “geometrização da física”, na medida em que as forças físicas por
mudanças de curvatura do espaço-tempo. Parecia, então, que o conceito de
espaço não só recuperava o protagonismo científico, mas que se convertia na
trama básica da natureza. Porém, percebe-se a possibilidade de se falar, e talvez
mais propriamente, em uma “fisicalização do espaço”: de fato, a equivalência
entre a curvatura do espaço-tempo e das forças mostra que o espaço-tempo de
que se fala é um modo de representar as inter-relações físicas.
As teorias atuais sobre a origem do universo são baseadas na relatividade
geral e procuram compaginá-la com a física quântica (por isso teorias da “gra­
vidade quântica”). De acordo com algumas hipóteses, o espaço e o tempo perde­
riam o seu sentido intuitivo nos primeiros instantes do universo; fala-se de um
estado original de “vazio quântico” (não é o “nada”: é um estado físico), em
que teriam ocorrido “defeitos topológicos”, formando pela primeira vez estru­
turas espaço-temporais, a partir das quais se originaria a matéria. São hipóteses
e especulações e é difícil, senão impossível, determinar o que significa uma
Espaço e tempo 189

estrutura espaço-temporal sem nenhum tipo de matéria e como a matéria poderia


se originar a partir de uma estrutura deste tipo.

b) A realidade do espaço

Na experiência ordinária, a noção de espaço é utilizada para designar


relações de distância entre os corpos. Neste sentido, fala-se do espaço percorrido
por um corpo em movimento ou do espaço que separa os corpos. Estas relações
de distância ocorrem na realidade. Os corpos têm extensão e, portanto, existem
distâncias reais entre as suas partes e entre os diferentes corpos.
Se considerarmos as dimensões abstraindo-as dos corpos, obteremos
relações puramente dimensionais, como as que se referem a longitudes,
superfícies e volumes: por exemplo, a distância em linha reta entre dois pontos,
o volume de um corpo, etc. Estas relações de distância são reais, mas quando se
consideram de modo abstrato, prescindindo da matéria concreta, obtém-se uma
noção de espaço que, mesmo não apoiada na realidade, é um conceito ideal que
não corresponde diretamente a uma entidade natural.
Portanto, o conceito de espaço provém de uma ampliação dos conceitos
de extensão e de distância: engloba todas as extensões e todas as relações de
distância. Em sentido próprio, trata-se de uma idealização: o que existe na
realidade são corpos que possuem uma extensão e interações que se estendem
até certas distâncias. Mediante o conceito de espaço, pretende-se representar uma
espécie de “recipiente” no qual se encontram estas realidades. Porém, se o
recipiente tivesse uma realidade física, consistiria também em corpos e
interações, e não seria um recipiente distinto deles. Dessa forma, o espaço não
tem realidade física própria, independente dos corpos e interações; é um ente
“ideal”, uma “relação de razão” que existe somente em nossa mente, ainda que
na realidade se encontre um fundamento para construir este conceito: o funda­
mento é a extensão real dos corpos e as relações de distância.
O espaço absoluto, independente dos conteúdos físicos, seria uma espécie
de receptáculo vazio que serviría para localizar os corpos contidos nele. Este é
o tipo de espaço que Newton afirmou: um espaço vazio, homogêneo, infinito,
lugar de todo o universo corpóreo e de cada um dos seus componentes. No
entanto, este espaço não existe na realidade. É uma construção da mente que,
primeiro, abstrai as dimensões considerando-as sem relação aos entes materiais
concretos e, então, constrói uma noção na qual estas dimensões se consideram
estendidas indefinidamente. A física não necessita deste espaço, pois lhe basta
definir sistemas de coordenadas concretas que lhe sirvam como referência, e não
existe prova alguma da sua existência. Do ponto de vista filosófico, este espaço
190 Filosofia da Natureza

não seria uma substância, pois seria continente de todas as substâncias; tampouco
seria um acidente, pois é concebido como independente de todo o material: não
se sabe, pois, que tipo de realidade teria.
O espaço concebido como uma forma a priori de nosso conhecimento,
como quis Kant, também não existe. Com efeito, não é uma noção independente
da experiência. Trata-se, como já percebemos, de uma relação de razão com um
fundamento na realidade: a extensão real dos corpos e das relações de distância.
Kant identificou o conteúdo da noção de espaço com o espaço da geometria
euclidiana, dotado das propriedades que a física newtoniana (de cuja verdade
definitiva estava convencido) lhe atribuía; o ulterior progresso da matemática,
a partir do qual se construíram espaços não-euclidianos, e da física, a partir da
qual estes espaços foram aplicados, mostram que a idéia de Kant não é, na
realidade, uma parte, conseqüência ou exigência da ciência.
As especulações atuais sobre o espaço e o tempo nos primeiros instantes
do universo possuem, como se percebeu, um caráter altamente hipotético. Em
qualquer caso, parece possível formular três observações. Por um lado, tanto o
espaço como o tempo dependem da realidade física: acompanham-na como um
dos seus aspectos; portanto, se as condições materiais no começo do universo
foram muito diferentes, isto se pode ver refletido nas relações espaciais e
temporais, que puderam ser diferentes do que mostra a experiência ordinária em
nossas circunstâncias atuais. Mas, por outro lado, não tem sentido afirmar, como
se fez em algumas ocasiões, que naquelas condições poderiam existir processos
tais como a inversão temporal (viagens ao passado ou prioridade de eventos que
conhecemos como posteriores). Finalmente, tampouco tem sentido postular a
existência, a princípio, de um espaço-tempo sem matéria, que presumivelmente
poderia ter surgido do nada como resultado de um processo quântico; de fato,
além do nonsense que representa uma criação sem Criador, não parece possível
atribuir uma realidade própria a um espaço-tempo sem matéria.
O espaço não pode ser identificado com um vazio ontológico que, a
princípio, não seria nada e não pode existir como algo real. Quando nas ciências
experimentais se fala do “vazio”, este termo é utilizado para designar um estado
no qual apenas existem umas poucas propriedades detectáveis; mas isto não
exclui a existência de todas as propriedades materiais: pelo contrário, o vazio
de que fala a ciência é definido de acordo com propriedades determinadas e
inclusive distinguem-se diferentes tipos de vazio, tais como o “vazio clássico”
e o “vazio quântico”, estudados mediante teorias da física. A noção de “nada”
expressa antes um pseudoconceito, visto que, por definição, não lhe corresponde
absolutamente nada na realidade. A existência de um espaço vazio no qual não
houvesse absolutamente nada carece de sentido.
Espaço e tempo 191

Definitivamente, o espaço não é uma entidade: é um ente de razão com


um fundamento na realidade (as relações de distância que se dão na realidade),
e carece de realidade própria.

c) O espaço nas ciências

Tradicionalmente, “geometria” é o ramo da matemática que se ocupa das


relações espaciais. Os entes geométricos, tais como diversos tipos de linhas,
superfícies e volumes, dão lugar a um amplo espectro de relações estudadas pela
geometria. A geom etria de Euclides, formulada rigorosamente desde a
Antigüidade, procura descrever as relações reais entre as figuras geométricas
que existem no mundo físico.
Entretanto, já aludimos às geometrias não-euclidianas, que surgiram no
século XIX como conseqüência das tentativas de provar o que aconteceria caso
se negasse o quinto postulado da geometria euclidiana, segundo o qual de um
ponto exterior a uma reta pode ser traçada uma paralela a esta reta e somente
uma. Comprovou-se que, se prescindíssemos deste postulado, obteríamos
geometrias diferentes, mas tão consistentes quanto a euclidiana. Nestas
geometrias, por exemplo, de um ponto exterior a uma reta podem ser traçadas
infinitas paralelas ou nenhuma; a soma dos três ângulos de um triângulo não é
180 graus, mas aproximadamente 180 graus; etc.
Ainda que estes resultados pareçam antiintuitivos à primeira vista, é fácil
compreender que podem ser plenamente coerentes. Basta pensar numa geometria
curva; por exemplo, uma geometria cujas figuras encontram-se na superfície de
uma esfera: neste caso, a distância mais curta entre os dois pontos não será uma
linha reta, mas uma determinada curva, e a soma dos três ângulos de um triângulo
não será 180 graus.
Este exemplo permite perceber não só que podem ser construídas
diferentes geometrias, mas também que podem incorporar propriedades do
mundo real de diversos modos. Por exemplo, uma geometria curva como a
mencionada é a que realmente temos de aplicar à Terra quando calculamos
grandes deslocamentos ao longo da superfície: o caminho mais curto entre Paris
e Nova York não é uma linha reta, mas curva, e os triângulos também são curvos.
Este tipo de consideração adquiriu especial relevância quando se percebeu que
na teoria da relatividade se aplica uma geometria não-euclidiana e se conseguem
resultados muito mais precisos que os relacionados com a geometria euclidiana
na física clássica. É fácil perceber, além disso, que em nossa experiência
ordinária não vemos os objetos tal como se representam na geometria euclidiana,
já que as nossas imagens dependem das perspectivas e das distâncias.
192 Filosofia da Natureza

Por outro lado, o conceito de espaço generalizou-se na matemática, de


tal modo que é aplicado também a construções que não se referem a figuras
geométricas. Por exemplo, constroem-se espaços de dimensões infinitas e a
mecânica quântica pode ser formalizada com a utilização de um formalismo que
recorre ao “espaço de Hilbert”. Nestes casos, já não se apresenta o problema da
correspondência do espaço com a realidade; trata-se antes de construções nossas,
normalmente muito abstratas, que freqüentemente são bons instrumentos
matemáticos para o estudo de aspectos da natureza que estejam muito afastados
da experiência ordinária.

22. Duração e tempo

Uma vez consideradas as dimensões espaciais, vamos examinar agora as


dimensões temporais, que constituem também uma parte essencial do modo de
ser do natural. Com efeito, é próprio dos entes naturais existirem em condições
temporais; seu ser não está realizado completamente em um instante: ao contrá­
rio, realiza-se sucessivamente.
A temporalidade é uma determinação acidental, já que uma substância
não altera o seu modo de ser essencial pelo simples fato de estar sujeita à
passagem do tempo. Entretanto, trata-se de uma característica que marca profun­
damente todo natural e cuja análise é indispensável para compreender a vida
humana. Isto se deve ao fato de a nossa vida estar marcada pela combinação da
temporalidade, que é uma consequência de nossa pertença à natureza, e a trans­
cendência da temporalidade própria dos seres espirituais.
As duas características temporais básicas são a duração, que se refere
tanto à permanência no ser das entidades quanto à magnitude dos processos, e a
situação temporal, que expressa as relações temporais em relação a algum marco
ou referência. Consideraremos agora estas duas características. Vale dizer que
o tempo, do mesmo modo que o espaço relativamente à extensão e à localização,
é um conceito abstrato, construído a partir da duração e das relações temporais.

22.1 A duração

A duração refere-se à sucessão temporal. A idéia da sucessão temporal


baseia-se em nossa experiência imediata; é uma idéia primária que não pode ser
explicada recorrendo a outras mais conhecidas. A temporalidade do mundo mate­
rial, incluído o nosso ser material, apresenta-se im ediatamente à nossa
experiência.
Espaço e tempo 193

A nossa existência não se esgota em um instante: estende-se numa


sucessão temporal; e o mesmo acontece com todas as entidades naturais. A
duração é algo real. Além disso, a duração refere-se a uma sucessão temporal
que tem uma direção única e determinada: o presente vai deixando para trás a
existência passada, que permanece somente na recordação e através das suas
conseqüências.
Na ciência experimental, é muito útil conceituar o tempo como uma
magnitude que serve de ponto de referência para construir outras magnitudes:
por exemplo, a velocidade refere-se à distância percorrida em um tempo
determinado e a aceleração refere-se à variação de velocidade no tempo. Muitos
enunciados científicos expressam como outras magnitudes mudam como o passar
do tempo. O nascimento da ciência experimental no século XVII deve-se, em
boa parte, a que foram encontrados métodos teóricos para definir velocidades e
acelerações e a que também foram descobertos métodos para construir relógios
que permitissem medir o tempo de modo confiável. O grande progresso na
construção de relógios mecânicos desde o século XIV foi um dos fatores que
tomaram possível o progresso das ciências.
Na ciência experimental, o tempo foi considerado, desde o século XVII
até o século XX, como uma “variável independente”; transcorre de modo
uniforme, sem ser afetado pelos processos que nele se desenvolvem e, mesmo a
sua direção é indiferente: as equações da física clássica estão corretas tanto ao
suporem que o tempo transcorre do passado para o futuro como no sentido
contrário. Neste contexto, afirma-se que os processos descritos por estas
equações são “reversíveis”.
Sem dúvida, essa perspectiva é legítima e frutífera para aplicar a
matemática ao estudo da natureza. Mas a duração real depende das condições
físicas e tem um sentido que vai do passado ao futuro. O progresso científico
pôs em relevo a direcionalidade da sucessão temporal real, mostrando que a
reversibilidade do tempo é um artifício teórico que não reflete a irreversibilidade
dos fenômenos reais: isto já foi posto em relevo pelo segundo princípio da
termodinâmica e pelas teorias evolucionistas no século XIX, e foi sublinhado
com nova força no século XX pelos estudos científicos sobre os processos
irreversíveis.
No âmbito filosófico, Bergson destacou energicamente a função central
que a duração real desempenha na representação e interpretação da natureza.
Não é necessário admitir toda a filosofia bergsoniana para perceber que, neste
ponto, tinha razão. Trata-se de um aspecto ao qual se reconhece grande
importância na cosmovisão atual e, mais uma vez, mostra a conexão entre o
quantitativo c o qualitativo. Com efeito, a duração real não se reduz a uma
194 Filosofia da Natureza

simples sucessão quantitativa indiferenciada; ao contrário, supõe atividade


física, emergência de novidades, situações irrepetíveis.
O entrelaçamento entre o temporal e o qualitativo manifesta-se de modo
típico na existência de ritmos naturais. Os ritmos são pautas temporais e estão por
todas as partes da natureza e, de modo especial, nos viventes: os processos que se
desenvolvem nos organismos dependem essencialmente de processos rítmicos ou
periódicos. Isto significa que os processos naturais se articulam em tomo de pautas
típicas. Mais uma vez, o progresso científico revela a importância dos fatores qua­
litativos; a abordagem analítica reduziu o tempo a uma magnitude matemática,
homogênea, indiferenciada e reversível. Ademais, através desta perspectiva,
conseguiram-se muitos conhecimentos particulares que conduziram, no âmbito
estritamente científico, a uma perspectiva sintética na qual se recuperaram as
características qualitativas da duração real.

22.2 Temporalidade, ser e devir

A temporalidade é uma característica fundamental dos entes naturais.


Todos os seres naturais têm uma duração, são unidos a processos. Vamos
considerar agora esta temporalidade própria do ser natural, em primeiro lugar,
em relação à duração de outras entidades ou processos naturais e, depois, em
relação às entidades espirituais.
a) A situação temporal
Um dos nove acidentes aristotélicos é o quando, que se refere à situação
temporal. Esta categoria expressa o modo de ser temporal do natural que, tanto no
ser como no agir, contém uma referência ao passado, ao presente e ao futuro. Tudo
o que se diz do natural inclui uma referência temporal deste tipo.
De modo semelhante ao onde espacial, o quando é uma determinação
relativa, porque só é possível falar dela em relação a alguma referência. É, por-
tanto, uma determinação extrínseca, já que não expressa o modo de ser próprio
das entidades às quais se aplica. Trata-se, contudo, de uma característica real,
porque são reais as relações temporais que lhe servem de base.
O caráter extrínseco e relativo do “quando”, semelhantemente ao que
acontece com o “onde”, manifesta-se ao considerar as relações temporais con­
cretas: situamos algo no tempo em relação a outros processos ou acontecimentos.
No entanto, isso não diminui a realidade da situação temporal: simplesmente
mostra que a sua determinação concreta depende do que acontece à sua volta.
Se, além disso, desejamos medir a sua duração, temos de definir unidades
de tempo e determinar como estas unidades são empregadas para efetuar a
Espaço e tempo 195

medição. Portanto, é preciso introduzir estipulações. Todavia, a duração na qual


se baseia a medição é algo real e o progresso na fabricação de relógios e nos
procedimentos de medição permitem obter medições extraordinariamente
precisas.
b) Graus de ser e duração

Em sentido estrito, o “quando” atribui-se somente ao natural, cujo ser se


desenvolve de modo sucessivo mediante mudanças. No entanto, por analogia,
pode ser atribuído aos seres espirituais criados, que também passam de potência
a ato segundo o seu modo de ser peculiar. Ao contrário, não pode ser atribuído
de modo algum a Deus, que é Ato Puro e não tem duração de nenhum tipo.
Se considerarmos a duração com a permanência no ser, podemos falar
de graus e modos de duração correlativos aos graus e modos de possuir o ser.
A distinção básica a respeito é a que se dá entre Deus e os seres criados.
Deus é seu Ser e, portanto, em sua própria duração, que se chama eternidade.
Ao contrário, os seres criados não são o seu ser: têm um modo de ser limitado
por uma essência determinada e desenvolvem as suas potencialidades de modo
sucessivo; por este motivo, sempre estão em potência e sob algum aspecto,
diferentemente de Deus, que possui o ser em toda a sua plenitude e é a fonte de
todo ser.
A eternidade é própria e exclusiva de Deus e situa-se num plano diferente
ao da duração temporal de qualquer ente criado. Ainda que existisse um ente
criado que não tivesse princípio nem fim, nem por isso seria eterno: ao possuir
o ser de modo limitado e não absoluto, estaria sempre em potência em relação a
possíveis mudanças e haveria nele uma duração segundo um antes e um depois.
Ao contrário, a eternidade própria de Deus carece de todo tipo de sucessão, já
que nela se dá o Ser total e simultaneamente sem mudança de nenhum tipo, em
uma espécie de “eterno presente”.
Na linguagem ordinária, costuma-se identificar a “eternidade” com a
simples “duração indefinida”, mas esta identificação conduz facilmente a
equívocos. Com efeito, pensar-se-ia então que a eternidade de Deus é semelhante
à duração das criaturas, acrescentando-lhe somente um caráter indefinido. Essa
afirmação, no entanto, equivale a esquecer que Deus é Ato Puro, que não só
possui o ser, mas que é o seu Ser. Daí facilmente surge outro equívoco que afeta
a noção de criação: se nada impede que se diga que o universo podería existir
desde sempre, não seria preciso admitir a criação divina. Neste caso, então,
confunde-se a essencial “dependência no ser” de toda criatura com relação a
Deus, com a origem temporal: no entanto, é necessário admitir a Deus como
fonte permanente de todo o ser, independentemente da duração ilimitada ou
196 Filosofia da Natureza

indefinida do ser criado. Tomás de Aquino dedicou um opúsculo inteiro para


sustentar que o começo temporal do universo é algo que conhecemos somente
pela revelação divina e que nada impediri a que Deus, se assim o quisesse, tivesse
criado o universo “desde sempre”101.
Quando se identifica a criação divina com a origem do tempo, tende-se a
identificar as provas da existência de Deus com as pressupostas demonstrações,
que não existem, da duração limitada do universo. Facilmente se conclui, então,
de modo errôneo, que não se pode provar a existência de Deus. Esta confusão
encontra-se latente em muitas críticas das provas da existência de Deus.
Costuma-se ignorar que esta confusão já foi denunciada há séculos: Tomás de
Aquino advertiu aos cristãos, no século XIII, que, se pretendessem estabelecer
a duração limitada do universo como base para provar a existência de Deus,
submeter-se-iam à troça dos não crentes, que sabem que não se pode provar a
duração limitada do universo e poderíam pensar que os cristãos admitem a
existência de Deus com base em motivos insuficientes.
Outras confusões surgem das tentativas de explicar como Deus podería
“estar implicado” realmente no devir as criaturas, como se a ação divina sobre
o mundo exigisse de algum modo que o ser de Deus mudasse. O “deísmo” reduz
Deus à função de proporcionar a explicação última da existência do mundo, mas,
ao mesmo tempo, lhe nega qualquer interesse ou intervenção no mundo uma
vez que este existe. Diante destes excessos, a “filosofia do processo” e a “teologia
do processo”, pretendendo explicar que Deus se compromete com a sua criação,
afirmam que, embora Deus seja eterno, deve possuir certa mutabilidade, pois,
caso contrário, não se entendería que realmente se encontre comprometido no
que acontece ao mundo e às pessoas. Neste contexto chega-se a falar de um “Deus
bipolar”, concomitantemente eterno e mutável. Contudo, não tem sentido atribuir
mutabilidade a Deus, que possui o ser de modo pleno. Ainda que seja difícil
explicar a relação de Deus com as criaturas, é preciso respeitar, como base da
explicação, a total perfeição e transcendência de Deus, pois o seu desrespeito
significaria a introdução de características incompatíveis com a divindade. A
revelação divina proporciona novas chaves para entender esta relação através
da Encarnação, mas o mistério da transcendência divina continua presente; de
qualquer forma, é um mistério “lógico”, porque se entende que Deus deve ser
necessariamente eterno e transcender completamente o criado.
Há, nos entes criados, diversos graus no ser e no agir e, portanto, diversos
graus de duração. Os seres espirituais participam da eternidade de Deus, porque

101. Cfr. SARANYANA, Josep I. “Santo Tomás. «De aeternitate mundi contra murmurantes»”, in
Anuário Filosófico, 9 (1976), págs. 399-424. Esta obra contém o texto de S. Tomás com introdução e
comentários.
Espaço e tempo 197

não estão sujeitos à mutabilidade do material e são naturalmente imortais: uma


vez criados, não perdem nunca o seu ser. No entanto, não são eternos em sentido
próprio, pois não possuem o ser de modo pleno e experimentam as mudanças
próprias das operações espirituais (por exemplo, certa sucessão de atos
intelectivos). Este especial tipo de duração costuma ser denominado pelos teó­
logos de eviternidade. A eviternidade das criaturas angélicas é um modo de
duração intermediário entre o próprio das coisas materiais e a eternidade divina.
Os seres materiais estão sujeitos à duração temporal e às mudanças
substanciais. A materialidade implica, precisamente, uma potencialidade radical,
de modo que toda substancialidade material pode se transformar em outra ou
outras. Além disso, a duração do material implica que o seu ser se faz suces­
sivamente mediante a atualização de potencialidades.
Dentro do âmbito dos seres materiais, existem graus de ser e de
temporalidade. Os viventes possuem individualidade e tendências, o que lhes
permite ter uma história em um sentido superior ao dos não-viventes: atualizam
sucessivamente a sua potencialidade de tal modo que se pode falar de desen­
volvimento e de aperfeiçoamento em seu próprio âmbito. Entre os viventes, os
que estão dotados de conhecimento possuem um nível maior de densidade
ontológica, porque podem conservar a memória do passado e, de certo modo,
prever o futuro ou mesmo antecipá-lo. Evidentemente, a pessoa humana
encontra-se em um novo nível de temporalidade que inclui ao mesmo tempo as
características do material e do espiritual. Participa, por causa da sua ma­
terialidade, das características próprias da duração dos seres naturais e, ao mesmo
tempo, transcende este âmbito por causa da sua espiritualidade: é capaz de
descobrir o sentido radical dos acontecimentos, tem uma responsabilidade moral
que transcende o hoje e o agora, formula projetos que também transcendem as
condições do momento presente e está chamado à participação na eternidade
divina própria dos seres espirituais.
A temporalidade humana, cujo estudo compete à antropologia, dá lugar
à história, na qual se enquadram aspectos especificamente humanos tais como
a tradição e o progresso. O sentido da história é, também, uma chamada à
responsabilidade, porque a liberdade humana implica que não existam leis his­
tóricas necessárias: o futuro do homem está em suas mãos e depende da sua
responsabilidade moral. A temporalidade humana relaciona-se com a eternidade
divina, porque cada pessoa está chamada a participar da vida divina: encontra-
se entre o tempo e a eternidade e as coisas temporais adquirem seu sentido pleno
quando são contempladas à luz do plano divino.
198 Filosofia da Natureza

22.3 O tempo

A partir das dimensões temporais, construímos uma noção abstrata de


“tempo” que se utiliza tanto na vida ordinária como nas ciências e na reflexão
filosófica. Examinaremos agora - como fizemos com a noção de espaço - de
que modo essa noção corresponde a algo real e como a noção de tempo é utilizada
na ciência experimental.
a) A noção de tempo
Tanto na experiência ordinária como nas ciências, quando se diz que
transcorreu certo tempo, o conceito de tempo sempre se refere à medida de algum
movimento. Na vida ordinária, pode bastar a referência à sensação subjetiva
segundo a qual um período “passou rápido ou devagar”. Com freqüência, porém,
são necessárias medidas objetivas de tempo; na ciência experimental isto ocorre
sempre, pois só assim se pode utilizar um conceito intersubjetivo de tempo.
Para medir o tempo, é necessário escolher um movimento que manifeste
uma regularidade uniforme e, a partir dele, tomam-se umas unidades às quais
se refere qualquer outro movimento. Assim, a divisão do tempo em anos, dias,
etc., baseia-se nos movimentos de rotação da Terra sobre si mesma e de transla-
ção em volta do Sol, ainda que atualmente se recorra a procedimentos mais
regulares e precisos baseados em movimentos relacionados com os átomos102.
Aristóteles definiu o tempo como o número do movimento segundo o antes
e o depois (“numerus motus secundum prius et posterius”) 103. Nesta definição,
sublinha-se que o tempo mede o quanto dura um movimento; portanto, enquanto
medida, o tempo corresponde a algo real (a duração do movimento) e, ao mesmo
tempo, implica um sujeito que o mede104. O movimento possui certa quantidade,
que é fluente e sucessiva: não é a quantidade dimensional relacionada com a
extensão, mas uma pluralidade de partes sucessivas.
Enquanto contínuo, o tempo apresenta analogia com o espaço. Assim
como o espaço se relaciona com a extensão, o tempo se relaciona com a duração;
e tanto a extensão como a duração são reais e contínuos, indefinidamente divi-

102. Atualmente, existe uma rede de artefatos distribuídos pelo mundo, que são relógios atômicos de
césio controlados continuamente mediante procedimentos nos quais intervém sinais de rádio, televisão e
satélites. Os dados são recolhidos e analisados pela Oficina Internacional de Pesos e Medidas de Sèvres, próximo
de Paris, de onde se transmitem sinais que são recolhidos e emitidos por rádio. Utilizado em experimentos, o
mais preciso relógio por fonte de césio entrou em funcionamento em 1999, com uma incerteza de 1,7 partes
em 10-15, que corresponde a um erro de 1 segundo em cerca de 20 bilhões de anos.
103. ARISTÓTELES. Física, IV, 11,219 b 1-2.
104. Cfr. CON1LL. J. ”(,f lay tiempo sin alma?”, in Pensamienlo, 35 (1979), pág.s. 195-222; £7 tiempo
en Ia filosofia de Aristóteles. Utt estúdio dedicado especialmente al análisis dei tratado dei tiempo (Fisica
IV, 10-14), Valencia: Facultad de Teologia San Vicente Ferrer, 19X1.
Espaço e tempo 199

síveis: sempre é possível distinguir partes cada vez menores na extensão e na


duração, sem que isto signifique que existam realmente infinitas partes em ato.
Pode-se dizer que o tempo é como um acidente do movimento, já que é a
sua medida no que o movimento tem de quantidade sucessiva.
A história dos conceitos de espaço e de tempo coincide em grande parte105.
Em alguns sentidos, conceito de tempo é um conceito análogo ao de espaço.
Assim, Newton definiu um tempo absoluto que, igualmente ao espaço absoluto,
era independente de todo conteúdo material. Kant adjudicou a este tempo
absoluto, juntamente com o espaço, a função de ser uma condição prévia e
permanente para toda experiência sensível. A teoria da relatividade supôs a
relativização dos conceitos de tempo e espaço. E, atualmente, fala-se de estru­
turas espaço-temporais que teriam uma existência própria, independente da
matéria. Vamos examinar a seguir o tipo de realidade que pode ser atribuída ao
que indica o conceito de tempo.
b) A realidade do tempo

O conceito geral de tempo é uma abstração que supõe uma ampliação dos
conceitos de duração e de relação temporal: abrange todas as durações e todas
as relações temporais. O tempo abstrato tem certo caráter de totalidade, já que
a mente relaciona a ele todos os acontecimentos, sejam passados, presentes ou
futuros.
Neste contexto, pode-se dizer que só o tempo presente existe realmente:
com efeito, o passado já não existe e o futuro ainda não existe. Em nosso
pensamento, podemos considerar o passado e o futuro, mas fora dele existe
somente o presente. Evidentemente, os acontecimentos passados têm reper­
cussões nos presentes e os presentes têm nos futuros: mas o que existe agora,
independentemente de toda consideração mental, é o presente, com determinadas
relações com os acontecimentos passados e futuros.
Levando em conta o paralelismo, parcial, mas importante, entre os
conceitos de espaço e tempo ao longo da história, algumas reflexões que
expusemos a propósito do conceito de espaço podem ser aplicadas, com as
oportunas matizações, ao conceito de tempo.
Concretamente, o tempo não corresponde a uma entidade real: a duração
e as relações temporais são reais, mas o tempo não tem uma existência
independente delas. Portanto, valem também para o tempo as observações que
a propósito do espaço foram feitas sobre a física newtoniana, na qual se susten­

105. Cfr. W1UTROW, (i. J. Time in History: Views ofTimefrom Prehistory to the PresentDay, Oxford:
Oxford University Press, 10X0.
200 Filosofia da Natureza

tava, juntamente com o espaço absoluto, a existência de um “tempo absoluto”


independente de seu conteúdo. Evidentemente, este tempo absoluto não pode
existir, porque seria preciso, para defini-lo, contar com um movimento que
também fosse absoluto, o que é impossível.
Por outro lado, o tempo não é uma condição de nosso conhecimento, ao
estilo kantiano, porque não existe um tempo homogêneo, como um receptáculo
vazio onde se situam os acontecimentos. Kant afirmou que espaço e tempo são
condições a priori do conhecimento sensível. Percebeu que o tempo absoluto
de Newton não podia existir na realidade, mas ao estar convencido da verdade
da física newtoniana, transladou este tempo absoluto, com todas as suas
propriedades, da realidade para o nosso conhecimento. Dessa forma, o tempo
não dependeria da experiência, mas seria uma das condições de possibilidade
desta experiência. É verdade que enquadramos sempre a experiência no tempo,
mas não há razão para identificarmos este tempo com as propriedades que
Newton e Kant lhe atribuiram. Ao contrário, há razões para pensar que o nosso
conceito de tempo corresponde às experiências reais e depende delas.
Tampouco parece possível falar, como se faz em algumas teorias atuais,
acerca de um espaço-tempo independente da matéria, como se fosse uma entidade
com uma existência própria que teria começado a existir quando ainda não havia
nada material. Ainda que se conseguisse formular uma teoria científica nesta linha,
seria necessário admitir que a duração e as relações temporais possuem uma
realidade que não se identifica com os modelos da física matemática. Esta
consideração nos leva a examinar como a ciência experimental utiliza o conceito
de tempo.
c) O tempo nas ciências
Do mesmo modo que acontece com o espaço, o tempo é concebido na
ciência experimental de acordo com o objetivo geral desta ciência: conseguir
um conhecimento da natureza que possa ser submetido ao controle experimental.
Conseqüentemente, o tempo é definido desde o século XVII como uma
magnitude que pode ser objeto de tratamento matemático e ser medida
empiricamente.
A mecânica newtoniana distinguiu o tempo “absoluto”, que transcorre de
modo uniforme com independência do mundo material, e o tempo “relativo”,
que se refere aos processos particulares. Devido ao grande êxito que a mecânica
de Newton obteve durante dois séculos, esta distinção manteve-se na física até
que, em torno a 1900, entrou em crise e, finalmente em 1905, foi superada pela
teoria especial da relatividade de Einstein, na qual o tempo é uma magnitude
cuja medida não resulta sempre no mesmo valor, pois depende do sistema de
Espaço e tempo 201

referência que se adote. Além disso, a teoria da relatividade geralmente é


interpretada de tal modo que espaço e tempo já não são m agnitudes
completamente diferentes; admite-se, ao contrário, que os fenômenos se
desenvolvem em um espaço-tempo em que estão unidas as três dimensões
espaciais e a dimensão temporal.
A relatividade das medições do tempo em função dos sistemas de
referência (portanto, em função do estado físico de quem mede e do objeto
medido) parece ressaltar o aspecto que foi sublinhado na Antigüidade e
esquecido sob a pressão da física newtoniana: a existência de um tempo próprio,
relativo a cada processo concreto. De acordo com a definição aristotélica antes
citada, ainda que se possam adotar sistemas padronizados para medir o tempo,
em sentido estrito, a cada tipo de movimento corresponde um tempo próprio.
Diante do tempo absoluto, homogêneo e indiferenciado, postulado como algo
real pela física newtoniana e como uma condição do nosso modo de conhecer,
pela filosofia kantiana, atualmente se percebe de novo que as dimensões
temporais reais se relacionam com os modos de ser específicos das entidades e
dos processos. Sem dúvida, é possível adotar sistemas padronizados para medir
o tempo, mas o natural encontra-se sulcado por estruturas e pautas temporais
que determinam as suas características específicas de tal modo, que as medidas
do tempo são afetadas pelo estado físico de quem mede e do que se mede.
Por outro lado, desenvolvimentos científicos distintos repercutiram
também sobre os problemas relacionados com o tempo. Mencionaremos três
deles, que têm uma relevância especial.
Em primeiro lugar, o desenvolvimento da termodinâmica clássica durante
o século XIX conduziu à aceitação geral do denominado “segundo princípio da
termodinâmica”, que parece sugerir a existência de uma “flecha do tempo”. Os
processos físicos podem ser produzidos em uma direção, mas não em outra.
Conjuntamente, a entropia de um sistema isolado, que mede o grau de desordem
num sistema, aumenta: se produzirmos maior ordem em alguns lugares deve ser
à custa da desordem em sua volta. Na termodinâmica, este princípio se expressa
de modo mais preciso; quando se aplica ao universo em seu conjunto, parece
sugerir uma futura morte térmica, já que, no conjunto, a desordem física aumenta.
Em segundo lugar, produziram-se grandes progressos na física dos
“processos irreversíveis”, ou seja, os que ocorrem numa só direção. Um processo
reversível é aquele que pode ser produzido em qualquer das duas direções
possíveis. A física clássica era principalm ente uma física de processos
reversíveis, em que a direção do tempo não desempenhava nenhum papel
relevante; ao contrário, em nossa época, conseguiu-se tratar cientificamente os
processos irreversíveis, que são os processos reais (na física clássica teria de se
202 Filosofia da Natureza

traduzir os processos reais irreversíveis em uma soma de processos reversíveis,


prescindindo de aspectos importantes dos problemas). Estes avanços também
estão relacionados com a “flecha do tempo” e explicam como a ordem pode ser
produzida na natureza a partir de estados de desordem; por este motivo, têm
grande importância na cosmovisão evolutiva.
Em terceiro lugar, as teorias da evolução, tanto cósmica como biológica,
referem-se a um gigantesco processo no qual surgiram sucessivos graus de
organização. O tempo encontra-se aqui no centro das explicações e chega
inclusive a apresentar cientificamente o problema da origem do tempo.
Estas alusões, que poderiam ser completadas com referências a outros
avanços da ciência, mostram que o tempo atualmente está no centro da atenção
dos cientistas. Vamos desenvolver agora, com maior amplidão, um dos aspectos
que o progresso científico põe em relevo: a unidade do espaço e do tempo.

23, A unidade de espaço e tempo

Já mencionamos a união entre espaço e tempo - e as suas conseqüências -


proposta na teoria da relatividade. Vamos sublinhar, a seguir, algumas das
implicações desta união.

23.1 Espaço e tempo na teoria da relatividade

Na teoria da relatividade, espaço e tempo estão não somente relacionados,


mas de algum modo unidos, constituindo um conjunto espaço-temporal. Esta
idéia corresponde ao entrelaçamento, que temos destacado, do espacial e do
temporal entre si e com as condições físicas reais.
Ainda que as relações espaciais e temporais correspondam à realidade,
surgem dificuldades nada triviais quando se procura medi-las. A teoria especial
da relatividade pôs em relevo estas dificuldades; Einstein apontou, concretamente,
que as medidas dos intervalos tanto espaciais quanto temporais dependem da
situação do observador, e formulou as equações que permitem determinar as
durações nos diferentes casos.
Esta dificuldade é lógica e corresponde inclusive à experiência ordinária.
Por exemplo, obtemos valores diferentes se medimos a duração de um fenômeno
a partir de uma situação relativa de repouso ou a partir de um trem que corre a
grande velocidade pelo lugar onde este fenômeno acontece. Algo semelhante
acontece em relação às distâncias. Quando os fenômenos se desenvolvem a
velocidades muito grandes, as mudanças nas medidas também são grandes, sendo
necessário utilizar fórmulas da relatividade especial.
Espaço e tempo 203

Sobre esta base apresentaram-se novos problemas relativos à situação


temporal, que se referem à simultaneidade e à relação entre passado e futuro.
Sobre a simultaneidade, apresenta-se uma pergunta desconcertante: é
possível afirmar que existem realmente acontecimentos simultâneos? Pareceria
impossível, com efeito, afirmar a simultaneidade real, já que qualquer medição
temporal referir-se-á a condições particulares de observação e as diferentes
medições não coincidirão. Entretanto, a dificuldade afeta somente às medições
concretas, não à existência real da simultaneidade. Ainda que seja impossível
determinar a simultaneidade de fenômenos muito distantes através de medições,
é possível afirmar que esta simultaneidade existe em cada momento: agora estão
se produzindo muitos fenômenos simultâneos em diversas partes da Terra e do
universo, independentemente das dificuldades que possamos encontrar quando
procuramos determinar quantitativamente esta simultaneidade. Se preferirmos,
ao invés de falarmos de “simultaneidade”, poderíamos falar de “coexistência”
ou “contemporaneidade”, para sublinhar que as medições temporais são afetadas
pelas condições físicas. Pode ser impossível para nós determinar por métodos
físicos a simultaneidade. No entanto, esta relatividade das medições do tempo
não significa que tais medições sejam arbitrárias: ao contrário, uma vez que se
estabelecem as condições em que se encontra o observador, a teoria permite
calcular qual é o valor que será obtido ao medir os intervalos temporais.
O problema da simultaneidade conduziu ao paradoxo dos gêmeos. Trata-
se de dois gêmeos idênticos, um dos quais permanece na Terra enquanto o outro
viaja a uma grande velocidade numa nave espacial; quando a nave volta à Terra,
como as durações medidas na nave e na Terra são diferentes, os gêmeos terão
idades diferentes e, portanto, aspectos também diferentes. A origem do paradoxo
está no fato de que ambos os gêmeos podem dizer que o outro é que se afastou a
uma grande velocidade, reverteu o sentido e voltou. Sem dúvida, este paradoxo
põe em relevo que, como anteriormente apontamos, a duração real encontra-se
entrelaçada com as condições físicas concretas: condições diferentes produzirão
efeitos também diferentes. Mas a solução para este paradoxo não é simples;
diferentes autores - inclusive o próprio Einstein - perceberam que, para se
interpretar corretamente esta experiência, é necessário levar em conta fatores
que eliminam os aparentes paradoxos: por exemplo, que a nave espacial viaja
em diferentes direções quando se afasta e retorna à Terra, de modo que as
durações relativas e mesmo os efeitos físicos de ambos itinerários poderíam ser
compensados.
Outros problemas referem-se à relação entre passado e futuro. A
propósito da duração, sublinhamos a irreversibilidade das sucessões temporais
reais. Afirmou-se, no entanto, que os efeitos relativistas poderíam permitir, por
204 Filosofia da Natureza

exemplo, as “viagens ao passado”, que incluiriam a insólita possibilidade de


provocar mudanças nos acontecimentos passados e, portanto, nas situações reais
do presente. Esta estranha possibilidade refere-se aos “túneis do tempo”, que
estariam relacionados com as condições físicas exóticas que existiram, por exem­
plo, nos buracos negros. Neste caso, parece que as estruturas teóricas da física
matemática e a sucessão temporal real se confundem. Com efeito, não é possível
identificar as possibilidades contidas em um modelo matemático com as possibi­
lidades reais, e não cabe apelar, neste caso, ao êxito das teorias científicas. Já
indicamos, por exemplo, que a física clássica trata o tempo como se fosse
reversível; na realidade, isto não é correto, o que não impede que apliquemos,
com sucesso, a física clássica a numerosos casos: a aplicabilidade de uma teoria
não significa que todos os aspectos dos modelos que utiliza reflitam diretamente
a realidade. Estas observações são válidas também no caso das teorias atuais:
os processos naturais são irreversíveis e nenhuma teoria matemática pode mudar
a sua sucessão temporal real. Isso não pode ser negado com o apoio na teoria da
relatividade: nesta teoria, a ordem temporal dos acontecimentos conserva-se
quando se consideram acontecimentos causalmente relacionados.

23.2 Espaço e tempo como condições materiais da realidade

Desde o início desta obra, consideramos a estruturação espaço-temporal


como uma das duas principais características que servem para caracterizar
natural. Uma vez que examinamos com maior atenção o espaço e o tempo,
podemos descobrir com maior profundidade o significado desta caracterização.
Evidentemente, afirmar que o natural se caracteriza por um dinamismo
próprio que existe e se desenvolve em condições espaço-temporais implica
afirmar que estas condições são reais. A concepção do espaço e do tempo inclui
construções que são nossas, tanto na vida ordinária como, mais ainda, na ciência
experimental, e os conceitos assim construídos correspondem à realidade em
diferentes graus e de acordo com modalidades próprias. No entanto, a extensão,
a duração e as relações de extensão e duração são algo real.
É importante enfatizar que, em nossa caracterização do natural, não nos
referimos somente ao espaço e ao tempo: falamos expressamente de estruturação
espaço-temporal. Isto permite distinguir o natural do espiritual, que pode estar
intimamente relacionado com o espaço-temporal (como ocorre no caso da pessoa
humana), mas não inclui, no seu modo próprio de ser, estruturação espaço-tem­
poral: a inteligência, a vontade, a liberdade, a responsabilidade, a moralidade,
encontram-se estreitamente associadas, no nosso caso, com as condições mate­
riais, mas tais condições materiais não são o primário nestas dimensões humanas.
Espaço e tempo 205

Além disso, a estruturação espaço-temporal é uma característica do


natural que adquire um relevo cada vez maior na compreensão da natureza. O
progresso científico descortina novos panoramas sempre centralizados nas
pautas espaço-temporais, ou seja, em configurações e ritmos que podem repe­
tir-se e, de fato, repetem-se inúmeras vezes, com as variantes próprias dos casos
individuais.
É fácil encontrar exemplos ilustrativos na ciência contemporânea. De modo
paradoxal, as teorias do caos determinista ressaltam a existência de certo
indeterminismo na natureza, mas, ao mesmo tempo, mostram a existência de
pautas associadas aos novos fenômenos. Os fractais consistem, precisamente, em
pautas que se repetem em diferentes escalas; a grande importância que se atribui
atualmente a este âmbito científico revela que o conhecimento mais profundo da
natureza conduz a uma notável combinação de repetição e sutileza: neste âmbito,
que abarca muitos fenômenos diversos, encontramos resultados muito variados
e complexos, com uma grande riqueza organizativa, e que se extraem da aplica­
ção interativa de alguns recursos relativamente simples. Podemos admirar mais
uma vez como se pode fazer tanto com tão pouco.
A representação da natureza que deriva destas considerações está muito
afastada da perspectiva mecanicista, que considerava a natureza como o resultado
de choques mecânicos entre porções de uma matéria desprovida de dinamismo
interno e a reduzia ao esquema das máquinas mecânicas. Da mesma forma, está
m uito distante da ideologia evolucionista que, indo além dos dados
proporcionados pelas ciências, visa à redução de toda a realidade ao resultado
de forças cegas. Se a natureza está construída de modo muito sutil em tomo de
pautas espaço-tem porais, é fácil notar que nos encontram os em uma
racionalidade materializada, resultado de um dinamismo muito poderoso que
se desenvolve de acordo com pautas temporais, armazena-se em pautas espaciais
e se combina de mil modos, produzindo novas pautas espaciais e temporais
enormemente sofisticadas.

23.3 Compenetração do espacial e do temporal

Com freqüência, pensa-se no espacial e no temporal como se fossem


dimensões completamente separadas. Contudo, esta idéia não corresponde à
realidade. Já apontamos que na teoria da relatividade ambas as dimensões estão
unidas. Vamos acrescentar agora algumas conclusões.
Podemos nos dar conta da estreita relação que existe entre o espacial e o
temporal mediante um exemplo que, embora simples, costuma admirar aqueles
que nunca se detiveram em considerá-lo. Trata-se da nossa visão das estrelas. E
206 Filosofia da Natureza

bem sabido que as estrelas encontram-se a uma enorme distância da Terra. A


mais próxima encontra-se a uns 4 anos-luz (um ano-luz é a distância que percorre
a luz durante um ano, viajando a 300.000 quilômetros por segundo) e as demais
se encontram a dezenas, centenas ou milhares de anos-luz. Isto significa que,
quando observamos uma estrela que se encontra a setecentos anos-luz, o brilho
que chega aos nossos olhos saiu da estrela há setecentos anos. Portanto, vemos
a estrela tal como existia há setecentos anos, ou seja, na Idade Média. Quando
olhamos as estrelas, vemo-las como existiram há dezenas, centenas ou milhares
de anos. Além disso, a nossa imagem das estrelas, como se estivessem fixas numa
esfera - como os desenhos das constelações feitos na Antigüidade - , não
corresponde à realidade: vemos as estrelas como se a sua posição relativa não
mudasse porque se encontram enormemente afastadas de nós; porém, movem-
se rapidamente e encontram-se a distâncias muito desiguais da Terra.
Ainda que possamos distinguir as dimensões espaciais e as temporais,
ambas estão estreitamente entrelaçadas na natureza. As configurações espaciais
não são puramente estáticas; quando são estáveis, a sua estabilidade é o resultado
de equilíbrios dinâmicos. Por sua vez, os ritmos dependem das configurações;
as potencialidades encontram-se armazenadas em estruturas espaciais e sua
atualização, que se realiza de acordo com ritmos temporais, depende destas
configurações.
Um exemplo muito adequado de tudo isso é a informação genética contida
no DNA dos viventes. O entrelaçamento do espacial e do temporal é patente
nos processos de transcrição e tradução nos quais as proteínas são produzidas,
e nos processos de duplicação do próprio DNA durante divisão celular.
A natureza constrói-se e funciona em tomo de configurações e ritmos que
se encontram relacionados. Sob esta perspectiva, espaço e tempo não são
somente conceitos abstratos, objetos de teorias científicas complexas e de
reflexões filosóficas abstratas. Antes, são condições básicas da natureza, que
existem em formas inter-relacionadas e altamente sofisticadas que abrem a porta
para uma compreensão profunda da natureza.
207

C apítulo VIII

Aspectos qualitativos

O natural possui modos de ser específicos, que, embora se realizem através


das dim ensões quantitativas, não se reduzem a elas. Já nos referim os
anteriormente à relação entre o quantitativo e o qualitativo. Agora, depois de
havermos examinado com certo detalhe os diferentes aspectos das dimensões
qualitativas, encontramo-nos em condições de analisar com maior profundidade
o significado das propriedades qualitativas do natural.
O quantitativo é uma dimensão própria dos seres materiais. As qualidades,
ao contrário, existem tanto nos seres materiais como nos espirituais. Por este
motivo, o estudo das qualidades faz parte da metafísica. Na filosofia da natureza,
estudamos somente as qualidades do mundo físico, mas este estudo é importante
para a metafísica, pois proporciona a ela a base sobre a qual pode construir com
garantia uma explicação geral das qualidades que seja aplicável também às
realidades espirituais.
Primeiramente, trataremos das qualidades das substâncias materiais, anali­
sando os seus tipos e examinando o modo pelo qual as conhecemos. Depois,
consideraremos novamente, à luz da perspectiva alcançada, a relação entre o
quantitativo e o qualitativo, sobretudo no que se referir ao estudo quantitativo
das propriedades qualitativas.

24. Propriedades qualitativas

As qualidades são modos de ser acidentais ou determinações da substân­


cia. O natural não possui somente dimensões quantitativas: por exemplo, a mag­
nitude não existe isoladamente, mas existe como magnitude de uma substância
e das suas qualidades. O quantitativo existe como uma determinação dos modos
de ser do natural.
O modo de ser essencial das substâncias é expresso pela sua forma
substancial. Porém existem também modos de ser acidentais - que podem mudar
sem que mude a essência da substância - que se chamam qualidades.

24.1 Virtualidades qualitativas dos seres naturais

Vamos sublinhar, cm primeiro lugar, que as qualidades determinam a


substância em relação à sua forma substancial c que algumas delas são proprie­
dades que, sem fazer parte da essência, acompanham-na necessariamente.
208 Filosofia da Natureza

a) Substância, forma e qualidades

O dinamismo refere-se a uma característica fundamental do natural: a


existência de virtualidades que se desenvolvem através de interações. Este
desenvolvimento corresponde ao modo de ser das substâncias, ao seu caráter
específico; portanto, à sua forma substancial. No entanto, não se identifica com
ela. Com efeito, uma mesma substância, sem mudar a sua essência, pode
desenvolver algumas virtualidades e não desenvolver outras, e pode desenvolvê-
las em graus distintos; se assim não fosse, as substâncias estariam desenvolvendo
todas as suas possibilidades de interação a todo o momento: e não é isso que acon­
tece. Nem ao menos seria possível que isto ocorresse, porque o desenvolvimento
das virtualidades se realiza em função das circunstâncias presentes em cada caso,
e as circunstâncias podem ser muito variadas: todas as circunstâncias não podem
estar presentes de uma só vez.
Estas virtualidades, que são modos de ser acidentais, denominam-se
“qualidades”. No caso da quantidade, o uso do singular expressa a unidade da
substância extensa; ao contrário, ao falar das qualidades utilizamos o plural para
expressar que em qualquer substância existem qualidades diferentes.
Falamos também de “virtualidades” porque são propriedades presentes
na substância a modo de possibilidades ou potencialidades cuja atualização
depende das circunstâncias. Este termo expressa tanto potencialidades de atuar
como de receber uma ação de outra substância: ainda que frequentemente se fale
de qualidades “ativas” no primeiro caso e qualidades “passivas” no segundo caso,
de um ponto de vista geral todas se desenvolvem mediante interações que
incluem dois ou mais sujeitos, com independência de que uns ou outros possam
ser considerados “ativos” ou “passivos”.
Definitivamente, as qualidades são modos de ser acidentais, porque não
têm uma existência própria independente e nem se identificam com a essência
das substâncias. São modos de ser que se relacionam com a forma substancial,
porque se caracterizam como determinações particulares que correspondem ao
modo específico de ser de cada substância. E determinam a substância “através
d a ” quantidade, porque são modos de ser que se realizam nas condições quan­
titativas; a magnitude de uma substância, a sua configuração espacial, a estru­
turação temporal dos processos que nela existem e, em geral, as condições
materiais, são como um pano de fundo sobre o qual existem as qualidades.
Contudo, trata-se de um pano de fundo que está compenetrado com os atores,
formando uma só realidade: as condições quantitativas impõem limites ao
qualitativo, que existe dentro dos limites destas condições.
Aspectos qualitativos 209

b) As qualidades como propriedades intrínsecas da substância

Podemos acrescentar que as qualidades são acidentes intrínsecos, porque


se referem a modos de ser próprios da substância. Ainda que sejam modos de
ser acidentais, expressam determinações das substâncias em si mesmas, não em
relação às outras. Entretanto, como logo veremos, algumas qualidades são mais
relacionadas com a essência das substâncias do que outras. Além disso, mesmo
que admitamos seu caráter intrínseco, as qualidades manifestam-se mediante
interações com outras substâncias e com o sujeito que as conhece. Assim, é
preciso determinar, em todos os casos, o que há de objetivo em cada qualidade
e o que melhor corresponde às interações com as outras substâncias e com o
sujeito que as conhece.
Enquanto modos de ser, distinguem-se dois tipos básicos de qualidades:
as propriedades, que não fazem parte da essência, mas a acompanham
necessariamente, e as qualidades puramente contingentes, que podem existir ou
não em uma substância concreta. Por exemplo, as substâncias químicas puras
possuem propriedades bem determinadas que as distinguem (massa atômica,
pontos de fusão ou de vaporização, etc.) e, ao contrário, podem possuir outras
qualidades que não são características (por exemplo, apresentar-se sob uma deter­
minada cor ou encontrar-se em estado sólido, líquido ou gasoso).
As propriedades são empregadas para definir as substâncias. Com efeito,
não conhecemos as essências de modo direto nem completo e, portanto,
determinamos o seu modo de ser e a sua definição através das suas propriedades.
Distinguem-se também as qualidades ativas e as passivas. As primeiras
referem-se às modalidades da atividade e as segundas à recepção de ações de
outros sujeitos. No entanto, já reparamos que esta distinção corresponde a
critérios claros que em parte são convencionais, porque tanto as ações como as
paixões são interações, e uma substância é qualificada como ativa ou passiva
de acordo com determinados pontos de vista: por exemplo, segundo se trate de
um vivente ou não-vivente, de uma substância de maior ou menor tamanho, etc.

24.2 Tipos de qualidades

Existem muitos tipos de qualidades, e nem todas se encontram em todas as


substâncias. Já chamamos a atenção ao fato de existirem qualidades que acompa­
nham necessariamente uma essência -propriedades - e outras que podem estar
presentes ou não num determinado tipo de substância - qualidades contingentes.
Agora, vamos considerar outros modos de classificar os distintos tipos
de qualidades. Em primeiro lugar, estudaremos os quatro tipos de qualidades
210 Filosofia da Natureza

que Aristóteles distinguiu. Em segundo, examinaremos as virtualidades ou


disposições. Em terceiro, abordaremos as qualidades que podem ser captadas
pelos sentidos e que desempenham, por este motivo, uma função básica no nosso
conhecimento da natureza.
a) Quatro espécies de qualidade
Ao estudar o significado da qualidade106, Aristóteles chamou-a por um
nome derivado de poiós, que significa “de tal ou qual classe”. A qualidade é
aquilo segundo o qual os entes se chamam tais ou quais. Parece afirmar que o
qualitativo é o que se dá na substância além do quantitativo.
Para Aristóteles, a natureza tem características quantitativas e qualitativas,
e ambas são reais. O quantitativo é a primeira determinação do material e o
qualitativo determina aos entes através da quantidade; por exemplo, a brancura
afeta a superfície de um corpo. O quantitativo possui certa primazia, porque os
demais acidentes afetam a substância através da quantidade. Contudo, o
qualitativo é real, pois expressa os modos de ser dos entes.
Esta perspectiva situa-se em continuidade com o realismo do conheci­
mento ordinário. Além disso, determina o modo de estudar a natureza: no con­
texto aristotélico, atribui-se a primazia ao qualitativo frente ao estudo matemático
da natureza, porque todo saber apóia-se sobre o conhecimento ordinário, baseado
nas qualidades dos corpos.
Segundo Aristóteles, o primeiro e mais próprio modo de se falar da qua­
lidade é como diferença da substância, que costuma ser denominada a diferença
específica. Por exemplo, ser “racional” é a diferença específica que define o
homem em relação aos demais animais, que não são racionais.
Aristóteles diferenciou quatro espécies de qualidades, advertindo que
talvez pudesse aparecer algum outro tipo, mas que estes são os que assim são
chamados com maior propriedade: o estado e a disposição; a capacidade e a
incapacidade; as qualidades afetivas e as afecções; a figura e a forma.
As qualidades da primeira espécie são o estado (ou hábito) e a disposição,
que diferem por ser mais ou menos estáveis: os estados ou hábitos são mais
estáveis e as disposições menos estáveis. Os estados também são disposições,
enquanto que as disposições não são necessariamente estados. Aristóteles fala
de “possuir certo estado” e de “achar-se numa disposição”. Estas ideias não se
aplicam somente na filosofia da natureza, mas também em âmbitos como a ética
e a teologia moral, quando se fala, por exemplo, das virtudes como hábitos
estáveis, do estado de graça santificante ou habitual ou das disposições morais.106

106. ARISTÓTELES. Categorias,8,8 b 25-11 a 38; Metafísica, V, 14.1020b25.


Aspectos qualitativos 211

As qualidades da segunda espécie são a capacidade e a incapacidade


naturais (ou potência e impotência). Estas qualidades consistem em ter
capacidade natural para fazer algo. Por exemplo, na antropologia fala-se do
entendimento, da vontade e dos sentidos como potências da alma, já que são
capacidades intelectuais ou volitivas que o ser humano possui para agir.
As qualidades da terceira espécie são as qualidades afetivas (patibilis
qualitas) e as afecções (passiones). Aqui, os termos “afetivo” e “afecção” tomam
o seu significado do verbo “afetar”, e referem-se a qualidades que afetam os
sentidos e mudam as alterações naturais. As qualidades que se estudam na filo­
sofia da natureza pertencem, de modo geral, a este tipo: são qualidades materiais
ou corpóreas, relacionadas com mudanças físicas tais como cor ou densidade.
As qualidades da quarta espécie são a figura e a form a: triangular, reta,
curva. Obviamente, estas qualidades também entram na consideração da filosofia
natural e é mais fácil perceber que ocupam um lugar muito importante, já que
se referem à estruturação espaço-temporal do natural.

b) Virtualidades, disposições e tendências

Todas as qualidades podem ser consideradas como “virtualidades”, porque


se tratam de possibilidades que podem ser atualizadas em função das
circunstâncias. E qualquer virtualidade equivale a uma possibilidade real, a uma
potencialidade específica, que pode estar mais ou menos distante de sua
atualização. De acordo com os graus desta proximidade, pode-se falar, de menos
a mais, de simples “virtualidades” ou “capacidades”, de “disposições”, ou de
autênticas “tendências”.
Ao considerarmos que a atualização das virtualidades depende das
circunstâncias que a permitem ou que a impulsionam, também dependerá destas
circunstâncias a clarificação de uma qualidade como virtualidade, capacidade,
disposição ou tendência: por exemplo, a afinidade das substâncias químicas
refere-se à sua tendência de combinar-se, e varia conforme as circunstâncias.
Uma qualidade costuma ser considerada como virtualidade, capacidade,
disposição ou tendência em relação às circunstâncias habituais ou às mais
relevantes num determinado contexto.
A existência de tendências é especialmente evidente quando os agentes
fazem parte de uma organização unitária estável. De fato, nestes casos, dão-se
as circunstâncias que favorecem ou provocam a atualização de certas
virtualidades específicas. É importante notar que este caso é muito frequente
na natureza, o que é uma manifestação do seu caráter altamente específico e
tendencial.
212 Filosofia da Natureza

O caráter tendencial das qualidades é frequentemente negado devido à


sua conexão com a finalidade. Trata-se, no entanto, de um aspecto central da
natureza.
c) Propriedades sensíveis e propriedades inobserváveis
A distinção entre aquelas qualidades que são sensíveis e aquelas que não
o são tem especial importância para nós. Com efeito, o nosso conhecimento da
natureza depende completamente das primeiras, porque se baseia no que pode
ser conhecido através dos nossos sentidos.
Ao contrário, a distinção é irrelevante com vistas a determinar o modo
de ser do natural, uma vez que este modo de ser poderi a permanecer idêntico
mesmo se desaparecesse a humanidade (prescindimos aqui dos efeitos da nossa
ação sobre a natureza).
Os nossos sentidos têm um alcance muito limitado e o seu funcionamento
refere-se, antes de tudo, às necessidades da vida prática. Nestas circunstâncias,
é surpreendente o grande desenvolvimento das ciências, graças ao qual podemos
conhecer muitos aspectos da natureza que são inacessíveis à experiência
ordinária ou que estão muito afastados dela. Este progresso somente é possível
graças a uma peculiar combinação entre o conceito e a experimentação. O método
científico, baseado nesta combinação, é uma das principais demonstrações da
inteligência humana, pois supõe o alto grau de idealização que é necessário para
construir modelos teóricos, assim como a capacidade de relacionar as
construções teóricas com os resultados experimentais, projetando e realizando
experimentos muito sofisticados: e tudo isso supõe a capacidade de interpretação
e de argumentação.
Mas toda a ciência experimental depende dos dados proporcionados pelos
sentidos. Mesmo as teorias mais abstratas devem ser comprovadas pelos
resultados experimentais, cuja interpretação depende, inevitavelmente, dos dados
da experiência ordinária.
Outros viventes podem captar qualidades que para nós são inacessíveis
ou que superam as nossas possibilidades. Em todo caso, a relação das qualidades
com o nosso conhecimento conduz-nos diretamente ao problema da objetividade
das qualidades.

24.3 A objetividade das qualidades

Sob a perspectiva aristotélica, a qualidade refere-se a um modo de ser,


ou seja, a uma forma acidental que representa um aspecto da realidade, uma
determinação acidental que não se reduz às dimensões quantitativas. A
Aspectos qualitativos 213

quantidade sem forma seria, por assim dizer, cega. Negar o qualitativo equivale
a negar que realmente existem modos de ser.
Entretanto, ainda que se admita a existência de qualidades reais na
natureza, existem algumas interrogações que afetam a objetividade que podemos
atribuir a estas qualidades: como as conhecemos? Podemos dizer que as coisas
possuem as qualidades tal como nós as percebemos? Em que medida o nosso
conhecimento está condicionado pelo nosso modo particular de captar a
realidade?
a) Qualidades primárias e secundárias
No mecanicismo cartesiano e no empirismo pós-cartesiano, cunhou-se
uma terminologia que sobrevive até o presente momento. Características
quantitativas tais como magnitude, figura e movimento local corresponderiam
a qualidades prim árias, propriedades reais da natureza. Por outro lado,
qualidades sensíveis como cor, sabor, som, etc. (os objetos diretos dos nossos
sentidos) seriam qualidades secundárias, que não são propriedades reais, mas
efeitos que as coisas produzem nos nossos sentidos. Estaria estabelecida,
portanto, uma dicotomia entre o quantitativo, que seria objetivo e poderia ser
estudado pela matemática, e as qualidades, que existiriam somente no sujeito
cognoscente.
Esta dicotomia costuma ser apresentada como se estivesse apoiada pela
perspectiva quantitativa da ciência experimental, que consegue estudar as
qualidades primárias de modo intersubjetivo, o que não é possível com relação
às qualidades secundárias.
Para esclarecer este problema é importante compreender a função da
matemática no estudo da natureza. Os conceitos matemáticos, especialmente os
mais abstratos, são construções nossas. É possível aplicar a matemática nas ciên­
cias naturais, pois definimos as magnitudes em relação com as formulações
matemáticas e com os experimentos. O êxito destas construções não contradiz
a existência das qualidades.
O progresso científico permite conhecer muitos processos físicos que
intervêm na sensação, tais como os fenômenos eletromagnéticos relacionados
com a luz e com a visão e os mecanismos cerebrais relacionados com a
percepção. Levando em conta os conhecimentos atuais, não é difícil verificar
as deficiências do realismo e do subjetivismo radicais, que são concepções
extremas acerca da objetividade das sensações e das qualidades.
O realismo das qualidades em sua forma extrema, ou seja, a doutrina
segundo a qual as qualidades sensíveis existem na realidade tal como as
percebemos, não parece sustentável. Nos órgãos dos sentidos recebemos sinais
214 Filosofia da Natureza

que são codificados e traduzidos, e o resultado são sensações produzidas de


acordo com o nosso aparato cognoscitivo. Portanto, o que percebemos, tal como
o percebemos, existe somente em nós.
O puro subjetivismo acerca das qualidades, segundo o qual existe uma
heterogeneidade radical entre a sensação e a realidade física, tampouco parece
sustentável. Subestima que as qualidades correspondam, de algum modo, às
propriedades dos objetos.
A solução do problema encontra-se num termo médio. Por um lado, a
sensação e o seu conteúdo encontram-se somente em um sujeito dotado de um
organismo determinado. Mas, por outro, existe continuidade entre a sensação e
a realidade exterior. Pode-se dizer que, através da sensação, captamos pro­
priedades reais de acordo com o nosso modo de conhecer. Para determinar
detalhadamente as características destas propriedades são necessárias inves­
tigações específicas e, neste terreno, as ciências desempenham uma função
insubstituível. Porém, a própria ciência seria impossível se não admitíssemos a
objetividade básica do conhecimento sensível, já que o utiliza continuamente e
não pode substituí-lo.
Nesse sentido, a visão corresponde a um conjunto de interações de caráter
físico e fisiológico. Enquanto experiência pessoal, a sensação é subjetiva, mas
corresponde ao real e pode ser objeto de comprovações intersubjetivas. Ao se
afirmar que algo possui uma cor, predica-se algo real, ainda que esta predicação
esteja matizada pela nossa aparelhagem sensorial e pelas circunstâncias físicas.
Que a cor corresponda a algo real comprova-se porque, quando se observa algum
objeto, percebem-se, em cada circunstância, efeitos bem determinados107.
Por outro lado, as chamadas qualidades primárias (tamanho, figura,
posição, movimento, velocidade) também dependem da nossa concepção e das
circunstâncias físicas. Enquanto entidades perceptíveis, as primárias são tão reais
e subjetivas quanto as secundárias: ambas são o resultado de dados processados
e interpretados.
b) O conhecimento das qualidades
Ao afirmarmos que a quantidade é o primeiro acidente da substância
corpórea, conclui-se que todos os demais acidentes afetam a substância através
da quantidade. Assim explicamos o caráter primário do quantitativo, mas também
notamos que reduzir tudo ao quantitativo é uma extrapolação injustificada.

107. Cfr. NASSAU, K. “Las causas dei color", in Investigación v ciência, n. 51, dezembro de 10X0, págs.
56-72; TRIÍISMAN, A. “Características y objetos dei procesamiento visual”, in Investigacióny ciência, n.
124, janeiro de 1987, págs. 68-78.
Aspectos qualitativos 215

A natureza é composta por entidades com modos de ser (formas,


qualidades) cuja existência apóia-se sobre uma base quantitativa. No nível da
experiência ordinária captamos, do nosso modo, ambos os aspectos; e a reflexão
científica e filosófica dirige-se a conhecê-los melhor.
Estamos dotados de um aparato sensorial que nos permite ter uma
representação da natureza que é contextual (depende do nosso aparato
cognoscitivo) e parcial (captamos alguns aspectos e não outros), mas autêntica
(captamos, do nosso modo, características reais). Este conhecimento desenvolve-
se mediante a experiência e está relacionado comfins práticos: o reconhecimento
de objetos, a orientação, a ação, a nutrição, etc. Além disso, este conhecimento
também proporciona uma base, parcial mas confiável e indispensável, para uma
reflexão ulterior, que pode ser tanto científica como filosófica, dirigida ao
conhecimento de aspectos não manifestos da natureza.
Não há sentido criticar a validade do conhecimento ordinário em nome
da ciência, já que o conhecimento ordinário constitui um pressuposto básico
da ciência. Sem o conhecimento ordinário, os problemas científicos nem sequer
poderiam ser propostos e tampouco seriam possíveis a observação e a com­
provação experimental.
Além disso, o progresso científico retrojustifica a validade do conheci­
mento ordinário, amplia-o e, eventualmente, contribui para precisá-lo (por exem­
plo, eliminando algumas avaliações inadequadas da experiência); mas não pode
invalidá-lo ou substituí-lo.
A ciência experimental nem sempre proporciona representações fotográfi­
cas da realidade, como se fossem uma mera tradução do mundo externo. Utiliza
linguagens simbólicas, que são construções nossas. Porém, através destas cons­
truções, conhecemos de modo contextual e parcial, mas autêntico, características
reais. Estas características referem-se, de uma maneira ou de outra, a modos de
ser, e podem ser catalogadas, por conseguinte, no âmbito das qualidades.
Segundo a sua natureza e segundo o contexto dos problemas que são
estudados, estas características podem ser catalogadas como virtualidades, capa-
cidades, disposições e tendências108. Não é difícil enquadrá-las dentro das espé­
cies clássicas da qualidade. Não se trata de encará-las de maneira forçada - o
que não teria nenhum interesse - , mas de perceber que correspondem à ideia
clássica de qualidade e que, por conseguinte, esta ideia conserva a sua validade.108

108. Cfr. HARRÉ, R. "Powers”, in The Brilish Journalfor lhe Philosophy ujScience, 21 (1970), p. 81-101;
THOMPSON, I. J. “Real Dispositions in (he Physical World", in The Brilish Journalfor the Philosophy o f
Science, 39 (1988), p. 67-79.
216 Filosofia da Natureza

c) Reducionismo e propriedades emergentes

Existem dois grandes tipos de reducionismo: o ontológico, que se refere


à natureza e aos seus diferentes níveis, e o epistemológico, que se refere às
ciências, ou seja, ao nosso conhecimento da natureza.
O reducionismo ontológico é a doutrina segundo a qual os níveis
superiores da natureza não são nada mais que a simples soma dos elementos
dos níveis inferiores e, portanto, podem ser reduzidos a eles. O reducionismo
ontológico mais radical afirma que, em última análise, tudo se reduz a entidades
e processos físicos. Como o que é físico costuma ser identificado com o material,
este tipo de reducionism o geralm ente adota a forma de algum tipo de
materialismo: sustenta que, no fundo, toda a realidade está reduzida ao material.
O reducionismo epistemológico afirma que as ciências se reduzem, em
última análise, às mais elementares. Assim, a biologia reduz-se à física e à
química, de modo que, na realidade, não seria mais que físico-química aplicada
aos viventes. O reducionismo epistemológico mais radical afirma, além disso,
que as ciências se reduzem, em último termo, a uma combinação de experiências
sensoriais.
Ambas as doutrinas encontram sérias dificuldades. No aspecto
epistemológico, é certo que o progresso científico permite estabelecer pontes
que conectam, cada vez mais, umas disciplinas científicas com as outras e todas
elas com a física. Mas também é certo que não é possível deduzir os
conhecimentos de um nível a partir dos conhecimentos dos níveis inferiores. Nem
sequer é possível reduzir a química à física, e mesmo dentro da física existem
teorias cuja harmonização é difícil. No aspecto ontológico, existem diferentes
níveis de organização que não são redutíveis uns aos outros. Por exemplo, é certo
que os viventes estão constituídos pelos mesmos tipos de materiais que são
estudados na física e na química, mas também é certo que existem nos viventes
muitos tipos de organização e de funcionalidade que não existem nos outros
níveis e que, portanto, reclamam uma perspectiva específica diferente das que
são adotadas na física e na química.
Para expressar a irredutibilidade de uns níveis em relação a outros, utiliza-
se com frequência na atualidade o termo emergência. Este termo já alcançou o seu
auge na primeira metade do século XX. À primeira vista, significa o contrário de
redução, ou seja, que nos níveis superiores, seja da natureza ou da ciência, existem
características emergentes, que estão fora ou por cima dos níveis inferiores.
Contudo, algumas doutrinas se apresentam como materialismo não-reducionista
oufisicalismo não-reducionista, tentando evitar as dificuldades do reducionismo,
mas afirmando, por sua vez, que cm última análise tudo é explicado por meio da
Aspectos qualitativos 217

evolução do material ou do físico. Com efeito, é possível afirmar o emergentismo,


que reconhece a existência de propriedades novas nos diferentes níveis da natureza
e, ao mesmo tempo, sustentar que as novas propriedades surgem simplesmente dos
níveis inferiores mediante sucessivos processos de organização.
Em todo caso, é importante notar que nos sucessivos níveis de organização
da natureza surgem propriedades realmente novas. Esclarecê-las como
emergentes não é mais do que colocar nelas uma etiqueta que, por si mesma,
nada explica. As explicações devem provir das ciências ou da filosofia. Ainda
que as ciências consigam explicar como uma nova propriedade surge, isto não
elimina os ulteriores questionamentos filosóficos: podemos nos perguntar, por
exemplo, por que existem algumas leis físico-químicas tão específicas que
tornam possível a organização tão sofisticada da natureza e como é que são
produzidos sucessivos níveis de organização que contêm virtualidades para a
ulterior produção de uma organização cada vez mais notável.

25. Quantidade e qualidades

A relação entre o quantitativo e o qualitativo é muito estreita. Nos seres


materiais, todas as qualidades encontram-se assinaladas pela quantidade: existem
em umas determinadas dimensões e estão ligadas a determinadas estruturas
espaciais e temporais.
Depois de termos analisado diferentes aspectos da quantidade e das
qualidades, podemos agora compreender melhor as relações que existem entre
estas duas dimensões da realidade natural.

25.1 Dimensão quantitativa das qualidades

Quando consideramos os seres naturais concretos, reparamos que a relação


entre o quantitativo e o qualitativo não é algo geral e abstrato, mas muito
concreto. De fato, os modos de ser das entidades naturais são fortemente condi­
cionados pelas dimensões quantitativas. Por exemplo, os insetos, as aves e os
primatas possuem características que se relacionam com a magnitude dos seus
organismos e com a proporção entre os tamanhos dos seus órgãos.
As figuras básicas que se dão nos seres naturais não são muitas nem
arbitrárias. Há uma grande variedade de figuras particulares, mas isso é resultado
da combinação de um número muito reduzido de figuras básicas. Assim, num
trabalho sobre este tema podemos ler: “O nosso estudo centrar-se-á nas figuras
e formas que se apresentam no mundo natural. Estas figuras são particularmente
restritas, de modo que a imensa variedade de formas criadas pela Natureza surge
218 Filosofia da Natureza

da elaboração e reelaboração de um reduzido número de temas básicos. Estas


limitações são as que conferem harmonia e beleza ao mundo natural... Em
matéria de figuras, observamos que a Natureza tem preferências, entre as quais
se acham as espirais, as formas serpenteantes e sinuosas, as ramificações e as
uniões de 120°, figuras que se repetem uma vez e outra. Neste sentido, a natureza
age como um produtor teatral que apresenta a cada noite os mesmos atores
caracterizados de formas diferentes, segundo os seus distintos papéis... Um olhar
por trás das cortinas revela que a natureza não tem escolha na hora de designar
os papéis aos atores. As suas produções estão limitadas pela escassez dos
recursos e pelas restrições impostas pelo espaço tridimensional, assim com pelas
relações existentes entre os distintos tamanhos dos objetos e por um peculiar
sentido de austeridade. Dentro do domínio da natureza, somente cinco tipos de
poliedros regulares podem ser formados, e nenhum a mais. Da mesma maneira,
existem unicamente sete sistemas cristalinos e nunca aparece um oitavo. O
tamanho absoluto determina que o leão não possa voar nem o pica-pau rugir.
Todos e cada um dos elementos que fazem parte das distintas ações que
acontecem no Universo devem se ater às regras estabelecidas” 109.
No mesmo sentido, lemos: “Cada forma tem seu próprio campo de
dimensões e está limitada tanto superior como inferiormente. No entanto, as
distintas formas associam-se e atuam conjuntamente com outras de mesmas
características a fim de originar estruturas maiores e níveis superiores de orga­
nização”110. O autor desta citação é D ’Arcy Thompson, que publicou em 1917
um estudo considerado pioneiro nesta linha. Ainda que este tipo de estudo
contenha ideias controvertidas e inclusive superadas pelo progresso ulterior,
apontam para uma tese que cada vez ganha mais força. D ’Arcy Thompson
expressou-o desta maneira: “Chegamos, assim, a uma conclusão que afetará todo
o curso de nossa argumentação ao longo deste livro: existe uma diferença quali­
tativa essencial entre os fenômenos da forma, conforme se trate de organismos
grandes ou pequenos” 111. E também: “Para começar, descobrimos que a «escala»
tem um destacado efeito nos fenômenos físicos e que o aumento ou diminuição
das dimensões pode significar uma mudança completa do equilíbrio estático ou
dinâmico. Finalmente, começamos a nos dar conta da existência de desconti-
nuidades na escala que definem fases nas quais predominam diferentes formas
e diferentes condições”112.

109. STEVENS, Peter S. Patrones vpautas en la naluraleza, Barcelona: Salvat, 1986, págs. 1-2.
110. Ibici., pág. 26.
111. THOMPSON. D'Arcy Wentworth. Sobre el crecimiento y Ia forma, Madrid: Hermann, 1980 (a
edição original é de 1917), pág. 35.
112. //>/</., págs. 45-46.
Aspectos qualitativos 219

O progresso científico descobre novas relações entre o quantitativo e o


qualitativo. As entidades e processos naturais possuem múltiplas combinações
de elementos, que não são numerosos e que podem ser combinados de modos
muito específicos, dando lugar a uma grande variedade de resultados. Basta
pensar, por exemplo, nos 92 tipos de átomos, base de todo o nosso mundo, nas
três partículas subatômicas que são os constituintes básicos destes átomos e de
toda a matéria, nas combinações que se fazem tomando como base o átomo de
carbono e que constituem o suporte da vida tal como a conhecemos, e os quatro
nucleotídeos que constituem as bases das quais está feito o DNA que contém o
programa genético dos viventes, etc. Os fractais são uma descoberta especial­
mente interessante nesta linha; são formas que têm uma estrutura determinada
em qualquer escala de ampliação, de modo que são semelhantes a si mesmos:
pequenas partes têm a mesma estrutura que a totalidade e isto permite
compreender como, sobre a base de poucas estruturas que se repetem de mil
maneiras, chega a se produzir uma enorme diversidade de formas naturais.
Definitivamente, podemos afirmar que às distintas formas naturais
correspondem determinadas magnitudes e formas matemáticas. Os modos de
ser qualitativos não se relacionam somente com o quantitativo, mas dependem
estreitamente das formas e combinações quantitativas. Ao mesmo tempo, o quan­
titativo não é amorfo e indiferenciado: a natureza que conhecemos é o resultado
da combinação de formas matemáticas muito específicas113.

25.2 A medição da intensidade qualitativa

No âmbito do natural, quantidade e qualidades estão inter-relacionadas e


entrelaçadas. Nesta relação encontra-se, precisamente, o fundamento do estudo
matemático o qualitativo. Embora as qualidades, consideradas em si mesmas,
não possam ser medidas, quando são consideradas em sua realização concreta,
encontram-se sempre relacionadas com dimensões quantitativas e, por conse­
guinte, podem ser objeto de estudo matemático: costuma-se falar, neste sentido,
da medição indireta das qualidades.
De fato, um dos fatores que possibilitaram o nascimento da ciência
experimental do século XVII foi o avanço na medição indireta das qualidades,
alcançado nos séculos anteriores com grandes dificuldades (devido à sua novi­
dade). Nesta linha, tiveram especial importância os trabalhos realizados no século
XIV em Paris e Oxford. Existiam precedentes; por exemplo, Roberto Grosseteste

113. Esta ideia é fortemente salientada, por exemplo, em: STEWART, Ian e GOLUBITSKY, Martin.
<Es Dios un geómetra?, Barcelona: Crítica, 1995.
220 Filosofia da Natureza

insistira na importância fundamental da matemática para o estudo dos fenômenos


físicos e aplicara a geometria à ótica, impulsionando a orientação científica de
Oxford. Em Paris, os estudos de Nicolas Oresme foram importantes neste âmbito.
Entre as contribuições de Oresme à física estão a representação gráfica das
qualidades e a aplicação desta representação ao estudo do movimento
uniformemente acelerado. Oresme tem a primazia indubitável em dois aspectos
centrais: a amplitude de problemas aos quais aplicou a abordagem matemática
e o uso de coordenadas para a representação gráfica das variações nas qualidades
e nos movimentos114.
A medição das qualidades é o fundamento da aplicação da matemática
ao estudo das propriedades qualitativas dos corpos. As ciências físico-mate-
máticas baseiam-se, em boa parte, na medição indireta das qualidades: como
estas ciências buscam um conhecimento da realidade que permita a utilização
de conceitos quantitativos e levando em conta que conhecemos os corpos através
das suas qualidades, percebe-se facilmente que na base do conhecimento físico-
matemático encontram-se enunciados nos quais o aspecto qualitativo está
relacionado com o quantitativo.

25.3 Qualidades e magnitudes

Examinamos anteriormente como as magnitudes físicas são construídas


e qual é o alcance do método físico-matemático. Analisaremos agora um aspecto
particular das qualidades. Com efeito, se as qualidades são propriedades reais e
admitimos que a ciência experimental proporciona um conhecimento autêntico
da realidade, deveri am existir nas ciências conceitos relacionados com as
qualidades.
A adscrição de qualidades às entidades estudadas pela ciência estuda não
apresenta problemas especiais quando se estudam aspectos acessíveis à
observação, tal como acontece, por exemplo, com muitos fenômenos biológicos.
Ao contrário, quando se estudam aspectos inobserváveis, como acontece na
microfísica, os problemas são maiores, porque devemos recorrer a modelos
matemáticos que não são fotografias da realidade. Todavia, também neste caso
se consegue conhecer virtualidades, capacidades, disposições e tendências que
as entidades possuem em virtude da sua própria natureza. Sem dúvida, em alguns
casos é difícil chegar a conclusões certas acerca do estatuto ontológico das
entidades e das suas propriedades; mas isto se deve apenas às limitações do nosso

114. ARTIGAS, Mariano. “Nicolas Oresme, gran maestre dei Colégio de Navarra, y el origen de la ciência
moderna”, op. cit.
Aspectos qualitativos 221

conhecimento. Se não admitíssemos que a natureza está constituída por entidades


que têm uma natureza e algumas qualidades próprias, a investigação científica
careceri a de sentido e o mesmo aconteceria com os enunciados científicos. Isso
é compatível com o caráter abstrato de muitas formulações científicas e com a
existência de dificuldades para determinar o seu alcance ontológico concreto.
Uma das manifestações das qualidades no âmbito científico são os termos
disposicionais, que indicam a existência de tendências atuando de modos
determinados em certas circunstâncias. Discutiu-se acerca da realidade destes
termos; em determinadas ocasiões argumentou-se que não eram necessários e
que não desempenhavam nenhuma função essencial na ciência: poderiam ser
substituídos por termos puramente operacionais. Todavia, de fato, a atividade
científica não funciona deste modo e é frequente a utilização de um vocabulário
disposicional, que equivale a atribuir qualidade às entidades científicas. Na
ciência experimental, recorre-se frequentemente a propriedades disposicionais:
basta pensar em propriedades tais como a resistência elétrica, a suscetibilidade
elétrica, a densidade, a solubilidade, a afinidade química e muitas outras que
são autênticas magnitudes científicas relativas a qualidades, porque expressam
virtualidades, capacidades, disposições e tendências.
Aqueles que negam a legitimidade de se falar, na ciência experimental,
de virtualidades ou tendências utilizam os seguintes argumentos. Dizem que os
enunciados que expressam tendências não podem ser submetidos ao controle
experimental. Acrescentam que se pode falar somente de tendências no âmbito
da intencionalidade humana e que atribuir tendências aos entes naturais
equivalería a admitir uma espécie de pampsiquismo, ou seja, que tudo tem vida
e intenções. Sustentam, por fim, que a referência a tendências presta-se a abusos
metafísicos na medida em que leva a ver finalidade onde ela não existe e a
apresentar problemas que surgem de um indevido antropomorfismo115. Um
exemplo que às vezes é utilizado é o das situações nas quais não existem efeitos
detectáveis e que, de acordo com os defensores das tendências, se explicariam
mediante o equilíbrio de tendências reais; é o caso, por exemplo, de duas equipes
que puxam em direções opostas uma mesma corda, de tal modo que a corda não
de desloca: se se recorre a tendências, afirma-se que existem tendências que
atuam, mas se equilibram.
Entretanto, a existência de tendências reais parece inegável. No nível
científico, o problema refere-se à possibilidade de construir conceitos que permi­
tam representar as tendências e que tenham capacidade explicativa.

115. Encontram-se raciocínios deste tipo, por exemplo, em: GIBSON, Q. “Tendencies”, in Philosophy
o f Science, 50 (1983), págs. 296-308.
222 Filosofia da Natureza

Aqueles que defendem a existência de tendências resumem o problema


nos seguintes termos. Na natureza existem diferentes tendências ou potências
ativas que correspondem à natureza das coisas. Atuam de modo combinado e,
para detectá-las, é necessário recorrer a experimentos nos quais se isolam os
efeitos das tendências particulares. A natureza é um sistema aberto em que há
interferência de diferentes tendências e, para conhecê-las, é preciso provocar a
existência de sistemas fechados, nos quais intervenham somente fatores que
podemos controlar. Nos sistemas fechados, ou seja, nos experimentos em que
as interferências não desejadas são eliminadas, é possível obter leis naturais que
expressam sequências constantes; uma vez que dispomos destas leis, somos
capazes de explicar o que acontece nos sistemas abertos do mundo real em termos
das leis que expressam tendências116.
Segundo Rom Harré, uma tendência é uma potência que se encontra como
que suspensa, a caminho de ser exercitada ou manifestada117. Harré afirma que
este conceito exerce uma função central na reflexão filosófica acerca da ciência:
“Procuro mostrar que o conceito de potência (power) pode desempenhar uma
função central na teoria metafísica conforme uma filosofia realista da ciência...;
mostrarei que as potências não somente são indispensáveis na epistemologia da
ciência, mas que são o autêntico coração e a chave da melhor metafísica para a
ciência. Ao fazê-lo, mostrarei que o conceito de potência não é mágico nem
oculto, mas tão empírico como possamos desejar, e inclusive mais rico em
capacidade que os conceitos aos quais sucede...; devemos dispor do conceito
de potência para que a ciência tenha sentido”118.
Nas análises de Harré, o conceito de potência (power) expressa potência
ativa, poder, força, energia e relaciona-se com os conceitos de disposição
(disposition), propensão (propensity), direção (trend), tendência (tendency) e
potência passiva ou capacidade de intervir em ações provocadas pelas tendências
ativas (liability). Todos eles expressam aspectos relativos a capacidades e
direcionalidade.
Segundo Harré, a afirmação de uma potência não é uma asserção cate­
górica acerca da presença de uma qualidade, mas um enunciado condicional ou
hipotético genérico, já que não especifica a que tipo de questões concretas é apli­
cado, acompanhado por condições subjuntivas que se referem a casos nos quais

116. Um realismo deste tipo encontra-se, por exemplo, em: BHASKAR, Roy. A Realist Theory ofScience,
Leeds: Leeds Books, 1975, págs. 33-36; HARRÉ, Rom. The Principies o f Scientific Thinking, London: Mac
Millan, 1970.
117. Cfr. HARRÉ, Rom. The Principies ofScientific Thinking, op. cit., pág. 278.1larré usa aqui e em muitos
outros lugares o termo power, que traduzimos por potência; trata-se, evidentemente, de uma potência ativa ou
capacidade de atuar.
118. HARRÉ, Rom, “Powers”, op. cit., págs. 8 1,83 e 85.
Aspectos qualitativos 223

não se manifestou e que têm forma: “ao submeter-se a tais condições, acontecerá
tal efeito”. Harré afirma que as entidades têm potências, mesmo se não as
exercitam. A diferença entre o que tem uma potência para comportar-se de um
determinado modo e o que não a tem, não se refere à sua atuação, pois pode
ocorrer que esta potência nunca seja exercida; a diferença refere-se ao que as
entidades são: é uma diferença em sua natureza intrínseca.
Neste contexto, as potências correspondem ao conceito clássico de
potência ativa e o conceito oposto —liability —ao de potência passiva. Harré
assinala que estes dois conceitos são os extremos de todo um espectro, no qual
existem diferentes graus.
Harré adverte que, segundo o realismo, existe uma necessidade natural,
e o que acontece corresponde ao modo de ser das entidades; ao contrário, o
empirismo só considera legítimo afirmar a existência de concomitâncias entre
os eventos, negando a possibilidade de conhecer conexões causais reais que
correspondam à natureza das coisas. Assim, as duas perspectivas conduzem a
dois tipos diferentes de investigação científica: a empírica buscará novos casos
de concomitâncias e a realista buscará conhecer melhor as causas e os seus
efeitos; chega-se, com isso, à conclusão de que a investigação científica acaba
sempre por atuar - mesmo que “inconscientemente” - de acordo com a
perspectiva realista.
As conclusões de Harré coincidem basicamente com as de Bhaskar.
Ambos defendem um realismo segundo o qual, para dar conta da inteligibilidade
na ciência, é necessário admitir que a ordem que se descobre na natureza existe
independentemente da atividade humana. Esta ordem consiste na estrutura e
constituição das entidades e nas leis causais. Para justificar a ciência requer-se
uma ontologia que proporcione uma resposta esquemática à questão: como deve
ser o mundo para que a ciência seja possível119.
Bhaskar e Harré sublinham que uma ontologia coerente com os conheci­
mentos científicos atuais inclui, como ingrediente fundamental, a existência de
relações causais que se fundamentam em disposições, tendências e capacidades;
que estas características correspondem ao modo de ser próprio das entidades; e
que é necessário admitir esta ordem natural para dar razão da ciência120.
As construções científicas não podem ser identificadas levianamente com
as características reais da natureza. Entretanto, os pressupostos básicos da ciência
experimental incluem a existência de entidades naturais que possuem um modo

119. Cfr. BHASKAR. R. op. cit.. págs. 27-29.


120. As análises de Bhaskar e 1larré situam-se na linha do experimentalismo, representado também por
lun I !acking(cfr. IIACKINO, 1. Rcprcsentingandlntenening, Cambridge: Cambridge University Press. 1983)
c nilo estilo isentas de dillciildadcs. 1 imitamo-nos a apontar no texto alguns importantes pontos de coincidência.
224 Filosofia da Natureza

de ser próprio, que se manifesta através de disposições com um caráter tenden-


cial; e o progresso científico justifica estes pressupostos e amplia o seu alcance.
De fato, a cosmovisão científica atual proporciona uma base ampla para os
conceitos de virtualidades, capacidades, disposições e tendências, que refletem
as dimensões qualitativas da natureza.

25.4 Aspectos reais das magnitudes físicas

Complementaremos agora a nossa análise das magnitudes científicas e


da sua relação com a realidade.
Uma magnitude, em sentido científico-experimental, é um conceito
definido de tal maneira que possa se submeter a tratamento matemático e ao
qual se possam atribuir valores quantitativos em relação com os resultados da
experimentação. Tais são, entre outros muitos, os conceitos científicos de
“massa”, “velocidade”, “temperatura”, “entropia” e “potencial elétrico”.
Existem magnitudes de diversos tipos. Algumas guardam relação direta
com os resultados experimentais e podem ser medidas mediante instrumentos (por
exemplo, a massa ou a temperatura) e outras, ao contrário, têm um caráter mais ins­
trumental; são magnitudes introduzidas para facilitar a conceituação e o cálculo,
sem pretender que tenham uma contrapartida real direta (por exemplo, a
hamiltoniana ou a lagrangiana).
Algumas magnitudes relacionam-se com propriedades e conceitos da
experiência ordinária, ao menos inicialmente (a massa, a força, a energia, etc.),
enquanto outras se originam em teorias distantes da experiência ordinária. No
entanto, em todos os casos as magnitudes são definidas e utilizadas no contexto
de teorias científicas específicas. Portanto, para interpretar o real significado
de uma magnitude é imprescindível levar em conta o contexto no qual se define
e utiliza.
Consideremos, como um exemplo que geralmente leva a muitos equívocos,
a transform ação entre m atéria e energia, adm itida na física como uma
consequência da teoria da relatividade de Einstein. Às vezes, é utilizada para
sustentar que o conceito de substância já não é mais válido pois tudo é energia
concentrada ou também para afirmar que é possível produzir matéria a partir de
um estado no qual não exista matéria alguma, mas só pura energia: este raciocínio
é levado adiante, em certas ocasiões, até afirmar que é possível a criação do
universo a partir do nada mediante processos puramente físicos, sem necessidade
de um Criador. Na realidade, a teoria da relatividade estabelece somente uma
relação quantitativa entre duas magnitudes, a massa e a energia, afirmando que,
cm determinados processos, perde-se uma determinada quantidade de massa e se
Aspectos qualitativos 225

produz uma determinada quantidade de energia, ou vice-versa. São sempre


processos naturais que não tem nada de misterioso e que não permitem extrair
consequências como as que foram mencionadas. Em alguns destes processos, os
físicos falam de criação ou aniquilamento de partículas, mas não empregam estes
termos em sentido filosófico e teológico. Na física, a massa e a energia são
definidas em função de procedimentos matemáticos e experimentais, e somente
se afirma a existência de determinadas relações quantitativas entre tais magnitudes
em processos físicos específicos.
Para determinar o sentido real das magnitudes, é preciso tomar como base
sua definição e sua utilização nas correspondentes teorias científicas, evitando
extrapolações pseudocientíficas. Por exemplo, o conceito de matéria não se
identifica com o de massa. A massa, na física, é uma magnitude definida de modo
muito específico. É uma magnitude escalar, à qual se atribuem simplesmente
números, diferentemente das magnitudes vetoriais como a velocidade, que têm
também uma direção e um sentido. É uma magnitude aditiva, ou seja, as massas
de vários corpos são calculadas mediante uma simples soma aritmética, o que
não ocorre com as magnitudes vetoriais, cuja soma inclui operações geométricas,
nem com as magnitudes escalares como a temperatura, já que as temperaturas
de dois corpos contíguos não se somam. Cada vez que se deseje determinar qual
é a referência real de uma magnitude científica ou de um enunciado que relaciona
magnitudes científicas, é necessário considerar todo este tipo de características;
caso contrário, seriam obtidas somente especulações carentes de rigor.

25.5 O quantitativo e o qualitativo no conhecimento do natural

Concluímos, por fim, que o nosso acesso à natureza está condicionado


inteiramente pelo conhecimento das qualidades; que este conhecimento tem um
aspecto subjetivo (a sensação), mas, ao mesmo tempo, permite captar aspectos
objetivos da realidade; que existem qualidades reais e que as conhecemos de
modo contextual e parcial, mas autêntico; e que o progresso científico nos
permite conhecer com maior profundidade muitos aspectos qualitativos da
natureza.
Um mundo puram ente quantitativo seria inobservável. A ciência
experimental transcende o âmbito do conhecimento ordinário, mas deve tomá-
lo como um ponto básico de referência. Em todo caso, a experimentação é
inconcebível sem uma dose mínima de realismo acerca das qualidades tal como
se dão no conhecimento ordinário.
As magnitudes científicas levam-nos ao conhecimento das propriedades
e da natureza dos corpos. O conhecimento proporcionado pela ciência
226 Filosofia da Natureza

experimental não é redutível ao fenomênico nem a aspectos puramente


quantitativos; por meio das ciências, conhecemos a existência e as características
de muitas entidades, propriedades e processos do mundo natural que de outro
modo seriam inacessíveis. No entanto, os enunciados científicos não são sempre
meras traduções ou fotografias da realidade, de modo que, para valorizar o seu
alcance, é preciso analisar o contexto concreto das teorias que são utilizadas em
cada caso.
Por outro lado, o nosso conhecimento da natureza não se reduz ao que a
ciência experimental proporciona. Sem dúvida, o conhecimento científico tem
uma peculiar confiabilidade devido ao rigor das provas teóricas e dos
experimentos que se utilizam, mas isso não permite negar a validade do conhe­
cimento ordinário - apoio para as ciências - , nem da reflexão filosófica ou
teológica, ainda que estas devam contar com os dados proporcionados pelas
ciências quando refletem sobre o natural. O cientificismo, que considera a ciência
experimental como o único conhecimento válido da realidade ou ao menos como
o modelo que qualquer outra pretensão cognoscitiva deveria imitar, carece de
base científica e, na medida em que se apresenta como científico ou como
resultado das ciências, é uma extrapolação pseudocientífica ilegítima. Com
efeito, nenhuma ciência, nem o conjunto de todas elas, permitem julgar a validade
do que ultrapassa o limite das ciências.
227

C apítulo IX

Atividade e causalidade dos seres naturais

A causalidade é tema da filosofia da natureza ao estudá-la no âmbito do


mundo físico, e também da metafísica, ao estudá-la em toda a sua amplitude,
incluindo sua realização no âmbito espiritual.
Desde o princípio, abordamos o dinamismo próprio como um fator básico
da natureza. Consideramos os modos de ser, tanto substanciais como acidentais,
que são ao mesmo tempo fonte deste dinamismo e resultado do seu desenvolvi­
mento. Vamos considerar agora como o dinamismo natural se desenvolve através
da ação física, o que nos conduz ao exame do tema da causalidade natural.

26. Causalidade e ação física

O dinamismo natural desenvolve-se mediante ações dos sistemas físicos.


Mostraremos a seguir que toda ação é uma interação, examinaremos os diversos
tipos de interações e consideraremos a causalidade eficiente, que é a causa
diretamente relacionada com a atividade.

26.1 Dinamismo natural e interações físicas

Se admitimos que todo natural possui um dinamismo próprio, devemos


concluir que a atividade no seu âmbito físico não é um aspecto qualquer do mundo:
é algo que penetra completamente toda a natureza. Encontramos ações por todos
os lugares. Mesmo o que parece mais estático encontra-se, propriamente falando,
em estado de equilíbrio: neste caso, os diferentes dinamismos atuam, mas os seus
efeitos se nivelam.
Em sentido próprio, a atividade natural consiste em interações: nunca é
obra de um agente isolado, sempre implica a ação de uns seres ou componentes
sobre outros seres ou componentes.
Se levarmos em conta a função central que os sistemas unitários ou
substâncias desempenham na natureza, perceberemos também o especial
interesse que há em relacionar as interações com as substâncias. Com efeito, as
interações correspondem às ações das substâncias, dos seus componentes ou das
suas agregações. Portanto, parece lógico centrar o estudo da atividade natural
nas ações destes sujeitos, ou seja, nas causas agentes ou causas eficientes.
228 Filosofia da Natureza

Podemos afirmar que o dinamismo próprio do natural é causa das intera­


ções dos seresfísicos. Com efeito, cada ser físico possui uma capacidade de atuar
de muitos modos diferentes de acordo com as diferentes circunstâncias; o seu
dinamismo é uma capacidade de atuar que não se esgota em apenas algumas mani­
festações concretas, mas se desenvolve de diversos modos em função dos demais
dinamismos que intervêm em cada caso concreto: portanto, em cada caso singular
é produzida uma confluência de dinamismos que dão lugar a interações concretas.
A enorme variedade de resultados possíveis é o que torna necessário - para estu­
darmos os dinamismos naturais - provocar artificialmente situações nas quais po­
demos observar e experimentar aspectos particulares separando-os de outros.
Ao mesmo tempo, os dinamismos naturais resultam de interações físicas.
De fato, as diferentes interações produzem novos sistemas com novos tipos de
dinamismo, seja por existirem anteriormente ou por se produzirem novos casos
de alguma coisa que já existia.

26.2 Modalidades das transformações naturais

As interações físicas ocasionam as mudanças naturais. O natural é cam-


biante. A mutabilidade é uma condição básica do natural, com um dinamismo
próprio que se realiza e se desenvolve em condições espaço-temporais: configu­
rações espaciais que são produzidas e mudam, ritmos temporais que marcam a
posição dos estados físicos.
Com relação aos efeitos produzidos, podemos distinguir duas grandes
modalidades nas transformações naturais: as mudanças substanciais e as
mudanças acidentais. Nas mudanças substanciais, são produzidas alterações nos
modos de ser essenciais: uma substância deixa de existir e é produzida outra
diferente, forma-se uma nova substância a partir de várias que são combinadas
compondo uma nova unidade ou desagrega-se uma substância dando lugar a
várias substâncias diferentes. Nas mudanças acidentais permanecem a mesma
ou as mesmas substâncias e mudam somente os acidentes; sem dúvida, as subs­
tâncias mudam nas mudanças acidentais, mas só mudam acidentalmente: esta
matização é importante se levarmos em conta que muitas objeções ao conceito
de substância procedem de uma ideia segundo a qual as substâncias seriam o
que permanece através das mudanças, como se fossem uma espécie de substrato
imutável.
Já consideramos, ao examinarmos os processos naturais, estas modalida­
des das mudanças ou transformações naturais. Também destacamos que são três
as mudanças acidentais possíveis: a mudança de lugar ou movimento local, a
mudança na quantidade, que costuma ser denominada de aumento ou diminuição.
Atividades e causalidade dos seres naturais 229

e a mudança na qualidade, que é denominada alteração. E advertimos sobre a


existência de uma hierarquia entre estas mudanças: o movimento local é a mais
básica, depois vem a mudança quantitativa e, por fim, a qualitativa. Agora pode­
mos compreender melhor o significado e o porquê disso. Com efeito, vimos que
a quantidade e as qualidades encontram-se compenetradas, e que a quantidade
constitui o marco espaço-temporal básico no qual as qualidades existem. Portan­
to, toda mudança física implica alguma mudança de lugar e toda mudança quali­
tativa implica alguma mudança quantitativa. Por outro lado, não acontecem
mudanças no quando ou na situação temporal, porque o tempo é precisamente
a medida de todas as mudanças; tampouco acontecem na ação ou paixão, porque
estes acidentes, como veremos, acompanham toda mudança.
A respeito da duração, geralmente se distinguem as mudanças instan­
tâneas e sucessivas. A mudança sucessiva acontece quando existe uma sucessão
ao longo da mudança, tal como costuma ocorrer nas mudanças relacionadas com
o material, que se encontram afetadas pelas dimensões quantitativas (espaciais
e temporais). Mudanças instantâneas típicas são as mudanças substanciais; ainda
que ordinariamente sejam precedidas por sucessivas mudanças acidentais, que
acabam provocando uma mudança substancial, esta mudança, em si mesma, é
produzida bruscamente: deixa de existir um tipo de substância e no mesmo
momento começa a existir outro tipo, como acontece, de modo especial, na
geração e na morte dos viventes.

26.3 A ordem física e as quatro causas

Investigar a causa de algo é tentar explicar por que existe e tem o seu modo
de ser característico. A busca por explicações concretiza-se, em boa parte, na
busca pelas causas.
O que é uma causa? Um conceito clássico é o seguinte: causa é o princípio
de que algo depende em seu ser ou em seu realizar-se. É um princípio, mas não
um princípio qualquer como um simples começo podería ser; trata-se de um
princípio que influi realmente no ser do que existe ou na produção das
transformações.
O estudo sistemático da causalidade é um tema próprio da metafísica, mas,
como acontece também com outros temas, as modalidades mais básicas da
causalidade são as que se realizam na natureza e, por isso, vamos dirigir a elas a
nossa atenção.
No primeiro livro da Metafísica, Aristóteles analisa o que os filósofos
anteriores disseram sobre as causas e expõe a sua doutrina das quatro causas:
material, formal, eficiente e final. Trata-se de uma doutrina enormemente
230 Filosofia da Natureza

influente, ainda utilizada porque recolhe as modalidades básicas da causalidade.


Aristóteles encontra uma abordagem das prim eiras três causas em seus
predecessores e considera como um timbre de glória ter aprofundado de modo
original o quarto tipo, a causa final.
Já nos referimos anteriormente à causalidade, sobretudo às causas material
e formal. A seguir, veremos as ideias necessárias para oferecer uma perspectiva
sistemática das quatro causas e desenvolveremos com maior atenção a que
corresponde ao tema deste capítulo: a causa eficiente.
As causas material e formal são intrínsecas, porque são a matéria e a forma
que constituem os seres naturais. Ao contrário, as causas eficiente e final são
extrínsecas, pois não se referem ao próprio ser das entidades naturais, mas ao
agente que produz um processo e ao fim que guia a sua ação. Vamos examinar
como geralmente se caracteriza cada uma das quatro causas de acordo com o
esquema clássico.
Cansa material é aquilo a partir do qual algo é feito e que permanece
intrínseco à coisa feita. Trata-se da madeira de uma porta, do vidro de uma
vidraça, etc. Fala-se de matéria segunda quando a causa material são substâncias
que só mudam acidentalmente. Ao contrário, fala-se de matéria prima para
designar a materialidade comum a todo ser natural, que pode ser considerada
como uma espécie de substrato de toda mudança, também da mudança
substancial.
Causa formal é aquilo pelo qual algo tem um determinado modo de ser.
É aforma acidental ou modo de ser acidental que muda nas mudanças acidentais,
ou a forma substancial que expressa o modo de ser das substâncias e que não
muda nas mudanças acidentais. Os diferentes acidentes são modos de ser
acidentais e, portanto, podem ser expressos como formas acidentais; ao contrário,
o que se chama deforma na linguagem ordinária corresponde àforma e àfigura
a que nos referimos ao falar da quarta espécie da qualidade na filosofia
aristotélica.
No nível substancial, matéria prima e forma substancial são, respectiva­
mente, causa material e formal. Porém, são causas como princípios constitutivos
da essência da substância: não são coisas ou seres completos, nem pedaços ou
partes dos seres, mas co-princípios que constituem os seres como potência
(matéria) e ato (forma). No nível acidental, a substância comporta-se como
matéria ou sujeito (matéria segunda) e os acidentes como formas (formas
acidentais); também se relacionam como potência e ato.
Causa eficiente é aquela da qual nasce uma ação que influi no ser ou no
realizar-se de outra coisa. Esta é a acepção mais comum do termo “causa”: é a
utilizada na linguagem ordinária. Trata-se, por exemplo, da ação de empurrar
Atividades e causalidade dos seres naturais 231

algo provocando seu deslocamento. As causas eficientes são agentes ou sujeitos


das ações. E causa final é aquilo em vistas do qual algo sefaz. Trata-se do obje­
tivo ou meta que o agente, consciente ou inconscientemente, busca ao agir.
As causas material e formal, tanto no nível substancial como no nível
acidental, foram consideradas em capítulos anteriores. Consideraremos a causa
final mais adiante. Vamos nos deter, agora, no exame da causa eficiente.

26.4 A causalidade eficiente: noção clássica

A atividade das entidades naturais corresponde ao seu modo de ser. O


aforismo clássico o agir segue o ser significa que uma entidade pode realizar
aquelas ações que correspondem ao seu modo de ser: portanto, a sua forma
substancial e a suas formas acidentais. Um agente é um sujeito natural que atua
sempre de acordo com o seu modo de ser. Abordaremos agora a ação como
atualização das virtualidades que os agentes ou causas eficientes possuem.
A causa eficiente é uma das quatro causas aristotélicas: a material e a
formal constituem intrinsecamente os seres, a eficiente produz o movimento e
a final aponta a sua direção. Aristóteles resume a sua doutrina com estas palavras:
“Chama-se causa, num primeiro sentido, a matéria imanente de que algo é feito;
por exemplo, o bronze é causa da estátua, a prata é causa da jóia, e também o
gênero destas coisas. Num outro sentido, é causa a espécie e o modelo; e este é
o enunciado da essência e dos seus gêneros (por exemplo, da oitava musical, a
proporção de dois a um e, em suma, o número) e as partes que há no enunciado.
Além disso, aquilo de onde procede o princípio primeiro da mudança ou da
quietude; por exemplo, o que aconselhou é causa da ação e o pai é causa do filho
e, em suma, o agente do que é feito e o que produz a mudança do que a sofre.
Além disso, é como of im ; e isto é aquilo para o qual algo é feito, por exemplo,
a saúde é a causa da caminhada. De fato, por que se caminha? Dizemos: para
ter saúde. E, tendo dito isto, cremos ter dado a causa. E quantas coisas, sendo
outro o motor, fazem-se entre o começo e o fim; por exemplo, o emagrecimento,
o remédio, a medicina ou os instrumentos do médico são causa da saúde. Pois
todas estas coisas são por causa do fim e diferenciam-se entre si porque umas
são instrumentos e outras são obras”121.
Aristóteles não utiliza a expressão “causa eficiente”: a história deste
conceito é complexa122. Fala. aliás, “daquilo de onde procede o princípio

121. ARISTÓTELES. Metafísica, V, 2, 1013 a 24 - 1013 b 4. Encontra-se um texto idêntico na Física,


11.3, 194 b 23 - 195 a 1.
122. Sobre a história deste conceito pode-se ver. por exemplo. GILSON, E. "Notes pour Thistoire de la
cause effícicnte”, in Archives cFhistoire doctrinale et littéraire du Moyen Age, 37 (1962), págs. 7-31.
232 Filosofia da Natureza

primeiro da mudança ou da quietude”, “da fonte primeira da mudança ou do


chegar ao repouso”, “do princípio do movimento”. Trata-se, portanto, da “causa
motriz” ou “causa agente”.
O núcleo fundamental da doutrina aristotélica continua válido. Com efeito,
a atividade natural corresponde a um dinamismo cuja “fonte” se encontra no
“interior” dos seres naturais: corresponde ao seu modo de ser essencial, às suas
virtualidades ou qualidades; e este dinamismo desenvolve-se em função das
tendências internas e das circunstâncias externas que possibilitam sua atualização.
O movimento, como atualização de potencialidades, supõe sempre sujeitos
dotados de dinamismo próprio e de circunstâncias que condicionam seu
desenvolvimento. Definitivamente, o movimento requer umas causas que o
produzam, alguns elementos do dinamismo natural. Estes elementos são os
sistemas unitários ou substanciais e as agregações de substâncias.

26.5 A causalidade eficiente diante das ciências

A existência de causas agentes parece clara se nos detivermos nos dados


da experiência ordinária. Entretanto, poderia parecer que o progresso científico
introduz novas dimensões que obrigariam a repensar o problema. A seguir,
veremos algumas objeções que, em nome das ciências, podem ser apresentadas
diante da concepção clássica da causa eficiente.

a) Agentes e interações
Neste âmbito, a ciência experimental conduziu a uma situação um tanto
paradoxal: diz-se, por um lado, que a ciência se ocupa somente da causa material
e da causa eficiente, rejeitando, ao contrário, o resto das causas; mas, por outro
lado, a noção de causa eficiente é posta igualmente em questão. Com efeito, a
ciência busca leis que permitam determinar o comportamento dos corpos sob a
ação de forças, mas estas forças não correspondem a agentes, mas a interações.
Por exemplo, no nível físico fundamental, as explicações centram-se no modelo
das quatro interações fundamentais que são estudadas mediante teorias de
campos (gravidade, eletromagnetismo e as duas forças nucleares). Portanto, as
distinções clássicas entre agente e paciente, motores e móveis, parecem ficar
desvanecidas e, em seu lugar, a ciência concentra-se na determinação de
fenômenos sob leis gerais.
Todavia, a representação habitual das ações em termos de sujeitos agentes
conserva a sua validade, porque as interações supõem, de um modo ou de outro,
sistemas unitários que são seus sujeitos. Isto é patente no caso de sujeitos que
possuem um alto nível de organização, especialmente os viventes; porém, mesmo
Atividades e causalidade dos seres naturais 233

no âmbito dos seres não-viventes existem sujeitos das ações: trata-se de


partículas, átomos, moléculas, macromoléculas e inclusive agregados que,
embora não sejam sistemas unitários, comportam-se como sujeitos unitários das
interações. Para explicar o movimento, as ciências utilizam modelos que, em
determinadas ocasiões, não parecem aludir a causas agentes: por exemplo,
“ondas”, “forças” e “campos de forças”, “energia”, “intensidade do campo”. No
entanto, sempre é pressuposta a existência de sujeitos das interações e
frequentemente alude-se a eles de modo expresso.
b) Ação e contato

Aristóteles afirmou que, no âmbito do natural, a causa agente sempre atua


por contato: “move o móvel precisamente atuando sobre o móvel enquanto tal.
Mas isto é feito por contato, de modo que, ao mesmo tempo, recebe uma ação.
Daí que podemos definir o movimento como a atualização do móvel enquanto
móvel, sendo a causa deste atributo o contato com o que pode mover, de modo
que o motor recebe também uma ação. O motor ou agente sempre será o veículo
de uma forma, ou assim ou tal que, quando movo, será a fonte e a causa da
mudança: por exemplo, o homem plenamente formado gera um homem do que
potencialmente é um homem”123.
Contudo, também afirma que o contato pode ser entendido em um sentido
amplo; por exemplo, a mudança produzida pela pedra que é atirada e se choca
deve-se ao agente que a atirou. Existem, além disso, casos especiais: os corpos
celestes atuam sobre os sublunares; o ímã sobre o que é atraído.
Prescindindo dos exemplos antigos, pode-se afirmar que, de acordo com
os conhecimentos atuais, a existência de contato é um requisito para a ação
natural. Durante séculos foi discutida a possibilidade da “ação à distância”, sem
contato físico, e as teorias de “campos” pareciam confirmar esta possibilidade,
já que se referem a interações que às vezes (a eletromagnética e a gravitacional)
influem a grandes distâncias. Entretanto, também nestes casos afirma-se a
existência de certo contato: as interações propagam-se com uma grande
velocidade, não influem até que não transcorra o tempo preciso para que
“cheguem” ao lugar de onde atuam e, além disso, apóiam-se em “partículas”
físicas que servem de “mediadores” para a interação124.

123. ARISTÓTELES, Física, III, 2,202 a 5-12. Cfr. também ibid,. VII, 2.; o capítulo inteiro está dedicado
ao estudo deste problema. E interessante perceber que, neste texto citado, se afirma que em toda ação há uma
interação.
124. Em cada uma das quatro interações fundamentais têm associadas uma ou várias partículas
intermediárias: o fóton no eletromagnetismo, os hipotéticos grávitons na gravidade, os gluons na força nuclear
forte e as partículas IV e Z na força nuclear fraca.
234 Filosofia da Natureza

Outra objeção à necessidade do contato para a ação física poderia provir,


tal como vimos ao falar do espaço e da localização, das interpretações que
sustentam a não-localidade na física quântica. A dificuldade destes problemas
leva a sublinhar que, embora afirmemos a necessidade do contato, existem
poucas interrogações sobre o que isto significa e como se realiza. A necessidade
de contato não significa que as ações físicas se reduzam a “empurrar” e a
“arrastar”, tal como sugere a nossa experiência ordinária, nem que a realidade
deva ser representada necessariamente com o recurso a imagens corpusculares.
Se nos perguntarmos sobre a representação “última” da atividade física, talvez
devamos responder que, apesar do progresso dos nossos conhecimentos, continua
sendo muito difícil alcançar uma resposta “última” a esta pergunta.

c) O princípio da causalidade
De modo geral, o princípio da causalidade afirma que tudo o que existe
deve ter uma causa proporcionada que explique sua existência. Se pretendermos
aplicar este princípio de modo completo, todas as causas que intervenham em
cada caso deverão ser levadas em conta. No entanto, limitaremos o nosso exame
aqui a como pode ser aplicado ao problema da causa agente e da explicação do
movimento.
Sob esta perspectiva particular, o princípio poderia ser formulado
expressando a necessidade de um agente para explicar o movimento. É
conveniente advertir, desde o começo, que uma explicação completa das ações
e transformações deverá levar em conta também a ação divina fundante, que dá
o ser e a capacidade de agir a tudo o que existe. Além disso, o nosso
conhecimento é muito limitado, também nas ciências, pois o nosso aparato
cognoscitivo, embora nos permita alcançar conclusões que para nós são
extraordinárias, não nos permite esgotar, nem de longe, a explicação da natureza.
Portanto, não podemos nos surpreender se, mais uma vez, damos de frente com
os limites da nossa capacidade de representação e explicação.
Um problema refere-se à afirmação aristotélica segundo a qual tudo o que
se move é movido por outro125. Aristóteles dedica-lhe grande atenção, pois ocupa
um lugar importante na prova da existência do Primeiro Motor e, portanto, na
conexão entre a física e a metafísica. Para demonstrá-la, propõe três argumentos
que, em parte, se relacionam com aspectos controversos de sua cosmovisão 126.

125. Tomás de Aquino formula em linguagem lapidar: quidquid movetur ab alio moventur; e a utiliza
no raciocínio de sua primeira via para provar a existência de Deus. Cfr. Suma Teológica, I, q. 2, a. 3, c.
126. Cfr. ARISTÓTELES, Física, VII, 1,241 b24 242 a 16; VIII, 4,254 b 24-256 a3 ; VIII, 5,257 bó-
13. Tomás de Aquino apresenta e utiliza estes argumentos na Suma contra os gentios, livro 1, capítulo 13, no
qual expõe amplamente a prova que se encontra sintetizada na primeira via da Suma teológica.
Atividades e causalidade dos seres naturais 235

Esta afirmação parece contraditória ao princípio da inércia da física


clássica, segundo a qual a ação exterior não é necessária para provocar o
movimento, mas só para provocar a aceleração ou mudança do movimento. Pode-
se dizer, no entanto, que o movimento foi causado em algum momento por algum
agente e que sua permanência deve-se às circunstâncias físicas. Além disso,
segundo o princípio de Mach, a inércia deve-se às interações de um corpo com
o resto do universo, e a teoria geral da relatividade explica-a em função das
distribuições das massas: se isto é assim, a inércia é um efeito devido a interações
físicas e não significa que os corpos mantenham o seu movimento independen­
temente de causas externas. Esta interpretação parece bastante coerente.
Também podemos nos perguntar como se compagina o dinamismo próprio
do natural com a necessidade de agentes externos para provocar o movimento.
Para responder esta questão, devemos nos recordar que em toda ação ocorre uma
interação: o desenvolvimento do dinamismo depende das circunstâncias e,
portanto, das interações. Por conseguinte, em qualquer caso, existem ações que
acompanham a atividade dos sujeitos naturais; no caso dos viventes, qualquer
ação supõe interações físicas no organismo e com o meio ambiente (sensações,
processos neuronais, etc.). Além disso, se levarmos a nossa pergunta até o limite,
esbarraremos com a necessidade de dar um “salto metafísico”, afirmando a ação
divina fundante que explica, em último termo, a existência e a atividade de uns
seres que não têm em si mesmos sua razão última do ser e do agir. Este parece
ser o sentido profundo da primeira via de Tomás de Aquino para provar a
existência de Deus. Nesta via reconhece-se que a atividade das criaturas sempre
supõe um passo da potência ao ato e que as linhas causais formadas pelas
criaturas só podem ser compreendidas, em último caso, se admitimos a existência
de um Ser que é Ato Puro, fonte de todo ser, fundamento radical do dinamismo
de todos os entes criados. De modo semelhante, na segunda via de Tomás de
Aquino considera-se que as causas agentes remetem, em último termo, a uma
Causa Primeira, que fundamenta sua atividade.

26.6 Ação e paixão

O estudo da causa agente conduz-nos à consideração de dois dentre os


nove acidentes enumerados por Aristóteles: a ação e a paixão.
a) A ação e a paixão como acidentes
Na medida em que podemos estabelecer a distinção entre sujeitos unitários
c interações, tem sentido falar, como bem fez Aristóteles, dos acidentes ação e
paixão. Por exemplo, no caso dos seres humanos, é evidente que somos sujeitos
236 Filosofia da Natureza

ativos das ações que realizamos e sujeitos passivos das ações de outros seres.
Da mesma forma, pode-se dizer algo semelhante de outros viventes, que têm
uma unidade e uma individualidade bem definida; esta consideração pode ser
estendida ao âmbito dos seres não-viventes na medida em que tratamos de
substâncias, que são sistemas unitários individuais e também às interações entre
viventes e não-viventes, e entre partes destes seres.
Esta concepção aplica-se também quando se estudam fenômenos naturais
muito afastados da experiência ordinária, tal como acontece com as partículas
subatômicas. Com efeito, fala-se de partículas que estão submetidas à ação de
campos produzidos pela atividade de outros sistemas. As partículas interagem
e as interações são precisamente ações mútuas.
Considerada sob a perspectiva da filosofia da natureza, a ação é um
acidente que consiste na atualização da potência ativa de uma substância. O
natural caracteriza-se por possuir um dinamismo próprio; mas este dinamismo
não está completamente atualizado segundo todas as suas possibilidades: algu­
mas possibilidades são atualizadas de acordo com as circunstâncias presentes
em cada caso particular (ou seja, de acordo com a presença de outros
dinamismos). Por este motivo, a ação é um acidente: é algo real que acontece
em um sujeito, é a atualização de algumas das suas potencialidades, mas não
muda o modo de ser essencial do sujeito.
Estamos nos referindo aqui à ação predicamental, ou seja, à ação
considerada como um predicamento ou categoria, como um dos acidentes. A
realidade deste acidente pode ser percebida facilmente ao considerarmos o que
aconteceria se fosse negada; neste caso, deveriamos admitir que todos os sujeitos
estão atualizando continuam ente todas as suas potencialidades, o que
evidentemente é falso. Admitir a realidade da ação equivale a reconhecer que,
na natureza, os sujeitos atuam desenvolvendo de cada vez só uma parte das suas
potencialidades.
Pode-se dizer que, mediante a ação, ou seja, ao atuar, ao atualizar
potencialidades, um sujeito (substância ou matéria segunda) que possui uma
capacidade de atuar (potência ativa, ato primeiro, modo de ser) atualiza esta capa­
cidade (passa para ato segundo).
O aforismo o agir segue o ser expressa que todo sujeito agente atua de
acordo com as potencialidades que lhe são próprias, que correspondem ao seu
modo de ser. Por este motivo, o modo de ser dos sujeitos é conhecido através
de suas ações. Quanto mais perfeito é um ser, tem a capacidade de exercer ações
que são mais perfeitas.
Além disso, é certo que as ações aperfeiçoam o sujeito que as exerce, ao
menos sob o ponto de vista ontológico, já que equivalem a desenvolveras poten-
Atividades e causalidade dos seres naturais 237

cialidades do modo de ser do sujeito. Evidentemente, pode acontecer que a ação


seja prejudicial para o sujeito, se não for adequada às suas conveniências. Além
disso, sob o ponto de vista ético, ainda que a ação possua certa bondade ontológica,
pode ser moralmente má por estar mal orientada em relação ao fim último.
Por outro lado, quando estas considerações são transportadas para o
âmbito humano, é especialmente importante reconhecer que as ações são
acidentes. Com efeito, por muito que possam aperfeiçoar ou prejudicar a pessoa
que as exerce, esta pessoa tem sempre por si mesma, independentemente de suas
ações, a dignidade que corresponde a toda pessoa: os seus direitos humanos
devem sempre ser reconhecidos e sempre tem o dever de agir conforme a sua
dignidade de pessoa.
À ação de um agente corresponde a paixão no sujeito que a recebe. Pode-
se dizer que a paixão é um acidente que consiste na atualização da potência
passiva de uma substância, sob a ação de uma causa eficiente.
As ações e paixões no mundo físico implicam mudanças, já que, de algum
modo, sempre supõem um contato material. Ao agirem, os agentes mudam; ao
receber ações, os sujeitos que as recebem também mudam.
Existem diversos níveis de causalidade nos seres naturais, que possuem
potências ativas de diversos tipos e, portanto, são capazes de realizar diversos
tipos de ações. Os seres não-viventes possuem potencialidades que são estudadas
na física e na química. Fundamentalmente, os conhecimentos atuais remetem
às quatro interações básicas já mencionadas, que, nos sucessivos níveis de
organização, dão lugar a diferentes modalidades de interação: a afinidade que
leva às ligações entre átomos, as forças intermoleculares, a atividade das
macromoléculas bioquímicas tais como as proteínas e os ácidos nucléicos, etc.
Os viventes, além das potencialidades físico-químicas, têm potencialidades que
se referem às ações vitais como a nutrição, a reprodução, o conhecimento sensi­
tivo e as tendências sensitivas.
b) Ações transitivas e imanentes
A consideração das ações dos seres viventes leva-nos a distinguir dois
grandes tipos de ações, que são denominadas de transeuntes e imanentes.
As ações transeuntes são aquelas que têm um efeito exterior ao próprio
agente. São as ações físicas típicas, que constituem o predicamento ou acidente
ação ao qual nos referimos quase exclusivamente até agora. Na terminologia
clássica, o termo ação, sem qualificativos, geralmente é utilizado para designar
as ações transeuntes.
As operações imanentes são aquelas cujo término encontra-se no próprio
agente que, portanto, aperfeiçoa-se a si mesmo ao agir. Geralmente, são
238 Filosofia da Natureza

consideradas como tipicam ente im anentes o conhecim ento e o amor.


Obviamente, existem ações que incluem ao mesmo tempo aspectos transeuntes
e imanentes. Inclusive podemos dizer que, no âmbito dos seres naturais, qualquer
operação imanente tem dimensões materiais e, por conseguinte, inclui ações
transeuntes. Entretanto, ações como ver, ouvir, pensar, raciocinar, captar
intelectualmente uma verdade, amar o bem, ainda que em sua execução ajudem
ações físicas que lhes sirvam de base, costumam ser consideradas como
operações imanentes que permanecem dentro do sujeito e o aperfeiçoam. O agir
imanente é próprio da vida, e especialmente da vida espiritual; supõe um modo
de ser e de agir no qual existe uma autonomia específica e uma perfeição maior
que em outros níveis.
Com as operações próprias dos seres humanos, chegamos a um nível que,
embora esteja estreitam ente relacionado com a natureza, a transcende.
Especialmente o conhecimento intelectual e o amor de amizade elevam-se por
cima das limitações próprias do material; diferentemente do material, que sempre
se encontra particularizado e pode somente ser participado pela divisão, o conhe­
cimento intelectual e o amor de amizade podem ser multiplicados indefinida-
mente sem que diminuam: pelo contrário, costumam aumentar em profundidade
e em dignidade quando são participados em maior medida.

26.7 Causalidade e emergência de novidades

Aludimos ao problema da emergência em capítulos precedentes. Encon­


tramos na natureza diferentes níveis de organização, cada um dos quais com
características novas que não existem nos outros níveis e que costumam ser
consideradas como emergentes em relação aos níveis de maior organização.
A emergência de novidades exige que se dêem as causas que a tomam
possível. Cada vez conhecemos melhor os processos naturais que conduzem a
esta produção de novidades; de fato, uma parte importante dos avanços
científicos contemporâneos refere-se a este tipo de processo, agrupados sob o
título de complexidade.
São dois os tipos de causas naturais que devem ocorrer para a emergência
de novas características. Por um lado, devem existir as potencialidades que
possam conduzir a esta emergência; por exemplo, para que uma árvore se
desenvolva é necessário que exista previamente uma semente que contenha os
elementos que possibilitarão o seu desenvolvimento. Por outro lado, exige-se
também a confluência das causas agentes necessárias para que estas poten­
cialidades sejam atualizadas; no caso da semente, é preciso que exista simul­
taneamente uma série de fatores (umidade para a captação da água, solo
Atividades e causalidade dos seres naturais 239

adequado para proporcionar os nutrientes necessários, etc.), que são condições


necessárias para a atualização das potencialidades encerradas na semente.
O progresso cientifico mostra que as potencialidades existem, em grande
parte, como informação, ou seja, como programas de possível atividade que se
encontram gravados e como que armazenados em estruturas físicas. Conhecemos
o funcionamento da informação biológica, e também podemos falar de infor­
mação, em um sentido mais amplo, no caso dos seres não-viventes. Portanto,
podemos compreender como se desenvolvem as potencialidades naturais quando
se dão as circunstâncias apropriadas, produzindo novos tipos de organização:
quase sempre são novos indivíduos de espécies já existentes, mas nada impede
que também sejam produzidas novas espécies, novos tipos de modo de ser.
As causas naturais não eliminam o problema do fundamento radical da
natureza. Acontece, antes, o contrário: quanto melhor conhecemos as causas
naturais, mais percebemos que a natureza possui uma direcionalidade muito
eficiente, complexa e sutil, cuja explicação remete a uma causalidade que a
transcende e, ao mesmo tempo, é im anente a ela, porque põe nela as
potencialidades e as condições necessárias para a sua atualização. Somente Deus,
como Causa Primeira que dá o ser a tudo o que existe, pode proporcionar o
fundamento radical à causalidade natural sem diminuir em nada o seu valor: pelo
contrário, as causas naturais aparecem como o caminho ordinário da ação divina,
que quer contar com elas e, para isso, lhe dá as potencialidades necessárias para
a sua atuação e dispõe a confluência das condições necessárias para a atuação
destas potencialidades.

27. A contingência da natureza

O estudo da atividade dos entes naturais conduz-nos à abordagem de


algumas questões relativas à necessidade e contingência desta atividade: as leis
naturais têm uma necessidade absoluta ou expressam somente regularidades
genéricas? Existe realmente o acaso nos processos naturais?
Além disso, estas questões levam-nos a apresentar, de modo geral, o
problema da necessidade e da contingência da natureza, um dos problemas
básicos que devemos enfrentar se desejamos compreender o ser do natural.
Pelo fato de o nosso conhecimento da natureza não ser uma simples cópia
ou fotografia dela, começaremos a nossa análise expondo a relação que existe
entre as leis científicas e as leis naturais. A seguir, examinaremos os tipos de
necessidade e contingência que ocorrem na natureza e, por fim, os problemas
do determinismo e do acaso.
240 Filosofia da Natureza

27.1 Leis científicas e leis naturais

A atividade natural desenvolve-se em torno de pautas dinâmicas. As


ciências formulam leis que se referem a estas pautas e, quando as leis estão bem
comprovadas, podemos afirmar que de algum modo refletem as leis naturais.

a) As leis científicas
A ciência experimental busca um conhecimento da natureza que possa
ser submetido ao controle experimental, e o consegue, em boa parte, através dos
enunciados que se denominam leis.
As leis científicas são enunciados que relacionam diferentes aspectos dos
fenômenos naturais. Quando são leis formuladas matematicamente, relacionam
magnitudes que podem ser medidas direta ou indiretamente; por exemplo, as
leis experimentais relacionam magnitudes cujos valores podem ser medidos
diretamente, e os princípios gerais, como os distintos princípios de conservação
(da energia, da carga elétrica, etc.), expressam condições gerais que são
cumpridas em todos os processos ou em algum tipo concreto de processo. Outras
leis são expressas sem o uso da matemática, mas são a base para a formulação
de leis matemáticas; assim, na teoria da relatividade postula-se que as leis
científicas sejam expressas sempre do mesmo modo, ainda que se utilizem
diferentes sistemas de referência.
Quando estão bem comprovadas, as leis científicas expressam aspectos
da realidade. No entanto, referem-se à realidade através de construções teóricas
(conceitos e relações que são construídas), e não são simples fotografias da
natureza. Por exemplo, quando se afirma que a força é igual à massa multiplicada
pela aceleração, antecipam-se os resultados de possíveis medições em
circunstâncias particulares; esta lei expressa, portanto, relações entre magnitudes
cujas definições e medições não são dadas pela própria natureza, mas dependem
dos contextos conceituais e experimentais construídos pelos cientistas.
As leis científicas expressam regularidades que realmente existem na
natureza, de acordo com as modalidades próprias de cada tipo de lei (leis
experimentais ou princípios gerais, leis deterministas ou probabilísticas, etc.).
Como o nosso conhecimento é muito limitado, não podemos afirmar que as leis
científicas, por mais comprovadas que estejam, se identificam completamente
com as leis naturais. Contudo, se estiverem bem comprovadas, podemos dizer
que não são puras construções mentais feitas por nós e que refletem a ordem
real da natureza.
As leis científicas têm um caráter aproximativo e perfectível. sempre é
possível descrever melhor os fenômenos aos quais as leis se referem, por
Atividades e causalidade dos seres naturais 241

exemplo, construindo novos conceitos ou melhorando a precisão de nossas


formulações. Mas isto não significa que sejam meras hipóteses ou conjecturas.
Muitas leis científicas descrevem corretamente os fenômenos naturais, ainda que
seja possível concebê-los melhor ou com maior precisão. Cada lei científica
possui uma validade determinada pelo contexto dos conceitos e recursos instru­
mentais disponíveis; quando está comprovada dentro de um âmbito de
fenômenos concretos, podemos dizer que continuará válida neste âmbito, ainda
que formulemos leis ou teorias mais exatas ou profundas neste mesmo âmbito
ou em outros.
b) As leis naturais
O termo lei refere-se, em seu sentido mais próprio, às regras da conduta
humana; neste contexto, fala-se em obedecer ou seguir uma lei, ou de que
estamos submetidos a determinadas leis. Por analogia, este conceito é aplicado
também à atividade dos agentes naturais, já que nesta atividade existem muitas
regularidades: fala-se então dos agentes naturais como se obedecessem ou
seguissem uma lei.
Sem dúvida, existem regularidades nas ações da natureza. Uma vez que
os seres puramente naturais não possuem liberdade, tendemos a pensar que todas
as ações dos agentes naturais realizam-se segundo pautas regulares preestabe-
lecidas, com uma necessidade total. Deixando para mais tarde a análise desta
questão, podemos dizer que as leis da natureza física expressam regularidades
na atividade dos agentes naturais.
Ainda que existam muitas regularidades, também é certo que em cada
processo natural intervêm muitos fatores, de tal modo que é muito difícil, para
não dizer impossível, que se repitam exatamente as mesmas circunstâncias em
diferentes processos. Pode-se dizer que na natureza, propriamentefalando, não
existem leis. O conceito de lei, quando é aplicado ao comportamento da natureza,
corresponde a uma abstração. Não se trata somente de perceber que as leis
científicas não representam uma simples fotografia da natureza. O problema é
mais profundo: na realidade, a natureza consta de entidades (com suas pro­
priedades) e de processos, e as leis são enunciados abstratos mediante os quais
expressamos aspectos estruturais e repetíveis do natural.
Em sentido estrito, nada se repete exatamente na natureza. Sem dúvida,
existem muitas regularidades que, em certos efeitos, podemos considerar como
repetições. Mas as repetições são somente aproximadas, ainda que às vezes a
aproximação seja muito precisa.
Facilmente imaginamos que se repete exatamente o que, na vida ordinária
ou na prática científica, é bastante estável. Não percebemos que a forma das
242 Filosofia da Natureza

constelações muda, ou que o Sol vai esgotando o seu combustível, ou tantas


outras mudanças que são imperceptíveis diante da experiência ordinária e mesmo
da ciência. Nem sequer podemos estar seguros de que as leis científicas mais
comprovadas sejam idênticas ao longo do tempo. Estes problemas levam-nos a
perguntar expressamente pelo grau de necessidade que existe na atividade
natural.

27.2 Necessidade e contingência na natureza

O conceito de contingência é oposto ao de necessidade. Contingente é o


que pode ser de um modo ou de outro, ou que pode ser ou não ser. Ao contrário,
necessário é o que não pode deixar de ser como é, ou não pode deixar de ser
absolutamente.
Existem diferentes modalidades de necessidade e de contingência. Vamos
examinar a seguir a necessidade e a contingência que se referem ao nível do ser
e ao nível do agir.
a) Necessidade e contingência no ser
No mundo físico, todas as substâncias podem ser sujeito não só de
mudanças acidentais, nas quais conservam o seu modo de ser essencial, mas
também de mudanças substanciais, caso em que se transformam em outra ou
outras substâncias: a substância ou substâncias que existiam deixam de existir
e se convertem em outra substância ou substâncias. Neste sentido, todos os seres
materiais são contingentes, pois estão submetidos à geração e à corrupção:
começam a existir mediante mudanças substanciais e podem deixar de ser o que
são.
De fato, podemos provocar na atualidade a transformação inclusive dos
sistemas naturais que, de modo espontâneo, são mais estáveis: este é o caso dos
núcleos atômicos e das partículas subatômicas que têm maior estabilidade e que,
de modo artificial, podem ser transformadas em outros sistemas microfísicos.
Os sistemas físico-químicos mais organizados podem se decompor com
facilidade e os viventes manifestam sua contingência na medida em que
começam a existir pela geração e deixam de existir pela morte.
Por conseguinte, a contingência no ser estende-se a todos os níveis da
natureza e a todos os sistemas individuais. É lógico que seja assim, porque se
trata de seres materiais que, por princípio, podem ser transformados em outros.
Por isso, geralmente se diz que a raiz desta contingência é a materialidade, que
implica estruturação espaço-temporal e, portanto, a possibilidade de mudanças
tanto acidentais como substanciais.
Atividades e causalidade dos seres naturais 243

Podemos nos perguntar se esta contingência no ser se verifica também


em relação ao universo em seu conjunto; parece, com efeito, que as transfor­
mações de uns sistemas em outros não afetam a existência do universo em seu
conjunto, mas somente as suas partes. No entanto, podemos afirmar também que
o universo em seu conjunto é contingente. Neste caso, o motivo é que, se o uni­
verso fosse necessário, ou seja, se existisse necessariamente, deveria ter caracte­
rísticas propriamente divinas. Se algo existe de modo completamente necessário,
existiri a por si mesmo, independentemente do que acontecesse com os outros
seres; não dependería de nenhum outro ser, e, portanto, deveria ter o ser por si
mesmo: mas isto só pode ser atribuído a Deus. Se afirmássemos que o universo
tem o ser de modo necessário, teríamos de admitir alguma forma de panteísmo,
identificando o universo com Deus, o que é impossível e não corresponde ao
que a experiência manifesta.
De todos os modos, no mundo material existem diversos tipos de neces­
sidade. Ainda que não se dê uma necessidade absoluta, existem muitos tipos de
necessidade relativa. Concretamente, o universo em seu conjunto não deixará
de existir se não for por aniquilamento (a doutrina cristã ensina, a este respeito,
que o mundo será transformado, não aniquilado). E existem muitos seres que
possuem uma necessidade física, relativa mas bastante forte, o que acontece tanto
em indivíduos como em espécies e em tipos de organização. Por exemplo, os
prótons que compõem a matéria ordinária não se transformam espontaneamente
em outras partículas, ou ao menos é raro que isso ocorra; nas condições atuais
do nosso mundo, as partículas subatômicas mais estáveis e muitos núcleos de
átomos não se desintegram; as bactérias existem e multiplicam-se desde muitís­
simos milhões de anos, superando todo tipo de transformações do ambiente; e a
organização atual do nosso mundo é bastante estável.
Sem dúvida, a existência de muitos aspectos do nosso mundo, e mesmo a
nossa existência, depende de circunstâncias que poderiam mudar por causas
bastante simples, como o impacto de um grande meteoro com a Terra. No entan­
to, enquanto não acontecem catástrofes espaciais, a organização do mundo que
conhecemos tem, em seus aspectos básicos, grande estabilidade.
Os seres espirituais possuem um tipo de necessidade muito mais forte, já
que, por não estarem compostos de partes materiais, não estão sujeitos à
decomposição nem a mudanças substanciais. Um ser pessoal não pode ser
transformado em outro ser (a transmigração das almas, ou reencarnação, é im­
possível). No caso de seres puramente espirituais, como os anjos (cuja existência
só pode ser conhecida por revelação divina), uma vez que existam não podem
morrer; para que deixassem de existir seria necessário um aniquilamento que
só Deus poderia realizar. Os seres humanos, compostos de matéria e espírito,
244 Filosofia da Natureza

possuem a necessidade dos seres espirituais, de modo que, uma vez que
existimos, poderíamos deixar de existir somente por aniquilação por parte de
Deus; mas estamos fadados à morte, que implica a separação do espírito e da
matéria, passando o espírito a viver em condições um tanto misteriosas, mas que
correspondem ao tipo de necessidade própria das realidades espirituais.
Obviamente, apenas Deus existe com uma necessidade completa e própria, já
que se identifica com o seu próprio ser, sem depender de nada que esteja fora
de si mesmo: tudo o que existe fora de Deus são criaturas que dependem
completamente de Deus em seu ser, ainda que possuam diversos graus de
necessidade no ser.
Até agora referimo-nos à necessidade como uma perfeição: algo é mais
perfeito quanto maior for a consistência própria em seu ser e depender menos
de circunstâncias cambiantes. Contudo, é possível se dizer da necessidade em
outro sentido, como algo próprio dos seres mais imperfeitos, como sinal de
imperfeição. Dissemos, por exemplo, que seres especialmente simples (como
algumas partículas subatômicas, núcleos de átomos ou bactérias) têm uma
consistência especialmente forte precisamente por causa da sua simplicidade ma­
terial, e podemos acrescentar, ao contrário, que seres especialmente perfeitos,
como é o caso de viventes superiores em geral e dos seres humanos em particular,
têm uma grande fragilidade em seu ser material: com efeito, requerem uma
organização muito sofisticada que pode deixar de existir com certa facilidade,
devido ao grande número de circunstâncias capazes de provocar a sua morte.
b) Necessidade e contingência no agir
A maior dependência da matéria implica uma maior necessidade no agir,
que é um sinal de imperfeição. Os seres mais perfeitos possuem uma maior
independência em relação às condições materiais, por possuírem conhecimento
e sensibilidade. No caso do ser humano, devido a sua espiritualidade, dá-se uma
autêntica liberdade. Neste âmbito, necessidade costuma contrapor-se à liberdade.
O ser humano executa muitas ações de modo necessário, pois correspondem ao
desenvolvimento automático do seu dinamismo material; ao contrário, em sua
dimensão espiritual, tem um agir necessário naqueles atos que derivam
necessariamente do seu modo de ser (por exemplo, a busca pela sua felicidade,
ainda que possa se equivocar quanto ao modo de atingi-la) e um agir livre nos
atos sobre os quais tem domínio. Estas referências são suficientes, em se tratando
de um tema que transcende o objeto próprio da filosofia da natureza. Um estudo
mais completo exigiria considerar, por exemplo, que a possibilidade de falhar
dos atos livres não é propriamente uma perfeição, já que a liberdade alcança a
sua perfeição autêntica quando é usada para agir bem.
Atividades e causalidade dos seres naturais 245

Os seres materiais não possuem liberdade e, neste sentido, pode-se dizer


que agem de modo necessário. Entretanto, costumam confluir circunstâncias
múltiplas e variadas nas ações materiais, de tal modo que a necessidade do agir
material não implica, por si mesma, um agir determinista. Em outras palavras,
a falta de liberdade não equivale a um agir completamente uniforme em qualquer
circunstância. Vamos examinar a seguir este problema, que se relaciona com o
determinismo.

27.3 Determinismo e indeterminismo

Antes de tudo, destacaremos que, ao se falar do determinismo ou da


necessidade da atividade natural, frequentemente se pretende ressaltar que,
diferentemente das ações humanas racionais e livres, os agentes naturais atuam
de um modo fixado pelas leis, pelo instinto ou pelas tendências: ou seja, que a sua
atividade não é racional nem livre. Sem dúvida, este modo de falar é correto,
corresponde à realidade e não apresenta especiais problemas. Neste sentido, diz-
se que a atividade natural está determinada univocamente (determinado ad unum).
As dificuldades surgem, ao contrário, quando desejamos precisar em que
consiste esta necessidade da atividade natural. Significa que tudo acontece de
acordo com um determinismo rígido? Existe algum tipo de indeterminação na
natureza?
O determinismo clássico foi expresso numa célebre passagem de uma obra
publicada pelo físico francês Pierre Simon de Laplace em 1814: “Assim, pois,
temos de considerar o estado atual do universo como o efeito do seu estado ante­
rior e como causa do que haverá de sucedê-lo. Uma inteligência que em um
momento determinado conhecesse todas as forças que animam a natureza, assim
como a situação respectiva dos seres que a compõem, e se, além disso, fosse
suficientemente ampla para submeter à análise tais dados, poderia abarcar em
uma só fórmula os movimentos dos corpos maiores do universo e os do átomo
mais ligeiro; nada lhe seria incerto e tanto o futuro como o passado estariam
presentes diante dos seus olhos” 127. Certamente, Laplace reconhece a seguir que
o espírito humano “sempre permanecerá infinitamente distante” de uma
inteligência semelhante; mas esta limitação do nosso conhecimento coexistiria
com um determinismo completamente rígido da natureza: em princípio, qualquer
estado futuro da natureza poderia ser previsto com segurança por uma
inteligência suficientemente poderosa, aplicando simplesmente as leis físicas.

127. DE LAPLACE, Pierre Simon. Ensayo filosófico sobre Ias probabilidades, Madrid: Alianza, 1985,
pág. 25.
246 Filosofia da Natureza

Na primeira metade do século XX, a física quântica pareceu desacreditar


esta opinião. O princípio de indeterminação de Heisenberg, formulado em 1927
pelo físico alemão Werner Heisenberg, afirma que no mundo microfisico existem
limites que impedem medir simultaneamente com toda a precisão os valores de
pares de magnitudes conjugadas (como a posição e o momento de uma partícula
subatômica, ou a energia e o tempo). Discute-se, entretanto, se estes limites
referem-se somente às possibilidades de medição ou se afetam o modo de ser
das entidades microfísicas128. É interessante sublinhar que, de acordo com o
princípio de indeterminação, o que não pode ser feito é medir ao mesmo tempo
duas magnitudes conjugadas como as mencionadas, mas nada impede que
qualquer uma delas possa ser medida com enorme precisão.
Nos últimos decênios do século XX, as teorias do caos determinista
lançaram nova luz sobre o problema e apresentaram novas interrogações. Estas
teorias m ostram que, mesmo se adm itirm os que as leis físicas sejam
deterministas, bastam pequenas mudanças nas condições iniciais dos sistemas
para que se possa chegar a resultados muito diferentes. Portanto, determinismo
e indeterminismo poderi am coexistir; indicamos, com efeito, que as condições
nunca são completamente idênticas: portanto, um comportamento basicamente
determ inista pode produzir resultados im previsíveis. No entanto, esta
imprevisibilidade também é relativa: supondo algumas condições concretas,
existem também algumas possibilidades concretas. De fato, as teorias do caos
não afirmam que exista um puro caos; pode mesmo parecer chocante que se fale
de caos determinista, mas este nome expressa a realidade: obtêm-se novas leis,
antes desconhecidas, que se cumprem nos fenômenos que estas teorias estudam.
É difícil propor uma solução definitiva às interrogações acerca do indeter-
minismo na natureza. Em todo caso, parece possível afirmar algo que tem muita
importância para evitar equívocos: concretamente, que causalidade não equivale
a determinismo. Em determinadas ocasiões, a existência de indícios a favor do
indeterminismo é interpretada como se falhasse o próprio conceito de causali­
dade, e diz-se que podem existir fatos sem causa. Nada mais distante da reali­
dade se levarmos em conta que a causalidade inclui os diferentes tipos de causa
que já consideramos e que nada pode começar a existir na natureza se não for
produzido por causas proporcionadas. Ao contrário, pode ser que exista inde-

128. A bibliografia a este respeito é extensa. Cfr., por exemplo: CARTWR1GHT, N. “Philosophical Problems
of Quantum Theory” in KRÜGER, L., DATON, L. J. e HEIDELBERGER, M. (editores) The Probahilistic
Revolution, Cambridge: The MIT Press (Mass), vol. II, Ideas in the Sciences, 1989, págs. 417-435;
DELIGEORGES, S. (editor) El mundo cuántico, Madrid: Alianza, 1990; JAKI, S. L. Chance andReality and
other Essays, Lanham: University Press o f America, 1986, págs. 1-21; SELVAGGI, F. Causalitá e
indeterminismo, Roma: Universitá Gregoriana, 1964.
Atividades e causalidade dos seres naturais 247

terminação no agir natural, de tal modo que não se possam formular leis físicas
completamente deterministas que permitam uma predição exata do futuro no
sentido de Laplace. Algumas das implicações que esta situação pode ter em ou­
tros âmbitos, especialmente quando se pensa na existência de um plano divino
que rege a natureza, serão examinadas a seguir, após analisarmos a noção de
acaso.

27.4 Acaso, ordem e complexidade

Já examinamos a existência do acaso na natureza no capítulo dedicado à


ordem natural. Recordaremos agora as ideias que ali foram expostas e as
aplicaremos aos problemas que estamos tratando agora, ou seja, à atividade dos
agentes naturais, ao determinismo e aos problemas que se apresentam neste
contexto.
Geralmente, admite-se que o acaso é o resultado da confluência de
cadeias causais independentes. Dizemos que algo acontece por acaso quando
não é o efeito previsto de uma causa: a sua existência deve-se à coincidência de
causas que não teriam por que coincidir. Por este motivo, costuma-se distinguir
a causalidade própria (causa per se, na terminologia clássica) e a causalidade
acidental (causa per accidens). Todos os agentes têm efeitos que se devem ao
seu modo de ser, que são consequência da sua atividade natural; trata-se dos
efeitos próprios de tais agentes. Além do mais, frequentemente diversos agentes
colaboram de um modo unitário, produzindo também efeitos cooperativos que
entram na esfera dos efeitos próprios. Mas também ocorre frequentemente a coin­
cidência de diferentes causas sem que tenham por que coincidir, sem que haja
uma razão para isto, produzindo efeitos que, por assim dizer, saem do âmbito
das tendências próprias das causas que intervêm. É então que, como
consequência de coincidências fortuitas, se produzem efeitos acidentais e
acontece o acaso.
O característico do acaso é que as causas que atuam conjuntamente são
independentes, ou seja, não há razão pela qual devam coincidir e ordinariamente
não coincidem. O acaso encontra-se no terreno das causas acidentais; isto
significa que, propriamente falando, não é uma causa: supõe que existem causas
próprias que coincidem na produção do efeito, mas tal coincidência é fortuita
ou acidental, pois nada exige que deva dar-se necessariamente.
Entendido assim, o acaso existe realmente na natureza. Além disso,
desempenha uma função importante no desenvolvimento de muitos processos
naturais. Com efeito, a coincidência de causas independentes é frequente, devido
à grande variedade de causas que existem na natureza. Não se trata somente de
248 Filosofia da Natureza

nossa ignorância, da nossa incapacidade de determinar as causas que produziram


determinado efeito concreto: o acaso não é devido unicamente à nossa
ignorância, ainda que às vezes possa ser, porque o desconhecimento dos fatores
que intervêm pode nos fazer pensar numa coincidência causai que, na realidade,
não é assim.
O acaso relaciona-se com o indeterminismo da atividade natural. São
muitos os fatores causais que podem intervir nos processos naturais e não existe
uma razão que permita prever quais fatores intervirão em cada caso concreto.
Por este motivo, o indeterminismo da natureza pode ser considerado como uma
característica real, do mesmo modo e pelo mesmo motivo que o acaso é real.
Não se trata somente de uma dificuldade ou impossibilidade de prever o futuro
devido às limitações do nosso conhecimento. O que acontece é que a com­
plexidade da natureza torna muito difícil ou impossível esta previsão, pois em
cada caso particular intervêm fatores que podem estar ausentes em outros casos.
Para se conhecer as pautas naturais pela ciência experimental, são
provocadas certas situações nas quais se isolam alguns poucos fatores, de modo
que seja possível estudar o seu comportamento supondo que os demais fatores
que existem na natureza não desempenham nenhuma função no fenômeno
estudado. Deste modo, podemos conhecer isoladamente pautas naturais que na
realidade se encontram combinadas com muitas outras. Por este motivo, em
determinadas ocasiões é difícil explicar cientificamente fenômenos muito
familiares e, ao contrário, conseguem-se conhecimentos muito exatos acerca de
aspectos recônditos da realidade. O determinismo da natureza depende de que
sejam produzidas situações estáveis nas quais alguns comportamentos são uni­
formes ou regulares.
O acaso desempenha uma função na produção de sucessivos níveis de
complexidade na natureza. Existem coincidências fortuitas que podem ser
importantes para se produzirem determinados efeitos e não outros. Isto tem
especial importância quando se estuda a evolução e o papel que o acaso desem­
penha no processo evolutivo; abordaremos esta questão mais adiante, quando
estudarmos a evolução.
Todavia, para Deus não existe acaso. Como Deus é causa primeira do
ser de tudo o que existe, tudo está patente para Ele, tanto o passado como o
presente e o futuro. Deus está fora do tempo e estas distinções temporais não o
afetam. Além disso, tudo depende completamente de Deus em seu ser. Por
conseguinte, ainda que do ponto de vista da natureza e do ser humano exista
realmente o acaso, isto não afeta o conhecimento que Deus tem de tudo nem a
providência com que tudo governa.
Na perspectiva atual, geralmente se admite a existência de certo
Atividades e causalidade dos seres naturais 249

indeterminismo na natureza. Assim, a evolução é, em certo sentido, criativa; e,


por isso, o futuro não está completamente determinado pelo passado. Esta visão
é compatível com a providência divina, que não dirige o curso da natureza ao
modo das causas naturais, mas fundando o seu ser e o seu agir, tornando-os
possíveis. Além disso, se prescindíssemos da providência e do governo divino,
seria muito difícil compreender a existência de algumas virtualidades naturais
cujo desenvolvimento produz, em sucessivos níveis de organização, virtualidades
sempre novas. Por sua vez, a atualização dessas virtualidades, através de
circunstâncias muito variadas, conduzem, em último termo, a uma organização
espantosa de uma natureza na qual o ser humano se encontra no cume.
A disjuntiva acaso imprevisível ou determinismo rígido não esgota as
possibilidades. Como alternativa às assertivas “nosso número saiu na roleta de
Montecarlo” de Jacques Monod e “Deus não joga dados” de Albert Einstein,
pode-se acrescentar outra possibilidade; “Deus joga com dados viciados”. Se
pensarmos em Deus como um ser muito mais inteligente que nós, ao estilo da
inteligência superior de Laplace, que atua como nós, mas com uma capacidade
muitíssimo maior, então não saberiamos como compaginar a existência da
providência divina com a realidade do indeterminismo e do acaso. No entanto,
esta representação de Deus é inadequada; corresponderia a uma espécie de
demiurgo ou de ser superior que não seria realmente Deus. Um Deus pessoal
criador, concebido como Causa Primeira do ser e do agir de tudo o que existe e
atua, não encontra nenhum problema para governar a natureza na qual existem
o indeterminismo e o acaso; com efeito, Deus conhece tudo perfeitamente, de
um modo distinto ao nosso, e abarca em seu conhecimento e em seu poder
absolutamente tudo, até o menor dos detalhes.
251

C apítulo X

Os viventes

Neste capítulo, estudaremos as características e a origem dos viventes,


que ocupam um lugar central na natureza e realizam de modo especialmente
adequado a caracterização do natural mediante o entrelaçamento do dinamismo
próprio e da estruturação espaço-temporal.

28. Caracterização do ser vivente

Caracterizamos o natural mediante a união do dinamismo próprio com a


estruturação espaço-temporal. Vimos, além disso, que a natureza pode ser
considerada como um grande sistema de sistemas, no qual os sistemas unitários
que tradicionalmente chamam-se “substâncias” ocupam um lugar central. Os
viventes são o exemplo mais importante de substâncias naturais e possuem um
tipo muito especial de dinamismo e de organização. Vamos agora examinar as
características próprias dos viventes e o problema da sua origem, comentando, em
primeiro lugar, o impacto que o progresso da biologia representa para a filosofia.

28.1 Biologia e filosofia

O enorme progresso que a biologia experimentou desde a segunda metade


do século XX tem importantes consequências para a cosmovisão atual e para a
filosofia da natureza. Trataremos agora de algumas delas.
a) Física, biologia e filosofia da natureza
Os viventes ocupam um lugar central na natureza. Na cosmovisão antiga
e na correspondente reflexão filosófica, este seu lugar era reconhecido.
Aristóteles atribui a eles o posto central em sua filosofia; pode-se afirmar que
“as substâncias propriamente ditas são, para Aristóteles, os seres vivos, de modo
que a compreensão do ser em geral tem as suas raízes na compreensão do ser
vivo” 129. De fato, fala-se às vezes que a filosofia aristotélica é muito biologista,
como se pudesse ser aplicada aos viventes, mas fosse difícil aplicá-la ao resto
da natureza.

129. MARCOS, Alfredo. Aristótelesy otros animales. Una lecturafilosófica de la Biologia aristotélica,
Barcelona: PPU, 1996, pág. 192.
252 Filosofia da Natureza

No século XVII, o nascimento da ciência experimental moderna começou,


logicamente, pela física, que é a ciência que estuda as características mais gerais
e básicas da natureza. Quando a física já havia experimentado um enorme
progresso, a biologia ainda encontrava-se em sua infância, como também é
lógico, pois o seu progresso requer um prévio progresso da física e da química,
que lhe proporcionam a base de que necessita. Consequentemente, tendia-se a
outorgar a primazia à física e às vezes procurava-se explicar os viventes em
função do físico de modo reducionista. Mesmo quando afirmava o caráter
específico dos viventes, a filosofia da natureza estava demasiadamente condi­
cionada pelos conceitos e problemas da física.
Quando, no século XX, a física e a química atingiram um desenvolvimento
suficiente, ocorreu uma autêntica explosão da biologia, causando um grande
impacto sobre a cosmovisão atual e sobre a filosofia da natureza. Os seres vivos
voltaram a ocupar o lugar central que sempre lhes correspondeu e as categorias
próprias da biologia ficaram fortemente em destaque. Neste contexto, as ideias
centrais da filosofia aristotélica recobraram o seu vigor.
Isto aconteceu, por exemplo, com os conceitos de substância, forma e
finalidade. Ainda que seja admitida a existência de substâncias no mundo não-
vivente, é claro que a noção de substância aplica-se de modo primário aos seres
vivos, que têm uma unidade e uma individualidade especialmente fortes. De
modo semelhante, o conceito de forma adquire especial relevância quando se
considera a organização própria dos seres vivos. E a finalidade é o conceito que
mais se destaca; o mecanicismo tomou como modelo uma parte da física,
declarou que a finalidade não existia e tentou explicar as dimensões finalistas
da natureza mediante categorias mecânicas: entretanto, a biologia contemporânea
colocou em primeiro lugar estas dimensões finalistas, já que a finalidade aparece
nos seres vivos por toda parte.
Por outro lado, as teorias biológicas sobre a evolução das espécies, isto
é, a origem de umas espécies a partir de outras por meio de processos naturais,
causaram um impacto bastante perceptível na filosofia da natureza e em outros
ramos da filosofia. Vamos tratar deste assunto mais adiante.

b) A vida na biologia molecular

Para a biologia, perguntar “o que é a vida?” é muito complexo, dado que


existe uma enorme variedade de seres vivos e existem muitas dimensões
diferentes na vida. Por outro lado, os cientistas não precisam de uma resposta
simples e inequívoca para esta pergunta: é suficiente para eles estudar as
características dos distintos seres vivos. Além disso, os biólogos tomam como
Os viventes 253

ponto de partida as ideias comuns que todos possuímos acerca dos seres vivos e
estas ideias servem como base suficiente para construir a sua ciência.
No entanto, a biologia molecular proporcionou conhecimentos que
colocaram as nossas ideias sobre a vida em um novo nível, antes desconhecido.
Em sua busca do material físico-químico que explica a hereditariedade, os
cientistas dirigiram a atenção para o núcleo das células e, concretamente, para
os cromossomos. Antes de 1900 já estava determinado que os cromossomos da
maioria dos organismos continham proteínas e DNA (ácido desoxirribonucléico).
Durante um tempo pensou-se que as proteínas eram o material genético, porque
somente elas eram suficientemente complexas para conter a informação genética.
Contudo, por volta de 1940 a evidência a favor do DNA como material genético
aumentava. Até 1950 já se possuíam muitos conhecimentos acerca da estrutu­
ração química do DNA. Finalmente, James Watson e Francis Crick propuseram,
em 1953, o modelo de estrutura em dupla hélice do DNA, que foi confirmada
pelos trabalhos posteriores e constitui um dos avanços mais importantes da
ciência moderna.
Desde então, multiplicaram-se as descobertas sobre o código genético, a
fabricação de proteínas, a informação que dirige o desenvolvimento dos seres
vivos, a estrutura e função dos genes e outros temas relacionados. Os progressos
da biologia molecular, que estuda as estruturas e as funções das moléculas que
compõem os viventes, levaram a conhecer também outros importantes aspectos
dos seres vivos, como a comunicação molecular. Este progresso está possi­
bilitando o desenvolvimento de novas ideias acerca das características dos seres
vivos.
Os seres vivos unicelulares consistem em uma única célula e os plurice-
lulares são compostos de um conjunto de células. Todas as células possuem o
DNA, que contêm a informação para a replicação do vivente e para a fabricação
de muitos de seus componentes principais, exceto alguns vírus cujo material
genético é o RNA (ácido ribonucléico, semelhante ao DNA, mas diferente dele
em alguns aspectos da sua composição). Diferentemente das células “procarion-
tes”, que não têm um núcleo organizado (é o caso das bactérias), o DNA dos
organismos “eucariontes” está contido em um núcleo rodeado por uma
membrana.
Na caracterização da vida que existe em nosso planeta ocupam um lugar
muito destacado: o DNA, como material genético; o RNA, que intervêm na
tradução e transcrição do DNA do núcleo em proteínas fabricadas nos
ribossomos das células; e as proteínas (macromoléculas compostas por ami-
noácidos), que existem numa grande variedade, adotam estruturas espaciais
muito específicas e exercem funções também muito diversas.
254 Filosofia da Natureza

Os conhecimentos atuais situam o problema da vida em uma nova perspec­


tiva. Por um lado, porque pela primeira vez na história conhecemos detalhada­
mente uma parte importante dos mecanismos físico-químicos da vida, o que nos
leva a contemplar todos os viventes sob uma mesma perspectiva. E, por outro,
porque agora sabemos que uma grande parte dos seres vivos é muito primitiva.
Com efeito, as bactérias talvez tenham desempenhado um papel central na ori­
gem dos demais organismos e, com toda segurança, desempenham funções essen­
ciais na biosfera. Entretanto, as bactérias dificilmente podem ser descritas nos
termos usados para falar dos seres vivos acessíveis à experiência ordinária: falar
de um organismo ou do crescimento e desenvolvimento, e mesmo da morte, no
caso das bactérias, requer bastante matização. Portanto, ainda que os conheci­
mentos científicos atuais possam trazer novo vigor a conceitos filosóficos clássi­
cos, também é certo que uma descrição rigorosa dos tipos de seres vivos e de
suas funções somente será obtida se forem considerados os conhecimentos
proporcionados pela biologia, que se aprofundam muito mais do que os adqui­
ridos pela experiência ordinária.
Além dos novos horizontes já mencionados, pode-se mencionar que,
segundo a opinião de alguns cientistas, as fronteiras da vida deveriam ser
colocadas mais no nível das moléculas do que no das células, se levamos em conta
que algumas das características principais que são atribuídas à vida encontram-
se também no vírus e inclusive em proteínas como os “príons” (“partículas
proteínicas infecciosas”), que são capazes de multiplicar-se: os príons provocam
uma mudança na configuração de proteínas quase idênticas a eles e esta mudança
propaga-se sucessivamente às novas proteínas130.

c) A genética e as suas implicações

Os genes são unidades hereditárias compostas por fragmentos de DNA.


O número de genes, que se encontram nos cromossomos, varia muito conforme
os diferentes organismos; assim, o “genoma” de uma bactéria pode conter três
mil genes e o do organismo humano contém cerca de trinta mil. O genoma inteiro
encontra-se em cada célula do organismo, mas somente uma parte dos genes
“expressa” (está ativo). Portanto, a “regulação da expressão gênica” tem grande
importância; os fatores internos combinam-se com os externos para determinar
quais genes se expressam em cada ocasião, desde o começo do desenvolvimento
do organismo até cada um dos estados em que posteriormente se encontra.

130. Trata-se dos agentes causadores da doença da vaca louca: cfr. PRUSINIiR, Stanley B. “Priones”,
in Investigacióny ciência, n. 222, março de 1995, págs. 14-21.
Os viventes 255

Conhecemos cada vez mais os processos e métodos implicados no controle


da expressão gênica, que são bastante sofisticados. Neles intervêm não somente
os genes que se expressam, mas também os genes reguladores que controlam a
expressão de outros genes. O problema que se apresenta é o da “diferenciação”:
como explicar que, ao longo do desenvolvimento do organismo, sejam células
muito diferentes?
À medida que um óvulo fecundado se desenvolve, produzem-se diferentes
células que passam a ocupar o seu lugar e desempenhar suas funções específicas.
Este estado de coisas é resumido por Tim Beardsley em poucas palavras: Durante
o desenvolvimento de um organismo, as células movem-se, migram, seguindo
estratégias complexas, mudam as suas formas e, por fim, associam-se para
constituir tecidos especializados. Um ser humano, por exemplo, tem mais de
250 tipos de células e cada uma deve estar e funcionar no lugar adequado. (As
células hepáticas não serviriam no cérebro). Todas, entretanto, portam os
mesmos genes em seu DNA” 131.
Há tempos sabemos que, nestes processos, os genes se ativam e se
desativam. Começamos agora a conhecer os mecanismos do processo, ou seja,
como a atividade dos genes se harmoniza de tal modo que no momento preciso
são formadas as diferentes células e desempenhem sua função no lugar adequado.
Em palavras de Beardsley: “centenas de experimentos demonstram que o
controle da expressão da maioria dos genes de um organismo realiza-se quase
sempre mediante a regulação da transcrição, um processo cuja finalidade é
copiar a informação genética que o DNA contém no RNA, que são as moléculas
utilizadas para fabricar os milhões de proteínas que determinam que uma célula
difira notavelmente de outra”. Beardsley assinala que “o principal ensinamento
da biologia molecular nos últimos 20 anos é o do controle da expressão gênica
mediante a relação da transcrição”.
Eric H. Davidson, que foi um dos expoentes nestas pesquisas, fala neste
contexto de “genes inteligentes” e do “cérebro” do gene inteligente. Este
“cérebro” é um complicado agregado de proteínas, uma espécie de computador
“do qual os sinais se combinam sinais e toma-se a decisão de se ativar ou não
um gene”. Trata-se de uma linguagem claramente antropomórfica, visto que se
atribui às entidades bioquímicas inteligência, capacidade de integrar informações
e capacidade de decisão. Beardsley recolhe a seguinte afirmação de François
Jacob e Jacques Monod, que dividiram o prêmio Nobel de Medicina em 1965
por suas contribuições à biologia molecular: “o genoma não contém somente

131. As citações de Beardsley incluídas nesta parte foram extraídas de BEARDSLEY, Tim. “Genes
inteligentes”, in Investigación e ciência, n. 181, outubro de 1991, págs. 76-85.
256 Filosofia da Natureza

uma série de anteprojetos, mas todo um programa coordenado de síntese de


proteínas e meios para controlar a sua execução” e o próprio Beardsley escreve
que as “células de um organismo complexo precisam saber onde estão instaladas
para decidir que genes expressar. E deveri am, além disso, estar capacitadas para
responder diante de situações de emergência, como uma agressão ou a súbita
presença de um hormônio”.
O progresso da genética é interpretado, em determinadas ocasiões, a favor
de um determinismo genético que, se for concebido de modo rígido, deixaria
espaço apenas para a liberdade. Todavia, este presumível determinismo tem dois
limites. Por um lado, ainda que o programa básico de instruções esteja contido
no genoma de um organismo, a expressão dos genes depende de múltiplos
fatores, entre os quais fatores externos e a história do próprio organismo. Há,
sem dúvida, certa determinação por parte dos genes, mas também existe uma
variabilidade em função dos distintos fatores que intervêm nos complexos
processos biológicos: portanto, nem ao menos sob o ponto de vista biológico é
possível falar de um determinismo rígido. Por outro lado, no caso da pessoa
humana, a liberdade permite-nos atuar em função de motivos racionais e desejos
da vontade, ainda que a nossa atuação obviamente se desenvolva sobre a base
proporcionada por nossas particularidades genéticas. Um reducionismo genético
que esquecesse ou pusesse em questão a importância decisiva da inteligência e
da vontade humanas, estaria extrapolando injustificadamente certos fatores
biológicos, importantes sem dúvida, e esquecendo a função decisiva das
capacidades superiores do ser humano132.
d) Informação e direcionalidade
Já assinalamos anteriormente que o progresso da biologia contemporânea
colocou em primeiro plano o conceito de informação. Na biologia, utilizam-se
conceitos tomados da cibernética e da teoria da informação. Os genes contêm a in­
formação genética, na qual se encontram as “instruções” necessárias para o
desenvolvimento do organismo, de tal modo que a fabricação de proteínas, a
formação de novos órgãos e tantos outros processos vitais são dirigidos por essa
informação.
A existência da informação genética leva-nos a admitir que existem nos
seres vivos realidades que correspondem aos conceitos de programa, desenho e
plano. Existe uma direcionalidade imanente, que o progresso científico expõe
cada vez mais clara e extensamente. Não se trata somente das tendências

132. Encontra-se uma crítica interessante do reducionismo biológico atual no artigo: "Biology isn’t
destiny”, in The Economist, 14 de fevereiro de 1998, págs. 97-99.
Os viventes 257

chamadas psíquicas, cuja importância é muito grande. Trata-se também de


tendências físico-químicas inscritas nas estruturas espaço-temporais dos seres
vivos.
Acabamos de sublinhar que a direcionalidade biológica não deveria ser
identificada com o determinismo. Trata-se de uma direcionalidade real, mas ao
mesm o tem po com plexa e com patível com graus crescentes de uma
espontaneidade que, ao chegar ao nível humano, completa-se com novas dimen­
sões, as espirituais, que transcendem o âmbito espaço-temporal do natural.
A direcionalidade encontrada nos seres vivos proporciona novos
elementos para o argumento teleológico, que conduz desde a “inteligência
inconsciente” do natural até a inteligência consciente do Deus pessoal criador.
Mas este passo exige ulteriores raciocínios, que serão considerados mais adiante.

28.2 Características dos seres vivos

Pode-se caracterizar a vida como a posse de um tipo especial de espon­


taneidade: o automovimento, que, além do mais, repercute no bem do próprio
agente. Também se distinguem nos seres vivos uma série de funções, algumas
das quais se encontram em toda a escala da vida, enquanto que outras são próprias
somente de alguns seres vivos. Tudo isso se baseia em duas características
fundamentais dos seres vivos: a organização e a funcionalidade.
Já advertimos que uma parte numericamente importante dos seres vivos
está constituída pelas bactérias, às quais talvez devessem se juntar os vírus e
certos tipos de proteínas auto-replicantes. Por conseguinte, é óbvio que as
seguintes ideias não poderão ser aplicadas aos viventes mais primitivos exata­
mente do mesmo modo que aos mais complexos. É interessante notar, contudo,
que a caracterização do natural mediante o entrelaçamento do dinamismo próprio
e da estruturação espaço-temporal, tal como propusemos desde o princípio, é
especialmente adequada quando se aplica aos viventes.
a) Organização vital e funcionalidade
Se todo natural é caracterizado pela posse de um dinamismo próprio
estreitam ente relacionado com uma organização espaço-temporal, esta
caracterização alcança a sua expressão mais acabada e paradigmática nos
viventes, o que é lógico se levarmos em conta que os seres vivos ocupam um
lugar central entre os seres naturais.
A existência de um dinamismo próprio nos seres vivos é indubitável. Pre­
cisamente, os viventes podem ser caracterizados como seres capazes de auto­
movimento. Quando caracterizamos o natural pela posse de um dinamismo
258 Filosofia da Natureza

próprio, tivem os que cham ar a atenção expressam ente ao fato de não


sustentarmos com isso uma espécie de pampsiquismo; a identificação do ser vivo
com aquilo que move a si mesmo está tão arraigada que, com muita frequência,
quando se procura caracterizar o ser vivo, geralmente se estabelece uma
contraposição entre o ser vivo e o resto, o não-vivente, que costuma ser
denominado com termos negativos: o “não-vivente”, o “inerte” que se comporta
de modo passivo e não tem em si um princípio de movimento, o “inorgânico”
ou carente da organização própria dos viventes. O uso desses termos negativos
pode levar à confusão, pois, na realidade, não há nada na natureza que seja
puramente passivo e inerte ou que não possua algum tipo de estruturação espaço-
temporal.
Contudo, é indubitável que os viventes possuem um dinamismo próprio
muito peculiar, que corresponde a uma unidade e a uma individualidade
especialmente fortes. São sujeitos claramente diferenciados de outros, que
possuem partes organizadas de modo cooperativo em um organismo que tem
as suas próprias necessidades, metas e tendências. O dinamismo próprio dos
viventes inclui a atividade de diferentes partes que cooperam na realização das
metas do ser vivo: estas partes realizam funções que se integram de modo
unitário, cooperando na manutenção, desenvolvimento e reprodução do
organismo.
Definitivamente, dinamismo próprio e estruturação espaço-temporal
correspondem, nos seres vivos, a um automovimento que inclui a cooperação
funcional das partes de um organismo unitário e individual. Nos seres vivos
primitivos não se costuma falar de um “organismo”, mas, em todo caso, estes
seres vivos são seres unitários e individuais que possuem uma organização muito
específica. Além disso, realizam, nas condições adequadas, uma função também
muito específica, a reprodução, que requer a cooperação ordenada e unitária das
diferentes partes, tendo como consequência a perpetuação deste sujeito e de suas
atividades. Isto se aplica não só às bactérias, mas também aos vírus e,
eventualmente, a proteínas como os príons.
b) Imanência e espontaneidade
O automovimento é uma característica dos seres vivos. Embora todo
natural possua um dinamismo próprio, existem equilíbrios dinâmicos que em
muitos casos ocultam este dinamismo diante da experiência ordinária. Nos
viventes, o dinamismo próprio é patente e costuma ser considerado como uma
das suas características fundamentais.
O dinamismo dos seres vivos manifesta-se sob a forma de uma esponta­
neidade que, embora possa ser atribuída a todo ente natural, possui características
Os viventes 259

muito peculiares no nível biológico: refere-se ao dinamismo de seres claramente


unitários e individuais que buscam ativamente o que contribui para a manutenção
e o desenvolvimento do seu ser. Sem dúvida, um átomo ou uma molécula
possuem um dinamismo próprio e uma estruturação espaço-temporal unitária e
possuem também uma estabilidade e certas tendências, mas não tem sentido
afirmar que buscam ativamente manter-se no ser, e menos ainda desenvolver-
se ou reproduzir-se. A atividade própria dos seres vivos encontra-se em um nível
diferente ao dos seres físico-químicos.
As peculiaridades desta atividade podem ser expressas ao se falar da sua
imanência. Os viventes, enquanto seres unitários e individuais que atuam em
busca da sua própria perfeição, têm uma atividade cujos efeitos permanecem
dentro deles e que, por este motivo, denomina-se “imanente”.
A imanência dos viventes significa que, de algum modo, atuam tendo a si
mesmos como fins. Eles são os “beneficiários” das suas próprias ações, o que não
exclui que a sua atividade também beneficie a outros e tenha fins fora de si
mesmos.
Ao considerarmos a atividade natural, distinguimos as ações transeuntes
e imanentes. Vimos que as ações transeuntes são ações físicas que têm um efeito
exterior ao próprio agente e que as operações imanentes têm um término que se
encontra no próprio agente que, portanto, aperfeiçoa-se a si mesmo ao agir. Os
viventes realizam ações cujos efeitos permanecem no seu interior e contribuem
para a sua perfeição; ainda que em muitos casos estas ações também sejam
transeuntes por produzirem efeitos físicos detectáveis, revertem no agente que
as realiza. Além disso, quando se chega ao nível do conhecimento, alcança-se
uma imanência peculiar. No caso do ser humano, a inteligência e a vontade
situam-no num nível essencialmente superior ao de outros seres naturais e neste
nível se dá um grau único de imanência no qual o ser humano encontra a sua
perfeição específica.
c) Aspectos fenomenológicos do ser vivente
Já percebemos que uma grande parte dos seres vivos é formada por
microorganismos. Por conseguinte, quando falamos dos aspectos fenomenoló-
gicos dos seres vivos, nos referimos, em sentido estrito, somente aos que podem
ser observados na experiência ordinária. Entretanto, podemos estender sem
dificuldade esta ideia, de modo que inclua as principais características de todos
os seres vivos. É o que faremos, aludindo ao automovimento, organicidade,
geração, desenvolvimento, reprodução e morte.
Quando nos referimos ao automovimento, indicamos que o dinamismo é
característico dos seres vivos. Ainda que todo natural possua um dinamismo
260 Filosofia da Natureza

próprio, os seres vivos são aqueles que possuem uma unidade e uma indivi­
dualidade fortes e o seu dinamismo é tal que a sua atividade tem como resultado,
em boa parte, algo que contribui para manter e desenvolver o ser do próprio
sujeito que a executa. Além do mais, o automovimento dos seres vivos manifesta-
se em dois aspectos que são típicos: o desenvolvimento e a reprodução.
A organicidade é outra característica típica de muitos seres vivos. Não
dizemos que seja de todos, pois, como já indicamos, não é habitual falar de
“organismo” quando nos referimos a seres vivos primitivos; no entanto, também
neles encontramos estruturas complexas e cooperativas que correspondem à ideia
da organização própria dos seres vivos. Com relação à organicidade, existem
algumas características que possibilitam a manutenção dos seres vivos em seu
ser: o metabolismo ou conjunto de reações químicas nas quais é produzida a
energia que o organismo necessita para se manter e realizar as suas funções; e a
homeostase ou manutenção de algumas características nos níveis constantes
através das circunstâncias externas cambiantes. São características muito gerais,
às quais poderiam ser acrescentadas muitas outras particulares que se identificam
nos diferentes tipos de seres vivos.
A geração refere-se ao começo da existência do ser vivo, que se forma
como um ser individual e unitário a partir de outros seres vivos. Em muitos seres
vivos, a geração é seguida por um desenvolvimento gradual que conduz à
realização do tipo específico de acordo com pautas estabelecidas e, finalmente,
pela morte ou desaparecimento do ser vivo, que deixa de existir como tal e se
transforma em material inerte.
A reprodução é uma das características básicas dos seres vivos, que
transmitem de geração em geração as características típicas de cada espécie.
Além disso, a herança constitui a base sobre a qual podem ocorrer as mutações
que possibilitam a evolução das espécies.

28.3 A explicação da vida

A ciência experimental busca explicações que possam ser submetidas a


um controle; portanto, explicações que se refiram a componentes e estruturas
que seguem pautas espaço-temporais repetíveis.
Desde a Antiguidade, discutiu-se se os viventes podem ser explicados
levando em conta somente explicações deste tipo, ou se, ao contrário, é neces­
sário introduzir outros princípios explicativos. Esta discussão continua atual e
vem sendo inclusive estimulada pelo progresso da biologia contemporânea.
A discussão concentrou-se em torno de duas posturas antagônicas tradi­
cionalmente denominadas mecanicismo e vitalismo. O mecanicismo própria­
Os viventes 261

mente dito foi defendido por Descartes, que afirmou que todo ente natural,
inclusive os seres vivos (com exceção da alma humana), são puras máquinas
mecânicas. Esta versão do mecanicismo é claramente insuficiente e foi
substituída por explicações mais sofisticadas que apresentam os viventes como
máquinas cibernéticas, afirmando que é inútil buscar nos seres vivos algo que
ultrapasse o alcance da ciência experimental. Ao contrário, o vitalismo sublinha
as características peculiares dos seres vivos e postula algum fator metaempírico,
algum tipo de princípio vital, que seria necessário para dar conta do ser e do
agir dos seres vivos.
Ainda que existam interpretações diferentes do fato, hoje em dia geral­
mente se admite que os seres vivos possuem características específicas que não
são encontradas em outros níveis do natural. Sem dúvida, seguem as leis da física
e da química, mas as transcendem.
A filosofia de Aristóteles proporciona conceitos que esclarecem esse
problema. Com efeito, quando Aristóteles fala da “alma” dos seres vivos, refere-
se ao seu modo de ser, que certamente possui caracteres peculiares. No segundo
livro do seu tratado Acerca da alma, Aristóteles propôs uma definição geral da
alma mediante três passos sucessivos. Em primeiro lugar, diz que “costumamos
a chamar de vida o alimentar-se, crescer e envelhecer por si mesmo" e pergunta-
se pela diferença entre um corpo natural vivo e outro que não está vivo; afirma
que a diferença não está no corpo, já que há corpos vivos e não vivos, e conclui
que a alma é “a forma específica de um corpo natural que, em potência, tem vida”
(aqui, “forma especifica” é a tradução do grego eidos). Em segundo lugar,
Aristóteles acrescenta que ter vida é anterior a exercitá-la e, portanto, afirma
que “a alma é o ato primeiro de um corpo natural que tem vida em potência”.
Imediatamente, comenta que um corpo deste tipo, com vida em potência, é um
organismo. Daí conclui, em terceiro lugar, que a alma é “o ato primeiro de um
corpo natural organizado”133. Em seu comentário a Aristóteles, Tomás de Aquino
acolhe estas mesmas ideias134.
Já vimos o que significam os conceitos de “forma substancial ou
específica”, “ato primeiro” e “potência”. Vimos também que as essências dos
seres naturais não são simples, mas compostas: existem em condições materiais
(matéria prima) e abrangem as perfeições que determinam o modo de ser
específico (forma substancial). Matéria e forma não são entes completos nem
partes físicas; são co-princípios, que se comportam como potência e ato: a
matéria prima é o princípio potencial e indeterminado e a forma substancial é o

133. ARISTÓTELES. Acerca cia alma, II, 1 .4 1 2 a 9 -b 6 .


134. TOMÁS DE AQUINO. In Aristotelis librum De Anima Commentarium, 5a ed., Torino: Mariett,
1959: libro II, capítulo 1, págs. 60-62 (ns. 219, 221, 229, 230 e 233).
262 Filosofia da Natureza

princípio atual e determinante. Se aplicarmos estas ideias ao seres vivos, diremos


que a alma é sua forma substancial, o princípio atual da sua essência, o seu ato
primeiro, que expressa as perfeições essenciais próprias de cada tipo de ser vivo.
Dissemos que a forma substancial refere-se ao modo de ser unitário da
substância e ao conjunto de possibilidades de agir que correspondem ao modo
de ser, e que é ato, energia, natureza ativa. Nos seres vivos, a sua forma
substancial ou alma é ato primeiro: expressa o modo de ser essencial, que sempre
está em ato enquanto o ser vivo existe. Para agir, o ser vivo deve passar de potên­
cia a ato: possui certas potências ativas ou faculdades vitais que lhe capacitam
à ação, mas deve atualizá-las em cada caso. Quando o vivente atualiza uma das
suas faculdades ou potência ativas, passa a ato segundo, que é a ação ou ope­
ração, o agir. O agir segue ao ser. o ser em ato segundo, que é a ação, realiza-se
de acordo com o modo de ser de cada vivente, ou seja, o que é em ato primeiro
e que vem expresso pela forma substancial ou alma.
Quando falamos de “alma”, temos de considerar que este termo tem uma
longa história, não só na filosofia, mas também na religião e na teologia. Estuda­
remos detidamente, mais tarde, a alma humana e a sua espiritualidade. No
momento, estamos nos referindo somente à alma dos seres vivos em geral, e
afirmamos que as ideias aristotélicas podem ser aplicadas na atualidade de acordo
com as pontualizações que fizemos ao falar da forma substancial.
Com efeito, temos destacado que os seres vivos possuem um tipo específico
de unidade e individualidade: ainda que alguns deles formem colônias, os viventes
são tipicamente seres individuais que possuem uma organização material muito
específica e um dinamismo próprio que se manifesta nas funções vitais. Tudo isto
corresponde ao modo de ser de cada ser vivo. Desdejá, existe uma gradação ampla
na qual muitos tipos de seres vivos se distinguem, mas têm em comum o que ex­
pressa a ideia geral da alma. Além disso, a ideia de forma substancial expressa de
modo muito adequado que esta alma forma uma só coisa com as condições ma­
teriais nas quais existe: o que propriamente existe é o ser vivo, e a alma não
expressa uma parte física ou a simples estrutura do mesmo. Repetimos que, no
momento, não estamos nos referindo à espiritualidade da alma humana, que
constitui um caso a parte.
A concepção filosófica da alma dos seres vivos não só é compatível com
o progresso da biologia, mas expressa adequadamente o modo de ser peculiar
das entidades biológicas. A filosofia da natureza não deve substituir a biologia;
as suas explicações não são como as da ciência experimental: através da filosofia
da natureza buscamos, antes de tudo, representar o mais fielmente possível o
modo de ser dos entes naturais, que, neste caso específico, são os seres vivos.
Na natureza, um lugar central é reservado aos seres vivos, que correspondem
Os viventes 263

de modo particularm ente fiel à caracterização do natural m ediante o


entrelaçamento do dinamismo próprio e da estruturação espaço-temporal. E esta
caracterização dos seres vivos corresponde às ideias básicas que foram expressas
por Aristóteles, cuja filosofia está especialmente centrada cm tomo dos viventes.
Temos apontado também que o progresso da biologia contemporânea
destaca a importância da direcionalidade no mundo vivente. No caso dos viventes
individuais, a existência de uma finalidade imanente é um fato que pode ser
ilustrado com exemplos abundantes, que aumentam com o progresso científico.
Entretanto, a finalidade natural deve encarar um desafio de outro tipo quando
se examina a evolução dos seres vivos.

29. A origem da vida e a evolução das espécies

Um dos aspectos mais destacados da cosmovisão atual é a importância


dada às teorias sobre as origens do mundo, dos seres vivos e do homem. Pela
primeira vez na história, dispõe-se de teorias admitidas pela maioria dos cientistas
que afirmam a existência de um grande processo no qual se teria produzido, de
forma gradual, o aparecimento dos sucessivos níveis de organização que existem
na natureza.
Examinaremos agora o evolucionismo biológico, teoria segundo a qual
os viventes atuais procedem de outros mais prim itivos por sucessivas
transformações. Esta ideia foi ganhando terreno ao longo do século XIX, à
medida que se acumulavam provas, apoiadas nos fósseis e nos estudos de
anatomia comparada.
A primeira teoria da evolução foi proposta por Lamarck em seu livro
Filosofia zoológica, publicado em 1809. Em 1859, com a publicação de A origem
das espécies de Charles Darwin, o evolucionismo conquistou grande difusão
no âmbito científico e cultural. Os progressos da genética deram lugar, até 1930,
à formulação do neodarwinismo ou teoria sintética da evolução. Na atualidade,
os biólogos geralmente admitem o fato da evolução, ainda que não exista
unanimidade acerca das explicações concretas dos seus mecanismos.
Ser contemplarmos a natureza sob a perspectiva do entrelaçamento entre
o dinamismo e a estruturação, a evolução aparece como um conjunto de
processos morfogenéticos nos diferentes níveis naturais. Em cada fase da
evolução existem virtualidades que se atualizam em função dos fatores que
intervêm; produzem-se novos tipos de organização, que possuem novos tipos
de dinamismos e virtualidades, cujo desenvolvimento e atualização levam, por
sua vez, a outros níveis de organização, e assim sucessivamente. Tudo isto pode
ser contemplado como o desenvolvimento de uma informação original que, em
264 Filosofia da Natureza

sucessivos níveis de organização, dá lugar a novas pautas informativas de


complexidade crescente.
Os problemas principais em tomo da evolução biológica são dois, a saber:
a origem dos primeiros seres vivos e a sucessiva origem de umas espécies a partir
de outras. Ainda que o segundo problema seja enfrentado com dificuldades nada
triviais, o primeiro é talvez ainda mais difícil.
Examinaremos a seguir as explicações científicas acerca da origem da vida
e de sua posterior evolução, acrescentando algumas reflexões sobre as
implicações filosóficas destes problemas.

29.1 A origem da vida

Biogênese abiótica significa que os primeiros viventes se formaram a


partir do nível físico-químico mediante processos naturais. Trata-se de um
processo que não se observa atualmente na natureza e que, no momento, não
pode ser produzido em laboratório. Os viventes que conhecemos provêm de
outros seres vivos.
Os antigos afirmaram que em alguns casos (como a putrefação) acontecia
a geração espontânea, ou seja, a geração de alguns viventes imperfeitos a partir
de matéria orgânica. Esta opinião foi sustentada, por exemplo, por Tomás de
Aquino135. No entanto, os experimentos de Pasteur em 1860 indicaram que não
existe em nosso mundo a geração espontânea e que os experimentos que
pareciam confirmá-la eram falhos devido a um insuficiente isolamento do
material utilizado: quando se isolavam convenientemente os produtos, evitando
a sua comunicação com os microorganismos do ambiente exterior, não aparecia
nenhum vivente.
Entretanto, o problema da biogênese abiótica voltou a ser apresentado mais
tarde, de uma nova maneira, quando o evolucionismo avançou. Tratava-se agora
da origem dos primeiros seres vivos, processo que havia se dado historicamente,
de acordo com processos naturais, em uma época muito remota: cerca de 700
milhões de anos depois da formação da Terra.
Estudos calculam que a Terra se formou há cerca de 4,5 bilhões de anos
e que os fósseis mais antigos pertencentes a seres vivos são de 3,8 bilhões de
anos atrás. Sem dúvida, 700 milhões de anos constituem um tempo muito grande;
contudo, se levarmos em conta a enorme complexidade dos seres vivos em
relação à matéria inorgânica, este tempo parece demasiadamente curto para que

135. Pode-se ver, por exemplo: TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 71, a. I, ad 1m; I, q. 91, a. 2, ad
2m. Nestes textos afirma-se a geração dos viventes imperfeitos a partir da putrefação, sob a ação dos corpos
celestes, e nega-se que deste modo possam ser gerados animais perfeitos, em cuja geração intervém o sêmen.
Os viventes 265

os primeiros organismos chegassem a ser formados de modo casual. Foram


propostas diferentes explicações sobre a possível origem química da vida; mas
a complexidade dos seres vivos, por muito elementares que eles sejam, continua
sendo um desafio para compreender como puderam ser formadas, mediante
processos aleatórios, estruturas tão sofisticadas, nas quais umas partes dependem
de outras. Neste terreno, não existe unanimidade entre os cientistas e as
discrepâncias afetam a todas as dimensões do problema.
Quanto ao ambiente de onde surgiu a vida, segundo a interpretação mais
difundida (que frequentemente se apresenta como segura), teria existido uma
“sopa primitiva”, no oceano cujas águas rodeiam as ilhas vulcânicas, que conteria
os elementos químicos mais indispensáveis para a vida, e ali teriam sido
formados os primeiros seres vivos, bactérias unicelulares capazes de se
reproduzirem136. Todavia, alguns cientistas reparam que esta explicação oferece
dificuldades e dão margem para outro tipo de explicações; por exemplo, argu­
mentou-se a favor dos cristais de argila como a matéria prima na qual se teriam
originado os primeiros organismos137.
Quanto aos processos que teriam produzido os primeiros organismos, a
principal dificuldade é explicar a formação dos primeiros sistemas capazes de
se auto-replicarem, na ausência dos mecanismos que permitem agora a
replicação. Com efeito, nos atuais seres vivos, a replicação é efetuada mediante
a cooperação dos ácidos nucléicos (DNA e RNA) com as proteínas; no entanto,
as proteínas são fabricadas mediante processos dirigidos pelos ácidos nucléicos
e a atividade dos ácidos nucléicos exige a intervenção das proteínas: portanto,
parece que nos encontramos em um círculo vicioso.
A saída deste círculo poderia ser encontrada nos hiperciclos. Trata-se de
processos nos quais uma entidade produz os fatores necessários para a sua própria
replicação, através de um processo cíclico; existem circuitos de retroalimentação
que tornam possível uma “autocatálise” 138. Nesta linha, propôs-se que o RNA
(ácido ribonucléico) poderia ser o precursor original da vida que conhecemos;
a possibilidade baseia-se na existência de diferentes tipos de RNA e em sua
capacidade de se auto-replicarem, combinando as funções catalíticas e de

136. Cfr. GORE, R. “Our Restless Planet Earth”, in National Geographic Magazine, vol. 168, n. 2, agosto
de 1985, pág. 151: este artigo é um exemplo da segurança com que esta hipótese costuma ser apresentada.
137. Cfr. CAIRNS-SMITH, A. G. "Los primeros organismos”, in Investigacióny ciência, n. 107, agosto
de 1985, págs. 54-63.
138. Sobre este tipo de processo e a sua aplicação ao problema da origem da vida, cfr. EIGEN, M.,
GARDINER, W., SCHUSTER, P. e W1NKLER-OSWATITSCH, R. “Origen de la informacióngenética”, in
Investigación y ciência, n. 57, junho de 1981, págs. 62-81. Eigen e Schuster propuseram esta explicação em
1977.
266 Filosofia da Natureza

“molde”: o RNA pode dirigir tanto a replicação como a produção dos fatores
necessários para ela139.
Existem, no entanto, outras explicações possíveis para a origem da vida.
Já aludimos a algumas delas, mas existem ainda outras. Ainda que frequentemen­
te se afirme, sobretudo em textos de divulgação, que a origem da vida já foi
explicada - e existem de fato teorias que gozam de certa aceitação -, os enigmas
que ainda esperam uma resposta não são poucos nem pequenos140. Alguns
cientistas consideram muitíssimo improvável que a vida sobre a Terra tenha sido
formada de modo espontâneo, e postulam que a vida, ou ao menos alguns dos
componentes orgânicos básicos, deve ter chegado à Terra do espaço exterior ou
de algum planeta habitado141; porém, deste modo, o problema não é resolvido:
as interrogações são somente deslocadas para um outro planeta.

29.2 A evolução das espécies

As teorias evolucionistas afirmam que, a partir dos primeiros organismos,


originaram-se os demais seres vivos mediante processos naturais. Atualmente,
existe um amplo consenso entre os biólogos acerca do fato da evolução, ainda
que também existam discrepâncias, às vezes sérias, acerca da sua explicação.
Em 1809, Jean Baptiste de Lamarck (1744-1829) defendeu o evolucionis-
mo biológico, ou seja, a origem de umas espécies a partir da evolução de outras
mais primitivas e tentou explicá-lo mediante a herança dos caracteres adqui­
ridos. O exemplo clássico é o pescoço da girafa: graças aos esforços para alcançar
os alimentos situados a alturas cada vez maiores, o pescoço foi sendo esticado
e estas variações foram transmitidas aos descendentes. Esta explicação foi
rechaçada posteriormente, ainda que alguns cientistas sustentassem que, em
alguns casos, existem processos quase-lamarckianos.

139. Cfr. GESTELAND. R. F. e ATKINS, J. F. (editores) The RNA World, Plainview (New York): Cold
Spring Harbor Laboratory Press, 1983, em que se estudam os diferentes aspectos deste modelo e os argumentos
que o apoiam.
140. As dificuldades refletem-se em HORGAN. John. “Tendências en evolución. En el principio...",
Invesligaeión y ciência, n. 175, abril de 1991, págs. 80-90. no qual se analisa o panorama das diferentes
explicações que já foram propostas. No subtítulo deste artigo diz-se que "existem pontos de vista muito díspares
sobre quando, onde e, sobretudo, como começou a vida sobre a Terra". Chama-se a atenção a que as explicações
que costumam aparecer nos livros de estudo foram seriamente questionadas. Analisam-se as diversas propostas.
E, em um resumo esquemático. diz-se que este problema “é um tear de Penélope, no qual novos dados arruinam
as idéias assentadas”.
141. A hipótese da “panspermia", segundo a qual existem germens de vida no espaço e que estes teriam
chegado à Terra, é antiga. Em nossos dias, Francis Crick (prêmio Nobel, junto com James Watson, por seu
descobrimento da estrutura ent dupla hélice do DNA), fala da “panspermia dirigida": germens de vida, ou
talvez bactérias, poderíam ter sido enviados ao nosso planeta de modo intencional. Cfr. CRICK, F. “Foreword”,
m GESTELAND, R. F. e ATKINS. J. F. (editores), The RNA World. <>/>. cit., pág. xiv.
Os viventes 267

Em 1859, Charles Darwin (1809-1882) publicou A origem das espécies,


obra que contribuiu decisivamente para uma aceitação cada vez maior da teoria
evolucionista. A explicação de Darwin baseava-se na seleção natural: supõe-
se que ocorrem pequenas variações hereditárias nos seres vivos, algumas das
quais conferem aos seus possuidores vantagens na luta pela sobrevivência; os
seres mais bem adaptados terão mais descendência e, aos poucos, mediante um
processo gradual, as pequenas vantagens acumulam-se até produzir novos tipos
de seres vivos, ou seja, novas espécies.
Quando Darwin formulou a sua teoria, não se conhecia quase nada acerca
das variações ou das heranças que ele postulava. A genética, que estuda estes
problemas, ainda não tinha nascido. Gregor Mendel (1822-1884) formulou as
suas leis, que constituem a base da genética, na mesma época em que se formava
o darwinismo, mas estas leis somente foram conhecidas e valorizadas a partir
de 1900. Por não contar com uma base genética, o darwinismo encontrava
dificuldades; entretanto, o progresso da genética contribuiu para apoiar a ideia
evolucionista. Até 1930, formulou-se a denominada teoria sintética da evolução,
ou neodarwinismo, que uniu as ideias de Darwin com os avanços da genética e
o estudo das populações. Mais tarde, a biologia molecular proporcionou outros
ingredientes básicos às teorias evolutivas.
O neodarwinismo afirma que as variações que se encontram na base da
evolução são as mutações genéticas, ou seja, mudanças no DNA produzidas por
diversas causas mas sempre “por acaso” (porque não correspondem a uma
intenção da natureza). Existem muitas mutações, e a maioria provoca transtornos
que inviabiliza o novo ser; mas algumas podem ser viáveis e benéficas, e estas
são as que se conservam. Como as mutações genéticas afetam o material
hereditário (os genes), transmitem-se aos descendentes; deste modo, os efeitos
das mutações benéficas amplificam-se, porque os seus portadores estão em
vantagem na luta pela existência: produz-se uma “seleção natural”, assim
denominada por analogia com a seleção artificial na qual conseguimos melhorar
as características dos animais e das plantas mediante os cruzamentos apropriados.
Eventualmente, esta amplificação pode provocar, por acumulação de muitas
pequenas mudanças, a aparição de novos tipos ou espécies de seres vivos.
Definitivamente, segundo o neodarwinismo, explica-se a evolução pela
combinação de mutações ao acaso e seleção natural142.
São muitos os problemas implicados pelo evolucionismo. Portanto, não
podemos estranhar, ainda que exista um amplo consenso entre os biólogos acerca142

142. Encontra-se uma coleção de estudos sobre a evolução, interpretada à luz do neodarwinismo, em:
AA. VV. Evolución, Barcelona: Labor, 1982. Sobre os princípios básicos do neodarwinismo, cfr. AY AL A,
Mecanismos de evolución, ibid., págs. 13-28.
268 Filosofia da Natureza

do fato evolutivo, que também existam discrepâncias acerca de muitas expli­


cações concretas. Assinalaremos algumas delas.
Uma das discrepâncias refere-se ao alcance da seleção natural. O darwi-
nismo interpreta os diferentes caracteres biológicos em termos de vantagens ou
desvantagens adaptativas por meio da seleção natural. Todavia, o neutralismo
(proposto por Motoo Kimura) afirma que muitas mudanças do DNA, inclusive
a maioria, não têm um significado adaptativo: são “neutras” neste aspecto143.
Outra discrepância refere-se ao caráter gradual da evolução. O darwinismo
interpreta as mudanças evolutivas como o resultado da lenta acumulação de
pequenas mudanças; é uma teoria “gradualista”. Porém, o “saltacionismo” ou
teoria dos equilíbrios pontuados (proposta por Stephen Jay Gould e Niles
Eldredge) sustenta a existência de mudanças bruscas, que não correspondem a
uma lenta acumulação de variações, mas a outro tipo de mecanismo144. Deste
modo, seria possível compreender por que o registro fóssil apresenta importan­
tes lacunas nas mudanças graduais postuladas pelo darwinismo.
Além disso, parece lógico supor que, para que exista uma evolução desde
os organismos mais primitivos até o organismo humano, deveriam existir algumas
leis ou princípios de organização - até agora desconhecidos - capazes de “guiar”
tão complicado processo à sua forma atual. Várias tentativas foram formuladas
nesta direção, nas quais não é concedida demasiada importância à seleção e ao
azar. Entretanto, os conhecimentos atuais são insuficientes para abordar com
segurança estes problemas, que são objeto de controvérsias e de especulações.
Por exemplo, cada vez mais são conhecidos dois âmbitos que podem
proporcionar importantes chaves para compreender a evolução. Por um lado, a
regulação gênica, ou seja, a existência de programas que regulam a expressão
dos genes, poderi a explicar que uma só mudança num fator de regulação pudesse
provocar o aparecimento de novos planos de organização. Por outro lado, como
resultado dos novos conhecimentos acerca da auto-organização, também seria
possível explicar o aparecimento de novas características em função das
virtualidades e tendências inscritas no natural. Estes dois âmbitos encontram-
se relacionados e pode-se esperar que contribuam para o progresso do nosso
conhecimento acerca da evolução biológica145.

143. Cfr. KIMURA, M. “Teoria neutralista de la evolución molecular", in Investigacióny ciência, n.


40, janeiro de 1980, págs. 46-55.
144. Cfr. por exemplo: GOULD, S. J. “The meaning of punctuated equilibrium, and its role in validating
a hierarchical approach to macroevolution”, in MILKMAN, R. (editor). Perspectives on Evolution, Sunderland
(Mass): Sinuauer, 1982, págs. 83-104.
145. Cfr., por exemplo: KAUFKMAN, S. A. The Origins ofOrder. Self-Organization andSelection in
Evolution, Oxford: Oxford University Press, 1993. O autor penetra em âmbitos difíceis que podem requerer
Os viventes 269

A evolução das teorias evolucionistas é contínua; uma vez e outra se


formulam novas sínteses que trazem novos pontos de vista*146. Isto não significa
que estas teorias sejam pouco rigorosas nem que o filósofo não possa prescindir
delas: a situação é semelhante à que se encontra em outros âmbitos das ciências
e as discussões geralmente se referem aos mecanismos da evolução, não ao fato.
Por outro lado, perceber os limites das explicações atuais é o único modo de
progredir; sustentar o caráter definitivo e completo das explicações atuais, que
apresentam muitas lacunas, representa, na realidade, um obstáculo ao progresso
científico.

29.3 A evolução: ciência e filosofia

A evolução biológica e a perspectiva filosófica complementam-se. Com


efeito, as teorias científicas referem-se ao fato da evolução e aos seus mecanismos;
por sua vez, a reflexão filosófica concentra-se em torno do significado da evolu­
ção: analisa as suas condições de possibilidade e as suas implicações.
a) Evolução e criação

As condições de possibilidade da evolução remetem ao problema da


criação. Para demonstrá-lo, mencionaremos três condições de possibilidade da
evolução que se referem aos seus pressupostos, ou seja, a requisitos que devem
estar presentes para que a evolução seja possível.
Em primeiro lugar, para que a evolução seja possível, requer-se, antes de
tudo, que existam entidades e leis básicas que possam servir como base da
evolução.
Em segundo lugar, essas entidades e leis devem ser muito específicas, pois
devem possuir certas virtualidades (ou possibilidades, ou potencialidades) a
partir das quais possam ser formadas entidades com novos tipos de organização:
e isto de tal maneira que as novas entidades possuam, por sua vez, novas
virtualidades que permitam o passo seguinte; e assim sucessivamente, ao longo
da ampla escala evolutiva.

matizações científicas e filosóficas, mas, em todo caso, seu trabalho constitui uma mostra dos problemas
que devem ser enfrentados pelas atuais teorias evolucionistas e de algumas soluções na linha da auto-
organizaçào.
146. Pode-se ver, por exemplo, STEBBINS, G. L. e AYALA, F. J. “La evolución dei darwinismo”, in
Investigación y ciência, n. 108, setembro de 1985, págs. 42-53. Os autores concluem o artigo com as seguintes
palavras: “Qualquer que seja o novo acordo que surja da investigação e da controvérsia atuais, não é provável
que exija a negação do programa básico do darwinismo c da teoria elaborada a meados deste século. A teoria
sintética do século XXI afastar-se-á consideravelmente da que foi elaborada há umas poucas décadas, mas o
seu processo de aparição terá mais de evolução que de cataclismo”.
270 Filosofia da Natureza

Em terceiro lugar, devem estar presentes, em cada fase da evolução, as


condições que possibilitem a atualização dessas virtualidades.
Uma analogia que pode ajudar a compreender o problema é a de uma obra
escrita (uma novela, um romance ou uma obra de qualquer outro gênero). Para
que a obra possa existir, é necessário que exista uma linguagem escrita; por­
tanto, um alfabeto ou conjunto de sinais dotados de um significado concreto e
certas regras que determinem a união destes sinais em palavras e frases dotadas
de sentido. É necessário, além disso, que se unam as letras, as palavras e as frases,
formando um conjunto inteligível. Caso se trate de uma obra de qualidade,
também será necessário que o conjunto e cada uma das suas partes possua
harmonia, unidade, interesse e elegância.
De modo semelhante, para que os organismos que conhecemos tenham
podido produzir-se mediante um processo evolutivo, é necessário que existam os
componentes básicos do nível físico-químico (as partículas e forças funda­
mentais); que estes componentes possuam umas propriedades específicas que
permitam a formação de sucessivos níveis de organização (núcleos, átomos,
moléculas, macromoléculas) até chegar aos primeiros seres vivos; e que, no nível
biológico, possam ser produzidas novas combinações que conduzam a novas
formas de organização. Conhecemos o resultado: uma escala de seres vivos, com
uma organização enormemente sofisticada, que culmina no homem; portanto, as
virtualidades que estavam presentes desde o princípio nos componentes básicos
devem ser muito específicas. Por fim, em cada passo evolutivo devem ter-se dado
umas circunstâncias precisas e uma cooperação que tornou possível que os
diferentes fatores fossem integrados para produzir novas estruturas.
Portanto, as teorias evolucionistas não explicam tudo. Apóiam-se em
alguns pressupostos ou condições de possibilidade: a existência de uma matéria
e de umas leis muito específicas, cujas virtualidades permitiram a sucessiva
produção de toda uma série de organismos que formam uma escala enormemente
variada cujo resultado final é o organismo humano.
Se estas reflexões prolongam-se, conduzem finalmente ao problema da
criação divina do mundo. A ciência pode estudar como se originam umas
entidades a partir de outras, mas não consegue explicar a sua própria existência
do mundo e as suas propriedades básicas. Pode-se dizer, portanto, que o pro­
blema da criação é um problema metafísico que transcende a possibilidade do
método científico e que se refere às condições necessárias para a evolução.
Afirmamos que entre evolução e criação inexiste contradição; e, além
disso, que a reflexão sobre as condições de possibilidade da evolução conduz
ao problema da criação. Neste âmbito, subsistem alguns equívocos que se devem
a duas posturas extremadas. Por um lado, a que defende um evolucionismo que,
Os viventes 271

indo além do que a ciência permite afirmar, nega a criação ou a ação divina no
mundo, e por outro, a de alguns fundamentalistas religiosos que, em nome da
Bíblia, negam a possibilidade da evolução biológica. Mas ambas as posições
são ilegítimas: nem a ciência pode negar a ação divina, nem a religião é
competente para refutar argumentos verdadeiramente científicos.

b) Evolução e finalidade

A evolução relaciona-se também com o problema da finalidade. Com


efeito, a existência de uma série de níveis de organização cada vez mais
complexos e sofisticados que culminam no organismo humano sugere a
existência de uma “orientação” ou “direção” no processo evolutivo. Portanto,
se buscamos as causas que permitem compreender de modo completo a evolução,
surge a pergunta sobre a existência de um plano superior que governa a evolução.
Em determinadas ocasiões afirmou-se que existe uma “ortogênese global”,
ou seja, uma “tendência evolutiva” que conduziu aos resultados que conhecemos
e que, portanto, é possível provar cientificamente que a evolução está “diri­
gida”147. Desde já, é evidente que, de fato, existe uma série de níveis de orga­
nização na qual, nem sempre, mas sob alguns aspectos importantes, se pode
distinguir um progresso na organização; e também é evidente que este fato requer
uma explicação. Contudo, não parece possível concluir que exista uma tendência
que tenha conduzido necessariamente aos resultados que conhecemos; por um
lado, porque o nosso mundo é contingente, e, por outro, porque, mesmo se afir­
mássemos a existência de um plano divino, este plano pode incluir avanços e
retrocessos, explosões de vida e extinções em massa: nada obriga a identificá-
lo com um processo linear e sempre progressivo.
Nega-se com frequência a existência do plano divino argumentando,
precisamente, que o processo evolutivo não é sempre progressivo, ou seja, que
inclui êxitos e fracassos (por exemplo, a maioria das espécies foi extinta);
acrescenta-se que muitos resultados evolutivos não parecem corresponder a um
plano divino, mas a adaptações oportunistas; e sublinha-se, além disso, que o
acaso desempenha uma função importante no processo, o que não parece

147. Pierre Teilhard de Chardin tentou provar que existe na evolução uma direcionalidade ascendente.
Os seus argumentos baseiam-se na existência de níveis crescentes de organização, que culminam no sistema
nervoso e na cerebralização, e encontram-se unidos a um aumento progressivo da consciência. Sobre esta
base, considerou-se autorizado a afirmar, como se fosse uma conclusão científica, que a evolução está
“dirigida". Cfr. TEILHARD DE CHARDIN, P. Elfenômeno humano. Madrid: Taurus, 1967, págs. 173-178.
Trata-se de uma versão teísta do “impulso vital" de Bergson. Cfr. BERGSON, H. La evolnción creadora,
Madrid: Espasa-Calpe, 1985 (original de 1907).
272 Filosofia da Natureza

compatível com a existência de um plano. Entretanto, estas dificuldades seriam


somente com patíveis com um plano com pletam ente “lin ear” , sempre
progressivo, que se desenvolve de modo completamente necessário; mas já se
assinalou que não existe motivo para pensar que o plano divino deva ser ajustado
a este modelo: antes, é congruente pensar que, se Deus quis produzir os seres
vivos mediante um processo evolutivo, este processo incluirá todas as
contingências próprias de um gigantesco processo que se desenvolve ao longo
de uma duração muito grande e contém muitos fatores aleatórios.
Em outros casos, diz-se que a existência de um plano divino seria
incompatível com o espírito científico, que busca explicar os fenômenos
mediante causas naturais. Na realidade, a ação divina não só é compatível com
as leis naturais, como as fundamenta e possibilita a sua atuação; além disso,
permite compreender a racionalidade de um processo evolutivo que, se fosse
devido somente a forças cegas, ficaria envolto em um grande mistério.
O questionamento acerca da existência de um plano divino encontra-se
fora do alcance das teorias evolucionistas: a ciência pode estudar o fato e as
modalidades de evolução, mas a possível existência de um plano divino
sobrepõe-se às possibilidades do seu método. Consequentemente, os mesmos
motivos que impedem de afirmar cientificamente a existência de um plano
superior, impedem também de negar a sua existência em nome da ciência.
Todavia, os conhecimentos proporcionados pelas ciências convidam a abordar
a pergunta acerca do plano divino.
Compreende-se, portanto, que a Jacques Monod, prêmio Nobel em 1965,
que afirmou que “o homem sabe agora que está só na imensidão indiferente do
universo de onde emergiu por acaso”, Christian de Duve, também prêmio Nobel,
em 1974, tenha replicado: “Isto é, por suposto, um absurdo. O que o homem sabe
- ou, ao menos deveria saber - é que, com o tempo e a quantidade de matéria
disponível, nem sequer algo que se assemelhasse à célula mais elementar, para não
nos referirmos já ao homem, poderia se organizar por um acaso cego se o universo
não os houvesse levado já em seu seio”148.

c) Evolução e emergência

Para que exista a evolução, devem existir umas causas proporcionadas.


Neste sentido, uma objeção clássica contra a evolução consiste em afirmar que

148. DU DUVE, Christian. La célula viva, Barcelona: Labor, 1988. pág. 35. Encontram-se interessantes
reflexões em torno desta temática cm: MeMULLIN, Ernan, “Contingência evolutiva y finalidad dei cosmos”,
iu Scripta Theologica, 30 (1998). págs. 227-251.
Os viventes 273

o mais não pode surgir do menos, ou seja, que o efeito não pode ser superior
em perfeição à causa. Como se explica que, ao longo do processo evolutivo,
produzam-se novas perfeições que antes não existiam?
A emergência de novas perfeições explica-se, em primeiro lugar, pela
integração de diferentes fatores em um novo sistema unitário. De fato, no nível
físico-químico existem muitos processos nos quais se formam novos sistemas
dotados de caracteres holísticos e propriedades emergentes. No nível biológico,
as mutações genéticas provocam mudanças na informação genética e, se são
viáveis, produzirão novas características. As mutações têm causas determinadas
e o desenvolvimento do programa genético é a causa das novas características.
Assim se explica que possam aparecer novidades nos organismos.
No entanto, as novidades estruturais estão unidas, no nível biológico, a
modos de ser peculiares, a uma “interioridade” cuja realização com a
“exterioridade” estrutural é um tanto misteriosa: as tendências dos seres vivos
e o psiquismo do animais. Parece indubitável que exista um paralelismo entre o
grau de organização e a interioridade dos seres vivos; e também é claro que, à
medida que se avança no conhecimento das estruturas biológicas, determinam-
se melhor os aspectos concretos deste paralelismo. Contudo, a interioridade dos
seres vivos continua sendo objeto mais de admiração que de compreensão.
É lógico que as teorias evolucionistas encontrem limites neste âmbito. As
explicações científicas são tanto mais rigorosas quanto mais diretamente possam
ser comprovadas mediante o controle experimental; mas é difícil submeter a
interioridade dos seres vivos ao controle experimental: a ciência deve se
contentar em estudar as conexões entre esta interioridade e as estruturas espaço-
temporais que se relacionam com ela.

d) Evolução e ação divina

Podemos concluir que a evolução biológica não só é compatível com a


ação divina, mas também que a ação divina nos situa numa perspectiva muito
adequada para compreender as condições que possibilitam a evolução.
Alguns autores afirmam que a combinação das mutações ao acaso com a
seleção natural basta para explicar o todo: as mutações são a fonte da
variabilidade; a seleção é a fonte da ordem, porque é um filtro que permite
somente a passagem dos organismos mais dotados; e não há razão para recorrer
a outras explicações. Em alguns casos, estes autores pretendem somente
sublinhar que a filosofia e a teologia não deveriam invadir o terreno científico.
Todavia, em outros casos nega-se a legitimidade da filosofia e da teologia, e
sustenta-se, explícita ou implicitamente, que a ciência não dá margem para
274 Filosofia da Natureza

interrogações filosóficas ou teológicas: estas interrogações corresponderiam a


perguntas mal formuladas, porque o único método legítimo de estudo da natureza
seria o método científico. Neste último caso, defende-se uma posição tipicamente
cientifi cista149.
A tese segundo a qual as mutações genéticas e a seleção natural
proporcionam uma explicação completa e suficiente da evolução enfrenta sérias
dificuldades. Com efeito, embora a seleção natural possa desempenhar uma
função na formação da ordem da natureza, não pode ser a causa própria desta
ordem. A seleção consiste em deixar passar certos candidatos e fechar as portas
a outros e, neste sentido, produz-se uma situação mais ordenada. No entanto,
para poder selecionar uns candidatos, é necessário que existam previamente: é
impossível que sejam selecionadas umas propriedades positivas se não foram
produzidas previamente. Em todo caso, as propriedades devem ser produzidas
mediante causas próprias: os olhos, o cérebro, o radar dos morcegos e a
informação genética são o resultado de causas positivas, não do filtro da seleção.
Poder-se-ia dizer que essas causas são as mutações genéticas, que não
são produzidas de modo finalista (não são dirigidas a um fim), mas ao acaso.
No entanto, esta afirmação, ainda que contenha uma parte de verdade, pode ser
também uma fonte de equívocos se interpretada como uma explicação completa.
De fato, ainda que se produzam muitas situações aleatórias, poucas seriam
viáveis, concretamente aquelas que possam ser integradas funcionalmente a um
programa muito complexo que já está atuando. O fato de existir a possibilidade
destas sucessivas integrações, enormemente sutis, que conduzem a níveis
crescentes de complexidade, deixa a porta aberta aos questionamentos acerca
das virtualidades, das tendências e sua explicação última, e inclusive convida a
formular estes problemas.
Em último termo, a combinação de mutações e seleção pode explicar
alguns aspectos da produção dos seres vivos, mas é insuficiente como explicação
total dos aspectos holísticos, direcionais e cooperativos que existem na evolução.
Quando se nega a legitimidade das interrogações filosóficas em nome da
ciência, adota-se uma perspectiva cientifícista, segundo a qual existe somente
um caminho para conhecer a natureza: o que é utilizado pela ciência experimen­
tal. Na realidade, o cientificismo corresponde a motivações que não são cientí-
ficas, mas filosóficas ou mesmo teológicas. No caso da evolução, geralmente
corresponde ao desejo de afirmar, como fosse uma conclusão científica ou

149. Jacques Monod, prêmio Nobel pelos seus trabalhos em biologia, é um exemplo paradigmático desta
atitude (cfr. a sua obra El azar y Ia necesictad, Barcelona: Barrai. 1971), que foi defendida posteriormente
com grande vigor por Richard Dawkins, professor de biologia na Universidade de Oxford, em sua obra El
relojero, Barcelona: Labor, I9NX.
Os viventes 275

baseada na ciência, que as explicações proporcionadas pelas teorias da evolução


não deixam nenhum lugar para um Deus criador e providente150.
Entretanto, esta afirmação é falsa; apresenta-se como científica quando,
na realidade, não o é. O cientificismo equivale a um reducionismo que nega
arbitrariamente a legitimidade dos problemas que não cabem em seus estreitos
moldes151.
Já chamamos a atenção que, em outras ocasiões, afirma-se que as teorias
evolucionistas são suficientes, não por se negar a legitimidade dos problemas
filosóficos, mas porque se deseja evitar a introdução de discussões filosóficas
no campo científico152. Neste caso, não se adota uma posição cientificista; só
se pretende distinguir o que pertence à ciência e o que corresponde a outras
perspectivas. Esta distinção é razoável e mesmo necessária, e em nada se opõe
à nossa conclusão. No entanto, do ponto de vista científico e epistemológico é
discutível que as teorias atuais sejam suficientes para explicar completamente
a evolução, ainda que se restrinjam ao nível das explicações científicas. Parece,
aliás, que permanecem muitos e importantes aspectos por explicar.
Contudo, o que interessa aqui é sublinhar que, independentemente das
conquistas científicas, para se atingir uma perspectiva completa sobre a evolução,
as explicações científicas devem ser completadas considerando as dimensões
metafísicas do problema, referentes especialmente à criação do universo e à

150. O caso de Dawkins é claro. Seu livro destina-se a mostrar que não é necessário recorrer a Deus
para explicar a evolução. Foi dito que a existência de um relógio remete necessariamente a um relojoeiro,
mas Dawkins pretende mostrar que bastaria o recurso à seleção natural, que é um “relojoeiro cego": "A seleção
natural, o processo automático, cego e inconsciente que Darwin descobriu, e que agora sabemos que é a
explicação da existência e forma de todo tipo de vida com um propósito aparente, não tem nenhuma finalidade
em mente. Não tem mente nem imaginação. Não planifica o futuro. Não tem nenhuma visão, nem previsão,
nem vista. Se se pode dizer que cumpre uma função de relojoeiro na natureza, esta é a de relojoeiro cego...; o
‘desenhista’ é a seleção natural inconsciente, o relojoeiro cego...; nossa hipótese atual é que o trabalho foi
feito pela seleção natural, em estágios evolutivos graduais”. El relojero ciego, op. cit., págs. 4, 27 e 28.
151. Também neste aspecto é paradigmático o caso de Dawkins. Afirma que, se existe alguma coisa
complexa que não entendemos ainda, poderemos chegar a compreendê-la em termos de partes mais simples
que já compreendemos; e acrescenta que, se um engenheiro, ao proporcionar explicações deste tipo, “começasse
a aborrecer-se dizendo que o conjunto é maior que a soma das partes, o interrompería: Isto não me importa,
diga-me só como trabalha”. Cfr. DARWK1NS, R. El Relojero ciego, op. cit., pág. 9. Evidentemente, esta
posição é um reducionismo, como o próprio Darwkins o reconhece (ainda que pretenda justificar seu enfoque
dizendo que admite uma hierarquia de níveis naturais): leva em conta somente as explicações em termos dos
componentes e dofuncionamento, e deixa de lado qualquer pergunta filosófica. E legítimo circunscrever-se a
um método particular; mas quando nega-se que exista aquilo que não pode ser estudado mediante este método,
chega-se a uma perspectiva incompleta e arbitrária.
152. Encontra-se um exemplo deste tipo em: DELSOL, M. et alii. “Le hasard et la sélection expliquentíls
Tévolution? Biologie ou métaphysique”, in Lavai théologique et philosophique, 50 (1994), págs. 7-41. Os
autores afirmam que o neo-darwinismo explica completamente a evolução no nível científico, o que é discutível;
mas afirmam ao mesmo tempo a legitimidade das interrogações filosóficas sobre a evolução e proporcionam
uma base para elas, sobretudo quando sublinham com ênfase a existência de potencialidades muito específicas
na natureza como condição da evolução.
276 Filosofia da Natureza

existência de um plano divino que o governa. Isto não se opõe em nada à ciência,
pois a afirmação da ação divina que dá o ser a tudo o que existe na natureza e a
governa, possibilitando o desenvolvimento dos dinamismos naturais e da
produção de novidades emergentes, não se refere aos mecanismos concretos
estudados pelas ciências, mas ao seu fundamento radical: situa-se num nível que
é diferente ao das ciências e que as complementa.

29.4 A origem do homem

O problema das origens alcança seu ponto culminante quando se considera


a origem do homem. É lógico que seja assim, não só porque é o problema que mais
diretamente nos afeta, mas também porque, embora pertençamos ao nível natu­
ral, possuímos também dimensões espirituais que o transcendem.
Consideraremos a seguir, em primeiro lugar, o processo de hominização,
que se refere à origem evolutiva do organismo humano, e em segundo lugar,
analisaremos as características especificamente humanas e sua relação com o
processo evolutivo153.
a) O processo de hominização
É frequente referir-se à possível origem do organismo humano a partir
de outros seres vivos dizendo que “o homem provém do macaco”. Obviamente,
esta afirmação, em seu teor literal, é falsa: o homem não provém de nenhum
dos primatas que existem na atualidade e nenhum cientista afirma tal coisa. O
que as teorias evolucionistas afirmam é a existência de um remoto antepassado
comum de quem proviriam tanto o homem como os pongídeos ou símios
antropóides (chimpanzé, orangotango e gorila).
Discute-se sobre a identidade e as características deste antepassado
comum e também sobre a sua antiguidade; poderia ter existido há uns 20 milhões
de anos. E também se discute quando se separaram as respectivas linhas; os
avanços na biologia molecular conduzem a datas mais recentes do que se estimou
anteriormente. Tampouco existe unanimidade acerca da separação dos diferentes
ramos: existem várias hipóteses que são objeto de debate científico, ainda que
em geral se admita que o chimpanzé seja o antropóide mais próximo do homem.
Quanto à filogenia dos hominídeos, que conduz até o homem atual,
geralmente se aceita a seguinte sequência: “Australopithecus” (4 milhões de

153. Um bom resumo dos dados científicos acerca da hominizaçâo. junto com interessantes reflexões
acerca dos aspectos filosóficos e teológicos, que incluem uma proposta original do autor, encontra-se em:
JORDANA, R. “El origem dei hombre. Estado actual de Ia investigación paleoantropológica”. in Scripta
Theologica, 20 (1988). págs. 65-99.
Os viventes 277

anos), “Homo habilis” (entre 2,5 e 1 milhão de anos), “Homo erectus" (entre
1,6 milhões e 200 mil anos), “Homo sapiens” (130 mil anos). O homem atual
existiría há cerca de 30 mil anos.
Todavia, com relação aos detalhes concretos, também existem
dificuldades e diferenças de opinião entre os cientistas154. Definitivamente, as
dificuldades para se reconstruir a origem do homem continuam sendo grandes,
o que não impede a existência de um consenso científico generalizado sobre a
existência do processo em seu conjunto. Entre os cientistas existe uma
unanimidade quase total acerca do fato, ou seja, da origem do homem atual a
partir dos antepassados mencionados, junto com importantes discrepâncias
acerca das explicações concretas, ou seja, quando e como se originaram os
diversos ramos e quando se pode dizer que um fóssil concreto corresponde a
um ser humano em sentido pleno.
Por exemplo, está claro que o “Australopithecus” não era um ser propria­
mente humano, mas as opiniões divergem quando se trata de indicar qual seria
o primeiro ser verdadeiramente humano: alguns sugerem que seria o “homo
habilis”, ainda que possuísse uma capacidade craniana muito inferior à do
homem atual155, e outros se inclinam, ao contrário, por seres muito posteriores.
O estudo do DNA mitocondrial, que é herdado por via materna, foi
utilizado para sustentar que, segundo a genética, uma mulher africana de 200
mil anos foi nosso antepassado comum; os seus descendentes teriam substituído
outros humanos primitivos que existiam em outros lugares. Na realidade, estes
dados parecem conduzir somente a uma povoação concreta, não a uma mulher
individual. Entretanto, alguns paleontólogos não compartilham esta conclusão156.

154. Sobre este tema, cfr. WASHBURN, S. L. “La evolución de la especie humana”, na obra coletiva
Evolución, Barcelona: Labor, 1982, págs. 128-137; PILBEAM, D. “Origem de los hominídeos y homínidos”,
in Investigación y ciência, n. 92, maio de 1984. Ainda que ao longo das pesquisas aumente a quantidade de
dados, Pilbeam conclui: “ao mesmo tempo, aumentaram as dúvidas sobre o grau de confiança que pode inspirar
qualquer relato da evolução humana. Que precisão e que confiabilidade podem alcançar estas reconstruções?
Os diversos estágios primitivos da evolução humana apresentam-se a nós, por enquanto, de digestão muito
dura”. Estas dificuldades subsistem na atualidade: é muito difícil obter conclusões seguras e consensuais sobre
os detalhes do processo de hominização.
155. Esta opinião encontra-se em: JORDANA, R. “El origem Del hombre. Estado actual de la
investigación paleoantropológica", op. cit. A capacidade craniana do “homo habilis" poderia chegar aos 775
centímetros cúbicos, frente aos 1.345 do “homo sapiens”; todavia, sugeriu-se que possuía as bases fisiológicas
necessárias para poder falar e, portanto, poderia possuir as principais características humanas. Cfr. TOB1AS,
P. V. “Recent Advances in the Evolution of the Hominids with Especial Reference to Brain and Speech”, in
CHAGAS, C. (editor), Recent Advances in the Evolution ofPrimates, Città dei Vaticano: Pontifícia Academia
Scientiarum, 1983, págs. 85-140.
156. Ambas as posições estão expostas em Investigacióny ciência, n. 189, junho de 1992: WILSON.
A. C. e CANN, R. L. ("Origen africano recientede los humanos”, págs. 8-13) argumentam a favor; T1IORNE,
A. G. e WOLPOFF, M. II. (“Evolución multirregional de los humanos”, págs. 14-20) argumentam contra.
278 Filosofia da Natureza

Não parece fácil que se esclareçam completamente as incógnitas


mencionadas, ainda que os futuros avanços da ciência possam proporcionar
dados que no momento estejam indisponíveis.
b) Homem e animal
Os aspectos controversos da teoria evolucionista sempre se centraram,
de modo particular, em tomo das diferenças entre o homem e os demais animais.
O ponto principal de discussão é se o homem possui uma natureza essencialmente
superior ao do resto dos animais ou somente se trata de uma diferença de grau.
Estas controvérsias têm uma longa história, pois remontam a Charles
Darwin. Em A origem das espécies de 1859, Darwin não desenvolveu
amplamente o tema do homem. Abordou-o em 1871, em sua obra A descendência
do homem e a seleção sexual, cujos capítulos III e IV têm como título
Comparação das faculdades mentais do homem com as dos animais inferiores.
Desde o início, Darwin enuncia a sua tese básica, segundo a qual, sob o ponto
de vista das faculdades intelectuais, não existe nenhuma diferença fundamental
entre o homem e os mamíferos superiores. Depois de examinar as principais
características humanas, incluindo a linguagem, o pensamento abstrato, o sentido
moral e a religião, Darwin conclui que, por mais considerável que seja a diferença
entre o homem e os animais superiores, trata-se somente de uma diferença de
grau e não de espécie.
A discussão segue na atualidade. Por exemplo, Stephen Jay Gould afirma
que a diferença entre o homem e o animal é somente uma diferença de grau, e
acrescenta: “estamos tão atados à nossa herança filosófica e religiosa que
continuamos buscando algum critério de divisão estrita entre as nossas
capacidades e as do chimpanzé... Foram postos à prova inúmeros critérios e, um
após o outro, fracassaram. A única alternativa honrada é admitir a existência de
uma estrita continuidade qualitativa entre nós e os chimpanzés. E o que é que
perdemos com isso? Tão somente um antiquado conceito de alma, para ganhar
uma visão mais humilde, ao mesmo tempo exaltante, de nós mesmos e de nossa
unidade com a natureza” 157.
Sem dúvida, existe uma continuidade entre o homem e os demais animais.
Mas, mesmo se admitirmos que o organismo humano provenha de outros
organismos através da evolução, as características especificamente humanas
continuam sendo reais: basta pensar no conhecimento intelectual, na capacidade
de auto-reflexão, na capacidade de argumentar, no sentido da evidência e da
verdade, na liberdade, nos valores éticos.

157. GOULD, S. J. Desite Darwin, Madrid: 1lermann Blume, 19X3. pág. 53.
Os viventes 279

Na realidade, o problema não está na busca de algum critério capaz de


mostrar que existe uma diferença básica entre o homem e os demais animais. É
muito claro que existe esta diferença, tal como pode demonstrar, por exemplo,
uma reflexão sobre os pressupostos e implicações da ciência.
Com efeito, é interessante notar que a ciência, em cujo nome às vezes se
quer apagar a diferença essencial entre o homem e os demais animais, é uma
das provas mais claras de que tal diferença existe, já que a ciência só é possível
porque o homem possui uma capacidade teórica e argumentativa que não se
encontra em outros seres vivos.
c) A espiritualidade humana
A singularidade humana corresponde a certas dimensões que costumam
ser denominadas espirituais para distingui-las das condições materiais. A
espiritualidade humana significa que o homem possui características que
transcendem as condições materiais.
Alguns parecem pensar que é preciso criticar as teorias evolucionistas se
se pretende sustentar a espiritualidade do homem. Contudo, os problemas acerca
do espírito apresentam-se também ainda que não se prescinda do evolucionismo.
Com efeito, sabemos com certeza que o organismo de cada um de nós começou
como uma célula; a partir de então, uma célula humana viva programada para
produzir todo o nosso organismo: mas, ao fim e ao cabo, uma célula. Portanto,
quando se afirma que temos dimensões espirituais, transcende-se o nível
biológico. Tanto se pensamos em cada ser humano atual, como se nos referimos
à origem dos primeiros seres humanos, a afirmação da espiritualidade humana
baseia-se na existência de características específicas, seja qual for a origem do
nosso organismo.
As dimensões espirituais exigem um substrato real, que se costuma
denominar alma. Além disso, se se leva em conta que transcendem o âmbito do
natural, exigem uma intervenção especial de Deus, mediante a qual cria a alma
humana espiritual. Esta afirmação não se opõe em nada às leis naturais nem ao
espírito científico; simplesmente se afirma que, juntamente com as dimensões que
podem ser estudadas pela ciência experimental, existem outras (as espirituais) que,
por transcender o âmbito natural, também transcendem o âmbito das ciências. Mas
são dim ensões reais, que devem ser adm itidas para explicar os dados da
experiência e a existência da ciência.
Finalmente, pode ser oportuna uma referência ao monogenismo, ou seja,
à doutrina segundo a qual todos os homens procedem de um único e primeiro
casal. Às vezes afirma-se que, se a evolução fosse admitida, o monogenismo
seria insustentável e deveria se afirmar o poligenismo, ou seja, a origem a partir
280 Filosofia da Natureza

de um conjunto de seres humanos primitivos. Entretanto, o assunto é mais


complexo. O poligenismo não é tão simples como parece à primeira vista. Teriam
chegado a ser verdadeiramente humanos diferentes seres ao longo de toda uma
época? Desde já, não possuímos nenhuma prova científica a esse respeito. No
âmbito estritamente científico, é difícil chegar neste terreno a conclusões definiti­
vas. Mas é interessante perceber que, desde o ponto de vista da ciência, não há
nenhuma razão que force a admitir que a origem do organismo humano pela
evolução implicaria o poligenismo e não existe nenhuma dificuldade de princípio
para explicar a origem da humanidade atual a partir de um único e primeiro casal.

29.5 As fronteiras do evolucionismo

As fronteiras da ciência experimental encontram-se nos limites do controle


experimental. As realidades e dimensões espirituais, por princípio, não podem
ser submetidas ao controle experimental. Isso, porém, não significa que não se
possa provar a sua realidade, mas que as provas que se requerem são de caráter
metafísico: apóiam-se nos dados da experiência, mas utilizam o raciocínio para
estabelecer as condições de possibilidade do que conhecemos mediante a
experiência.
Se aplicarmos essas ideias às teorias evolucionistas, destacam-se três
problemas básicos que se encontram além das suas fronteiras.
O primeiro é a criação do universo. Em sentido estrito, a criação refere-
se à produção de algo que antes não existia absolutamente. Esta questão
ultrapassa totalmente o alcance da ciência. Como poderia ser controlada
mediante experimentos ou observações? Seria necessário observar o nada ou a
própria criação: mas ambos são impossíveis de serem observados. Portanto, o
problema da criação pertence ao âmbito da metafísica. Pode-se provar que deve
ter ocorrido a criação: mas os raciocínios que a apóiam encontram-se além das
possibilidades da ciência experimental.
O segundo é o problema da alma humana. Somente pode submeter-se ao
controle experimental o que é material e, portanto, o que segue as leis da matéria.
Os experimentos sempre requerem a observação através dos nossos sentidos e
de instrumentos. Mas o espírito não é visto, nem pode ser submetido a
experim entos científicos. O espírito é in terioridade, personalidade,
autoconsciência, amor, liberdade. Todos sabemos bem o que tudo isso significa.
O espírito é o que conhecemos melhor; foi objeto de estudos profundos desde a
Antiguidade, enquanto que demorou milhares de anos para começarmos a
conhecer a matéria com certo detalhe. O espírito é completamente real e todos
temos experiência contínua de nossas dimensões espirituais. Mas não se pode
Os viventes 281

observá-lo submetendo-o ao controle experimental próprio das ciências.


Portanto, extrapola ilegitimamente as fronteiras das teorias da evolução se são
estendidas até o âmbito do espírito, seja para afirmá-lo ou negá-lo.
O terceiro é o problema da ação de Deus no mundo. As ciências formulam
leis acerca do mundo, mas a existência do mundo e das suas leis não depende
da nossa ciência. A natureza tem um dinamismo próprio. Podemos intervir para
provocar transformações, mas sempre de acordo com as leis naturais. A ciência
apóia-se neste dinamismo e nestas leis: se não existissem, tampouco existiria a
ciência. E o método da ciência experimental não lhe permite decifrar qual é a
chave da existência da natureza, do seu dinamismo e das suas leis. A reflexão
metafísica permite afirmar que esta chave se encontra na ação de Deus, que dá
o ser e conserva no ser tudo o que existe, lhe dá suas leis próprias e torna possível
o funcionamento da natureza. Não tem sentido negar esta ação divina em nome
da ciência. Trata-se de uma questão que ultrapassa as suas fronteiras.
Outros problemas fronteiriços são os que se referem à finalidade e ao
acaso. Sobre estes temas as ciências podem se pronunciar, mas são problemas
que somente podem ser tratados com rigor a partir uma perspectiva filosófica.
Por exemplo, os partidários do denominado princípio antrópico sublinham que
a existência do homem é possível porque as leis básicas da física e as sucessivas
estruturas nos níveis físico, químico e biológico são muito específicas; sem
dúvida, estas considerações são úteis para examinar a finalidade natural, mas
devem ser completadas com reflexões que permitam abordar o problema da
finalidade em seu nível próprio, que é filosófico.
Afirmar que as ciências têm fronteiras não significa menosprezá-las. O
progresso das ciências depende, em grande parte, da deliberada eleição de um
método particular que se limita a estudar as dimensões do natural que podem se
relacionar com o controle experimental.
Por outro lado, a perspectiva metafísica permite compreender em toda a
sua profundidade o significado da natureza na vida humana, coisa que não é
possível se adotarmos um reducionismo naturalista. A aparente exaltação da
ciência e da natureza por parte do cientificismo e do naturalismo conduz, se
desenvolvida de modo inconsequente, a uma visão empobrecida na qual se perde
o significado autêntico da vida humana, que fica reduzida a um acidente dentro
de um processo evolutivo carente de finalidade. Ao contrário, a perspectiva
metafísica fundamenta uma visão da natureza que se enquadra dentro das
dimensões antropológicas e éticas da existência humana.
283

C apítulo XI

Origem e sentido da natureza

A partir deste momento, examinaremos os problemas que se referem à


origem e ao sentido da natureza, levando em conta os conhecimentos
proporcionados atualmente pelas ciências. E como conclusão para esta obra,
consideraremos a relação que existe, por um lado, entre a natureza e a pessoa
humana, e por outro, entre a natureza e Deus.

30. A origem do universo

Desde a Antigüidade existiram cosmogonias que pretendiam representar


a história do universo, mas careciam de uma base científica adequada. Ao mesmo
tempo, abordava-se o problema filosófico acerca da explicação última do
universo158.
Na Idade Moderna formularam-se algumas hipóteses científicas que foram
consideradas como precursoras das idéias atuais. Kant propôs que o universo
teria se formado a partir de uma nebulosa primitiva159. Esta hipótese foi utili­
zada mais tarde por Laplace, que sugeriu que o Sol teria se formado por contração
e resfriamento de uma nebulosa incandescente, que os planetas teriam se
originado a partir de fragmentos desprendidos do Sol e que os satélites provi­
ri am dos planetas160. Tais explicações deixavam intacto o problema da criação
do universo, referindo-se unicamente aos processos físicos que não substituíam
a criação161. No entanto, dispunha-se ainda de um conhecimento muito limitado
sobre a composição do universo e era muito difícil submeter estas teorias a provas
empíricas.
Apenas há pouco tempo atrás é que se formularam, pela primeira vez na
história, teorias científicas rigorosas acerca da origem e da evolução do universo.
Estas teorias renovaram o interesse pelos problemas filosóficos acerca da criação.

158. Um amplo estudo sobre este tema, que inclui a sua história, os dados científicos e as oportunas
reflexões filosóficas, em: SANGUINETI, Juan José. El origen dei universo. A cosmología en busca de la
filosofia, Buenos Aires: Educa, 1994.
159. Em sua História geral da natureza e teoria do céu, ou seja, o estudo da constituição e origem
mecânica do universo, conforme os princípios newtonianos, obra publicada de modo anônimo em 1755.
160. Em sua obra Exposição do sistema do mundo, publicada em 1796.
161. Por exemplo, Kant admitiu, na obra mencionada, que existe uma finalidade no universo que implica
a existência de um Criador.
284 Filosofia da Natureza

30.1 A cosmologia científica

A cosmologia científica, ramo da física que estuda a origem do universo,


é relativamente recente. As provas da existência de galáxias distintas da nossa
chegaram a ser concludentes só por volta de 1920 e o modelo da Grande Explo­
são não foi completamente aceito até 1964.
O modelo da Grande Explosão fundamenta-se na teoria da relatividade
geral, formulada por Einstein em 1915. As equações desta teoria permitem
calcular o movimento local da matéria sob a ação da gravidade e, por este motivo,
são apropriadas para descrever o universo em grande escala, já que, sob esta
perspectiva, o universo é um sistema físico composto por objetos com grande
massa - as estrelas e as galáxias - separados por grandes distâncias, e a evolução
dos sistemas é determinada pela força da gravidade.
Einstein aplicou sua teoria ao universo em seu conjunto em 1917. O
modelo resultante era um universo dinâmico (que evolui com o tempo), mas
Einstein, desgostoso com essa idéia, modificou-a, introduzindo, de modo
arbitrário, uma constante, cuja conseqüência era proporcionar um modelo
estático do universo (afirmou mais tarde que este teria sido o pior erro de toda a
sua vida). Os trabalhos de Wilhelm de Sitter em 1916-1917 e de Alfred
Friedmann em 1922-1924 supunham, ao contrário, um universo dinâmico, idéia
que se impôs quando Edwin Hubble formulou em 1929 a lei que leva o seu nome,
segundo a qual as galáxias se afastam umas das outras com uma velocidade
proporcional à sua distância relativa (quanto maior é a sua distância, tanto maior
é a velocidade de afastamento)162.
A primeira versão do modelo da Grande Explosão foi formulada por
Georges Lemaître, astrônomo e sacerdote católico belga, em 1927. A sua
hipótese supunha que o universo tivesse se formado a partir da explosão de uma
espécie de átomo primitivo e coincidia com a lei de Hubble em postular a
explosão do universo. George Gamow reformulou a teoria em 1948. No entanto,
o modelo da Grande Explosão não foi aceito pela maioria dos cientistas de modo
imediato. Também em 1948, Hermann Bondi e Thomas Gold formularam um
modelo diferente acerca do universo, a teoria do estado estacionário. Segundo
esta teoria, o universo apresenta o mesmo aspecto em qualquer época, e, para
explicar a sua expansão, haveria uma criação contínua de matéria, de modo que,
quando as galáxias separam-se, forma-se matéria nova entre elas: para manter a

162. A lei de Hubble apóia-se na interpretação da variação até o vermelho dos espectros das galáxias como
resultado do efeito Doppler. O comprimento das ondas de luz - e, portanto, a cor - varia com a velocidade relativa
da fonte luminosa. As componentes da luz enviada por um objeto luminoso deslocam-se para o azul se o objeto
estiver se aproximando e para o vermelho, se estiver se afastando.
Origem e sentido da natureza 285

densidade constante, bastava a criação de um miligrama de matéria por metro


cúbico a cada bilhão de anos. Durante vários anos, os modelos da Grande
Explosão e do estado estacionário apresentavam-se como hipóteses alternativas.
Até 1960, a origem do universo era ainda uma questão da qual poucos cientistas
se ocupavam, e os modelos existentes eram estudados quase como uma
curiosidade.
A situação mudou quando, em 1964, Arno Pensias e Robert Wilson
descobriram a radiação de f undo de microondas, cujas características eram
congruentes com os prognósticos do modelo da Grande Explosão. Desde então,
este modelo passou a ser aceito pelos cientistas e o modelo do estado estacionário
foi praticamente abandonado. A confiabilidade progressiva do modelo da Grande
Explosão deve-se também à comprovação de outros prognósticos que surgem
deste modelo. Concretamente, o modelo proporciona uma explicação coerente
com a expansão do universo, propõe uma idade do universo que está de acordo
com os estudos acerca da idade dos seus componentes e os seus prognósticos
sobre a abundância relativa dos átomos ligeiros no universo vão ao encontro dos
dados observados.
Desde 1981, o modelo da Grande Explosão foi completado com a teoria
do universo inflacionário proposta por Alan Guth, que se refere à enorme
expansão que teria acontecido, durante brevíssimos instantes, imediatamente
após a Grande Explosão, produzindo efeitos muito importantes em relação à
posterior evolução do universo.
Segundo o modelo da Grande Explosão, a evolução do universo teria
seguido um esquema que, de modo simplificado e aproximativo, seria o seguinte.
O universo tem uma idade de uns 15 bilhões de anos. A princípio, a matéria
encontrava-se concentrada num estado de enorme densidade e temperatura.
Como consequência da explosão, produziu-se uma expansão, acompanhada de
um esfriamento progressivo. No primeiro segundo, a temperatura era de uns 10
bilhões de graus Celsius; havia então somente radiação e alguns tipos de
partículas, entre as quais ocorreri am interações muito violentas. Ao final de uns
três minutos, a diminuição da temperatura permitiu a nucleossíntese ou formação
dos núcleos dos elementos mais ligeiros. Transcorridos uns 300.000 anos,
quando a temperatura havia baixado a uns poucos milhares de graus, produziu-
se a recombinação ou formação de átomos; então, a radiação de fótons separou-
se da matéria e expandiu-se livremente, de maneira igual em todas as direções
e, com o resfriamento ocorrido com o transcurso do tempo, deu lugar à radiação
isótropa “fóssil” que Penzias e Wilson detectaram pela primeira vez. Mais tarde,
a força gravitacional provocou a condensação de grandes massas, nas quais se
produziram reações termonucleares; assim se formaram as estrelas e as galáxias.
286 Filosofia da Natureza

Nas reações nucleares no interior das estrelas formaram-se os átomos mais


pesados que, disseminando-se pelo espaço nas explosões de estrelas, são o
material a partir do qual se formaram planetas como a Terra.

30.2 A criação: física e metafísica

Os novos conhecimentos científicos não contribuíram somente para a


formulação de uma nova imagem do mundo; provocaram também uma nova
apresentação do problema da criação.
a) A criação como problema metafísico
Com o modelo da Grande Explosão, pela primeira vez na história
dispomos de cálculos verossímeis acerca da idade do universo. Entende-se que
isto suscite novas discussões sobre o problema da criação: com efeito, se
podemos adjudicar uma idade concreta ao universo, parece alcançar-se uma
demonstração científica da criação. De fato, o modelo do estado estacionário
foi utilizado, em certas ocasiões, para evitar que se atribuísse ao universo uma
idade limitada, com as conotações que isto parece ter a favor da criação.
Entretanto, a física não pode determinar a idade do universo de modo
absoluto. Ainda que se afirme, por exemplo, que o universo provém de uma
espécie de átomo primitivo, pode-se perguntar ulteriormente pela origem deste
átomo e pode-se supor que tenha se formado a partir de estados físicos anteriores.
Em seu próprio nível, o físico pode sempre postular, ainda que seja como
hipótese, a existência de estados físicos anteriores a qualquer estado do universo.
Portanto, a cosmologia científica não pode demonstrar a criação do universo.
O problema da criação não se refere à origem de um estado físico a partir
de outro, mas ao fundamento radical do universo, ou seja, à produção de seu ser.
A ciência experimental estuda as transcrições entre estados físicos e a sua
perspectiva não permite o estudo do fundamento radical do universo. Portanto, a
física não pode se pronunciar acerca de Deus nem da criação, pois é inviável
abordar estes problemas com argumentos científicos. Definitivamente, a criação
não é um problema físico, mas metafísico. O problema filosófico da criação
consiste em determinar se o universo pode ser auto-suficiente ou se, pelo contrário,
é necessário afirmar que se tenha produzido por uma causa que lhe deu o ser.
O cristianismo afirma a criação divina do universo a partir do nada
(segundo a expressão clássica latina, ex nihilo)163. Isto significa que a criação

163. Cfr. Catecismo de Ia Iglesia católica, Madrid: Asociación dc Editores dei Catecismo, 1992, ns.
279-301.
Origem e sentido da natureza 287

divina produz totalmente o ser, sem se apoiar em algo preexistente: não é uma
simples transformação de algo que já existia164.
É lógico perguntar-se se a criação do universo é somente um conteúdo da
fé religiosa ou se, além disso, pode ser provada racionalmente. A doutrina católica
afirma que a existência de Deus criador, princípio e fim de todas as coisas, pode
ser conhecida com certeza à luz da razão natural a partir das coisas criadas, de tal
modo que a inteligência humana pode encontrar por si mesma uma resposta à
questão das origens165.
As provas racionais da criação remetem, em última análise, a um dilema:
ou o universo é auto-suficiente, ou seja, existe por si mesmo e não há nada fora
dele que explique a sua existência, ou remete a uma causa que é diferente do
universo, que o produziu e lhe deu o ser. A primeira possibilidade é, na realidade,
impossível; com efeito, se o universo fosse auto-suficiente, deveria possuir
características divinas que, contudo, não possui. Os seres materiais são
limitados, mudam, geram-se e corrompem-se: têm um ser que não dá a razão
completa de si mesmo. Estas dificuldades não se solucionam recorrendo a uma
cadeia infinita, ou seja, supondo que o universo tenha existido sempre; de fato,
a insuficiência do material para dar razão de si mesmo subsiste ainda que as
cadeias causais se multipliquem indefinidamente: não se trata de um problema
de número, mas de qualidade. O modo de ser dos não-viventes implica que não
podem ser auto-suficientes e, para estes efeitos, é indiferente considerar somente
um ser, alguns seres ou uma série indefinida de seres.
Portanto, o universo físico remete a uma causa superior que lhe tenha
dado o ser. Somente um Deus pessoal pode possuir as características próprias
da divindade. Os seres particulares, limitados, mutáveis, remetem a um Ser que
possui o ser por si mesmo e que, por este motivo, pode dar o ser a outros seres,
de modo limitado e particular: é o que se denomina “participação do ser”. Não
significa que as criaturas tenham uma parte do ser divino, mas que possuem de
modo parcial e limitado o ser, recebido de Deus.
Para afirmar a criação divina do universo, pouco importa quando e como
tenha começado a existir. Em relação ao quando, o universo deve ser criado,
independentemente de sua duração: os raciocínios que conduzem à criação não
têm nada a ver com o problema da duração. Em relação ao como, também é
irrelevante; deve-se afirmar a criação tanto se o universo foi uma ínfima bolha

164. Cfr. GOTTIER, G. “La doctrine de la création et le concept de néant”, inActa Philosophica, 1 (1992),
págs. 6-16.
165. Cfr. DENZINGER, H. e SCHÕNMETZER, A. Enchiridion symbolorum, defínitionum et
deelarationum de rebus fidei et morum. 36a. ed., Barcelona-Freiburg-Roma: Herder, 1976, ns. 3004 e 3026;
( 'atecisnw de la Iglesia católica, op. cit., n. 286.
288 Filosofia da Natureza

quântica em seus começos, como se já então tivessem existido entidades e


processos muito mais organizados. De todos os modos, ambas as questões provo­
caram amplos debates e, por este motivo, serão analisadas mais detidamente a
seguir.
b) Começo temporal e criação
Não parece possível demonstrar que o universo tenha uma idade limitada,
porque sempre se pode supor, ainda que de modo hipotético, a existência de
períodos anteriores a qualquer estado concreto do universo. Isto foi sublinhado
por Kant na primeira antinomia cosmológica de sua Crítica da razão pura, que
versa sobre a indemonstrabilidade científica da finitude ou infinitude temporais
do universo. Vários séculos antes, Tomás de Aquino já havia enfrentado o
problema de modo radical quando, em seu opúsculo Acerca da eternidade do
mundo, afirmou que, se nos ativéssemos somente aos argumentos racionais, não
poderíamos excluir uma duração indefinida do universo: só conhecemos que não
aconteceu dessa forma pela revelação sobrenatural166.
Tomás de Aquino perguntou-se se é possível que um ser criado tenha
existido sempre; examinou os argumentos contrários e, depois de refutá-los,
concluiu que somente conhecemos a origem temporal do universo por meio da
revelação. De modo definitivo, sublinhou que o problema da criação do uni­
verso não se identifica com o de sua origem temporal, de tal maneira que se pode
conhecer racionalmente que o universo tenha sido criado por Deus, ainda que
não se possa provar somente pela razão que tenha um começo no tempo: o cristão
conhece a origem temporal do universo somente pela revelação divina167. Em
todo caso, duração indefinida não equivale à eternidade em sentido estrito; a
eternidade consiste na posse perfeita do ser, acima do tempo e da duração, e dá-
se só em Deus, enquanto que a duração dos sistemas naturais se refere à
existência sucessiva própria de um modo de ser temporal e mutável168.
Desde já, caso fosse possível provar que o universo teve um começo
absoluto antes do qual não existia, dever-se-ia afirmar que o universo foi criado;
mas não parece possível tal prova. No entanto, independentemente do problema
do começo temporal, o universo não é auto-suficiente e isto basta para estabelecer
que deva ter sido criado por Deus.

166. Cfr. SARANYANA. J. I. "Santo Tomás: «De aetemitate mundi contra murmurantes»”, in Anuário
Filosófico, 9 (1976), págs. 399-424.
167. Neste contexto, Tomás de Aquino acrescentou que se o cristão afirma a origem temporal do universo
mediante argumentos racionais, poderia dar ocasião de troça ao não-crente que conhece a ilegitimidade de
tais argumentos. Cfr. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 46, a. 2, c.
168. Além do opúsculo citado, pode-se ver: TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 44. a. 1 I, q.
45, aa. 1 e 2; I, q. 46, aa. I e 2 , Suma conta os gentios, II. c. 38.
Origem e sentido da natureza 289

Nenhuma das provas que Tomás de Aquino propôs para demonstrar a


existência de um Deus criador supõe que o mundo teve um começo. Entretanto,
nas discussões acerca da criação, ambas as idéias estão freqüentem ente
associadas. Este modo de raciocinar leva facilmente a equívocos. Por este motivo,
é importante sublinhar que não se pode identificar o problema da origem temporal
do mundo com o da sua criação: o problema da criação do universo refere-se ao
fundamento radical do seu ser e pode ser resolvido sem levar em conta o problema
da duração.
c) O início do universo

Segundo o modelo da Grande Explosão, o universo existe há 15 bilhões


de anos em um estado primitivo cujo estudo parece remeter a uma singularidade
na qual não se aplicariam as leis ordinárias da física. Diferentes hipóteses foram
propostas para abordar o estudo deste estado inicial. Trata-se de um problema
difícil e, no momento, nem ao menos é seguro que os modos atuais de abordá-
lo sejam corretos.
De acordo com uma hipótese que goza de certa aceitação, o universo teria
começado a existir como uma espécie de “bolha quântica”; dito de modo mais
técnico, como uma “flutuação do vazio quântico”. Esquematicamente, esta
proposta afirma que as flutuações quânticas da mudança gravitacional teriam
produzido estruturas espaço-temporais, a partir das quais se produziram
partículas materiais mediante as flutuações do vazio quântico; por fim, o resto
do universo se produziu a partir destas partículas, de acordo com as leis físicas169.
Esta hipótese encontra-se numa fase muito especulativa. Remete à
“gravidade quântica”, teoria que pretende unificar a física quântica e a gravi-
tacional, acerca da qual existem sérios problemas e não poucas discrepâncias170.
Contudo, é possível que o universo tenha começado a existir em um estado muito
tênue, quase imperceptível, tal como propõe esta hipótese.
Ao contrário, não tem sentido utilizar esta hipótese para afirmar uma
presumível autocriação do universo, ou seja, uma autêntica criação, mas sem
C riador171. Que sentido pode ter tão estranha possibilidade, que parece

169. Cfr. ANDRESCIANI, D. "Lo studio dell'origine delEunverso nel contesto delia cosmologia
quantistica”, in Excerpta e dissertationibus in Philosophia, vol. II, Pamplona: Facultad Eclesiástica de Filosofia
Universidade de Navarra, 1993, págs. 9-88.
170. Cfr. ISHAM, C. J. “Quantum Theories of the Creation of the Universe”, in RUSSELL, R. J.,
MURPHY, N. e ISHAM, C. J. (editores) Quantum Cosmology and the Laws ofNature, Vatican City State:
Vatican Observatory Publications, 1993, p. 49-89.
171. Propostas deste tipo podem ser encontradas, por exemplo, em: DAV1ES, Paul. God and the NewPhy-
sics, London: Dent, 1983; SMITH, Quentin. “TheUncausedBeginningofthe Universe”, in Philosophy o f Scien­
ce, 55 (1998), págs. 39-57: ATKINS, Peter W. Cómo crearelmundo, Barcelona: Grijalbo Mondadori, 1995.
290 Filosofia da Natureza

contraditória e realmente o é? Algumas reflexões acerca dos conceitos físicos


permitem perceber os equívocos implicados nesta proposta.
Em primeiro lugar, é importante notar que geralmente na física se fala da
criação da matéria em um sentido impróprio e que este fato pode induzir à
confusão. Com efeito, uma das conseqüências da teoria especial da relatividade,
formulada por Einstein em 1905, é a equação que estabelece a equivalência entre
massa e energia; quando ocorrem certos fenômenos aos quais se aplica esta
equação, costuma-se falar de criação de partículas a partir da energia ou, no
processo inverso, de aniquilação de um par de partículas e produção de energia.
Na realidade, estes são processos físicos, nos quais ocorrem as transformações
análogas às de qualquer outro processo físico, e não têm sentido tomar aqui o
termo criação em seu sentido filosófico ou teológico, isto é, como criação a
partir do nada.
Por outro lado, o conceito físico de vazio (que, aparentemente, é próximo
ao conceito de nada), refere-se a estados físicos concretos. De fato, os físicos
distinguem distintos tipos de vazio, segundo as teorias e métodos empregados;
fala-se, por exemplo, do vazio clássico e do vazio quântico. Portanto, não se
pode identificar o vazio com o nada) 12.
O vazio quântico é um estado físico de estrutura complexa. O seu estudo
corresponde à física quântica, âm bito no qual existem interpretações
discrepantes, sobretudo acerca da causalidade. Às vezes, afirma-se que há no
mundo quântico acontecimentos sem causas; mas trata-se de uma confusão que
surge somente quando determinismo e causalidade são identificados um com o
outro: uma vez desfeito o equívoco, é fácil reconhecer que todo processo,
também no nível quântico, exige a existência de causas que expliquem a sua
produção, ainda que talvez se trate de uma causalidade não determinista.
A relatividade geral, base para os modelos cosmológicos, interpreta a força
da gravidade como uma curvatura do espaço-tempo; por este motivo supõe, de
certo modo, uma geometrização dafísica. No âmbito da gravidade quântica, que
pretende unificar a relatividade geral e a física quântica, fala-se de defeitos
topológicos que explicariam o aparecimento de estruturas espaço-temporais.
Deste modo um tanto confuso, diz-se que poderiam ocorrer flutuações quânticas
mediante as quais apareceriam, de modo incausado, estruturas espaço-temporais,
a partir das quais posteriormente se produziriam partículas materiais. No entanto,
sem negar o interesse científico dos defeitos topológicos, não é difícil perceber172

172. YAN, Philip. “Aprovechamiento energético dei punto cero”, in Investigacióny ciência, n. 257,
fevereiro de 1998, págs. 42-45. Na página 42 lê-se: “a energia do vazio é bem real. Segundo a física moderna o
vazio nàoéo nada".
Origem e sentido da natureza 291

que a existência de espaço-tempo sem matéria e a aparição de matéria a partir


do puro espaço-tempo - se se utilizam estes conceitos em seu sentido habitual
- não têm sentido.
Se os equívocos mencionados são reunidos, chega-se a sustentar a possível
autocriação do universo. Contudo, esta proposta baseia-se em extrapolações
ilegítimas173:pretende-se extrair dafísica algo que esta ciência, por seu próprio
método, é incapaz de oferecer, pois as suas idéias somente podem ter significação
empírica desde que exista algum procedimento para relacionar com experimentos
reais ou possíveis, e isto não acontece quando se considera o problema da origem
absoluta do universo a partir do nada. O método seguido para obter estas
conclusões consiste em atribuir às teorias físicas sobre o espaço, o tempo, a
matéria, a energia e o vazio um sentido metafísico que não possuem, já que estas
idéias são definidas na física de acordo com teorias matemáticas e dados experi­
mentais, aplicáveis a entidades, propriedades ou processos físicos. De nenhum
modo estas conclusões podem ser aplicadas a um evento como a criação a partir
do nada que, pela sua própria natureza, não é um processo que relaciona um
estado físico com outro estado também físico174.
As propostas que apresentam a autocriação do universo como uma
possibilidade científica são apenas uma das manifestações atuais da fé
pseudocientífica do naturalismo. O problema propriamente científico é
totalmente diferente. Neste âmbito, compete à ciência dizer se a distante história
do universo remete a um fenômeno quântico quase imperceptível ou a outros
estados diferentes. No momento, não é fácil proporcionar argumentos sólidos a
este respeito.

30.3 Implicações da criação

Agora, vamos abordar algumas implicações da criação, que nos ajudarão


a situar o seu verdadeiro sentido, a sua relação com as teorias científicas e as
suas conseqüências para conseguirmos uma compreensão completa da natureza.

173. Encontram-se análises críticas desta proposta em CRAIG, William L. "God, CreationandMr. Davies",
in The British Journalfor the Philosophy o f Science, 37 (1086),págs. 163-175; ARTIGAS, Mariano. "Física y
creación: ei origen dcl universo". Scripta Theologica, 19 (1987), págs. 347-373 e"Explicación física yautocrea-
ción dei universo” in AA. VV. Et hombre: inmanenciay trascendencia, Pamplona: Servicio de Publicaciones
de la Universidadde Navarra, 1991, págs. 109-129; CARROLL, William. "Big Bang Cosmology, Quantum
Tunnelling fromNothing, andCreation", in Lava! Théologique et Philosophiqite, 44 (1988), págs. 59-75.
174. Não é pouco frequente, contudo, que boas exposições científicas destes temas se misturem com
reflexões filosóficas que dào a impressão de levar a física para além de suas possibilidades, tal como acontece,
por exemplo, em: HALL1WELL, Jonathan J. “Cosmologíacuánticay creación dei universo”, in Investigación
y ciência, n. 185, fevereiro de 1992, págs. 12-20.
292 Filosofia da Natureza

Necessita-se da criação para fundamentar o ser do criado; não se refere a


um aspecto particular das coisas criadas, mas à totalidade do que elas que são. O
ser do criado depende radicalmente de Deus, não só para começar a existir, mas
totalmente: por conseguinte, a ação divina é necessária para fundamentar o ser
criado, mesmo quando este ser já chegou à existência. A ação divina fundante
estende-se a tudo o que existe e aos novos seres que são produzidos mediante os
processos naturais. Portanto, a criação do universo não pode ser um simples “ponto
de partida” de algo que logo é suficiente por si só.
A criação não é necessária somente para explicar que algo tenha começado
a ser. A ação divina estende-se a tudo o que é, se produz, se conserva e se origina.
O ser limitado do criado remete ao Ser que tem o ser por si mesmo e que, por­
tanto, pode dar o ser às criaturas sem perder nada do que é. E, se levarmos em
conta que o Deus criador tem de ser infinitamente sábio, poderoso e bom (porque
possui a plenitude do ser), com preende-se que o universo criado deve
corresponder a um projeto divino: deve ser racional e governado por Deus.
Não se pode pensar que a ação divina é apenas um meio para explicar
alguns aspectos da natureza que não são explicados de outro modo; é uma
exigência da própria existência da atividade natural em todos os seus aspectos.
A criação divina não corresponde à falsa imagem de Deus que foi denominada
o “deus dos buracos” (g o d o f the gaps), ou seja, não é um recurso para “tapar os
buracos” da nossa ignorância; é uma exigência rigorosa à qual se chega quando
se pretende explicar racionalmente a existência do natural.
Além disso, a ação divina não interfere no natural em seu próprio nível:
fundamenta-o. Não é uma causa que se situa na linha das causas naturais, por
excelente que seja; ao contrário, possibilita a existência de todas as causas
naturais e seus efeitos. A afirmação da ação divina fundante não tira a impor­
tância do natural nem o substitui; precisamente, é esta ação divina que dá o ser
a todo ser natural, com o seu dinamismo próprio e as suas virtualidades.
É fácil perceber que a criação divina implica a adoção de uma perspectiva
muito específica acerca do natural e que, conforme se admita ou se negue esta
criação, chega-se a idéias completamente diferentes acerca do ser e do significado
do natural.
Por exemplo, a criação divina permite compreender não só a existência
do universo, mas o seu caráter racional, concretamente, a existência de uma
informação na qual o dinamismo e a estruturação se entrelaçam de tal maneira
que os sucessivos desenvolvimentos do dinamismo produzam sistemas cada vez
mais organizados e, em último termo, o sistema total da natureza com todos os
seus níveis que culminam no organismo humano. Se não admitimos a criação
divina, resta-nos afirmar que a organização do sistema da natureza é o resultado
Origem e sentido da natureza 293

acidental de forças cegas, o que é completamente inverossímil. Ainda que


existissem forças que pudessem ser qualificadas como cegas e ainda que se
admitisse que as coincidências acidentais desempenham uma parte importante
no desenvolvimento dos processos naturais, afirmar que estes fatores são as
últimas chaves explicativas equivaleri a a negar a existência de uma explicação
racional coerente para uma natureza penetrada pela racionalidade em todas as
suas dimensões175.

31. A finalidade na natureza

A finalidade natural ocupa um lugar central na reflexão acerca da natureza.


Desde a Antigüidade até os nossos dias, as principais diferenças de opinião na
filosofia da natureza referem-se, em grande parte, a este problema. Os “finalistas”
afirmam que existe uma direcionalidade na natureza que deve ser interpretada
como finalidade; esta exposição corresponde à atitude natural do homem frente
à natureza e junta-se facilmente com a afirmação de uma providência divina que
governa o curso dos fenômenos naturais. Ao contrário, os “antifinalistas” negam
que exista finalidade na natureza ou, ao menos, que possamos conhecê-la, e
costumam rechaçar a existência da providência divina; seus argumentos
pretendem se apoiar, com freqüência, no progresso das ciências.
Vamos delimitar, primeiramente, o que se entende por “finalidade
natural”. Depois, analisaremos as dimensões finalistas que existem na natureza.
A seguir, tentaremos mostrar que existe finalidade na natureza, determinando o
seu alcance, e examinaremos as implicações da cosmovisão atual em relação
ao problema da finalidade natural.

31.1 O conceito de finalidade

A noção de “fim” tem três sentidos principais: “término de um processo”,


“meta de uma tendência” e “objetivo de um plano”.
Em primeiro lugar, o fim designa o “término” de algo. Quando se trata
de entidades, o fim refere-se aos seus limites (o final de um livro ou de um

175. Por exemplo, Edgar Morin afirma que a organização da natureza teria surgido de um caos, concebido
à maneira do fogo de Heráclito: um “caos original de onde surge o logos”. MORIN, E. El Método. I. La
naturaleza de Ia Naturaleza, Madrid: Cátedra. 1991,págs. 76-78. Morin parece identificar o estado primitivo
do universo e, em geral, o mundo microfisico, com um caos em sentido estrito. No entanto, esta identificação
é muito problemática, porque o mundo microfisico, também em um estado primitivo, deve possuir as
virtualidades cuja atualização provocou a formação de estruturas mais organizadas. A física supõe que sempre
existem leis e, de fato. consegue formulá-las; ante a reflexão filosófica é inverossímil que a organização atual
da natureza provenha de um caos propriamente dito. carente de qualquer tipo de estrutura e leis.
294 Filosofia da Natureza

caminho, por exemplo). Quando se trata de processos que são desenvolvidos


no tempo, o fim designa a última fase com o qual terminam ou finalizam (por
exemplo, o final da leitura de um livro ou do percurso de um caminho). Estes
dois fins são aspectos de uma mesma realidade, considerada em seu aspecto
estático ou dinâmico; o final de um processo é uma entidade ou, em geral, um
estado de coisas a que se chega através do processo. Aqui, interessa-nos sublinhar
o dinamismo e a atividade; neste sentido, a finalidade significa “término de um
processo”.
Em segundo lugar, o fim é a “m eta”para a qual “tende” uma ação ou
um processo. Este sentido agrega-se ao primeiro: nem todo término é uma meta,
mas toda meta é o término de uma tendência. O conceito de finalidade é muito
relacionado com o de “tendência”, que serve como critério para reconhecer a
existência da finalidade. Neste sentido, a finalidade significa “meta de uma
tendência”.
Em terceiro lugar, quando o término é alcançado mediante uma ação
voluntária, o fim é a meta de um projeto deliberado, o “objetivo” que é buscado
mediante a ação. Este terceiro sentido supõe os dois primeiros e lhes acrescenta
a intenção do sujeito. Os seres vivos irracionais são capazes de atuar deste modo,
seguindo suas inclinações naturais. No caso dos sujeitos inteligentes e livres,
capazes de se proporem objetivos, este sentido da finalidade identifica-se como
o “objetivo de um plano”.
As nossas atenções serão centradas na finalidade do segundo tipo, tal como
existem na atividade dos seres naturais que não está provocada pelo
conhecimento, ou porque são seres que não possuem nenhum tipo de conheci­
mento ou porque são processos que, embora existam em seres capazes de
conhecer, se realizam de modo automático, sem que o conhecimento intervenha.
As nossas reflexões limitar-se-ão às ações e processos que não são o resultado
de um plano deliberado por parte do agente; portanto, à finalidade objetiva de
tipo tendencial. Deixam os de considerar ações que dependem de um
conhecimento prévio e, inclusive, as ações instintivas dos animais. Adotamos
esta abordagem por dois motivos: em primeiro lugar, porque a análise destas
ações exigiria que adentrássemos no terreno da etologia, o que nos afastaria do
nosso propósito; além disso, porque desejamos apresentar o problema da
finalidade natural no terreno mais próximo da comprovação empírica.
A finalidade opõe-se ao acaso. Dizemos que algo acontece por acaso
quando é o resultado de coincidências acidentais, não previstas, que não
correspondem a uma causa determinada. Ao contrário, a finalidade implica a
existência de tendências que explicam os efeitos; o efeito deve-se diretamente
a causas próprias e não à coincidência acidental destas causas.
Origem e sentido da natureza 295

31.2 Dimensões finalistas da natureza

Existem três dimensões que resumem as principais manifestações da


finalidade natural: a direcionalidade, a cooperação e a funcionalidade. A
direcionalidade refere-se à existência de tendências nos processos naturais. A
cooperação refere-se à capacidade que as entidades e os processos naturais
possuem para se integrar em resultados unitários. E a funcionalidade expressa
que muitas partes da natureza possibilitam, com sua atividade, a existência e a
atividade dos sistemas de que fazem parte.
a) Direcionalidade
Consideremos, em primeiro lugar, a direcionalidade. Os processos
naturais não se desenvolvem de modo arbitrário. Ao contrário, partem de
entidades típicas e desdobram-se de acordo com pautas dinâmicas. O dinamismo
natural desenvolve-se seguindo “vias privilegiadas”. Desde já, existe uma grande
variedade de possíveis processos em função da concorrência dos diferentes
dinamismos, mas os processos giram em tomo de pautas específicas: assim como
assinalamos anteriormente, na natureza, embora nem tudo seja pauta, tudo se
articula em torno das pautas.
Isto acontece desde os níveis ínfimos de organização até os mais
complexos. No nível fundamental, as quatro interações básicas possuem uma
intensidade e alguns efeitos bem definidos, e condicionam o desenvolvimento
de todos os processos naturais. Algo semelhante acontece com a atividade dos
átomos e das moléculas e com a atividade bioquímica nos processos da vida.
Quando penetramos nos organismos vivos, a direcionalidade alcança o seu ápice
e é realmente espantosa: o desenvolvimento da informação genética, as
atividades intracelulares, a comunicação entre células, as funções vitais, são
manifestações de uma direcionalidade clara e específica. Na Terra e nas estrelas
também se desenvolvem dinamismos específicos e direcionais. A existência de
pautas dinâmicas, mesmo em processos geralmente qualificados como caóticos,
é cada vez mais evidente.
A ciência supõe a existência de direcionalidade na natureza e busca,
precisamente, determinar as suas modalidades. O seu êxito implica um conhe­
cimento cada vez mais concreto da direcionalidade dos processos naturais.
Podemos afirmar, portanto, que o dinamismo natural se desenvolve de
modo direcional. Isto basta para sustentar uma direcionalidade débil que, mesmo
sendo autêntica, não garante que sejam alcançadas algumas metas determinadas.
Porém, seria possível dar um passo adiante e afirmar a existência de uma
direcionalidade forte, ou seja, que existem tendências para metas concretas?
296 Filosofia da Natureza

Encontramos aqui uma dificuldade notável, porque os desenvolvimentos


concretos do dinamismo natural dependem de circunstâncias muito variadas que,
em grande parte, correspondem a coincidências acidentais. Em outras palavras,
ainda que o dinamismo natural gire em torno de pautas, os resultados do seu
desenvolvimento não estão determinados, porque nos processos ocorrem
diferentes dinamismos e nada garante que se chegue a resultados concretos. Isto
equivale a reconhecer que os resultados não são necessários, mas contingentes.
Nestas condições, como afirmar que existem tendências para metas determinadas?
Esta dificuldade é insuperável se pensarmos em metas que sejam
alcançadas de modo absolutamente necessário. Se a direcionalidade identifica-
se com a existência de algumas tendências que necessariamente conduzem até
metas concretas, deve-se concluir que esta direcionalidade não existe.
À primeira vista, esta conclusão parece destruir a esperança de encontrar
um fundamento para a finalidade natural. Entretanto, não é assim: simplesmente
somos obrigados a introduzir uma matização, com uma importância decisiva na
hora de estabelecer conclusões acerca da existência e do alcance da finalidade
natural. Esta matização refere-se às condições que garantem as metas da
direcionalidade. Existem metas determinadas na medida em que intervêm fatores
que, por assim dizer, “impõem a sua lei”. Em muitos casos, existe uma
organização ou interv êm fatores que, dentro de uma am pla gama de
circunstâncias, garantem a consecução de metas determinadas. Existem muitas
situações nas quais existe uma organização estável e, portanto, tendências para
metas determinadas176.
Pode-se falar, neste sentido, de graus de direcionalidade, em função dos
fatores que intervêm em uma situação; são, por exemplo, simples potencialidades,
capacidades mais próximas de sua atualização ou autênticas tendências que
conduzirão a resultados concretos. Em última análise, são sempre potencialidades
cuja atualização é somente possível, provável ou segura.
b) Cooperação
A cooperação é um tipo particular de direcionalidade. Concretamente, é
uma potencialidade que se refere à integração de diferentes fatores em um
resultado unitário. Ao falar de “resultado unitário”, referimo-nos a sistemas ho-
lísticos, a propriedades emergentes, a novos tipos de dinamismo: ou seja, ao

176. Esta afirmação traz um juízo prévio sobre o problema do indeterminismo. Falamos de tendências,
que são compatíveis com a existência de certo determinismo: na física quântica, que é o âmbito principal de
onde surge este problema, formulam-se leis probabilísticas e as teorias sobre o caos também assinalam
tendências específicas.
Origem e sentido da natureza 297

surgimento de novos tipos de estruturação que não se reduzem à simples


justaposição dos fatores iniciais.
O conhecimento de muitas modalidades de cooperação na natureza é um
dos principais resultados do progresso científico recente, no qual a sinergia ou
ação cooperativa se destacam especialmente.
Os sistemas holísticos, que se formam graças à ação cooperativa dos seus
componentes, ocupam uma posição central em todos os níveis da natureza. No
mundo microfísico, os prótons, nêutrons e elétrons integram-se de acordo com
interações específicas, formando os átomos, cujos elétrons se dispõem em níveis
de energia também muito específicos, determinando as propriedades químicas
dos átomos e, portanto, a sua capacidade de integração em sistemas maiores. A
partir deste nível, existem muitos outros tipos de cooperação que alcançam seu
ponto culminante nos organismos dos seres vivos.
A cooperação possibilita a morfogênese ou produção de pautas holísticas
específicas e está na base da especificidade da natureza.
Se a cooperação for considerada desde a perspectiva diacrônica das teorias
evolucionistas, é fácil perceber que as sucessivas integrações conduzem a novos
tipos de organização que, por sua vez, abrem novas possibilidades e fecham
outras. Quanto mais se avança na organização, abrem-se novas brechas que antes
não existiam. Neste sentido, pode-se sublinhar a inconsistência de algumas
críticas que se opõem à evolução sob o argumento de que é sumamente
improvável que coincidam ao acaso todos os componentes de um novo
organismo ou todas as variações que fazem falta para que surja um novo órgão.
Efetivamente, a improbabilidade é enorme caso se pense numa mistura ao acaso
de fatores completamente independentes, como aconteceria se letras ou palavras
fossem misturadas ao acaso para compor obra literária; ao contrário, a
probabilidade aumenta de modo notável quando se percebe que os componentes
não são independentes, que existem tendências cooperativas e que cada conquista
abre novas potencialidades cooperativas que anteriormente não existiam e que
são cada vez mais específicas. As probabilidades são ainda maiores se se
considera que, além da simples cooperação, existe um grau m aior de
direcionalidade, no qual podem existir fatores reguladores cujas variações
permitem talvez explicar a produção simultânea de todo um conjunto de
mudanças coordenadas. Este novo grau é a funcionalidade.
c) Funcionalidade
Costuma-se falar de “funcionalidade” para expressar que uma parte
desempenha certo papel dentro de um todo maior. A natureza está organizada
de tal maneira que existem sistemas com uma notável funcionalidade. E pode-
298 Filosofia da Natureza

se também falar da funcionalidade da natureza em seu conjunto, enquanto


proporciona as condições que tornam a vida humana possível.
Há uma relação muito estreita entre estrutura e função, porque a função
de uma parte depende obviamente das suas características estruturais. Em nosso
caso, isto é especialmente relevante, pois nossa análise se concentra na
estruturação natural e esta proporciona a base que possibilita um alto grau de
funcionalidade.
A existência defuncionalidade é patente nos seres vivos. Qualquer tratado
de biologia pode ser considerado como uma exposição sistem ática da
funcionalidade nos seres vivos.
Mas seria possível falar de funcionalidade no nível físico-químico?
Evidentemente, os sistemas deste nível não possuem as características típicas
dos seres vivos e não parece lógico atribuir-lhes o mesmo tipo de funcionalidade.
Assim, são evidentes as funções que desempenham as hemácias, o fígado ou o
sistema nervoso, mas chega a ser paradoxal falar das funções que desempenha
um elétron no átomo ou um átomo na molécula. Os motivos desta diferença são
patentes: um ser vivo possui algumas tendências típicas que se atingem graças
às funções desempenhadas pelos componentes; ao contrário, não parece possível
atribuir tendências semelhantes às entidades físico-químicas.
Apesar disso, pode-se falar também de funcionalidade no nível físico-
químico se se leva em conta a sua dupla integração com o nível biológico: como
componente e como meio ambiente. A funcionalidade dos seres vivos depende
dos seus componentes físico-químicos e o exercício desta funcionalidade
somente é possível quando existe um meio ambiente que proporciona as con­
dições imprescindíveis ou convenientes. No primeiro caso (componentes), pode-
se falar de uma “funcionalidade interna” e, no segundo (meio ambiente), de uma
“funcionalidade externa”.
Podemos avançar com as nossas considerações se considerarmos que
diferentes sistemas naturais se integram em sistemas maiores. Na medida em
que todo um conjunto de entidades naturais pode ser considerado como um
autêntico sistema, pode-se atribuir aos seus componentes uma "funcionalidade
interna”, Esse é o caso, por exemplo, dos ecossistemas, nos quais existem
componentes viventes (as espécies que o habitam) e não-viventes (os fatores
ambientais); da biosfera, cujos componentes se estendem à litosfera, à atmosfera
e aos oceanos, além dos seres vivos; e pode-se mesmo falar do sistema total da
natureza, visto que existem relações de dependência entre muitas das suas partes
(sob a perspectiva evolutiva, estas relações são especialmente fortes).
Com isso, é possível resolver um problema que com freqüência se alude a
propósito da finalidade. Com efeito, muitas vezes se diz que alguns casos de
Origem e sentido da natureza 299

finalidade não são, na realidade, mais que exemplos de uma “utilidade externa”
e não podem ser utilizados para argumentar a favor da finalidade. Esta objeção tem
uma parte de razão; não seria correto, por exemplo, chamar de finalidade “natural”
certas condições climáticas ou de uma vegetação favorável para determinadas
espécies. Contudo, muitos casos de “utilidade externa” convertem-se em casos
de “funcionalidade interna” desde que estas condições englobem, como
componentes, sistemas maiores. Desenvolvendo o exemplo anterior, o clima e a
existência das plantas são condições imprescindíveis para a existência humana;
portanto, caso consideremos os sistemas que incluem a vida humana, trata-se de
componentes aos quais se deverá atribuir uma autêntica funcionalidade interna.
Evidentemente, existem graus de funcionalidade. Por exemplo, algumas
funções dos organismos são completamente necessárias para a sua sobrevivência
e outras, ao contrário, são somente convenientes. Algo análogo ocorre ao
considerarmos sistemas maiores.
A funcionalidade é o aspecto dinâmico da estruturação. A estruturação
dos organismos e das suas partes é o substrato que possibilita a funcionalidade;
isto, por sua vez, é uma manifestação do entrelaçamento entre o dinamismo e a
estruturação. Não é necessário apresentar exemplos: existem por toda parte nos
seres vivos. Ao contrário, é conveniente analisar a funcionalidade dos diferentes
níveis naturais, considerando uns como condição de possibilidade dos outros.
Com efeito, a continuidade dos diferentes níveis significa que uns são
condição de possibilidade de outros (não em todos os seus aspectos, mas em
alguns deles ou em seu conjunto). O nível físico-químico proporciona os
constituintes de todos os demais; o astrofísico proporciona os constituintes do
geológico, que exerce uma função semelhante em relação ao nível biológico;
os níveis astrofísico e geológico proporcionam o meio ambiente necessário para
a existência do biológico; e, no nível biológico, certos organismos são condição
de possibilidade de outros: por exemplo, as plantas são indispensáveis para a
existência de seres vivos heterótrofos, ou seja, de todos os demais seres vivos.
Se contemplarmos agora as condições de possibilidade da vida humana,
perceberemos facilmente que a organização dos níveis naturais adquire um
sentido óbvio. Não pretendemos afirmar que a existência de cada componente
da natureza deve ser explicada em função de conveniências humanas particu­
lares; isto seria um antropocentrismo ingênuo e insustentável. No entanto, existe
um antropocentrismo legítimo, que considera a pessoa humana como o cume
da natureza e reconhece que a existência do homem só é possível porque há uma
grande funcionalidade em todos os demais níveis da natureza. Portanto, se reco­
nhecemos que a vida humana tem um valor, é possível atribuir um significado à
organização da natureza cm função da vida humana.
300 Filosofia da Natureza

Não existe somente uma funcionalidade na natureza, mas uma notável


funcionalidade. Não nos deteremos em exemplos particulares, que são por
demais abundantes; o progresso constante da biologia molecular é suficiente para
notar o enorme grau de sofisticação das estruturas biológicas e da correspondente
funcionalidade177. Trata-se de coordenações que implicam séries inteiras de
processos e que se realizam com uma precisão admirável. Pode-se afirmar que,
em muitos aspectos, a organização funcional da natureza supera amplamente
as realizações humanas em variedade, riqueza, harm onia, eficiência,
simplicidade e beleza.

31.3 Existência e alcance da finalidade natural

Seria possível sustentar que existe finalidade na natureza? Em caso


afirmativo, em que consiste esta finalidade e qual o seu alcance?
Se tivermos em mente as considerações anteriores, não será difícil
responder a estas perguntas. De fato, analisamos a direcionalidade, a cooperação
e a funcionalidade que existem na natureza e agora só nos resta sintetizar os resul­
tados desta análise e examinar as suas implicações.
Existe direcionalidade na natureza, em sentido débil e forte. A existência
de uma direcionalidade débil significa que os processos naturais se articulam
em tomo de pautas dinâmicas e que existem, portanto, tendências gerais cuja
atualização depende dos fatores que intervêm em cada caso. Quando os processos
se desenvolvem em sistemas organizados suficientemente estáveis, existe, além
disso, uma direcionalidadeforte, ou seja, tendências para metas particulares bem
definidas.
Além dessas, existe um tipo especial de direcionalidade que é a coopera­
ção. Tanto as entidades como os processos naturais manifestam uma cooperação
que permite a sua integração em novos resultados unitários, e esta cooperação
estende-se a todos os níveis da organização natural.
Por fim, existe funcionalidade nos sistemas e processos naturais: os com­
ponentes cooperam entre si tomando possível a atividade de cada um deles em seu
conjunto. Essa funcionalidade é patente no caso dos organismos individuais; mas
se estende também a sistemas mais amplos e inclusive ao sistema total da natureza,
devido à continuidade e mútua dependência que há entre os níveis naturais.

177. Jacques Monod, em El azary la necesidad, proporciona inúmeros exemplos, que se multiplicaram
nas décadas posteriores. O que ele nega é que esta funcionalidade corresponda a um plano, mas a sua obra
põe em relevo que, mesmo aqueles que se opõem à ideia de um plano superior admitem a existência de um
grau notável de direcionalidade, cooperação e funcionalidade na natureza e que o progresso científico sublinha,
de modo cada vez mais amplo, a existência destas características da natureza.
Origem e sentido da natureza 301

Quando se considera a natureza como condição de possibilidade da vida humana,


pode-se afirmar a funcionalidade do resto da natureza em relação ao homem.
Essa síntese expressa o significado e alcance da finalidade natural, tal
como a entendemos aqui. Acrescentaremos agora algumas reflexões para deixar
mais preciso o alcance da nossa conclusão.
Poder-se-ia imaginar que a finalidade natural, tal como acabamos de
caracterizá-la, se limita a recolher características da natureza cuja existência é
evidente. De fato, é assim. Existe, sem dúvida, outro problema relacionado com
a finalidade natural: o da sua explicação. Este problema exige ulteriores
considerações, que se estendem até à metafísica e à teologia natural: aludiremos
a elas quando tratarmos do caminho que leva da natureza a Deus. No momento,
limitamo-nos a examinar de modo rigoroso e objetivo as dimensões finalistas
da natureza, para assentar as bases sobre as quais a reflexão posterior possa se
apresentar. Portanto, se a nossa conclusão inclui somente aspectos em que todos
devem coincidir, é um sinal de que conseguimos atingir o nosso objetivo.
Por outro lado, é importante perceber que a direcionalidade, a cooperação
e a funcionalidade são dimensões relacionadas com o modo de ser das entidades
e processos naturais; correspondem ao seu dinamismo e estruturação; não são
algo sobreposto nem tampouco são resultados acidentais: são dimensões
constitutivas do natural. São propriamente modos de agir, que manifestam modos
de ser. A direcionalidade e a cooperação equivalem à existência de potencia­
lidades específicas de tipo tendencial que não se atualizam de modo necessário,
mas em função das circunstâncias. A funcionalidade, por sua vez, corresponde
ao desenvolvimento destas tendências quando se dão as circunstâncias que
permitem a existência de organizações estáveis.
Podemos afirmar, defi nitivamente, que o conceito de finalidade natural,
tal como o delimitamos, representa dimensões reais da natureza; e que estas
dimensões se referem ao modo de agir do natural e, portanto, ao seu modo de
ser. Além disso, estas dimensões devem ser levadas em conta quando se pretende
chegar a uma representação fidedigna da natureza, uma vez que expressam
importantes características do natural: se prescindirmos delas, será impossível
refletir sobre o caráter dinâmico e tendencial da natureza, que conduz a sistemas
cuja organização possui um alto grau de funcionalidade.

31.4 A finalidade natural diante da cosmovisão atual

São três os principais âmbitos nos quais a finalidade natural encontra


desafios e confirmações na cosmovisão atual: a cosmologia, a evolução e a auto-
organização.
302 Filosofia da Natureza

a) Finalidade e cosmologia

O modelo da Grande Explosão e a física atual põem em destaque que a


existência da natureza, tal como a conhecemos, depende de toda uma série de
coincidências e equilíbrios: se a proporção entre matéria e antimatéria no início
do universo tivesse sido ligeiramente diferente, se a massa do nêutron não fosse
ligeiramente superior à do próton ou se não existissem um conjunto de
propriedades físico-químicas muito específicas tanto no presente como no
passado, a vida na Terra e a nossa própria existência não teriam se produzido.
Sobre esta base, propôs-se o que foi denominado princípio antrópico. Em
1955, G. J. Whitrow sublinhou que as explicações científicas que forem
incompatíveis com os resultados que se deram de fato em nosso mundo não são
admissíveis. Robert H. Dicke articulou esta idéia em 1957, argumentando que
os fatores biológicos condicionam os valores das constantes físicas básicas. Em
1974, Brandon Carter propôs a expressão princípio antrópico, afirmando que o
homem não ocupa um lugar central no universo, mas apenas uma posição
privilegiada. John D. Barrow y Franck J. Tipler publicaram em 1986 um livro
no qual expuseram uma ampla defesa do princípio antrópico178.
Costuma-se distinguir uma formulação débil ou moderada do princípio
antrópico, e uma formulação forte.
Em sua versão débil ou moderada, o princípio antrópico afirma que tanto
as condições iniciais do universo como as suas leis têm que ser compatíveis com
a existência da natureza que observamos, compatibilidade que se estende a nós
mesmos. As condições necessárias para a existência da vida humana abrangem
um amplo conjunto de fatores físicos, químicos, geológicos, astronômicos e
biológicos, que são muito específicos. Esta versão moderada limita-se a afirmar
que devem ter-se dado e continuar-se dando as condições necessárias para a nossa
existência, o que é correto. Esta formulação do princípio antrópico pode servir
como um guia heurístico, para excluir, no estudo científico, o que for
incompatível com as características que de fato a natureza possui.
Em sua versão forte, o princípio antrópico postula, de algum modo, a
existência de uma finalidade que abarca todo o processo de formação da natureza.
Não há nada para ser objetado nesta afirmação, desde que seja formulada como
uma reflexão filosófica baseada nos dados proporcionados pelas ciências. Porém,
em determinadas ocasiões, aqueles que defendem algumas das versões fortes
do princípio antrópico parecem tentar apresentá-lo como se fosse uma parte da

178. BARROW, John D. eTRIPLER, Frank J. The Anthropic Cosmological Principie, Oxford: Clarendon
Press, 1986.
Origem e sentido da natureza 303

própria ciência, diante do que, com razão, não poucos cientistas protestam. Em
algumas ocasiões, defende-se uma versão forte do princípio antrópico sem
admitir, no entanto, a existência de um Deus pessoal; daí surgem posições um
tanto confusas, de tipo mais ou menos panteísta.
Em todo caso, o acolhimento que o princípio antrópico teve na atualidade
põe em relevo que é muito difícil deixar de lado as dimensões finalistas da
natureza.
b) A finalidade no nível biológico
Ainda que o progresso da biologia nos leve a conhecer cada vez melhor
as dimensões finalistas da natureza, uma das principais objeções que se
apresentam contra a finalidade natural é a que provém, também no âmbito da
biologia, da teoria da evolução. Embora este tema já tenha sido estudado,
algumas reflexões complementares se fazem necessárias.
A tese evolucionista sustenta que os organismos viventes poderiam ser
explicados a partir da sua origem, por evolução desde formas menos organizadas,
mediante causas eficientes naturais: concretamente, como o resultado da com­
binação de variações aleatórias e seleção natural. As novidades seriam produ­
zidas por acaso e a competência adaptativa motivaria a sobrevivência somente dos
organismos mais adaptados, dando a impressão de um progresso programado.
Segundo uma interpretação difundida amplamente, o evolucionismo
excluiria a finalidade do mundo biológico, que viria a ser o seu último reduto; a
evolução tornaria inútil qualquer explicação finalista, pois a aparente finalidade
dos seres vivos seria explicada mediante a sua origem evolutiva. Além disso, não
se poderia afirmar que o homem é o fim da evolução, já que esta depende de fatores
aleatórios e imprevisíveis. Por fim, a evolução invalidaria também o argumento
teleológico (plano divino), que seria substituído pelas explicações naturalistas (a
combinação do acaso com a necessidade)179. Vamos examinar estas três objeções,
com o objetivo de mostrar que a evolução não elimina a causalidade.
Em primeiro lugar, a evolução não proporciona uma explicação completa
da finalidade natural. Com efeito, não explica que existam na natureza
virtualidades muito específicas, cuja atualização conduz a novas virtualidades

179. Não é necessário abordar com mais detalhes as teorias evolucionistas, pois já o fizemos anteriormente.
Sobre o tema do finalismo, destacam-se as posições cientificistas de Jacques Monod (na obra El azar y la
necesidad) e de Richard Dawkins (na obra El relojero ciego), dois representantes de um antifínalismo que
pretende se apoiar na biologia. Segundo o antifínalismo radical defendido por Monod, a ciência fundamenta-
se no postulado da objetividade, que exclui qualquer “projeto” ou plano superior; se a isto se acrescenta o
cientifícismo, conclui-se (como o faz Monod) que não existe nenhum plano. Dawkins chega à mesma
conclusão, sublinhando o papel diretivo que a seleção natural desempenha no processo evolutivo e sustentando
a suficiência deste fator para explicar a organização atual dos seres vivos.
304 Filosofia da Natureza

também muito específicas, e assim sucessivamente. A evolução é ininteligível


se não se admite a existência de tendências e cooperação. A evolução não explica
em que consiste e de onde provém o dinamismo natural, enormemente específico,
que lhe serve de base. A explicação das origens é somente uma parte da expli­
cação da finalidade. Por outro lado, seja qual for a sua origem, existe nos
organismos um alto grau de finalidade e o recurso ao binômio acaso-seleção não
basta para explicar completamente a produção de uma organização tão sofisti­
cada, coordenada e funcional.
Em segundo lugar, a evolução não é incompatível com o lugar central
que o homem ocupa na natureza. Sem dúvida, o homem como meta da evolução
é um resultado contingente: se consideramos as condições naturais que
possibilitam a existência humana, houve um tempo em que não existiram, haverá
um tempo em que não mais existirão e poderi am não ter existido nunca. Mas o
homem está no cume do processo evolutivo: não sob qualquer aspecto, mas
quanto à sutileza da organização material e, sem dúvida, quanto às dimensões
espirituais que transcendem o âmbito do natural. E nada impede que o homem
seja o fim previsto por um plano superior que, embora atue por meio das
possibilidades naturais, está por cima delas.
Em terceiro lugar, a evolução é compatível com a existência de um Deus
criador e com o plano divino acerca da criação, pois o evolucionismo se situa
em outro nível. Assim o reconhecem quase todos os evolucionistas, ainda que
sejam agnósticos. A evolução seria somente incompatível como uma “criação
estática” (segundo a qual a natureza teria sido criada em seu estado atual) ou
com um “plano linear” (a evolução seria sempre linear, progressiva e perfeita
sob qualquer aspecto). Compreende-se que a compatibilidade entre a evolução
e o plano divino seja negada apenas por alguns fundamentalistas que sustentam
uma interpretação demasiadamente literal do relato bíblico e por alguns cientistas
e filósofos que sustentam posições cientificistas. Pode-se dizer, inclusive, que
o processo evolutivo é dificilmente compreensível se não existe algum tipo de
direção ou plano: este processo supõe a existência de algumas potencialidades
iniciais muito especificas, cujas sucessivas atualizações ao longo de um período
enorme de tempo conduzem a novas potencialidades que novamente são muito
específicas, e isto acontece muitas vezes; além disso, foi necessária a
coincidência de muitos fatores que tornaram possível esta enorme cadeia de
atualização de potencialidades.
c) Finalidade e auto-organização
O novo paradigma da auto-organização, amplamente difundido na
atualidade, abarca um conjunto de teorias diferentes relativas aos diferentes
Origem e sentido da natureza 305

níveis da natureza. A idéia básica é a formação espontânea da ordem a partir de


estados de menor ordem; é a chamada auto-organização.
Este paradigma pode ser sintetizado em poucas palavras do seguinte
modo; a matéria possui um dinamismo próprio que, nas condições adequadas,
dá lugar a fenômenos sinergéticos ou cooperativos, mediante os quais esponta­
neamente se forma uma ordem de tipo superior (mais complexa e mais
organizada). Assim teria se formado o universo com todas as suas partes.
Sublinha-se, portanto, que há na natureza um dinamismo próprio que se
desenvolve de modo direcional. De fato, a auto-organização fundamenta-se na
existência de tendência e de cooperação.
Mas também se sublinha a contingência. A atualização das tendências
depende de circunstâncias aleatórias. Os resultados não são necessários: se as
circunstâncias fossem diferentes, poderiam surgir outros diferentes. A comple­
xidade dos processos reais põe em relevo a contingência das sucessivas etapas
do processo evolutivo.
Um elemento chave no novo paradigma é o protagonismo exercido pela
informação: o dinamismo natural desenvolve-se estruturalmente de acordo com
pautas; este desenvolvimento produz novas estruturas espaciais que, por sua vez,
são fonte de novos dinamismos; e tudo isto funciona mediante uma informação
que é armazenada estruturalmente e se desenvolve mediante processos nos quais
a informação codifica-se e decodifica-se, transcreve-se, traduz-se e integra-se.
A informação é a racionalidade materializada, pois contém e transmite
instruções, dirige e controla, e tudo isto através de estruturas espaço-temporais.
Deste modo, descortinam-se novas perspectivas para a filosofia da
natureza: não é possível somente conservar os principais problemas e resultados
antigos, mas também reformulá-los e ampliá-los em um novo contexto muito mais
rico. Nesta perspectiva, a finalidade ocupa a posição central. De fato, destaca-se
a importância dos fatores dinâmicos, holísticos e direcionais, assim como o papel
que a informação desempenha.
A auto-organização é às vezes entendida como um “pandarwinismo
naturalista” que eliminará definitivamente o problema do fundamento radical da
natureza: a natureza seria auto-suficiente. Todavia, a reflexão rigorosa sobre a
cosmovisão atual não tem nada a ver com esse naturalismo. O grande progresso
da ciência experimental deve-se à adoção de um método que, por sua vez, tem
alguns limites precisos: não estuda tematicamente as dimensões filosóficas da
natureza, mas as supõe e proporciona elementos para que sejam aprofundadas. E
a explicação das dimensões filosóficas remete às perguntas acerca do fundamento
radical da natureza.
306 Filosofia da Natureza

32. Natureza e pessoa humana

Vimos que o natural caracteriza-se mediante o entrelaçamento do dina­


mismo próprio com a estruturação espaço-temporal, que se articula em tomo de
pautas. E percebemos também que esta caracterização permite distinguir o natural
do especificamente humano, cujo dinamismo transcende as estruturas espaço-
temporais. Consideraremos agora a relação da pessoa humana com a natureza.

32.1 A singularidade humana

O homem pertence à natureza, mas, ao mesmo tempo, a transcende.


Encontra-se submerso no mundo físico, mas é um ser pessoal que possui dimen­
sões não-materiais.
a) características da pessoa humana
A pessoa humana, tal como aparece diante da nossa experiência, apresenta
algumas características específicas que a diferenciam do resto dos seres naturais.
Antes de tudo, o homem é uma pessoa, ou seja, um sujeito que pode atuar
voluntariamente, respondendo pelos seus próprios atos. O seu dinamismo próprio
refere-se a um princípio interior ao qual ninguém, exceto a pessoa concreta, pode
responder. As pessoas podem ser substituídas por outras no que se refere à
execução de tarefas concretas, mas ninguém pode substituir a ninguém quando
se consideram as dimensões estritamente pessoais da vida humana: a atuação
ética, a amizade, o amor.
O caráter pessoal do homem relaciona-se com a autoconsciência. A sua
inteligência não se limita a algumas capacidades orientadas para a ação, mas
permite que a pessoa interiorize a sua própria vida e o mundo que a rodeia mediante
a reflexão sobre os seus próprios atos. A imanência humana tem um caráter
intencional, que significa uma abertura que capacita a pessoa para entrar em
relação com o resto dos seres.
A pessoa humana tem um modo de ser e de agir que o colocam acima de
todos os outros seres naturais. 3 conhecimento intelectual, característica
essencial do ser humano, permite que sejam postuladas questões acerca do ser
e do sentido e vincula-se com a capacidade de eleger e de amar. Ao querer e
amar, o homem autodetermina-se de modo voluntário, o que é possível somente
em um ser que possua conhecimento intelectual. A atividade livre fundamenta-
se em juízos de valor, que supõem o conhecimento do bem.
A distância que separa o homem da natureza puramente física é manifesta.
No entanto, o natural-físico é uma parte constitutiva do homem. As dimensões
Origem e sentido da natureza 307

físicas não são algo externo ou acidental na pessoa, mas um dos seus aspectos
básicos. Mas a pessoa não se esgota nas dim ensões natural-físicas. A
peculiaridade do ser humano consiste em que a sua natureza pertence ao mesmo
tempo ao mundo físico e ao mundo espiritual.
A realidade do eu pessoal, dotado de dimensões espirituais, é indubitável.
O problema não consiste em encontrar alguma atividade singular que o
testemunhe. A nossa experiência está cheia desta realidade: a sua negação exige
violentar todo um conjunto de convicções profundas e adotar atitudes práticas
impossíveis. Temos experiência clara e ampla do que significa a espiritualidade:
personalidade, criatividade, capacidade de argumentação e crítica, atuação ética,
liberdade, apreciar os valores, responsabilidade.
O caráter simultaneamente material e espiritual da pessoa humana tem
aspectos difíceis de conceber, mas correspondem fielmente à experiência. O
físico no homem é humano, nunca puramente animal; encontra-se compenetrado
nas dimensões espirituais que lhe são características. Ao mesmo tempo, a vida
espiritual desenvolve-se juntamente com as capacidades psíquicas, biológicas
e físicas. Todo o humano encontra-se encarnado e espiritualizado. O homem é,
ao mesmo tempo, material e espiritual.
b) Criatividade científica e singularidade humana
O progresso da ciência experimental evidencia a existência das dimensões
específicas da pessoa humana. Analisaremos agora o sentido desta afirmação,
referindo-nos à atividade científica, aos seus métodos, aos seus resultados e aos
seus pressupostos ou condições de possibilidade.
A atividade científica destina-se a um duplo objetivo: o conhecimento da
natureza e o seu domínio controlado. Não se busca nenhum dos dois
separadamente, mas uma combinação peculiar deles: trata-se de conseguir um
conhecimento que possa ser submetido ao controle experimental.
O cientista adota uma atitude muito especial diante da natureza. Deseja
conhecê-la, mas encontra uma dificuldade fundamental: a natureza não fala.
Portanto, para conhecer os aspectos da natureza que não aparecem diante da
experiência ordinária, deve encontrar um modo de desvendar os seus “segredos”.
O método científico é, essencialmente, o caminho que o homem encontrou para
interrogar a natureza em busca de respostas às suas perguntas.
O método científico é extraordinariamente sutil e não podemos estranhar
o quanto demorou até que se desenvolvesse sistematicamente; de fato, não se
consolidou até o século XVII. Às vezes afirma-se que o método científico
consiste em observar a natureza, recolher com cuidado os dados e sistematizá-
los em leis. Porém, isso não passa de uma caricatura do método realmcnte
308 Filosofia da Natureza

utilizado nas ciências. Este método consiste em formular hipóteses e submetê-


las ao controle experimental; mas isto só é possível se são utilizados conceitos
que possam ser definidos matematicamente e possam ser relacionados com
procedimentos de medição: poucas exigências que, no entanto, complicam
extraordinariamente o problema.
Para percebê-lo basta pensar nos conceitos científicos mais simples, tais
como a massa, a velocidade, o tempo e a temperatura. Todos temos uma idéia
intuitiva destes conceitos. Entretanto, para que sejam úteis para a ciência,
devemos defini-los de tal maneira que possam fazer parte de relações
matemáticas e, ao mesmo tempo, que possamos atribuir-lhes valores concretos
de acordo com os resultados das medições. Como conseguimos chegar a isto?
Não existem procedimentos automáticos. É necessária uma capacidade criativa,
por um lado, e uma capacidade argumentativa, por outro.
Consideremos o aspecto teórico. Como as magnitudes são somadas? No
caso das massas, a soma é aritmética, pois se trata de uma magnitude escalar.
Ao contrário, as velocidades são magnitudes vetoriais e somam-se de acordo
com a regra do paralelogramo. E as temperaturas não se somam de acordo com
nenhum destes modos. Porém, as regras não são obtidas com uma simples
observação de fatos, nem tampouco mediante um puro exercício mental; é
necessário um trabalho criativo cujos resultados devem ser depois submetidos
ao controle experimental.
Se consideramos o controle experimental, os problemas não são menores.
Para medir, deve-se dispor de unidades, e a definição das unidades conduz a
dificuldades nada triviais. Por exemplo, para determinar os valores do tempo,
devemos dispor de um movimento que se repita periodicamente a intervalos
iguais e tomar como unidade uma fração de sua duração; mas, como poderíamos
saber que um movimento é periódico, se ainda não sabemos medir o tempo? A
dificuldade é real. Se se trata da temperatura, necessitamos de uma lei para medi-
la que relacione os valores da temperatura com os valores de alguma magnitude
que possamos observar diretamente, tal como a dilatação do volume de um
líquido ou de um gás; mas, novamente, como sabemos que esta lei está correta,
se ainda não sabemos medir a temperatura?
Estas dificuldades são autênticas e aumentam consideravelmente quando
consideramos magnitudes mais abstratas, tal como acontece continuamente na
ciência experimental.
Por outro lado, mesmo que já disponhamos de uma boa hipótese e
saibamos medir os valores das magnitudes, como podemos estar seguros,
mediante o controle experimental, de que esta hipótese é verdadeira? Ainda que
comprovemos em muitos casos que corresponde aos dados da experiência,
Origem e sentido da natureza 309

sempre é possível que apareçam novos casos nos quais a hipótese não funcione:
a história da ciência é pródiga em exemplos deste tipo.
Portanto, a ciência experimental exige fortes doses de criatividade,
interpretação e argumentação. De fato, a ciência existe e o seu progresso é muito
notável. Isto só é possível porque o homem possui algumas capacidades que lhe
permitem desenvolver métodos enormemente sofisticados, graças aos quais é
possível estudar aspectos da natureza que se encontram muito afastados das
possibilidades de observação, formulando hipóteses cada vez mais elaboradas
e submetendo-as ao controle experimental mediante técnicas não menos refinadas.
Por conseguinte, a análise da ciência experimental mostra o caráter
completamente singular da pessoa humana, já que esta ciência pressupõe certas
capacidades que não estão presentes em outros seres naturais. Trata-se de uma
maneira de posicionar-se perante a natureza, de estudá-la e dominá-la, que só é
possível porque possuímos capacidade criativa, que nos permite idealizar
métodos e conceitos; capacidade argumentativa, que nos permite avaliar as
soluções; o sentido da evidência, que se encontra implícito na capacidade
argumentativa; capacidade de auto-reflexão, sem a qual seria impossível a
existência das capacidades mencionadas. Além disso, todas estas capacidades
referem-se à combinação do racional e do empírico, de tal modo que manifestam
a interpenetração de ambos os aspectos na pessoa humana.
Definitivamente, o progresso da ciência experimental demonstra que a
pessoa humana possui dimensões materiais e racionais que estão interpenetradas.
O materialismo e o empirismo cm um extremo, c o idealismo e o apriorismo em
outro, não conseguem dar razões da ciência experimental e, de fato, enfrentam
dificuldades insuperáveis quando procuram propor uma imagem da ciência que
corresponda à atividade científica real e às suas conquistas180. A reflexão sobre
as características da ciência experimental indica que somente uma antropologia
em que se reconheça a existência e a mútua dependência das dimensões materiais
e racionais na pessoa humana encontra-se em condições de explicar a atividade
científica e as suas conquistas reais.

32.2 Matéria e espírito na pessoa humana

O nível humano encontra-se em continuidade com os níveis inferiores da


natureza. Porém, a pessoa possui algumas características singulares,
qualitativamente superiores às encontradas nas demais entidades naturais. Isto

180. Esta ideia encontra-se amplamente ilustrada em: JAKI, Stanley L. Angels, Apes andMen. La Salle
(Illinois): Sherwood Sugden, 1982.
310 Filosofia da Natureza

é um fato claro e é lógico utilizar um termo específico para designar este tipo
de características. Neste sentido, falamos de qualidades espirituais.
A utilização do termo espiritual neste contexto não apresenta nenhum
problema, uma vez que se trata somente de apresentar as qualidades especi­
ficamente humanas, cuja existência é patente. Os problemas surgem quando nos
perguntamos pelas relações entre a espiritualidade humana e as condições mate­
riais. É o problema que examinaremos a seguir.
a) O material e o espiritual: quatro problemas
Consideremos agora os quatro problemas que as relações entre a espiri­
tualidade humana e as condições materiais nos apresentam. O primeiro é
epistemológico e refere-se à possibilidade de observar manifestações concretas
das dimensões espirituais. O segundo é ontológico e refere-se à caracterização
do modo de ser próprio do espiritual e à coexistência do espiritual e do material.
O terceiro é metafísico e refere-se à necessidade de admitir uma ação divina para
explicar a espiritualidade humana. O quarto é existencial e refere-se à sobrevi­
vência do espírito humano após a morte.
A respeito do problema epistemológico, se levarmos em conta a unidade
da pessoa humana, é inútil buscar manifestações da espiritualidade humana que
não estejam relacionadas de algum modo com as condições materiais. A
existência das dimensões espirituais é patente, mas também é patente que a
atividade humana está mediada pelas condições materiais. Uma busca por
dimensões não ligadas ao material equivaleria a buscar um fantasma alojado em
alguns espaços vazios do organismo humano, e este fantasma não existe. Entre­
tanto, as dimensões propriamente espirituais manifestam-se através de toda a
atividade consciente da pessoa e o progresso da ciência experimental é um dos
melhores exemplos disto: a criatividade e a capacidade de argumentação, que
alcançam um nível muito alto na ciência experimental, manifestam claramente
que fazemos parte da natureza mas que, ao mesmo tempo, a transcendemos.
A respeito do problema ontológico, o modo de ser próprio da pessoa inclui
como parte constitutiva o modo de ser natural, mas o transcende. A pessoa possui
um dinamismo próprio que ultrapassa as possibilidades das pautas espaço-
temporais, tal como é demonstrado, por exemplo, pela sua capacidade de
questionar e desejar que extrapolam o âmbito do espaço-temporal e pela sua
capacidade de se autodeterminar livremente sobre a base do conhecimento dos
valores éticos. Mas o dinamismo da pessoa é unitário e, portanto, o problema
da interação entre o espiritual e o material corresponde a uma abordagem
equivocada. Com efeito, muitas vezes se supõe erroneamente que existam na
pessoa duas realidades diferentes que interajam exteriormente. Na verdade, a
Origem e sentido da natureza 311

pessoa possui um ser único e, ainda que o seu modo de ser inclua dimensões
materiais e espirituais com manifestações específicas, ambas se encontram
compenetradas em um modo de ser único.
O problema metafísico não oferece nenhuma dificuldade que já não esteja
presente no caso das entidades puramente naturais. É necessário admitir a ação
divina fundante tanto no caso da pessoa como em relação aos demais seres
naturais. Quando se fala de uma criação especial da alma humana, o que é especial
são os resultados da ação divina, ou seja, as dimensões espirituais da pessoa, mas
é necessário admitir a ação divina fundante em todos os casos e não só no caso do
ser humano. Portanto, esta criação especial não representa, por assim dizer, uma
alteração no curso ordinário da natureza, e a peculiaridade no caso do homem é
resultado de a ação divina possuir uma “densidade ontológica” que supera o mo­
do de ser próprio das entidades naturais. Além disso, o modo de ser da pessoa
humana é possível porque existem algumas condições naturais muito específicas;
portanto, também sob este ponto de vista, pode-se perceber que a criação especial
da alma humana se encontra em continuidade, e não em oposição, com o curso
ordinário da natureza. Definitivamente, a espiritualidade da alma humana exige
que cada alma seja criada diretamente por Deus, já que o espírito não pode pro­
ceder de uma transformação da matéria, mas isto não significa que o mundo natural
não necessita da ação divina fundante181.
Sem dúvida, o problema existencial da sobrevivência da alma humana
após a morte é o mais difícil. Entretanto, se a pessoa humana possui dimensões
ontológicas que supõem uma participação no ser próprio da divindade e seu ser
depende da ação divina, é lógico que, quando as condições naturais tomam
impossível a continuação da vida humana em seu modo de ser completo, a pessoa
continue vivendo em seu ser espiritual. Caso fosse contrário, para que o espírito
deixasse de existir, seria preciso um aniquilamento, ou seja, uma ação divina
que parece contradizer a ação criadora. As principais dificuldades provêm da
dificuldade de representar a vida humana em condições não-naturais: são,
contudo, dificuldades secundárias, porque se devem somente às nossas
possibilidades de representação.

181. Sobre este tema, cfr. capítulo X, tópico 29.4.C. Pode-se ver a respeito: VERNEAUX, Roger. Filosofia
dei hombre, Barcelona: Herder, 1971, págs. 219-220; YEPES, Ricardo. Fundamentos de antropologia. Un
ideal de la excelencia humana, 2a ed., Pamplona: EUNSA, 1997, págs. 474-479. ARTIGAS, Mariano. Las
fronteras dei evolucionismo, 5a ed., Madrid: Palabra, 1991, págs. 163-169, 171-177 e 198-200. Encontra-se
uma análise do contexto científico deste tema, com o qual se chega à conclusão da criação divina da alma
humana, em: ECCLES, John C. Evolution oftheBrain: Creation oftheSelf London and New York: Routledge,
1991, pág. 237.
312 Filosofia da Natureza

b) O hilemorfismo espiritualista
A singularidade humana é um fato evidente; os problemas surgem em
torno da sua explicação. Trata-se de problemas que têm sido colocados e
discutidos desde a Antigüidade.
Segundo o monismo materialista, não há no ser humano matéria e espírito;
tudo seria matéria e diversas manifestações de fenômenos materiais. Uma versão
mais sofisticada do materialismo é o materialismo emergentista. Admite a
realidade do mental, que não está reduzido ao físico-químico. Afirma que o
mental é algo qualitativamente diferente do físico, mas afirma também que é
um resultado emergente dos processos neuronais. Recorrendo à teoria dos
sistemas, sustenta que a interação dos componentes explica suficientemente a
existência de propriedades emergentes, sem que seja necessário admitir
realidades imateriais que não levariam a efeitos observáveis e nem poderiam
interagir com os componentes materiais.
A emergência significa que um sistema possui propriedades que não se
encontravam nos seus componentes. Trata-se de propriedades sistêmicas, origi­
nadas pela interação entre os componentes. Não é preciso recorrer a novas causas
para explicar a emergência; basta levar em conta que as interações dos componen­
tes - neste caso, dos neurônios - têm como resultado propriedades realmente no-
vas que se verificam somente nos sistemas. No entanto, afirmar a emergência da
mente não equivale a proporcionar uma explicação das características especifica­
mente humanas. O emergentismo não faz mais que constatar que estas caracte­
rísticas existem e acrescenta, contra todas as evidências, que as propriedades mate­
riais não suficientes para explicá-las: nega a espiritualidade humana e, para isso,
precisa fazer violência a todo um conjunto de experiências fundamentais.
O materialismo não pode ser defendido utilizando-se os avanços da
psicologia experimental: estes avanços mostram somente que existe uma relação
entre o psiquismo humano e as condições materiais nas quais este psiquismo
existe e se exercita.
O dualismo interacionista sustenta que existe na pessoa humana, junta­
mente com o material, uma realidade imaterial que interage com as condições
materiais, denominada - conforme cada autor - mente, espírito ou alma.
Entretanto, este interacionismo enfrenta as dificuldades relacionadas com o clás­
sico problema da comunicação das substâncias, apresentado na Idade Moderna
por Descartes e central na filosofia pós-cartesiana, mas que nunca encontrou
uma resposta satisfatória: como se relacionam duas realidades tão heterogêneas?
Além disso, permanece o problema da origem da mente. O recurso às explicações
evolucionistas não o soluciona. Assim, um partidário do dualismo interacionista
como Karl Popper afirma, por um dado, que a evolução por seleção natural
Origem e sentido da natureza 313

explica a emergência das dimensões imateriais da pessoa182, mas por outro,


admite tratar-se de um problema cuja explicação última permanece envolta num
mistério: “Agora desejo fazer finca-pé sobre o pouco que se diz quando se afirma
que a mente é um produto emergente do cérebro. Carece praticamente de valor
explicativo e equivale apenas a algo mais que pôr um sinal de interrogação em
um determinado lugar da evolução humana. Não obstante, creio que é a única
coisa que podemos dizer a partir de um ponto de vista darwinista”183.
Esta incerteza é inevitável quando não se admite uma explicação
metafísica e se conta somente com as explicações evolucionistas que, por
princípio, não conseguem explicar as dimensões espirituais da pessoa humana.
Embora Popper seja consciente dos limites da explicação evolucionista, não
concebe outras possibilidades e, por isso, deve se conformar com uma penumbra
envolta no mistério mais obscuro: “Certamente, em nenhum sentido a evolução
pode ser tomada como uma explicação última. Temos de nos acostumar à idéia
de que vivemos em um mundo em que praticamente tudo o que é muito
importante há de ficar essencialmente inexplicado... em última instância, tudo
fica sem explicação: em especial tudo o que se refere à existência” 184.
O hilemorfismo, utilizado por Aristóteles para explicar o modo de ser
básico das substâncias naturais, recebeu uma formulação clássica no pensamento
de Tomás de Aquino. A teoria hilemórfica caracteriza o homem como um com­
posto de corpo e alma, sublinhando a unidade do composto e a espiritualidade
da alma. O homem é concebido como uma só substância - ao contrário do
dualismo cartesiano —visto que, embora espírito e matéria sejam realidades
diferentes, a alma é, no entanto, forma substancial do corpo. O homem não é
um corpo ao qual uma alma é anexada como uma realidade justaposta, mas a
alma e o corpo formam uma só realidade; o que não impede que, dado o caráter
espiritual da alma, esta possa subsistir depois da morte.
Esta doutrina não é simples, mas isto não deveria nos surpreender se
consideramos que o homem não é um ser simples. Pretende refletir sobre alguns
fatos e algumas exigências racionais, sem suprimir o que há de misterioso no
homem, que não é pouco: recolhe o dado pela experiência e o exigido pelo rigor
intelectual, procurando simplificar a complexidade da existência humana.
A experiência e o raciocínio mostram que existem dimensões materiais e
espirituais no homem e que ambas estão presentes em uma única pessoa. O

182. Cfr. POPPER, Karl R. "Natural Selection and thc Emergence of Mind", in RANDN1TZKI, G. e
BARTLEY, W. W. III (editores) Evolutionary Epistemology, Rationalitv, and lhe Sociology o f Knowledge,
La Salle (Illinois): Open Court, 1987, pàgs. 139-155.
183. POPPER, Karl R. e ECCLES, John C. E ly o y su cerehro, Barcelona: Labor, 1980, pág. 622.
184. Ibid.
314 Filosofia da Natureza

homem não é formado por duas substâncias justapostas que atuam entre si, mas
é uma única substância: o hilemorfismo sustenta esta tese ao comparar a união
entre alma e corpo com a existente entre forma com a matéria. Forma e matéria
não são entidades complexas. O espiritual exige um sujeito, a alma, mas esta
não é um sujeito completo que se junta ao corpo: como forma da matéria, a alma
expressa o modo de ser característico da pessoa. Por outro lado, as dimensões
espirituais não podem derivar da matéria; assim, a criação divina da alma é neces­
sária, pois ainda que alma seja forma da matéria, não depende dela por sua
espiritualidade e subsiste quando a desagregação da matéria provoca a morte.
De acordo com esta perspectiva, não ocorre propriamente uma interação entre
a alma e o corpo, visto que alma e corpo constituem uma única substância.

32.3 A natureza na vida humana

O homem é uma síntese do mundo material e do espiritual. Encontra-se


acima do resto do mundo físico. Participa do físico, que está inscrito na sua
natureza como parte constitutiva, mas não se esgota nas dimensões físicas. Tem
a capacidade de conhecer e dominar o mundo.
A cosmovisão teocêntrica contempla o homem como criatura de Deus,
feito por Deus a sua imagem e semelhança, colocado acima do resto na natureza,
que lhe serve para alcançar o seu fim. Este antropocentrismo é coerente com a
cosmovisão científica atual e inclusive pode-se dizer que os conhecimentos atuais
correspondem melhor à perspectiva antropocêntrica que a cosmovisão antiga.
De acordo com a cosmovisão atual, a natureza manifesta-se a nós como o
desenvolvimento de um dinamismo próprio que se organiza de acordo com pautas.
Os processos naturais desenvolvem-se de modo direcional e seletivo, ainda que
a atualização das potencialidades naturais dependa de fatores aleatórios. Os
sistemas naturais possuem características holísticas. Tanto a formação dos
sistemas singulares como do sistema total da natureza é possível pela cooperação
dos dinamismos particulares. A natureza possui uma forte unidade que se
manifesta na continuidade dos seus níveis e na integração dos níveis mais básicos
com os níveis de maior organização.
Esta cosmovisão tem, por si mesma, implicações metafísicas. Contudo,
proporciona uma base muito adequada para a reflexão ontológica e metafísica
que nos leva a abordar novamente as questões clássicas acerca da transcendência
e da pessoa humana.
Sob esta perspectiva, o homem é o cume da natureza. A sua existência é
possível porque a natureza possui algumas características altamente específicas.
A atividade científica e tecnológica manifesta de modo especialmente patente
Origem e sentido da natureza 315

o protagonismo do homem na natureza. A análise das condições de possibilidade


da ciência mostra que a pessoa humana possui algumas características peculiares
que representam uma síntese do material e do espiritual.
Não mais considerar a Terra como o centro do universo não representa
tirar o homem do lugar central que ocupa na natureza. Na realidade, essa é uma
questão verdadeiramente secundária. É possível pensar inclusive que a imensidão
do universo que conhecemos seja necessária para que a Terra tenha se formado
e apresentasse estas condições altamente específicas que possibilitam a vida
humana.
A tese da origem do organismo humano a partir de seres vivos inferiores
também não supõe uma dificuldade para afirmar a singularidade humana, cujas
características espirituais são patentes. As teorias da evolução só podem ser
utilizadas a favor do naturalismo se o seu alcance for distorcido, utilizando-as
para resolver problemas que, na realidade, se encontram fora do alcance do
método experimental.
A existência hipotética de outros seres inteligentes no universo não
contraria as afirm ações anteriores, visto que nos referim os somente à
centralidade da pessoa humana em relação à natureza material, o que é compa­
tível com a existência de outros seres que também se encontrem em uma relação
semelhante com relação à natureza. No momento, é muito pouco o que se pode
dizer acerca da existência de vida e inteligência extraterrestre. Alguns afirmam
que é muito provável e outros consideram como altamente improvável que exista
vida em condições diferentes às que conhecemos. Por exemplo, Roman
Smoluchowski, do Conselho de Ciência do Espaço dos Estados Unidos, escre­
veu: “Ainda não foi respondida de maneira decisiva a pergunta sobre a possibi­
lidade de existirem outras formas de vida sob outras condições, mas a resposta
provavelmente será negativa” 185. Por outro lado, a possível existência de vida
em outros lugares ressaltaria ainda mais o caráter específico e singular da natu­
reza, uma vez que seria necessário que existissem algumas tendências claramente
definidas que conduzissem, em diferentes lugares, ao fenômeno tão enorme­
mente sofisticado e específico que é a vida.
A atividade humana, que tem na conduta ética a sua mais alta mani­
festação, inclui como elementos fundamentais as dimensões materiais que lhe
situam na natureza, e deve contar com elas para a sua realização. A natureza
apresenta as condições necessárias para a existência humana e o desenvolvimen­
to de suas virtualidades. O homem, como síntese do material e do espiritual, ocu­
pa um lugar especial na natureza. Participa do caráter pessoal próprio do Deus

185. SM()l .1J( 11( )WSK I, Roman. El sistema solar, Barcelona: Prensa científica-Labor, 1986, pág. 50.
316 Filosofia da Natureza

autor da natureza, com o qual tem uma relação única, de caráter pessoal. Se toda
a natureza corresponde a um desenvolvimento dos efeitos da ação divina, este
desenvolvimento adquire matizes únicos no caso do homem, cuja relação com
o resto da natureza pode ser contemplada em continuidade com a ação divina: a
perspectiva teológica contempla a pessoa humana como responsável por
desenvolver uma tarefa que Deus lhe encomendou no mundo e vê a natureza
com um papel de destaque nesta tarefa.

33. A Natureza e Deus

O estudo filosófico da natureza estaria incompleto se não considerássemos


o problema do seu fundamento radical. A explicação última da natureza é um
dos problemas centrais da filosofia em todas as épocas e continua sendo objeto
da maior atenção na atualidade. As perguntas básicas que se apresentam são as
seguintes: A natureza é auto-suficiente? Explica-se completamente por si mesma,
ou, pelo contrário, deve-se admitir a existência de um fundamento que a
transcende e que explica, em último termo, seu ser e sua atividade?
O exame detalhado destas questões corresponde à teologia natural e exige
um tratamento sistemático. Limitar-nos-emos aqui a pôr em relevo que a
cosmovisão científica atual e a reflexão filosófica sobre ela proporcionam
elementos que podem ser úteis para os argumentos da teologia natural.

33.1 Ciência e transcendência

As ciências e a teologia natural adotam diferentes enfoques. Apesar disso,


é possível integrá-los, contanto que a sua diversidade seja respeitada e se adote
a perspectiva exigida para cada tipo de problemas.
Cada disciplina científica adota uma perspectiva particular, que pode ser
denominada uma objetivação, pois se refere a um modo de construir e estudar
o seu objeto próprio: realiza-se um corte na realidade, mediante o qual o estudo
se concentra em alguns aspectos particulares. Obviamente, qualquer objetivação
deste tipo tem um caráter histórico, pois depende dos conceitos e instrumentos
disponíveis em cada momento186. Consegue-se, deste modo, a intersubjetividade
científica, que supõe a adoção de definições e critérios operacionais que, em
parte, têm um caráter convencional. Este modo de agir permite alcançar uma
verdade que é contextual e parcial, mas autêntica.

186. Os aspectos epistemológicos deste problema sào tratados amplamente em: ARTIGAS, Mariano.
Filosofia de Ia ciência experimental. La objetividad y Ia verdad en Ias ciências, op. cit.
Origem e sentido da natureza 317

Uma vez que cada disciplina age dentro de uma objetivação particular, o
método científico abre a possibilidade de um estudo dirigido para as condições
radicais do ser. Qualquer que seja a posição metafísica adotada, é forçoso reco­
nhecer que existe sempre um salto metodológico entre as perspectivas científica
e metafísica.
Entretanto, também se afirma freqüentemente que ambas as perspectivas
devem se relacionar mediante um diálogo e que a ciência conduz a questõesfron­
teiriças com a teologia. Tais “questões surgem da ciência e exigem insistente­
mente uma resposta, mas, por sua natureza, transcendem as competências da
ciência” 187.
Estas questões podem surgir de duas maneiras. A primeira refere-se a
problemas científicos que provocam interrogações metafísicas nos sujeitos que
os estudam; é compreensível que isto aconteça, mas afetará somente o cientista
como pessoa individual. Ao contrário, a segunda refere-se aos pressupostos
gerais da ciência e às implicações das suas conquistas; estes problemas são
candidatos melhores para serem questões fronteiriças. Pode-se mencionar neste
contexto, sobretudo, a inteligibilidade da natureza, a sua racionalidade: trata-
se de uma parte importante dos pressupostos da atividade científica, que não
existiria nem teria sentido se estes pressupostos não fossem verdadeiros. Sem
dúvida, existe um longo caminho desde a admissão implícita destes pressupostos
por parte dos cientistas até sua articulação filosófica. Apesar disso, são questões
que podem ser estudadas de modo objetivo e que assinalam pontos importantes
de confluência entre a atividade científica e as idéias metafísicas188.
Em qualquer caso, a afirmação de Deus e de um plano divino que governa
a natureza ultrapassa o nível próprio das ciências e remete a raciocínios metafí­
sicos. Mas, pelo mesmo motivo, não é legítimo negar a existência do plano divino
em nome das ciências. As ciências não têm condições de afirmar ou negar que exis-
ta um plano divino acerca da natureza, pois estes temas extrapolam o seu método:
as ciências proporcionam conhecimentos acerca das manifestações das dimensões
ontológicas e metafísicas da natureza, mas o estudo explícito destas dimensões re­
quer a adoção de uma perspectiva propriamente filosófica. De fato, encontra-se
todo tipo de posições filosóficas e teológicas entre os cientistas, o que mostra que
estas posições não estão determinadas unicamente pela ciência189.

187. POLKINGHORNE, John C. "A Revived Natural Theology”, in FENNEMA, J. e PAUL. I. (editores)
Science andReligion. One World: Chaging Perspectives on Reality\ Dordrecht: Kluwer Academic Publishers,
1990, pág. 88.
188. Encontra-se um estudo amplo destes temas em: ARTIGAS, Mariano. The Mind o f the Universe
(Templeton Foundation Press).
189. Esta diversidade é refletida, por exemplo, em: MARGENAU, Henry e VARGHESE, Roy Abraham
(editores) Cosmos, Bios, Theos: Scientists Reflect on Science, God, and the Origins o f Universe, Life and
Homo, Peru (Illinois): Open Court, 1992.
318 Filosofia da Natureza

As possíveis atitudes diante de Deus como explicação última do universo


são basicamente cinco: o ateísmo, o agnosticismo, o panteísmo, o deísmo e o
teísmo. Mas as quatro primeiras apresentam excessivas dificuldades. Isto é perce­
bido facilmente no caso do ateísmo, já que não existem e nem podem existir
provas da não existência de Deus. A renúncia do agnosticismo é, no mínimo,
pouco coerente com o espírito científico e racional, que nos leva a buscar expli­
cações de tudo o que existe, ainda que as nossas respostas sejam sempre limitadas
e parciais. O deísmo explica a existência do universo, mas não é coerente afirmar
que um Deus infinitamente bom, poderoso e inteligente dê a existência ao
universo e logo o abandone à sua sorte. E o panteísmo pretende responder às
últimas perguntas que nos colocamos diante do universo, mas, ainda que
admitamos a presença ativa de Deus em todo o universo, não é possível iden­
tificar Deus com nenhuma criatura nem com todas as criaturas em seu conjunto,
porque todas as dimensões das criaturas são limitadas e, portanto, não podem
ser identificadas com algo divino em sentido estrito.
Portanto, o teísmo aparece como a única opção rigorosa para quem não
renuncia à busca de uma explicação do universo. Nem o universo em seu con­
junto, nem os seus aspectos parciais, podem ser identificados com algo propria­
mente divino. No entanto, a racionalidade do universo sugere fortemente sua
conexão com a inteligência divina. Não pretendemos afirmar que a ciência expe­
rimental demonstra a existência de Deus: a ciência experimental, por si mesma,
não permite afirmar nem negar a existência de Deus. Entretanto, uma reflexão
rigorosa sobre as conquistas da ciência proporciona uma base muito adequada
para chegar até Deus como fundamento radical da natureza.
A cosmovisão científica contemporânea pode ser relacionada facilmente,
sobretudo, com o argumento teleológico que prova a existência de Deus e sua
providência sobre o mundo a partir da finalidade natural. Por este motivo, exa­
minaremos a seguir alguns aspectos do argumento teleológico.

33.2 Teleologia e transcendência

A cosmovisão atual sublinha a existência de dimensões finalistas na natu­


reza e amplia, portanto, a base do argumento teleológico.
a) O argumento teleológico
Entre todas as provas da existência de Deus, o argumento teleológico ocu­
pa um lugar destacado ao longo da história e também na atualidade. Foi articulado
com especial vigor por Tomás de Aquino, que utilizou as idéias de Aristóteles
mas situou-as cm um novo contexto. Ao longo de sua obra, propôs diferentes
Origem e sentido da natureza 319

formulações do argumento, entre as quais se destaca a quinta via para demonstrar


a existência de Deus.
Este é o texto da quinta via: “A quinta via toma-se do governo do mundo.
Com efeito, vemos que algumas coisas que carecem de conhecimento, concre­
tamente os corpos naturais, agem em vista de um fim: o que se manifesta pelo fato
de que, sempre ou na maioria das vezes, agem da mesma maneira, a fim de alcan­
çarem o que é melhor. Fica claro que não é por acaso, mas em virtude de uma
intenção, que alcançam o fim. Ora, os seres que não têm conhecimento não ten­
dem a um fim, a não ser dirigidos por algum ser que conhece e que é inteligente,
como a flecha é dirigida pelo arqueiro. Logo, existe um ser inteligente pelo qual
todas as coisas naturais são ordenadas ao fim, e a este ser nós chamamos Deus” 190.
A quinta via e outros textos paralelos da obra de Tomás de Aquino foram
objeto de numerosos estudos191. Concentraremos agora a nossa atenção em
alguns aspectos que têm especial relevância para precisar o seu significado e o
seu valor.
O argumento refere-se aos corpos naturais (corpora naturalia), que
carecem de conhecimento. Inclui, portanto, toda a atividade natural desenvolvida
independentemente do conhecimento: a dos seres não-viventes e também a ati­
vidade dos seres vivos que não depende do conhecimento (a atividade orgânica,
com todas as suas funções).
Afirma-se que os corpos naturais agem da mesma maneira “sempre ou
quase sempre” (semper autfrequentius). Trata-se de uma afirmação extraída da
experiência ordinária e, sob esta perspectiva, não oferece dificuldades: é
verdadeira, tanto no âmbito dos seres vivos como no dos demais seres naturais.
Tomás de Aquino limita-se ao conhecimento ordinário, mas a sua afirmação pode
ser estendida, sem dificuldade, à natureza tal como é concebida pela cosmovisão
científica atual.
A constância no modo de agir manifesta que a atividade natural corres­
ponde a tendências que surgem da natureza dos corpos. A regularidade da ati­
vidade natural permite afirmar o seu caráter finalista: exclui-se que os corpos
naturais alcancem o seu fim por acaso, porque o alcançam da mesma maneira
sempre ou quase sempre, e os efeitos do acaso não são regulares. O dinamismo

190. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, 1. q. 2, a. 3, c.


191. Pode-se ver, por exemplo: ART1GAS. Mariano. “Ciência, finalidad y existência de Dios’". in Scripta
Theologica, 17 (1985), págs. 151-189; DUQUESNE, M. "De quinta via: La prueve de Dieu par le
gouvemement des choses", in Doclor Commimis, 18 (1965), págs. 71 -92; KOWALCZYK, S. "L'argument
de la finalitechez SaintThomasd'Aquin”, in Doclor Commimis, 7 (1954), págs. 110-130; STEENBERGHEN,
F. van. "La cinquième voie, «ex gubematione rerum»”, in ELDERS, L. (editor), Quinque sunl riae, Città dei
Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1980, págs. 84-108; BURGOA, L. Vicente. El problema de lafinalidad,
Madrid: Universidad Complutense, 1981.
320 Filosofia da Natureza

natural é tendencial, e as tendências dirigem-se para a consecução de algum fim


que está identificado com um bem.
A referência ao bem é o ponto central do argumento. Afirma-se que os
corpos naturais agem por causa de um fim (operantur propter finem), chegam
ao fim (perveniunt ad finem) e tendem para o fim (tendunt ad finem), e que este
fim é algo ótimo. Esta referência não só ao bem, mas ao ótimo, é fundamental:
sem ela, o argumento não permitiria afirmar a existência de Deus. A cosmovisão
atual proporciona novas bases para comprovar o valor da atividade natural e dos
seus resultados: com efeito, permite conhecer detalhadamente a perfeição dos
mecanismos naturais nos indivíduos e a organização da natureza em diferentes
níveis cooperativos que possibilitam a existência humana.
Encontramo-nos, portanto, diante de uma atividade natural altamente
direcional e racional, levada a cabo por seres que carecem de conhecimento. Os
corpos naturais não podem, por si mesmos, ter essa direcionalidade, pois carecem
de inteligência. Daí que seja preciso recorrer a uma inteligência capaz de explicar
as tendências naturais e a sua ordenação para o bem. Por conseguinte, deve-se tra­
tar de uma inteligência que supera completamente a natureza; mais ainda, de uma
inteligência que previu o modo de ser do natural e as tendências que derivam dele:
e só um Deus pessoal criador pode dar ao natural o seu ser e o seu modo de ser.
Com efeito, a inteligência ordenadora corresponde ao Ser que ordena
todas as coisas naturais para o seu fim (o quo omnes res naturales ordinantur
in finem). Deve-se tratar, pois, não só de um ser diferente da natureza, mas
precisamente do Ser que é o autor da natureza, pois somente este Ser pode
produzir tendências que se encontram inscritas no interior dos corpos naturais.
Não basta, portanto, recorrer a um ser que ordene os corpos “de fora”,
imprimindo neles algum tipo de movimento: chegamos ao Deus pessoal criador.
Parece possível afirmar que a quinta via conserva o seu valor na atualidade,
porque todos os aspectos que mencionamos são coerentes com a cosmovisão
científica atual. Inclusive pode-se dizer que o progresso científico amplia nota­
velmente o âmbito dos fatos que servem de base para as considerações contidas
na quinta via. Neste sentido, a quinta via foi reforçada por este progresso.
A quinta via concentra-se na finalidade individual, própria de cada corpo.
Outras formulações tomistas do argumento teleológico sublinham a cooperação
de agentes diferentes em vista de um mesmo fim: a ordem da natureza em seu
conjuntol92. O núcleo do argumento é o mesmo, tanto se centrarmos a atenção

192. Cfr. TOMÁS DE AQU1NO. Suma contra os gentios, I, c. 13; 111, c. 64; Depotentia, q. 3, a. 6, c.;
Comentário à Metafísica de Aristóteles, livro XVII, capítulo 10, lectio 12; Comentário ao Evangelho de São
João, prólogo; Comentário ao Símbolo dos Apóstolos, artigo I.
Origem e sentido da natureza 321

nos aspectos individuais como nos cooperativos. Mas, em relação aos


conhecimentos científicos, tem uma grande força a consideração da ordem
cooperativa, central na cosmovisão atual.
Algumas formulações tomistas do argumento teleológico são muito mais
extensas que a quinta via e incluem análises filosóficas detalhadas acerca da
finalidade natural que também são plenamente atuais. Por exemplo, Tomás de
Aquino alude àqueles que pretendem explicar a natureza recorrendo somente à
causa material e à causa agente, e assinala que estas causas intervêm na produ­
ção dos efeitos, mas são insuficientes para explicar a sua bondade193.
É interessante sublinhar por que, na argumentação tomista, são insufi­
cientes as explicações que unicamente recorrem à necessidade e ao acaso. Os
motivos são diferentes em cada um deles. No que se refere às causas material e
agente, a estas causas corresponde certa necessidade-, portanto, permitem compre­
ender que os corpos atuam de um modo constante, mas não explicam que se
consiga um resultado ótimo: as causas material e agente são cegas em relação à
bondade do resultado. No que se refere ao acaso, afirma-se que ele não explica que
a atividade dos corpos desenvolve-se de um modo constante: o acaso é cego em
relação à constância da atuação. Por fim, tampouco se consegue uma explicação
suficiente recorrendo à combinação entre necessidade e acaso; com efeito, ainda
que admitamos que possa explicar parcialmente a formação da natureza, é insu­
ficiente para explicar a perfeição da natureza e, além disso, não explica o seu fun-
damento radical, uma vez que sempre remete a situações físicas anteriores194.
Definitivamente, a finalidade natural, que consiste numa tendência
habitual para algo ótimo, postula uma inteligência: relacionar, dirigir, ordenar
em vista de um objetivo que é alcançado de modo habitual, são operações
próprias de uma inteligência. E, se levarmos em conta que esta direção afeta as
tendências naturais e, portanto, ao modo de ser do natural, é lógico afirmar a
existência do Deus pessoal criador. A cosmovisão atual proporciona uma base
ao argumento teleológico que é mais complexa que a proporcionada pela
experiência ordinária e a supera amplamente em profundidade e precisão.
b) Natureza e providência
A causa final atua de duas maneiras. Por um lado, como objetivo previsto
pelo agente, e por outro, como tendência para um objetivo determinado. Todos

193. Cfr. TOMÁS DE AQUINO. De verilale, q. 5, a. 2.


194. Por mais curioso que possa parecer ao leitor moderno, esta possibilidade, sobre a qual se insiste em
nossa época a propósito do evolucionismo, foi contemplada expressamente por Tomás de Aquino, que se
limitou a acolher o que Aristóteles teria dito acerca desta questão muitos séculos antes. Cfr. TOMÁS DE
AQUINO. Comentário à Filosofia de Aristóteles, livro II, capítulo 8, lectio 12.
322 Filosofia da Natureza

os seres têm tendências, que correspondem ao seu modo de ser, mas somente
os agentes intelectuais podem propor-se objetivos de modo consciente e livre.
Na primeira parte do argumento teleológico afirma-se que os seres naturais
que carecem de conhecimento possuem tendências constantes cuja atualização
produz resultados ótimos. Por sua vez, a constância das tendências demonstra
que estes seres não agem por acaso, mas de acordo com a necessidade
característica das causas agentes. Além disso, acrescenta-se que a produção de
resultados ótimos demonstra que estes resultados são um objetivo previsto pelo
agente intelectual. Portanto, há uma dupla referência ao acaso: nega-se que as
tendências naturais correspondam ao acaso e nega-se que a bondade dos
resultados possa ser devida exclusivamente à confluência ao acaso de causas
necessárias. Esta dupla referência corresponde aos dois níveis da finalidade.
Conseqüentemente, quando se rejeita a finalidade natural, é preciso determinar
a que aspecto se refere esta rejeição, ou seja, se é negada a existência de
tendências naturais ou a existência de umafinalidade superior que se relaciona
com o governo divino da natureza.
Ao negar a existência de tendências, é preciso enfrentar não somente a
evidência própria da experiência ordinária, mas as conquistas do progresso
científico, que sublinham amplamente a existência de direcionalidade na
natureza.
Freqüentemente, não se nega a existência de tendências particulares na
natureza, mas a existência de uma tendência na evolução. Afirma-se que a
evolução procede por “ziguezagues” oportunistas, de um modo de ser que se
parece mais com uma bricolagem do que com um plano premeditado. Nestas
condições, como seria possível ainda falar de um plano divino?
Contudo, esta dificuldade desaparece quando se percebe que o plano
divino não implica uma evolução retilínea, sempre progressiva, sem acidentes:
é mais lógico supor que Deus conta com a complexidade própria das causas
naturais para realizar o seu plano. A existência de um plano divino é plenamente
congruente com o caráter complexo da evolução. Mais ainda: a complexidade
do universo adquire assim um novo relevo. Pode-se compreender, por exemplo,
que talvez Deus tenha querido que existam milhões de galáxias para que possam
existir a Terra e o homem. Com efeito, as teorias cosmológicas atuais afirmam
que os átomos mais pesados foram produzidos no interior das estrelas e pode
ter sido preciso que isto tenha acontecido milhões de vezes para que, finalmente,
se produzisse um só planeta com as características concretas da Terra. A
existência de milhões de galáxias e estrelas, que de outro modo parecería
desnecessária, poderia ser necessária para que, mediante processos naturais,
tenha sido possível o surgimento da vida humana.
Origem e sentido da natureza 323

Entre a ação divina e a atividade da natureza não existe uma simples


harmonia. Se a atividade natural corresponde ao plano divino, deve-se afirmar
que Deus não só a respeita mas a quer positivamente, ainda que Deus também
possa produzir efeitos que ultrapassem o curso ordinário da natureza. Portanto,
é congruente que o plano divino conte com o desenvolvimento do dinamismo
natural. Sob esta perspectiva compreende-se, por exemplo, que o plano divino
seja compatível com um desenvolvimento ziguezagueante do dinamismo natural
que pode produzir resultados não destinados a sobreviver e com a existência de
mecanismos nos quais se combinam necessidade e acaso, a variação e a adapta­
ção. A afirmação do plano divino não equivale a afirmar que tudo o que acontece
na natureza seja bom sob qualquer ponto de vista.
A existência de um plano superior permite compreender em profundidade
a existência da natureza. Sem dúvida, implica certo mistério, mas trata-se do
mistério que logicamente encontramos diante do divino. Ao contrário, se negás­
semos a existência do plano divino, a natureza ficaria envolta em um mistério
irracional, e existe um sério perigo de absolutizar as explicações parciais
proporcionadas pelas ciências.
c) O mal na natureza
A principal dificuldade que se pode apresentar frente ao argumento
teleológico é a existência do mal. Tomás de Aquino dedicou grande atenção a este
problema ao longo de toda a sua obra. Na Suma Teológica, ao expor as cinco vias,
sintetizou a sua resposta em poucas palavras: Deus permite o mal em vista de
salvaguardar bens maiores. Esta idéia aplica-se a dois casos diferentes: o mal
moral, devido ao mau uso da liberdade por parte da pessoa humana, e o malfísico,
que é o que propriamente se relaciona com a finalidade natural.
No caso do mal moral, que é o pecado, e é o mal em sentido radical, não
é fácil explicar como podería se compaginar a sua eliminação com a liberdade
humana. Portanto, pode-se com preender que Deus o permita, porque a
possibilidade do mal moral corresponde à existência da liberdade humana, que
é um bem superior.
O malfísico, ao qual se refere propriamente o argumento teleológico, pode
ser justificado de duas maneiras. Em primeiro lugar, levando em conta que seja
somente de um mal relativo, que pode estar ordenado a um bem superior, o bem
espiritual. E, em segundo lugar, ao perceber que os males físicos particulares
podem ser integrados em bens superiores, inclusive de ordem física. A existência
do mal físico não se opõe à bondade divina: parece inevitável que existam confli­
tos entre diferentes bens particulares, mas estes conflitos podem ser integrados
cm um bem superior.
324 Filosofia da Natureza

Tomás de Aquino afirma que o mundo não só é bom, mas muito bom. Esta
afirmação encontra-se, em parte, relacionada com uma cosmovisão superada,
segundo a qual mesmo os movimentos dos corpos físicos poderiam ser
considerados bons porque se relacionam com o seu lugar natural, que determina
uma ordem na estrutura do universo. Mas a idéia fundamental continua sendo
atual. Tomás de Aquino afirma que a intenção (intentio) de tudo o que se move
é uma tendência para um ato ou perfeição, e acrescenta: “Nos atos das formas
existem graus. Com efeito, a matéria prima está primeiramente em potência em
relação à forma do elemento. Mas, existindo sob a forma do elemento, está em
potência para a forma do composto, pelo qual os elementos são a matéria do
composto. Considerada sob a forma do composto, está em potência para a alma
vegetativa, já que a alma é o ato de um corpo deste tipo. Além disso, a alma
vegetativa está em potência para a sensitiva, e a sensitiva para a intelectiva...
Mas depois desta forma não se encontra no gerável e corruptível uma forma
posterior mais digna. Portanto, o último fim de toda geração é a alma humana
e para ela tende a matéria como para a última forma. Conseqüentemente, os
elementos existem por causa dos corpos compostos; estes por causa dos viventes;
entre os quais, as plantas por causa dos animais e os animais por causa do homem.
Portanto, o homem é o fim de toda geração”195.
Este texto mostra o que Tomás de Aquino entende quando afirma que os
corpos naturais “sempre ou muito freqüentemente agem da mesma maneira para
conseguir o melhor”. Trata-se de um ponto de vista plenamente atual. As entidades
naturais apresentam-se em níveis hierarquizados. A sua atividade consiste no
desenvolvimento de capacidades direcionais, que correspondem ao seu modo de
ser próprio. O desenvolvimento destas capacidades possibilita a existência de
níveis de maior organização e, finalmente, a existência do homem. Definitivamen­
te, a atividade tendencial das entidades naturais torna possível a existência da
pessoa humana.
Tomás de Aquino afirma expressamente que Deus criou o universo para
o homem. Recorda que se pode falar da finalidade em dois sentidos: como
tendência natural ou como plano de um agente inteligente, e afirma que o homem
é o fim das criaturas nos dois sentidos196.
Para afirmar que Deus criou o universo em vista do homem é preciso
recorrer a raciocínios que transcendem o âmbito do argumento teleológico. Mas
esta afirmação é plenamente congruente com a existência, em todos os níveis da

195. TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios, III, c. 22.


196. Cfr. TOMÁS DE AQUINO. Comentário às Sentenças, livro II, distinção I, questão II, artigo III,
corpo.
Origem e sentido da natureza 325

natureza, de tendências naturais cooperativas que dão condições para a vida


humana. Sob esta perspectiva, a aplicação da noção de bem à natureza implica um
antropocentrismo legítimo, que reflete o posto central do homem no cosmos.

33.3 A inteligibilidade da natureza

A natureza é parcialmente inteligível quando contemplada à luz dos


conhecimentos proporcionados pela experiência ordinária e pelas ciências.
Porém, adquire o seu sentido pleno quando contemplamos o sistema da natureza
à luz do seu fundamento radical e da vida humana.
a) Inteligência inconsciente
A partir de uma perspectiva finalista, a atividade da natureza é vista como
obra de uma “inteligência inconsciente”: a natureza não delibera, mas atua como
se possuísse realmente uma capacidade racional.
A expressão “inteligência inconsciente”, se interpretada literalmente, é
contraditória, pois contém termos incompatíveis. Portanto, pode ser utilizada
somente como uma metáfora. Mas a metáfora tem uma base real197: as operações
da natureza são direcionais e, além disso, cooperam na produção de resultados
que, em muitos aspectos, ultrapassam amplamente o que pode ser conseguido
mediante a tecnologia mais sofisticada. Neste sentido, a natureza ultrapassa a
razão humana que, por outro lado, pode somente produzir artefatos na medida
em que conhece e utiliza as leis naturais.
Às vezes, pretende-se explicar a natureza levando em conta exclusiva­
mente sua composição e suas leis: a ordem seria o resultado de combinações
aleatórias de processos e a finalidade seria só aparente. Sob esta perspectiva, e
partindo da oposição entre acaso e finalidade, quanto mais se acentua a função
do acaso, menos espaço resta para a finalidade. Entretanto, a oposição entre
acaso efinalidade não é absoluta, porque o acaso exige afinalidade. Com efeito,
não poderiamos nem sequer falar de acaso se não existisse uma direcionalidade,197

197. “Se for tomada de maneira literal, a fórmula inteligência inconsciente é uma contradição, um puro
absurdo, e, no entanto, tem certo sentido se tomada como uma metáfora. Assim entendida, significa que é a
capacidade de ajustar o comportamento a certo fim, apesar de não ter nenhuma ideia dele, isto é, como se a
ideia correspondente estivesse sendo conhecida pelo ser que atua assim. Tomada desta maneira, seria uma
capacidade que pode ser afirmada sem incorrer em nenhum antropomorfismo, já que não implica a identidade
absoluta do comportamento humano e do não-humano, mas tão somente uma analogia entre eles... Todo o
ser do apetecer é a tensão para um fim, com ou sem consciência. E isto é o que em grego é designado com o
termo orexis, de onde vem o adjetivo orético, utilizado na terminologia contemporânea como sinônimo do
que também pode ser chamado tendencial, isto é, concernente ou relativo à tendência”. MILLAN-PUELLES,
A. Léxico filosófico, Madrid: Rialp, pág. 452.
326 Filosofia da Natureza

como tampouco teria sentido falar de desordem se não existisse nenhum tipo
de ordem.
As críticas contra a teleologia geralmente supõem que existe uma contra­
dição absoluta entre o acaso e a finalidade; conseqiientemente, as explicações
nas quais o acaso intervém são vistas como argumentos contra a finalidade. No
entanto, não existe tal contradição absoluta entre acaso e finalidade. Ao afirmar
a finalidade, não pretendemos negar que exista o acaso. Sublinhamos simples­
mente que o acaso e, em geral, qualquer combinação de forças “cegas”, não
pode ser considerado como uma explicação total.
Por exemplo, para explicar a origem de uma frase que tem sentido em
um determinado idioma, não basta provar que existe alguma probabilidade de
que se tenha produzido mediante combinações de letras ao acaso: se não existe
previamente um idioma, com o seu alfabeto, seu dicionário e suas regras grama­
ticais, nenhuma combinação de letras poderá formar termos com significado.
Na origem tem que haver uma inteligência. Isto é igualmente válido em relação
à natureza. A afirmação da finalidade equivale a sustentar que a inteligibilidade
da natureza fundamenta-se, em última análise, em uma atividade inteligente. A
inteligência inconsciente deve estar baseada em uma inteligência consciente.
b) A natureza sob a perspectiva metafísica
Ao comentar as idéias de Aristóteles sobre a finalidade natural, Tomás
de Aquino propôs uma espécie de definição da natureza. Para este fim,
contempla-a desde o seu fundamento metafísico radical, que é muito original e
ultrapassa em profundidade as idéias de Aristóteles, além de ser surpreenden­
temente coerente com a cosmovisão atual. Diz assim: “a natureza é, precisa­
mente, o plano de certa arte (concretamente, a arte divina), impresso nas coisas,
pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado: como se o
artífice que fabrica uma embarcação pudesse outorgar à madeira a capacidade
de mover-se por si mesma para formar a estrutura do navio” 198.
Três aspectos desta “definição” merecem uma atenção especial: a racio­
nalidade da natureza, a sua conexão com o plano divino e a ênfase que é posta
na auto-organização.
Em primeiro lugar, ressalta-se a racionalidade da natureza ao identificar
a natureza como o plano de uma arte (no original latino, ratio cuiusdam artis).
De fato, o progresso científico põe em relevo, até extremos antes ignorados, a
eficiência e sutileza da natureza. O êxito da ciência amplia cada vez mais o nosso
conhecimento da racionalidade da natureza. Ainda que os produtos da tecnologia

ll)8. TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Física de Aristóteles, livro II, capítulo 8, Icctio 14.
Origem e sentido da natureza 327

superem a natureza em alguns aspectos, baseiam-se sempre nos materiais e nas


leis que a natureza nos disponibiliza; e, desde já, a natureza sempre nos supera,
com folga, em muitos aspectos de grande importância.
Em segundo lugar, a conexão da natureza com o plano divino expressa o
fundamento da racionalidade da natureza: é uma manifestação do plano divino;
portanto, de um plano sumamente sábio. Além disso, a ação divina não se limita
a dirigir de fora a atividade natural: o plano divino está inscrito nas coisas (diz-
se no original latino ratio cuiusdam artis, scilicet divinae, indita rebus). O natural
possui modos de ser, com as correspondentes tendências, que conduzem para
resultados ótimos. Compreende-se, portanto, que não existe oposição entre a ação
natural e o plano divino; pelo contrário, o plano divino inclui o dinamismo
tendencial do natural e realiza-se através de sua atualização.
Em terceiro lugar, alude-se à auto-organização como uma característica
básica da natureza. O exemplo é muito gráfico: como se pudesse outorgar à
madeira a capacidade de mover-se por si mesma para construir um navio. Esta
idéia corresponde, de um modo que não podia ser intuído quando foi escrita há
mais de sete séculos, aos conhecimentos atuais acerca da auto-organização da
natureza, que implica, além disso, um grande nível de cooperação entre os seus
componentes, as suas leis e os diferentes sistemas que são produzidos nos suces­
sivos níveis de organização. Destaca-se, deste modo, a direcionalidade da
natureza, também em seu aspecto sinergético, e insinua-se a emergência de novos
sistemas e propriedades como resultado da ação sinergética ou cooperativa.
Por outro lado, as implicações da caracterização tomista da natureza
também merecem uma especial atenção. Com efeito, coloca-se em relevo o valor
positivo da natureza como resultado do plano divino. Explica-se também a
articulação da necessidade e da contingência porque, por um lado, a natureza
é contingente por ser o resultado da ação livre de Deus, e por outro, possui uma
forte consistência de acordo com o modo de ser que Deus inscreveu no natural.
Mesmo assim, destaca-se a articulação entre a unidade e a multiplicidade,
porque a perfeição do universo é alcançada através da cooperação dos seus
componentes e, em última análise, ordena-se para a vida humana, já que a
natureza constitui o âmbito que possibilita a existência da pessoa humana e o
desenvolvimento das suas capacidades. Por fim, compreende-se a articulação
entre o ser e o devir, porque Deus colocou na natureza virtualidades que tomam
possível a progressiva evolução do homem, mas conta com a sua cooperação,
através do seu trabalho, para levar a natureza a um estado cada vez mais perfeito.
Definitivamente, a “definição” tomista expressa o núcleo da perspectiva
metafísica da natureza e tem grande importância para determinar o seu valor no
contexto da cosmovisão atual.
328 Filosofia da Natureza

c) A autonomia da natureza
Ao se afirmar que a natureza remete a um plano divino, a autonomia da
natureza não é desvalorizada. Antes, acontece o contrário. É a perfeição da
natureza que exige, como explicação adequada, a existência de um plano divino
criador.
A afirmação de Deus como fundamento radical da natureza coincide com
várias perspectivas filosóficas: com a pré-socrática, que afirmava que a natureza
era impregnada por algo divino; com a elevação ao ato puro a partir do movimento
de Aristóteles; com o argumento teleológico baseado na direcionalidade da
natureza; com os argumentos de Leibniz, que sublinham o dinamismo básico do
natural e a harmonia da natureza; e com outros argumentos que foram propostos
em todas as épocas. Podemos sustentar que, em nossa época, a cosmovisão cien­
tífica é coerente com a existência de um fundamento que transcende a natureza.
Desde já, para que a coerência se transforme em prova, deve-se recorrer ao racio­
cínio filosófico: a natureza pede um fundamento metafísico, porque o dinamismo
natural não é auto-suficiente e o seu desenvolvimento produz resultados enorme­
mente racionais que exigem uma causa inteligente superior.
As fronteiras entre físico e metafísico são colocadas às vezes entre a
matéria e a vida, às vezes entre a vida e o espírito, e às vezes entre a natureza e
o espírito. Em algumas ocasiões a existência de tais fronteiras é negada, porque
se nega o metafísico. Embora, em sentido estrito, estas fronteiras não existam,
não é por não existir o metafísico, mas porque todo ente natural inclui dimensões
metafísicas. O fundamento metafísico é necessário para explicar a origem da
natureza e também para explicar o seu dinamismo, a sua estruturação e o entre­
laçamento de ambos em todos os níveis.
Diante da experiência ordinária, o mundo aparece como um cosmos com
dimensões metafísicas. As reflexões dos pré-socráticos e das culturas antigas
refletiam um universo encantado ou mítico, no qual o natural está entrelaçado
com o divino. A perspectiva da ciência experimental objetiva a natureza e neu­
traliza as suas dimensões metafísicas. Trata-se de uma perspectiva legítima, sem­
pre que não seja absolutizada. Quando se afirma que esta perspectiva pretende
esgotar tudo o que pode ser conhecido acerca da natureza, é destruída a filosofia
natural e, com ela, o elo entre a natureza e a reflexão metafísica. Mas esta abso-
lutização é uma extrapolação ilegítima que carece de base e afasta-se do rigor
próprio do método científico.
Na atualidade, a nova cosmovisão científica proporciona as bases para
uma verdadeira reavaliação da natureza, que supera as contradições do cien-
tifi cismo e do naturalismo. Com efeito, proporciona uma base muito sugestiva
para contemplar a natureza sob uma nova luz.
Origem e sentido da natureza 329

Sob a perspectiva do seu fundamento radical, a natureza mostra-se como


o desenvolvimento de um dinamismo que provém de uma causa superior que o
cria, mantém e dirige. Ao falarmos de desenvolvimento, referimo-nos aos efeitos
da ação divina; é, portanto, um desenvolvimento plenamente coerente com a
transcendência e a imutabilidade divinas. Esta idéia corresponde a uma intuição
articulada de diferentes maneiras: pode-se pensar, por exemplo, no desen­
volvimento do absoluto hegeliano, no élan vital de Bergson e na evolução
ascendente de Teilhard de Chardin. Contudo, a correspondência refere-se
somente a aspectos concretos desta intuição e nada tem a ver com as articulações
que a vinculam ao panteísmo.
Poder-se-ia dizer que a ação divina se desenvolve através dos canais dos
dinamismos e estruturações naturais: possibilita a existência e a atividade destes
canais que, por sua vez, canalizam a ação divina de modo ordinário. Portanto,
de certa maneira, o desenvolvimento dos efeitos da ação divina é proporcional
aos canais naturais, ainda que não esteja limitado a eles de modo necessário.
Deus pode atuar acima das leis naturais das quais Ele é o autor. Entretanto,
precisamente porque é o autor dos canais naturais, pode-se dizer que a ação divina
não só os respeita, mas se acomoda voluntariamente a eles, sem estar realmente
condicionada por estes canais.
Esta perspectiva permite compreender como a autonomia da natureza
compagina-se com a existência do seu fundamento radical. Não se trata de uma
mera compatibilidade. A ação divina proporciona as condições de possibilidade
do dinamismo natural e de todos os seus desenvolvimentos particulares. As vias
que canalizam o dinamismo natural possuem uma consistência própria e uma
inteligibilidade que resulta de um plano superior racional.
O desenvolvimento do dinamismo natural é direcional. A direcionalidade
da natureza é real e corresponde a um plano, mas não se identifica com um
processo simplesmente linear: o desenvolvimento do dinamismo natural dá
margem a múltiplas coincidências acidentais. Neste sentido, o acaso desempenha
uma função real, mas esta função integra-se dentro do plano total.
A emergência de novidades reais corresponde ao desenvolvimento do
dinamismo natural, mas este dinamismo inclui os efeitos da ação divina que
possibilitam a sua existência, o seu desenvolvimento e a produção dos seus resul­
tados. A proporcionalidade entre os efeitos da ação divina e os canais naturais
manifesta-se na gradação da natureza: um maior nível de organização torna
possível um grau mais alto no desenvolvimento dos efeitos da ação divina.
O mais alto grau de organização natural permite uma nova participação
no ser que supera essencialmente o resto das entidades naturais, porque implica
um modo de ser pessoal. A pessoa humana possui dimensões metafísicas únicas
330 Filosofia da Natureza

que, embora transcendam a natureza, compenetram-se com as condições naturais.


Esta singular unidade entre o nível natural e o metafísico, que se dá na pessoa
humana, proporciona a chave para compreender o significado da natureza como
o âmbito que dá as condições necessárias para a existência da pessoa humana,
o desenvolvimento das suas potencialidades e a consecução do seu fim.
331

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