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Mariano Artigas
Filosofia da Natureza
Tradução
J osé E duardo de O liveira e S ilva
Segunda Edição
- 2017 -
I nstituto B r a s il e ir o de F il o so fia e
C iê n c ia “ R a im u n d o L ú l io ” (R am on L l u l l )
SÃO PAULO
2005
©+2003 by+Mariano Artigas
©+2004 by+EUNSA, Ediciones Univesidad de Navarra, S.A.
©+2005 desta traduA„o portuguesa by Instituto Brasileiro de Filosofia e
Cilncia 'Raimundo L lioª (Ramon Llull)
Tradução
JO S... EDUARDO DE OLIVEIRA E SILVA
Revisão técnica
Esteve Jaulent
Capa
Tarlei E. de Oliveira
Diagramação
Tarlei E. de Oliveira
Artigas, Mariano
Filosofia da natureza / M ariano A rtigas ó traduÁ „o JosÈ
Eduardo de Oliveira e Silva, ó S„o Paulo : Instituto Brasileiro de
Filosofia e CiÍncia ìRaimundo L.lioi (Ramon LLuLL), 2005.
16 x 23 cm. 335 p.
Titulo original: Filosofia de la naturaleza.
Bibliografia
ISBN 85-89294-06-4
05-2818 CDDñ101
Esteve Jaulent
Presidente
Mauro Keller
Vice-Presidente
Josep Blanes Sala
Secretário
Praça da Sé, n. 21 - cj. 1006
São P au lo -S P BRASIL
Tel. (0xx11) 3101-6785
www.ramonllull.net // dep.editorial@ramonllull.net
Sumário
PRÓLOGO...........................................................................................................15
P rimeira Parte
S egu n d a Parte
X - OS VIVENTES.......................................................................251
C a p ít u l o
28. Caracterização do ser vivente..................................................................251
28.1 Biologia e filosofia......................................................................... 251
a) Física, biologia e filosofia da natureza..................................251
b) A vida na biologia molecular...................................................252
c) A genética e as suas implicações............................................ 254
d) Informação e direcionalidade................................................... 256
28.2 Características dos seres v ivos....................................................... 257
a) Organização vital e funcionalidade..........................................257
b) Imanência e espontaneidade..................................................... 258
c) Aspectos fenomenológicos do ser vivente...............................259
28.3 A explicação da vida....................................................................... 260
29. A origem da vida e a evolução das espécies.......................................... 263
29.1 A origem da v id a ............................................................................ 264
29.2 A evolução das espécies.................................................................266
29.3 A evolução: ciência e filosofia...................................................... 269
a) Evolução e criação.................................................................... 269
b) Evolução e finalidade................................................................271
c) Evolução e emergência.............................................................. 272
d) Evolução e ação divina..............................................................273
29.4 A origem do hom em ........................................................................ 276
a) O processo de hominização...................................................... 276
b) Homem e anim al........................................................................ 278
c) A espiritualidade humana..........................................................279
29.5 As fronteiras do evolucionismo...................................................... 280
BIBLIOGRAFIA 331
Prólogo
J u a n J o s é S a n g u in e t i
Faculdade de Filosofia
Pontifícia Universidade da Santa Cruz, Roma
P rimeira P arte
19
C apítulo I
1. Introdução geral
I. Para uma análise ampla da objetividade e da verdade na ciência experimental, cfr. ARTIGAS. Mariano.
Filosofia de la ciencia experimental. La objetividad y la verdad en las ciencias, 2a. ed., Pamplona: EUNSA,
1992.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 21
2. Cfr. DUHEM, Pierre. Le système du monde. Histoire des doctrines cosmologiques de Platon à
Copernic, 10 volumes, Paris: Hermann, 1913-1917 e 1954-1959.
3. Encontra-se uma síntese destas questões em: ARTIGAS, Mariano. “Nicolas Oresme, gran maestre del
Colégio de Navarra, y el origen de la ciencia moderna", in Príncipe de Viena (Suplemento de Ciencias), ano
IX, n. 9 (1989), págs. 297-331.
4. Cfr. JAKI. Stanley L. Science and Creation. From Eternal Cycles to an Oscillating Universe,
Edinburgh and London: Scottish Academic Press. 1974.
28 Filosofia da Natureza
moderno. Todas as novas teorias científicas dos séculos XVI e XVII têm sua
origem em trechos do pensamento de Aristóteles comentados pela crítica
escolástica. Mesmo assim, a maior parte destas teorias contém conceitos chaves
criados pela ciência escolástica. Mais importante ainda que estes conceitos é o
estado de espírito que os cientistas modernos herdaram dos seus predecessores
medievais: uma fé ilimitada no poder da razão humana para resolver os
problemas da natureza. Tal como sublinhou Whitehead, «a fé nas possibilidades
da ciência, iniciada anteriormente ao desenvolvimento da teoria científica
m oderna, é um derivado inconsciente da teologia m edieval»”5. Estas
considerações vão de encontro com chavões repetidos por inércia; especialmente
com o chavão positivista, segundo o qual a teologia e a metafísica atuaram como
um freio para o progresso científico.
Ainda que existam outros pioneiros - como Leonardo da Vinci a
revolução científica moderna começou propriamente quando Nicolau Copérnico
(1473-1543) propôs a teoria heliocêntrica. Ao não considerar mais a Terra como
imóvel e posicionada no centro do universo, mas como um planeta que gira ao
redor do Sol, fez com que se deslocasse a cosmovisão dominante. A obra de
C opérnico, intitulada A cerca das revoluções da órbita celestes (De
revolutionibus orbium coelestium), estava dedicada ao Papa e não provocou
nenhuma polêmica.
Francis Bacon (1561-1626) pode ser considerado como o “profeta” de uma
nova ciência que se afastava dos métodos antigos e se dirigia para o domínio da
natureza. Não fez grandes contribuições à nova ciência e sua metodologia é muito
insuficiente; mas influenciou na consolidação de uma ciência baseada na
experimentação.
Bacon propôs um novo método, centralizado na indução, que, partindo
da observação, permitia formular leis gerais a partir dos casos particulares, graças
a recursos tais como as tabelas de presença, de ausência e de graus. Foi ele o
responsável por substituir as “formas” aristotélicas e escolásticas - que
pretendiam expressar a natureza das coisas - pelas “leis”. As formas e os fins
da filosofia tradicional não têm lugar na nova ciência; Bacon qualifica a
“finalidade” como uma “virgem estéril”, incapaz de dar frutos.
Estas ideias de Bacon foram, em geral, aceitas durante muito tempo, mas
apresentam problemas que estão sendo carregados até a atualidade: o sentido e
o valor da indução na ciência, a relação entre ciência e filosofia, o valor da
filosofia da natureza. Por exemplo, a nova ciência foi considerada durante séculos
como “ciência indutiva”; mas, como se poderi am comprovar por indução a lei
da queda dos corpos ou a lei da gravidade, ou ainda as complexas teorias da física
matemática? Além disso, como poderíam ser verificadas estas teorias recorrendo
aos dados sempre fragmentários que a experimentação proporciona?
René Descartes (1596-1650) influenciou no nascimento da nova ciência
insistindo no enfoque matemático e dando umas contribuições parciais. Porém,
a sua física era deficiente comparada à de Newton e Galileu e o seu difundido
trabalho filosófico provocou equívocos históricos. Com efeito, utilizando seu
critério de evidência (as ideias claras e distintas), reduziu a substância corpórea
à extensão, negando a realidade das qualidades e eliminando o dinamismo
próprio da matéria; porém, a nova física só se consolidou quando se introduziram
conceitos como os de “força” e “energia”, que não cabem dentro do estreito limite
cartesiano. Descartes rechaçou também as formas, as qualidades e os fins. A
sua filosofia natural é um “mecanicismo” que pretende explicar tudo mediante
o deslocamento e os choques da matéria: desaparece, assim, a interioridade em
benefício da pura exterioridade, o que se aplica também aos viventes (ressal
vando-se o espírito humano).
Johannes Kleper (1571-1630) formulou as primeiras leis científicas da
nova ciência, que dizem respeito às trajetórias elípticas dos planetas. Estas leis
representaram uma conquista de primeira magnitude - na qual se combinaram
a matemática, os dados de observação (outorgando grande importância à
precisão) e uma visão mística acerca da ordem da natureza - e destruíram o
presumido movimento circular dos corpos celestes.
Galileu Galilei (1564-1642) foi o principal pioneiro da nova ciência e
quem melhor se deu conta de sua natureza. Além das suas importantes
descobertas teóricas e pesquisas no campo da observação (formulação da lei
sobre a queda dos corpos, descoberta dos satélites de Júpiter e das faces de
Vênus, etc.), Galileu afirmou que o objetivo da ciência é formular leis que se
refiram a “afecções”, tais como o lugar, movimento, figura, magnitude, etc.;
renuncia, portanto, ao conhecimento das essências e do significado das coisas,
objeto próprio da filosofia e da teologia.
O famoso “caso Galileu”, com as cores que os pseudo-historiadores
pintam, não passa de uma lenda infundada. Por um lado, Galileu não dispunha
de demonstrações concludentes do heliocentrismo; por outro, as dificuldades
teológicas eram superficiais e podiam ser evitadas com facilidade, pois o
geocentrism o nunca fez parte da doutrina cristã. Além disso, surgiram
circunstâncias que agravaram o problema. De fato, a pena imposta a Galileu foi
o confinamento em sua vila particular, nas proximidades de Florença: Galileu
seguiu trabalhando até à sua morte, que lhe sobreveio aos 78 anos por causas
30 Filosofia da Natureza
6. Encontra-se uma síntese do “caso Galileu” e de suas implicações em: ARTIGAS. Mariano. Ciencia,
razón y fe, 4a. ed., Madrid: Palabra, 1992 (item “Galileo: un problema sin resolver”, págs. 15-36). Cfr.
BRANDMÜLLER, Walter. Galileoy la lglesia, Madrid: Rialp. 1987.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 31
que esta doutrina é contraditória, já que, se lhe fossem aplicados os seus próprios
cânones, careceria de sentido, pois esta não é uma conclusão extraída das ciências
naturais.
A tentativa mais sistemática de formular uma filosofia da natureza de
acordo com o progresso das ciências é, provavelmente, de Nicolai Hartmann
(1882-1950). Em 1950, ele publicou a sua “Filosofia da natureza’’ (volume IV
da sua “Ontologia ”), concebida como uma “teoria especial das categorias” que,
com um matiz neokantiano mas realista, depende do estado dos conhecimentos
científicos em cada momento e renuncia a uma metafísica positiva. Hartmann
completou a sua filosofia da natureza com “O pensar teleológico ”, obra póstuma
publicada em 1954, na qual expõe uma crítica sistemática contra a finalidade.
Na sua primeira fase, Hartmann foi neokantiano. Mesmo que depois tenha
incorporado ao seu pensamento elementos da fenomenologia e sustentado contra
Kant o valor realista do conhecimento, nota-se em sua obra uma forte influência
kantiana. Frente à existência de Deus, manteve uma postura agnóstica. Em certas
ocasiões, situa-se numa linha próxima de Aristóteles; no entanto, critica as ideias
aristotélicas acerca da substância, das formas, dos fins, considerando-as perten
centes a uma metafísica que ele julga inválida. Segundo Hartmann, a metafísica
trata de questões que não admitem resposta, porque vão além do que podemos
conhecer das coisas: só uma ontologia que nunca chegasse ao nível metafísico
e nem a respostas definitivas seria possível. Trata-se de uma filosofia hipotética
e provisional, que procura analisar e esclarecer os problemas adotando, como
método, a análise das categorias do nosso pensamento. Neste contexto, a filosofia
da natureza é concebida como análise das categorias especiais, como uma
reflexão filosófica acerca dos conhecimentos proporcionados pelas ciências, e
que, por isso, participa da permanente provisoriedade destes conhecimentos.
Esta filosofia da natureza contém análises interessantes. Ao mesmo tempo,
a negação da metafísica aparece de modo explícito a cada vez que se trata dos
problemas clássicos: são submetidas a uma crítica severa as ideias aristotélicas
e escolásticas acerca da substância, da potência e do ato, da análise do
movimento, das formas, da causalidade e dos fins, afirmando que correspondem
a uma perspectiva superada na qual se pretendia estabelecer relações entre a
natureza e o divino. Na obra “O pensar teleológico ”, Hartmann articula uma
crítica sistemática contra a finalidade na natureza, de acordo com as mesmas
ideias antimetafísicas.
Durante as últimas décadas do século XX deu-se um notável renascimento
da filosofia da natureza. São muitas, por exemplo, as publicações em torno ao
indeterminismo na natureza; à emergência e à auto-organização; à finalidade
natural e ao argumento teleológico; à origem do universo; à criação e ao
36 Filosofia da Natureza
3. O conceito de natureza
8. Podem ser mencionados, a título de exemplo: Ludwig von Bertalanffy, llya Prigogine. René Thom,
Hermann Haken, Michael Ruse, Edward Wilson, Stephen Hawking, Johns Barrow, Roger Penrose. Richard
Darwkins, Karl Popper.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 37
9. Esta caracterização é original e foi publicada pela primeira vez em: ARTIGAS, Mariano. La
inteligibilidad de la naturaleza, 2ª. ed., Pamplona: EUNSA, 1995: no capítulo I deste livro analisa-se a proposta
e nos capítulos restantes são expostas suas implicações.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 39
a) O dinamismo natural
aristotélica, foi claramente afirmado por Leibniz10, e, nos tempos mais recentes,
foi amplamente sublinhado tanto na perspectiva científica como na perspectiva
filosófica11.
As afirmações precedentes parecem ir de encontro a uma ideia geralmente
admitida acerca dos viventes, já que a vida costuma ser definida como
automovimento. Dizer que todo natural possui um dinamismo próprio não dilui
a diferença entre os viventes e os não-viventes?
Na verdade, a vida não apenas supõe um dinamismo próprio, mas também
uma organização de componentes que cooperam de modo unitário e permitem
a realização das funções próprias dos viventes. Por conseguinte, possuir dina
mismo próprio não significa possuir vida.
b) Pautas estruturais
10. Cfr. LEIBNIZ, Gottfried W. "De primae philosophiae Emendatione, et de Notione Substantiae", in
GERHARDT, C. J. Die philosophischen Schriflen von Gottfried Wilhelm Leibniz, Hildescheim: Georg Olms,
1965, vol. 4. págs. 469-470.
11. Por exemplo, Antonio Millán Puelles afirma que "nenhum ente é absolutamente inoperante... Um
ente absolutamente inoperante seria um ente que nem sequer faria algo para se manter em seu ser. Seria,
portanto, um ente mantido, em sua própria entidade, por outro ou outros. Além disso, todo o seu ser se reduziría
a «ser mantido» e a sua entidade seria, por conseguinte, uma absoluta ou pura passividade, um completo
«deixar-se fazer»". PUELLES, A. Millán. Léxicofilosófico, Madrid: Rialp, 1984, pág. 436. Por sua vez, Juan
Enrique Bolzán propôs uma reformulação da filosofia da natureza, na qual coloca o dinamismo do ser físico
em primeiro plano: BOLZÁN, J. E. Fundamentación de una ontologia de Ia naturaleza, Buenos Aires:
Sapientia, 41, 1986, págs. 121-132.
12. Jean Marie Aubert sublinha a importância da estruturação dos entes naturais como uma base sólida
para os raciocínios da filosofia da natureza. Cfr. AUBERT, J. M. Filosofia de Ia naturaleza, 6a. edição,
Barcelona: Herder, 1987, págs. 301-319.
13. Cfr. CRUZ CRUZ, Juan. Filosofia de la estruetura, 2a. edição, EUNSA, Pamplona, 1974.
Introdução: a natureza e seu estudo filosófico 41
14. "Nosso mundo está cheio de pautas (patterns). Se tivéssemos que descrever a propriedade fundamental
da matéria do universo em uma única frase, teríamos que dizer que a matéria está formada - ou criada - de tal
modo que mostra um desenvolvimento continuamente acelerado de pautas": BRESCH, Casterns. "What is
Evolution?" in ANDERSEN, S. e PEACOCKE, A. (editores) Evohition and Creation, Aarhus: Aarhus
University, 1487. pág. 36.
42 Filosofia da Natureza
a) O natural e o artificial
b) O natural e o racional
a) O corpóreo
b) O sensível
c) O material
d) O espaço-temporal
e) O quantitativo
f) O necessário
Capítulo II
As entidades naturais
4. Os sistemas naturais
19. Esta teoria baseia-se nos trabalhos de Ludwig VON BERTALANFFY. Pode ser conferida em suas
obras: General System Theoiy, New York: George Braziller, 1969; Perspectivas en Ia teoria general de
sistemas. Madrid: Alianza, 1986. Encontra-se uma análise dos conceitos centrais da teoria em: ROBBINS.
S. S. e OLIVA, T. A. "The Empirical Identification of Fifty-one Core General Systems Theory Vocabulary
Components", in General Systems, 28 (1983-1984), págs. 69-76.
As entidades naturais 53
a) Sistemas unitários
b) Outros sistemas
5. As substâncias naturais
20. A noção dc ecossistema foi formulada por Arthur G. TANSLEY em seu artigo "The Use and Abuse
of Vegetational Concepts and Terms”, in Ecology, 16 (1935), págs. 284-307, no qual afirmava: "as redes
vitais, ajustadas a determinados complexos ambientais, são verdadeiras unidades, às vezes muito integradas,
que constituem os núcleos viventes de sistemas, no sentido que os físicos dào a esta palavra... Dentro de cada
sistema há intercâmbios de muitas classes, não só entre os organismos, mas também entre o mundo orgânico
e o inorgânico. Estes ecossistemas, como preferimos chamá-los, podem ser de muitas classes e tamanhos,
formando uma das categorias dos distintos tipos de sistemas físicos do Universo, que vão desde o Universo
como um todo até o átomo". Cfr. PECO, B. verbete "Ecossistema” in: AA. VV. Diccionario de Ia naturuleza,
Madrid: Espasa-Calpe, 1993, págs. 198-202.
As entidades naturais 55
2 1. A importância das ideias aristotélicas a respeito da substância para o estudo da natureza encontra-se
afirmada em muitos estudos atuais, a partir de perspectivas que, por sua vez, diferem em importantes aspectos
da nossa. Pode-se ver, por exemplo: ESP1NOZA, M. “Critique de la Science antisubstancialiste", in Theoria,
5 ( 1990), pág.s. 67-X4 e “La catégorie naturelle ultime", in Revue de Métaphysique et de Monde, 98 (1993),
págs, 367-393.
56 Filosofia da Natureza
significa a substância. A ideia central é que, quando dizemos o que é algo, não di
zemos que seja branco ou quente, nem que mede três metros, mas que é um homem
ou uma planta, e todo o resto chama-se ente por ser quantidades, qualidades ou
afecções da substância; o que não é substância não tem existência própria e não
pode se separar da substância, de modo que o ente, em seu sentido primário, é a
substância. Somente a substância tem existência própria; além disso, as demais
categorias supõem a substância; conhecemos algo, sobretudo, quando conhece
mos o que é. Portanto, a substância é o objeto primeiro do estudo filosófico22.
Definitivamente, o termo “substância” remete ao modo de ser dos entes
que têm um ser próprio. Por exemplo, ser planta ou ser homem implica um modo
de ser substancial, diferentemente do que expressam os acidentes, como ser
branco ou medir cem metros. A substância não inere em outro e, portanto, não
se predica de outro (o termo “inerir” significa que algo tem o ser em outro, que
é um acidente de um sujeito substancial). A substância é o ente capaz de subsistir
separadamente, autônomo, em si e por si. É algo determinado, não universal
ou abstrato. Tem unidade intrínseca e não é um mero agregado de partes
múltiplas. É ato, atualidade, não potencialidade sem atualizar23.
Quando Aristóteles aplica a noção de substância aos entes concretos, ou
seja, quando se pergunta quais são as substâncias, responde que os entes nos quais
a substância se dá mais claramente são os animais, as plantas e suas partes, os
corpos naturais (fogo, água, terra e outros deste gênero) e suas partes e compostos
(o céu e suas partes, os astros, a Lua, o Sol)24.
Segundo Aristóteles, no âmbito material só os entes naturais são subs
tâncias. A substância distingue-se das meras agregações, nas quais os compo
nentes conservam a sua essência. E distingue-se também dos entes artificiais
ou artefatos, que não possuem uma unidade intrínseca, mas somente funcional.
A perspectiva aristotélica não inclui a criação; portanto, não proporciona
uma explicação última das substâncias. Segundo Aristóteles, o primeiro motor
move como causa final, mas não produz o ser. Tomás de Aquino utilizou as ideias
aristotélicas, mas integrou-as numa perspectiva metafísica diferente, centralizada
na ideia de criação. A substância material é inteligível porque encontra a sua
razão de ser na criação, na inteligência e vontade divinas. A criação corresponde
à difusão da perfeição e bondade divinas, à sua participação pelas criaturas (e
especialmente pelo homem, criatura racional capaz de conhecer e amar a Deus)
e esse plano faz com que a realidade criada seja inteligível.
também uma forte unidade e podem ser qualificadas como sistemas unitários.
A identificação destes sistemas com as substâncias mostra que a noção de
substância designa o ente em sentido primário, a entidade natural que possui
um ser próprio e um modo de ser característico. A substancialidade é o modo
de ser básico e o sujeito das modificações acidentais. A substância, como ente
em sentido primário, expressa a entidade natural por antonomásia.
Por este motivo, a noção de substância é uma categoria básica para
conceber o mundo físico: expressa a entidade em sentido próprio e, portanto,
todas as coisas se referem a ela. Afirmar que a substância é a categoria central
equivale a dizer que os demais aspectos da natureza a supõem e se referem a
ela.
A existência real dos sistemas naturais unitários mostra que a substância
não é uma simples exigência do pensamento, mas que reflete modos de ser reais.
A substância natural não é uma entidade fantasmagórica incorporada aos dados
da experiência (como sustenta o empirismo), mas uma entidade real que é o modo
de ser primário ao qual remetem todos os demais modos de ser: as agregações
de substâncias e os acidentes.
não possuem uma consistência absoluta, independente das criaturas; seu ser e
sua atividade são contingentes na medida em que dependem de condições
contingentes. Por essa razão, quando falamos de substâncias naturais, não
afirmamos a existência de sujeitos imutáveis, indestrutíveis ou absolutamente
permanentes.
Definitivamente, as substâncias encontram-se imersas no dinamismo
natural, do qual são fo n te e resultado. Enquanto estiverem presentes as
condições que possibilitam a sua existência, conservarão a sua consistência e
desenvolverão o seu dinamismo através de processos que se denominam
mudanças acidentais, porque neles o caráter fundamental da substância não
muda. Pelo contrário, quando faltarem as condições necessárias para a sua
existência, ocorrerão mudanças substanciais, que consistem na transformação
da substância: o sistema perderá a sua consistência característica e surgirá outro
ou outros sistemas diferentes. A consistência própria de cada substância
relaciona-se com a sua unidade estrutural.
25. Cfr. DESCARTES. R. Los princípios de lafilosofia, la. parte. n. 53 (in Oeuvres, editadas por ADAM,
Ch & KTANNERY, P„ Paris: Vrin, 1964. tomo IX-2. pág. 48). e 2a. parte, n. 23 (ibid., pág.75).
26. Cfr. Ibid., 2a. parte. n. 36 (in Oeuvres. tomo 1X-2, págs. 83-84).
27. "Une chose qui existe em telle façon qu'elle n'a besoin que de soi-même pour exister”: DESCARTES,
R. Los princípios de Iafilosofia, op. cit., la. parte. n. 51 (in Oeuvres, op. cit., tomo 1X-2, pág. 47).
As entidades naturais 61
28. Cfr. //>/</, n. 53 (in Oruvrcs, op. cit., tomo IX-2, págs. 48).
62 Filosofia da Natureza
b) O subjetivismo kantiano
Segundo Kant, a substância é uma das categorias a priori, que não têm
sua origem na experiência e são condições de possibilidade da experiência. O
conhecimento é organizado de acordo com o seguinte processo: a sensibilidade
só proporciona impressões desorganizadas e, para pensar, necessitamos organizar
as impressões sensíveis; num primeiro passo, ordenamo-las no espaço e no
tempo, que são formas a priori da sensibilidade; e, num segundo passo,
formulamos conceitos que são também a priori e cumprem a função de fazer
com que a experiência seja inteligível. A substância é um destes conceitos; uma
forma pura que não corresponde a algo real, mas somente ao nosso modo de
conceber: não podemos pensar sem noção de substância, que expressa o que
perm anece através das mudanças. Esta noção nos permite organizar a
experiência de modo inteligível. Não podemos representar as mudanças sem um
sujeito, e é a este sujeito que se refere a categoria de substância.
Na perspectiva kantiana, a substancialidade é uma condição a priori do
conhecimento, que nos permite pensar a permanência dos fenômenos no tempo
e possibilita toda determinação do tempo. A substância é concebida como um
substrato passivo e inerte, sem vida própria: é uma noção que se refere à
permanência dos fenômenos no tempo.
As ideias kantianas estão condicionadas pelo valor que a física de Newton
tinha aos olhos de Kant. Ao imaginar que a física newtoniana tinha um valor
definitivo, Kant procurou fundam entá-la filosoficam ente; a substância
corresponde à matéria newtoniana. O seu quantum ou quantidade permanece;
isto corresponde à constância da massa newtoniana concebida como quantidade
de matéria. Porém, o progresso científico posterior mostrou os limites da física
newtoniana e, portanto, os limites da abordagem kantiana, que pretendia
justificar a validade definitiva desta física.
Kant percebeu corretamente o aspecto construtivo da ciência matemática
da natureza. Este aspecto é muito importante: os conceitos da física matemática
não se obtêm somente por abstração, nós os construímos. Compreende-se que,
ao utilizar o conceito de substância como fundamento da ciência, também
afirmasse que este conceito é uma construção nossa. Kant detém o mérito de
ter assinalado que, para valorizar o conhecimento da natureza, é necessário con
siderar o nosso modo de conceber. Todavia, não conseguiu explicar o real valor
do nosso conhecimento.
As entidades naturais 63
c) Processualismo e energetismo
29. BERGSON, H. Elpensamiento e Io moviente, Buenos Aires: Editorial La Pleyade, 1972, págs. 120-
121.
64 Filosofia da Natureza
30. WHITEHEAD, A. N. Process and Reality. An Essay in Cosmology, New York: Ilarper & Row, 1960,
pág. 55.
As entidades naturais 65
tanto confusa e com certa tendência panteísta, que goza de um grande prestígio
na atualidade.
Nesta cosmovisão, é interessante como se destacam a unidade real de cada
entidade e do conjunto de todas as entidades, o caráter processual da realidade,
a centralidade da ação e a rejeição da imagem mecanicista-atomista. Entretanto,
encontram-se dificuldades devidas à desvalorização da consistência própria de
cada substância, à crítica unilateral da noção clássica de substância, à noção de
autocriação e à tendência panteísta. Nesta filosofia processualista, os aspectos
estruturais e estáveis da realidade são fulminados.
Em determinadas ocasiões afirma-se que o natural consistiria, em última
análise, na energia, um substrato último de tipo dinâmico, cuja concentração
produziria os corpos (partículas subatômicas, átomos, moléculas, corpos
maiores, etc.). Este energetismo encontra-se na linha do dinamismo e do
processualismo. Em seu favor cita-se a equivalência entre massa e energia,
consequência da teoria da relatividade e que se manifesta, por exemplo, na
produção de partículas subatômicas a partir da energia e no processo inverso.
Propõe-se identificar a energia com a matéria prima da tradição filosófica, co
mo se este conceito pudesse concretizar-se agora numa realização física.
Neste caso, tudo estaria feito de energia e as partículas não seriam mais que
energia concentrada31. Às vezes acrescenta-se que, como as diferentes formas
de energia transformam-se umas em outras, a matéria tem a natureza de um
processo32.
Estas afirmações enquadram-se dentro da crítica ao mecanicismo atomista
e, neste contexto, têm certa validade. O mecanicismo atomista afirmava que a
matéria está composta de partículas indivisíveis que não estariam sujeitas a
nenhuma transformação: só poderiam deslocar-se. Na realidade, o mundo
microfísico é enormemente dinâmico.
Entretanto, isto não justifica reduzir a matéria à energia. Com efeito, a
energia e as partículas das quais a física fala não correspondem a conceitos
intuitivos nem filosóficos: são construções que, ainda que se refiram à realidade,
31. Wemer Heisenberg, um dos físicos que formularam a mecânica quântica na década de 1920, sustentou
que “todas as partículas elementares são formadas pela mesma substância, ou seja, pela energia. São as formas
que a energia deve tomar para converter-se em matéria”. HEISENBERG, W., SCHRÕDINGER, E., BORN,
M. e AUGER, P. Discussione sulla física moderna, Torino: Einaudi, 1959, pág. 17.
32. Conforme diz Karl Poppcr, “a matéria não é uma substância, já que não se conserva: pode-se destruir
e criar. Mesmo as partículas mais estáveis, os núcleons, podem se destruir por colisão com suas antipartículas,
transformando a sua energia em luz. A matéria é, então, energia muito comprimida, transformável em outras
formas de energia e, por conseguinte, possuiu a natureza dc. um processo, dado que pode ser convertida em
outros processos tais como a luz e, certamente, o movimento e o calor.”, POPPER, K. R. - ECCLES, J. C. El
yo y su ccrcbro, Barcelona: Labor, 19X0, pág. 7.
66 Filosofia da Natureza
33. De fato, a equação de Einstein é uma relação matemática entre magnitudes físicas: a massa (não a
matérial e a energia. Indica que os valores destas magnitudes relacionam-se mediante a fórmula E = mc2, na
qual E é energia, m massa e r a velocidade da luz no vácuo. Não é, portanto, uma afirmação sobre os conceitos
de matéria e energia em sentido filosófico, mas de magnitudes que se definem de acordo com os procedimentos
da física matemática.
As entidades naturais 67
34. Esta tese é defendida extensamente, a partir de uma perspectiva que pretende estar de acordo com a
filosofia tomista, em: CHALMF.L, Patrich. Biotogie actuelle elphitosophie ihomiste. Paris: Téqui, I‘)X4.
As entidades naturais 69
das entidades naturais, dos sistemas unitários e das substâncias naturais. Não é
compatível, no entanto, com um mecanicismo de tipo cartesiano, que reduz o
vivente a uma simples agregação de partes que não chegam a formar uma nova
unidade estrutural e dinâmica, nem um novo modo de ser35.
35. De fato, na obra mencionada na nota anterior, Chalmal chega à mesma conclusão: afirma que os
viventes são sistemas cibernéticos e critica algumas idéias "vitalistas". mas, ao mesmo tempo, rechaça o
mecanicismo cartesiano e sustenta que os viventes são substâncias: Cfr. ibid., págs. 312-313 e 318-319.
36. Encontra-se uma discussão mais detalhada deste tema em: ART1GAS, M. El problema de Ia
siihslancialidad de Ias partículas elemenlales, Roma: Pontifícia Universidade Lateranense, 1987. Uma
perspectiva também realista, mas diferente da anterior é encontrada em: HARRÉ, R. Varieties o f Realism,
Oxford: Blackwell, 1986 (que tem pontos de contato com o "experimentalismo” sustentado por Ian I lacking,
exposto, por exemplo, em 1IAUK1NG, 1. Representing andIntervening, Cambridge: Cambridge University
Press, 1983).
70 Filosofia da Natureza
de energia bem determinados pelas leis quânticas. Pode-se dizer que, quando
existem de modo independente, são verdadeiros sistemas unitários (e, portanto,
substâncias), já que possuem uma estruturação unitária característica, com seu
correspondente dinamismo unitário. Além disso, tanto a sua estruturação como
as propriedades que dependem dela são bastante estáveis.
As moléculas são compostas de átomos e também possuem uma
estruturação e um dinamismo próprios, unitários e distintos do que seria uma
mera agregação; para separar seus componentes é necessário provocar processos
que alteram as conexões que mantêm unidos os componentes destes sistemas.
Algo semelhante ocorre com as macromoléculas (como os componentes
bioquímicos dos viventes: proteínas, ácidos nucléicos, etc.), cuja estrutura e
dinamismo têm um caráter muito específico, porque possuem uma organização
muito complexa. É fácil aplicar as noções de sistema unitário e de substância
tanto às moléculas como às macromoléculas.
Em resumo, os sistemas microfísicos possuem uma estrutura e um
dinamismo unitários e, por este motivo, pode-se aplicar a eles os conceitos de
sistema unitário e de substância, ao menos quando possuem uma existência mais
ou menos independente. Esta última precisão é importante, porque, em muitos
casos, fazem parte de outros sistemas e, embora costumem conservar muitas das
suas propriedades, são componentes integrados em estruturas unitárias superiores
que são novos sistemas unitários.
c) A substancialidade no nível macrofisico
A partir do nível microfísico - excetuando-se os viventes os novos
estados da matéria geralmente são produzidos por agregação de sistemas micro-
físicos. Portanto, compreende-se que, com exceção dos viventes, a matéria que
se apresenta à nossa experiência ordinária costume consistir em estados de agre
gação que não são propriamente sistemas unitários. Daí as dificuldades frequen
temente encontradas quando se procura aplicar o conceito de substância às
entidades não-viventes.
Nos níveis mesofisico (entidades visíveis e não demasiadamente grandes)
e macrofisico (grandes dimensões) do mundo inorgânico, existem sistemas que
possuem diferentes graus de unidade, integração, dinamismo e funcionalidade
que, em geral, são agregações, nas quais existem diferentes substâncias em
combinações heterogêneas. Vamos mencionar alguns exemplos, que poderiam
ser multiplicados.
No âmbito geofísico, os minerais são, em muitos casos, agregados de
diferentes substâncias químicas e, às vezes, contêm alguma ou algumas
substâncias em estado mais ou menos puro; costuma ser necessário submetê-
As entidades naturais 71
37. Seguindo a hipótese de Caia proposta por James Lovelock, alguns afirmam que a biosfera (o ambiente
tia água, terra e ar, onde se dá a vida à nossa volta) é um sistema único, como um grande organismo. Entretanto,
náo parece possível considerá-la como um sistema unitário individual, tal qual uma substância.
72 Filosofia da Natureza
físico, há uma forte unidade em muitas entidades que, porém, nem sempre pos
suem uma individualidade claramente diferenciada, pois costumam existir como
componentes de sistemas maiores.
Estas pontualizações, longe de serem triviais, permitem perceber qual é
o significado filosófico da substancialidade na natureza. O conceito de subs
tância, que gira em tomo da individualidade e da unidade, representa a existência
de sistemas holísticos que possuem um modo de ser unitário: os seus compo
nentes, embora em parte mantenham os seus caracteres próprios, encontram-se
integrados num novo sistema que possui uma unidade nova, na qual existem
propriedades emergentes e um dinamismo cooperativo. As modalidades do
holismo são enormemente variadas, mas sempre refletem uma característica
comum: a existência de entidades que possuem uma essência ou modo de ser
unitário e que, portanto, são os sujeitos do dinamismo natural.
A negação da substancialidade conduz a uma representação atomizada
da natureza, que se dissolve num conjunto de qualidades ou processos parti
culares. Pelo contrário, a natureza constitui um grande sistema composto por
sistemas particulares que, de um modo ou outro, articulam-se ao redor de siste
mas unitários ou substâncias. A aplicação do conceito de substância mostra que
na natureza existem muitos sistemas unitários, mutuamente relacionados e inte
grados em sistemas gerais, até chegar ao sistema total da natureza. Além disso,
mostra que esses sistemas unitários ou substâncias são sujeitos que possuem
modos específicos de ser. Esta representação da natureza constitui a base de uma
reflexão metafísica na qual ocupam um posto central as noções de essência e
ato de ser e que encontra seu sentido último na participação do ser.
38. Cfr. HUME. D. Treatise of Human Nalure, Oxford, Clarendon Press, 1975, pág. 16. Uma exposição
clara e uma penetrante crítica destas idéias de Hume encontra-se em: CONNEL, R. J. "An Empirical
Consideration of Substance”, in LavaI théotagique etphitosophique, 34 ( 1978). págs. 235-246.
As entidades naturais 73
b) Substâncias e processos
substâncias que, por sua vez, têm seu dinamismo próprio. Não tem sentido opor
ser e devir, estabilidade e dinamismo: são aspectos complementares que se
exigem mutuamente.
A partir do ponto de vista científico, as entidades naturais são sistemas
em equilíbrio. A estabilidade corresponde a equilíbrios de energia e pode se
alterar. Em cada nível de composição da matéria, encontram-se sistemas estáveis,
que correspondem a equilíbrios de energia. O desequilíbrio energético é fonte
de processos e o equilíbrio não significa a ausência de forças ou de dinamismo,
mas significa que as forças estão compensadas. Deste modo, explica-se como a
estabilidade e o dinamismo se combinam. Os equilíbrios referem-se sempre a
condições determinadas; portanto, a estabilidade dos entes físicos não é absoluta
e deixa de existir se as condições não se mantêm dentro dos limites exigidos
por cada situação de equilíbrio.
77
C apítulo III
O dinamismo natural
7. Processos Naturais
40. REAL ACADEMIA ESPANOLA, Diccionario de Ia lengua espanola, 21a. ed., Madrid: Espasa-
Calpe, 1992, pág. 1185.
41. REAL ACADEMIA DE CIÊNCIAS EXACTAS, FÍSICAS E NATURAL.ES. Vocabulário cientifico
y técnico, Madrid: Espasa-Calpe, 1990, pág. 566.
O dinamismo natural 79
42. Uma análise interessante do conceito de informação na biologia encontra-se em: SCHUSTER, P.
“Biological Information. Its Origin and Processing", iir. WASSERNABB, C. e RORGDORFF. B. (editores).
The Science and Theology o f Information, Genebra: Labor et Fides. 1992, págs. 45-57. Sobre a extensão do
conceito de informação a outros âmbitos científicos, cfr. DEL RE, G. “Complexity, Organization, Information”,
in COYNE, G. V. e SCHMITZ-MOORMANN, K. (editores). Origins, Time & Complexit, Part 1, Genebra:
Labor et Fides, 1994, págs. 83-92. Sem dúvida, existe o perigo de utilizar o conceito de informação de modo
impreciso e indiscriminado, porém, a solução não consiste em abandonar este conceito, mas em utilizá-lo
adequadamente.
O dinamismo natural 81
ser e o ser em ato, posto que se tem a capacidade de ser o que ainda não é. Ser
em potência tem, além disso, certa conotação teleológica ou finalista, uma vez
que significa a posse de capacidades ou disposições relativas a específicos tipos
de atos, ou seja, a existência de certa direcionalidade: quando as condições
adequadas estão presentes, as potencialidades atualizam-se: a mudança é
justamente este processo de atualização.
Segundo a definição clássica de Aristóteles, a mudança é o ato do ente
em potência enquanto está em potência43. Isto significa que o ponto de partida
é um ente que não possui uma determinação em ato, mas tem a potencialidade
ou capacidade de chegar a possuí-la e que a mudança não acontece quando esta
potencialidade se atualiza, mas precisamente enquanto está se atualizando. Por
isto, não afirma somente que a mudança é o ato do ente que está em potência;
acrescenta, além disso, que é justamente este ato, mas enquanto o ente é em
potência, ou seja, está atualizando a sua potencialidade: quando possuir a
determinação final em ato, cessará a mudança.
A dificuldade para conceituar o movimento decorre do fato de se tratar de
algo atual, existente na realidade, mas que consiste precisamente no trânsito de
uma potencialidade a uma atualidade. É difícil fixar-se conceitualmente algo que
flui. Aristóteles afirmou que a mudança “é uma espécie de atualidade, ou atuali
dade do tipo descrito, difícil de alcançar, mas não incapaz de existir”44. Esta
afirmação de Aristóteles responde à dificuldade recém mencionada que se
apresenta ao analisar o devir; com efeito, trata-se defixar conceitualmente uma
realidade dinâmica. Ao definirmos o devir, não devemos perder de vista que nos
referimos a um fluxo real, não redutível a uma simples soma de sucessivos estados
estáticos.
Em cada entidade existem diferentes potencialidades. Uma potencialidade
concreta não se atualiza sempre, mas só quando os fatores requeridos se encontram
presentes. A existência de uma potencialidade é uma condição necessária, embora
não suficiente, para que aconteça um determinado processo. Mas, mesmo se não
atualizado, permanece uma capacidade real. De algum modo, equivale a uma
tendência, uma vez que significa a existência de certas possibilidades específicas
que, se são atualizadas, conduzem a um resultado determinado.
A ideia de potencialidade é muito geral. Não é um substituto dos
mecanismos físicos mediante os quais se realizam os processos, nem representa
uma evasão filosófica para evitar investigações detalhadas. É uma concepção
de um modo de ser que é preciso admitir para explicar racionalmente a
a) Processos holísticos
47. “Os biólogos aceitam que as células se reconheçam entre si graças à existência de pares de estruturas
complementares situadas na sua superfície: uma estrutura acomodada na superfície de uma célula porta
informação que a estrutura de outra pode decifrar, ideia que generaliza a hipótese da chave e da fechadura,
formulada em 1897 por Emil Fisher, para descrever a especificidade das interações entre enzimas e substratos.
Paul Ehrlich ampliou-a em 1900 para explicar a elevada especificidade das reações do sistema imunológico.
E, em 1914, Franck Rattray Lillie, da Universidade de Chicago, fez uso da mesma hipótese para destacar o
reconhecimento mútuo de óvulo e espermatozóide. Desde 1920, a hipótese da chave e da fechadura converteu-
se num dos postulados centrais da biologia molecular”. SHARON, N. e LIS, H. “Carbohidratos en el
reconocimiento celular”, Investigacióny ciência, n. 198, março de 1993, pág. 20 (grifos nossos).
92 Filosofia da Natureza
entre si, tanto no nível das células como no dos tecidos, órgãos, sistemas e de
todo o organismo. Estes processos desenvolvem-se através de mecanismos físico-
químicos; portanto, a existência e coordenação dos processos unitários estendem-
se também ao nível físico-químico. Ainda que as perspectivas abertas pelas
ciências nesta direção já sejam muito notáveis, é evidente que estamos somente
começando a explorá-las.
b) Processos funcionais
48. BERNH, Robert M. e LEVY, Mathhew N. Fisiología, 2a. reimpr., Buenos Aires: Editorial Médica
Panamericana, 1987, pág. 56 (grifos nossosl.
O dinamismo natural 93
c) Processos morfogenéticos
Cada célula contém, em seu núcleo, o jogo completo dos cromossomos próprios
da espécie e em cada cromossomo encontra-se o DNA, composto de fragmen
tos denominados “genes”; as células humanas contêm mais de trinta mil genes,
o que supõe aproximadamente três bilhões de bases (as letras do alfabeto
genético). Escrevendo somente a letra correspondente a cada uma das bases, o
código genético ocuparia, no caso de um vírus simples, que codifica oito
proteínas, uma página; no caso de uma bactéria, com três mil genes, ocuparia
duas mil páginas. No caso do homem, com trinta mil genes, ocuparia um milhão
de páginas. É fácil perceber que se trata de uma autêntica biblioteca, com uma
grande quantidade de informações ou instruções necessárias para a execução
de múltiplas funções do programa.
A partir da informação contida no código genético, realizam-se os
processos de transcrição, tradução, regulação, duplicação e correlação de
erros. Alguns genes são reguladores: guiam a expressão de outros genes, estão
relacionados com os planos dos órgãos e da estrutura corporal. De fato, em cada
processo, só se ativa e se transcreve uma pequena fração de genes, de acordo
com as ordens recebidas do citoplasma e de mensageiros produzidos por outras
células. O núcleo e o citoplasma interagem de modo coordenado, formando um
sistema cibernético. Por fim, existe uma hierarquia - que apenas agora se
começa a conhecer - de níveis de controle e execução, coordenada em cada fase
dos processos51.
Só nos referimos a alguns aspectos gerais da morfogênese, que se estende
também, por exemplo, aos processos de regeneração. Estas considerações são
suficientes para mostrar a existência de muitos processos unitários, coordenados
numa sucessão de níveis organizacionais, cujo dinamismo é guiado pela
informação armazenada estruturalmente.
d) Processos cíclicos
51. Sobre este tema, cfr. DE ROBERTIS, E. M. e WRIGHT, C. V. E. “Genes com homeobox y el plan
corporal de los vertebrados”, in Investigación y ciência, n. 168, setembro de 1990, págs. 14-21; BEARDSLEY,
T. “Genes inteligentes”, in Investigacióny ciência, n. 181, outubro de 1991, págs. 76-85.
O dinamismo natural 95
52. Cfr. MURRAY, A. W. e KIRSCHNER, M. W. “Control dei ciclo celular", in Investigación y ciência,
n. 176, maio de 1991, págs. 26-33. Na página 33 encontram-se as seguintes afirmações: “Tanto as leveduras
como as células somáticas de organismos pluricelulares possuem mecanismos para atrasar a entrada em mitose
até que não se replique o DNA e se repare qualquer lesão que tenha sofrido”; “Já sabemos que. em células
somáticas e em embriões avançados, a decisão de replicar o DNA na interfase é sujeita a uma finíssima
regulação, como sucede também com a decisão de iniciar a mitose [...]. [Para esta segunda decisão.] a célula
calcula se cresceu o bastante e pode proceder sem medo à replicaçâo do DNA e. portanto, à mitose. [...] O
passo pelo ponto de arranque está tão controlado como o passo pela mitose [...] acha-se também submetido
ao controle de nutrientes, hormônios, e fatores de crescimento” (grifos nossos).
53. Cfr. DELGADO, .1. M. “Ritmos biológicos", in TRESGUERRES, J. A. E. (editor) Fisiologiahumana,
Madrid: Interamcrcana-McGraw llill, 1992, págs. 1170 c I 174.
96 Filosofia da Natureza
a) A emergência de novidades
54. “Podemos falar de osciladores acoplados de um a outro extremo do mundo natural, mas são
especialmente conspícuos nos seres vivos: as células marca-passo do coração, as células secretoras de insulina
do pâncreas, as redes neuronais do cérebro e da medula espinhal que controlam condutas rítmicas como a
respiração, a circulação ou a mastigação”. STROGATZ, S. H. e STEWART, I. "Osciladores acoplados y
sincronización biológica”, in Investigcición y ciência, n. 209, fevereiro de 1994. pág. 54.
O dinamismo natural 97
b) A auto-organização da natureza
55. Essa amplitude temática foi posta em relevo no Colóquio de Cerisy ocorrido entre 10 e 17 de junho
de 1981 em torno da auto-organização. Os textos do Colóquio foram publicados com o título: L 'auto-
organisation: de Iaphysique aupolilique, Paris: Editions du Seuil, 1983.
56. Os principais temas relacionados com a auto-organização no âmbito da física estão tratados em:
DAVIES, P. (editor). The New Physics, Cambridge: Cambridge University Press, 1989, capítulos 7 a 12.
57. Pode-se ver uma síntese de fenômenos relacionados com a auto-organização em: ARTIGAS, Mariano.
La inteligibilidadde Ia naturaleza, 2a. ed.. Pamplona: EUNSA, 1995, capítulo II.
O dinamismo natural 99
$8. Cfr. DAVIES, P. “The New Physics: A Synthesis”, in DAVIES, P. (editor) The New Physics, op.
cit., págs. 4-5.
100 Filosofia da Natureza
C apítulo IV
A ordem da natureza
59. Encontra-se uma análise filosófica do conceito de ordem em: SANGUINETI, Juan José. Lafilosofia
ciei cosmo in Tommaso J Ai/nino. MiIAo: Ares, 1986, págs. 29-48.
102 Filosofia da Natureza
a) Ordem e estruturação
b) Ordem e pautas
c) Ordem e organização
O nível físico-químico
O nível físico-químico consta, antes de tudo, de componentes microfisicos,
cujas dimensões impedem que se possa observá-los diretamente: as partículas
subatôm icas, os átomos (compostos por partículas), as m oléculas e as
macromoléculas (compostas por partículas e átomos). A partir desses com
ponentes, formam-se agregados, que podem se apresentar em estado sólido,
líquido ou gasoso, conforme seja a intensidade da força que una os componentes
microfísicos entre si.
Mais adiante, analisaremos os conhecimentos atuais sobre a composição
da matéria e os problemas relacionados com este tema.
O nível astrofísico
O nível astrofísico é formado por estrelas, que se agrupam em galáxias, e
de planetas. As estrelas contêm um núcleo no qual ocorrem, a uma temperatura
de milhões de graus Celsius, reações de fusão nuclear nas quais núcleos de
hidrogênio se fundem produzindo núcleos de hélio e liberando uma grande
quantidade de energia. Por essa razão, as estrelas têm luz própria e podem ser
vistas da Terra, ainda que se encontrem a distâncias imensas de nós. Ao contrário,
os planetas são simples agrupamentos de matéria em estado sólido, líquido e
gasoso; não possuem luz própria.
Calcula-se que no universo existam aproximadamente cem milhões de
galáxias e que cada uma contenha entre um milhão e um bilhão de estrelas. Estão
situadas a milhões de anos-luz umas das outras. As galáxias mais próximas da
Terra são as nebulosas de Magalhães; a Grande nebulosa está a 170.000 anos-luz
e a Pequena nebulosa está a 200.000 anos-luz de nós (um ano-luz é a distância que
percorre a luz em um ano, à velocidade de 300.000 quilômetros por segundo). A
seguinte em proximidade é a galáxia de Andrômeda, a 2,2 milhões de anos-luz.
A nossa galáxia tem cerca de 150 milhões de estrelas. O diâmetro do disco
é de uns 90.000 anos-luz e a espessura central é de uns 10.000 anos-luz. A sua
idade é 12 bilhões de anos aproximadamente.
As galáxias são compostas por estrelas, que foram originadas pela
concentração gravitacional do gás interestelar, composto principalmente por
hidrogênio e hélio. Com um simples olhar, podemos observar cerca 6.500
estrelas. A estrela mais próxima de nós encontra-se na constelação do Centauro
e está a uma distância de uns 4 anos-luz. Apenas onze estrelas estão a menos de
10 anos-luz da Terra. A maior estrela visível a olho nu é a “epsilon A urigae”,
com um diâmetro de 3 bilhões de quilômetros e a 3.400 anos-luz de distância
da Terra; ainda que seja enorme, vê-se da Terra como um pequeno ponto, devido
à grande distância que a separa dc nós.
106 Filosofia da Natureza
O Sol é uma estrela de tipo médio. Tem um raio aproximado de 696 mil
quilômetros e encontra-se a uns 150 milhões de quilômetros da Terra. Como
resultado das reações termonucleares do seu núcleo, perde a cada segundo cerca
de 5 milhões de toneladas de matéria, convertidas em energia. Está em plena
atividade há pelo menos uns 5 bilhões de anos e ainda lhe resta combustível para
cerca de 20 bilhões de anos.
As estrelas contêm quase toda a matéria conhecida. São enormes
agregados de matéria que atuam segundo princípios físico-químicos bastante
simples: fenômenos que se desenvolvem em tomo ao núcleo estelar, que funciona
como um gigantesco forno de fusão termonuclear. Têm seu ciclo de formação,
desenvolvimento e desintegração: a sua vida, ainda que costume ser muito longa,
atravessa por diferentes etapas e tem um fim. Nos processos que se desenvolvem
no interior das estrelas formam-se os materiais básicos que servem para a
construção dos planetas e dos viventes. Além disso, a vida que conhecemos
depende da energia que proporciona uma só estrela, o Sol.
As condições de um planeta como a Terra correspondem a leis físico-
químicas. Tendemos a pensar que as condições nas quais vivemos são
absolutamente estáveis. Contudo, em escala cósmica, as condições atuais da
Terra são muito singulares e correspondem a uma fase que teve um começo e
terá um fim. É provável que as condições na Terra tenham sofrido em outras
épocas mudanças bruscas devidas a impactos com outros objetos. Em qualquer
caso, as condições atuais, que tornam possível a vida, dependem da intensidade
de energia que chega do Sol: no futuro, quando mudarem, não mais haverá as
condições necessárias para todas as formas de vida que agora conhecemos,
inclusive para a nossa.
Um dos aspectos que mais chama a atenção no âmbito astrofísico é a
imensidão do universo e, ao mesmo tempo, a semelhança dos processos físico-
químicos que se desenvolvem nas estrelas. Trata-se de um nível de organização
relativamente simples; sem dúvida, no enorme volume das estrelas, desenvol-
vem-se processos muito variados, mas os princípios básicos que os regem podem
ser compreendidos com certa facilidade utilizando-se os conhecimentos atuais
sobre o nível físico-químico. Evidentemente, antes que, já avançado o século
XX, se desenvolvesse a física nuclear, era muito pouco o que se podia saber a
respeito da autêntica natureza e atividade das estrelas.
O nível biológico
A organização da natureza alcança sua máxima expressão no nível
biológico, cuja sutileza se conhece cada vez melhor na atualidade, graças aos
grandes avanços da biologia molecular.
A ordem da natureza 107
c) Teorias de unificação
61. A bibliografia sobre estes temas é muito ampla. Podem-se ver sínteses e discussões, por exemplo,
em: Le monde quantique (obra coletiva dirigida por S. Deligeorges). Paris: Editions du Seuil, 19X4; SELLERI,
Franco. El debate de Ia teoria cuántica, Madrid: Alianza, 1986. Na primeira, B. D’Espagnat expõe uma
interpretação que parece opor-se ao senso comum em sua acepção ordinária. Na segunda, Sallcri mostra-se
partidário de futuras mudanças na teoria quântica, apresentando argumentos que, no entanto, não parecem
totalmente convincentes.
A ordem da natureza 117
12.2. O universo
depende de Deus. Por outro lado, quando os cristãos admitem que o tempo tenha
se originado com o universo e que este não tem uma duração ilimitada, fazem-
no com o apoio na revelação e não em demonstrações científicas ou filosóficas.
62. Pode-se ver um estudo amplo e pormenorizado deste tipo de características em: BARROW, John e
TIPLER, Frank J. The Anthropic Cosmological Principie, Oxford: Clarendon Press, 1986.
A ordem da natureza 121
A integração dos níveis manifesta que existe uma cooperação entre todas
as entidades naturais e entre os diferentes níveis. Por exemplo, o nível biológico
necessita dos níveis físico e químico para a sua composição interna, do geológico
para o seu hábitat e do astrofísico como fonte de energia. Os diferentes níveis
formam um conjunto unitário no qual existem muitas relações cooperativas.
Além da cooperação entre os diferentes níveis contínuos, graduais e
hierárquicos, há outro aspecto da natureza com grande importância para avaliar
a sua perfeição: a sutileza da organização. Com efeito, em cada nível existem
processos muito específicos que se desenvolvem em passos coordenados e
possibilitam a organização singular do nosso mundo. Este desenvolvimento do
dinamismo natural pode ser contemplado em função de uma informação que se
armazena e se desenvolve estruturalmente em torno de pautas.
Por exemplo, no nível físico-químico, com muito poucos componentes e
leis básicas se obtém uma imensa variedade de compostos que tornam possível a
existência dos demais níveis de organização. Esse nível básico de organização
corresponde a pautas específicas, que podem ser contempladas como princípios
estruturais que já conhecemos com certo detalhe; não é o resultado de uma espécie
de caos. Existe o acaso no sentido de coincidência acidental de diferentes dinamis-
mos, mas cada um dos dinamismos e a integração entre eles desenvolvem-se de
acordo com pautas. Os princípios estruturais básicos são simples - interações
básicas, como o princípio da exclusão, os princípios da conservação, etc. mas
124 Filosofia da Natureza
que tudo o que ocorre tem causas próprias, também o que dissemos que acontece
com o acaso. Se concentrarmos a atenção só nas causas naturais dos fenômenos,
podemos afirmar não só que existem fatores aleatórios, mas que eles existem
abundantemente e que contribuem em grande medida para a produção da ordem
que observamos na natureza. Mas isso não tem nada a ver com outorgar à
desordem ou ao caos em sentido próprio uma função causai. É possível, inclusive,
pensar que, às vezes, a desordem é consequência de um excesso de ordem, que
tem lugar quando vários tipos diferentes de ordem ocorrem num mesmo
processo63.
Essas reflexões permitem compreender que, quando afirmamos que a
natureza possui uma organização muito sutil e sofisticada, não esquecemos a
existência de muitos aspectos que, sob determinados pontos de vista, são
desordenados ou casuais. Além disso, permitem desfazer alguns equívocos que
se baseiam em ideias simplórias acerca da ordem e da desordem. Isto acontece,
por exemplo, quando se afirma que a ordem natural haveria surgido por acaso a
partir de um caos primordial, identificando umas condições físicas violentas com
uma situação caótica64. Na realidade, que uns determinados efeitos sejam
produzidos por choques entre milhões de partículas em contínua agitação não
equivale a um caos em sentido estrito, ao menos que se afirme que estes choques
e seus efeitos não sigam nenhuma pauta natural: mas a ciência prova exatamente
o contrário.
63. Cfr. WEISS, P. “Some Paradoxes Relating toOrder”, in KUNTZ, P. G. (editor). The Concepl o f Order,
Scattlc-London: The Univcrsity of Washington Press, 1968, pág. 16.
64. (Tr. MORIN, li. Et Método. /. l.o naturaleza de ht Naturaleza, Madrid: Ediciones Cátedra, 1981,
págs. 76-78 e 82.
126 Filosofia da Natureza
C apítulo V
O ser do natural
a) A perspectiva científica
65. Para uma explicação ampla destes problemas, cfr. ARTIGAS, Mariano. Filosofia da ciência
experimental. A objetividade e a verdade nas ciências, op. cit., capítulo 6.
O ser do natural 131
a) Unidade e pluralidade
b) Dinamismo e interação
66. Aristóteles afirmou que “a ciência da natureza trata sobre as extensões, o movimento e o tempo”.
Cfr. Física, 111,4, 202 b 30-31.
O ser do natural 135
mutabilidade; sabemos, com efeito, que em todas as entidades, mesmo nas mais
estáveis, ocorrem contínuas mudanças, pelo menos no nível microfísico.
b) O conceito de matéria
67. Encontra-se uma série de estudos sobre a evolução do conceito científico e filosófico de matéria em:
McMl H I IN, E (editor). TheConccptof Mattcr, Notre Dame (Indiana): University ofNotre Dame Press, 1963.
136 Filosofia da Natureza
d) Características do natural
Cada substância tem o seu próprio modo de ser, mas qualquer modo de ser natural
é, a princípio, repetível em diferentes indivíduos: responde a um “tipo" genérico.
Neste sentido, um mesmo “tipo” existe individualizado em seres que possuem
umas dimensões materiais concretizadas no espaço e no tempo: ainda que o
“tipo” (as determinações do modo de ser) seja o que caracteriza um indivíduo,
as determinações materiais concretas explicam que o mesmo tipo pode existir
em indivíduos numericamente diferentes. Por isso, ao se falar da matéria como
princípio de individuação, é comum acrescentar que se trata da “matéria deter
minada pela quantidade” (materia quantitate signata). Assim, sublinha-se que
não se trata das condições materiais indeterminadas, mas determinadas em uma
quantidade concretizada espacial e temporalmente.
Em terceiro lugar, diz-se - e compreende-se facilmente - que a materia
lidade implica contingência, ou seja, ausência de necessidade. Por um lado,
porque o material é mutável e, de fato, está submetido a circunstâncias que podem
provocar mudanças. E, por outro, porque esta mutabilidade se estende inclusive
à essência dos seres materiais, que podem deixar de ser o que são e se trans
formarem em outros seres diferentes. Na perspectiva aristotélica, a individuação
material também representa um caminho que permite aos seres materiais imitar
os incorruptíveis, porque um mesmo modo de ser pode perpetuar-se através da
multiplicação numérica. Os viventes, mediante a geração, transmitem o seu modo
de ser a outros indivíduos e, deste modo, perpetua-se a espécie, ainda que os
indivíduos pereçam. Sob esta perspectiva, costuma-se afirmar que a matéria
implica necessidade; mas esta necessidade não se opõe à contingência que aca
bamos de examinar. Significa determinação no modo de agir, ausência de
liberdade. Não nos deteremos agora nos problemas do indeterminismo: qualquer
que seja a sua solução, é evidente que a autoconsciência e a liberdade supõem
um modo de ser que transcende as condições materiais.
Em quarto lugar, a materialidade relaciona-se com a existência do impre
visto na natureza. De fato, facilmente ocorrem mudanças nas condições materiais
e, assim, introduz-se certo acaso que se opõe à regularidade perfeita. A expe
riência mostra que as nossas possibilidades de atuação encontram-se limitadas
pelas contínuas variações das condições materiais.
Em quinto lugar, a materialidade implica, por um lado, a existência de
limites ao nosso conhecimento, e por outro, a possibilidade de um conhecimento
mensurável e controlável. No primeiro sentido, Aristóteles afirma que “a matéria
enquanto tal é incognoscível”77. Com efeito, algo se conhece através da sua
atividade; mesmo as propriedades que parecem passivas, como a cor, corres
utilizar, sempre que for possível, uma linguagem que evite o perigo de
substancializar as formas.
78. Encontra-se um bom estudo desta questão na obra já citada de Jesús DE GARAY, Los sentidos de
In formo en Aristóteles.
146 Filosofia da Natureza
propriamente ditos, e de ens quo ou ente pelo qual (no plural, entia quibus) para
designar os princípios do ente, que não são entes nem sujeitos. De acordo com
esta terminologia, a forma é um ens quo, ou seja, um ente pelo qual algo é ou
tem o ser ou tem um determinado modo de ser. Essa terminologia continua sendo
substantiva - já que se fala das formas como “entes” - , mas sublinha
expressamente que se trata de entes em um sentido especial: não são entes
completos, mas determinações do ente. Definitivamente, é importante reafirmar
que as formas não existem por conta própria. O que existe são as substâncias
individuais, que possuem um modo de ser especialmente determinado (forma
substancial) que se realiza em condições materiais (matéria prima).
Enquanto as formas são determinações do modo de ser, pode-se dizer que
os entes têm o ser “através” das formas. O ditado clássico “a forma dá o ser”
(forma dat esse) não pode ser entendido como se previamente à sua existência
material a forma tivesse um ser próprio e, num certo momento, o “comunicasse”
à matéria ou ao ente. O que tem o ser, age e se transforma, é a substância
individual. Porém, é necessário acrescentar que a forma se refere a um ser real;
podemos explicar como funciona uma célula, mas a célula viva possui um ser
real que não se reduz às nossas explicações: “ser célula” é um “modo de ser”, e
convém sublinhar que é um modo de “ser”. Nesse sentido, é certo que a forma
dá o ser, embora seja preciso evitar as possíveis interpretações substantivas ou
coisistas desta expressão.
Nessa mesma linha, deve-se advertir que, quando se afirma que a forma
é causa (“causa formal”), isto não significa que a forma cause ao modo da causa
eficiente ou agente. A causa formal é a determinação do modo de ser. Porém,
trata-se de uma determinação real, de um modo de ser real.
Em sentido próprio, as formas não se geram nem se corrompem. A forma
existe quando começa a existir o ente ao qual corresponde, e deixa de existir
quando este ente se transforma em outro diferente. Diz-se que as form as
materiais se “deduzem ” da potencialidade da matéria; isto significa que não
possuem um ser próprio, independente: são “produzidas” a partir das trans
form ações que têm a m atéria como substrato, são o resultado destas
transformações. Os conhecimentos atuais sobre a “auto-organização” da matéria
referem-se à produção de novas estruturas e padrões de atividade que surgem
como consequência das interações cooperativas dos componentes.
Advertimos, novamente, que estas considerações se referem às “formas
materiais”, ou seja, às formas dos seres naturais que incluem condições materiais
e não podem existir fora delas. Quando consideramos o caso da alma humana
espiritual, devem-se acrescentar novas considerações a respeito das dimensões
espirituais e suas implicações.
148 Filosofia da Natureza
79. A esse respeito, efr.: CENCILLO, L. "Hyle Origen, concepto y funciones de Ia matéria en el
"Corpus Aristotelicum", Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1958; HAPP, H. "Hyle"
Studium zem aristotelischen Materie-Begriff Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1971; LESZL, W. “La
Matéria in Aristotele", In Rivista Crítica iti Storia delia Filosofia, 28 (1973), págs. 243-270 e 380-401; 29
(1974), págs. 144-170.
80. Cfr. PLATÀO, Timeo, 50 b 8-c3; 50 e 4-5; 51 a 4 - b2. Nestas passagens, Platão refere-se ao
receptáculo que recebe todas as coisas e nunca toma nenhuma forma, acrescentado que é por natureza a matriz
de tudo, c estruturado de diversas maneiras pelas coisas que lhe advêm, que se encontra fora de todas as formas,
que é a mãe de tudo, invisível e sem forma, receptivo dc tudo.
O ser do natural 151
81. Cfr. CHARLTON, W. Aristotle’s PhysicsBooksIandII, Oxford: Clarendon Press, 1970: Appendix:
“Did Aristotle Bclicve in Prime Matter?” pags. 129-145.
82. Aristóteles afirma que “a matéria é algo relativo; porque a tal forma, tal matéria”. Cfr. Física, II, 2,
194 b 8-9.
152 Filosofia da Natureza
83. “A matéria é potência e a forma ato": ARISTÓTELES, Acerca da alma, II. I, 412 a 9-10.
O ser do natural 153
indivíduos entro de uma mesma espécie A estes três níveis, que se encontram
no âmbito físico, dever-se-ia acrescentar-se um quarto, caso se considere a
relação entre o âmbito físico e o metafísico.
Em primeiro lugar, o hilemorfismo foi formulado para explicar a
possibilidade da mudança. A necessidade de admitir um substrato em toda
mudança parece evidente, pois, caso contrário, não seria possível falar de
transformações, mas apenas de aniquilamentos e criações. Afirma-se, então, que
em toda mudança existe um sujeito que se encontra em potência para adquirir
uma forma e a mudança consiste precisamente no processo de atualização dessa
potencialidade. O sujeito desempenha a função de matéria em relação à forma
adquirida através do processo: trata-se da matéria prima nas mudanças
substanciais e da matéria segunda nas mudanças acidentais.
Em segundo lugar, aplica-se o hilemorfismo à construção dos corpos. Os
corpos naturais são essencialmente mutáveis e, portanto, têm de possuir a
composição de matéria e forma que, como acabamos de assinalar, explicam a
possibilidade da mudança. Os diferentes modos de ser são concebidos como
formas ou determinações da matéria.
Em terceiro lugar, o hilemorfismo explica a multiplicidade de indivíduos
dentro de uma mesma espécie. Se os corpos são constituídos por matéria e forma,
a forma refere-se ao que caracteriza cada espécie e a matéria às condições
concretas nas quais este tipo geral existe. Compreende-se, deste modo, que um
mesmo tipo de forma possa existir em indivíduos diferentes.
Estes três níveis explicativos concernem ao mundo físico e relacionam-
se entre si. Além desses, podemos considerar outro nível, referente à relação
entre o mundo físico e o metafísico. Sob esta perspectiva, o hilemorfismo reflete
a existência de uma gradação de perfeições em função dos distintos graus de
imaterialidade. E, à luz de uma metafísica criacionista, a natureza revela-se como
a realização, através de condições materiais, de um projeto racional. A
informação pode ser considerada como racionalidade materializada e os
diferentes graus de ser, como estratos que possibilitam a existência de uma
natureza cujo cume é um ser propriamente racional: a pessoa humana, que, ao
mesmo tempo em que existe em condições materiais, as transcende.
S egunda P arte
159
C apítulo VI
Dimensões quantitativas
a) O quantitativo
b) O qualitativo
fogo é caracterizado como quente, a neve é branca e fria e o maná é branco e doce
por causa das idéias que produzem em nós.”87.
Na época posterior, com freqüência continuou-se a negar a realidade das
qualidades e pretendeu-se justificar esta negação nos progressos da ciência
matemática da natureza.
Centraremos imediatamente a nossa atenção nos aspectos concretos das
dimensões quantitativas. Esta análise tentará demonstrar que o quantitativo não
existe separado do qualitativo e preparará o caminho para determinar o caráter
objetivo das qualidades.
87. LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding, livro II, capítulo VIII, n. 15 (a traduçào
foi extraída de: LOCKE, J. Ensayo sobre el entendimiento humano, Madrid: Editora Nacional, 1980, vol. I,
prtgs. 209-210).
164 Filosofia da Natureza
b) A extensão
Segundo a definição clássica, é extenso o que tem partes que estão umas
“fora” das outras (partes extra partes, em latim). É fácil perceber que esta
definição é quase uma tautologia, já que a ideia de partes mutuamente externas
limita-se a explicitar o que já implica a ideia de extensão. Mas é inevitável que
seja assim; com efeito, a extensão é um conceito primário que dificilmente pode
ser explicado com o uso de conceitos mais conhecidos.
A idéia de extensão relaciona-se com a experiência sensível, sobretudo
com a que provém da visão, da audição e do tato. É aplicável, sobretudo, às
entidades, embora, em sentido amplo, também se aplique na vida ordinária a
tudo o que implica distâncias espaciais. É precisamente neste sentido ampliado
que se encontra estreitamente vinculada ao conceito de espaço, analisado mais
adiante.
Neste âmbito, quase todas as discussões filosóficas centram-se em tomo
do espaço; da extensão como tal, não parece possível dizer muita coisa.
Entretanto, sublinharemos um aspecto que não costuma ser mencionado, embora
seja importante: a estruturação espacial.
Temos destacado desde o princípio deste capítulo que a estruturação é
um aspecto básico do natural. Além disso, dissemos que, embora nem tudo na
natureza seja pauta, tudo se articula em tomo das pautas. No âmbito espacial,
estas pautas são as configurações. Essas idéias desempenham uma importante
função dentro de uma representação fiel do natural. De fato, se considerarmos
tão somente a extensão em geral, obteremos uma imagem indiferenciada da
natureza; não obstante, a natureza possui modos de ser muito específicos que,
em grande parte, se manifestam através das configurações espaciais. Uma nova
menção à filosofia cartesiana ajudará a perceber a importância deste problema.
88. Cfr. GALILEI, Galileu. 11 saggiatore, in Opere, Firenze: Barbèra, 1899-1909, vol. VI, págs. 347-
348.
89. Cfr. DESCARTES, R. Los princípios de la filosofia, 2a. parte, n. 64 {in Oeuvres, editadas por Ch.
Adam e P. Pannery, Paris: Vrin, 1996, tomo VIII-1, págs. 78-79); Meditationes de prima philosophia, mcd.
3, ns. 45-46 {ibid., vol. VII, págs. 43-44).
Dimensões quantitativas 167
a) Continuidade
b) Divisibilidade
Dado que a extensão consiste em ter umas partes fora de outras, tudo o
que é extenso é divisível. Efetivamente, não se entende como poderí amos chegar,
por divisão, a partes inextensas; nem sequer entende-se como poderi a existir um
ser material inextenso.
Referimo-nos, claro, à divisibilidade “em tese”. Na prática, esbarramos
com limites que impossibilitam continuar a divisão. Estes limites práticos
existem sempre, ainda que cada vez cheguemos a obter partes cada vez menores.
É possível até que exista algum tipo de limite infranqueável para a divisão física;
no entanto, nem sequer neste caso poderíamos afirmar uma indivisibilidade
absoluta: o material é extenso e, em tese, é sempre divisível, mesmo se, devido
às condições físicas, não for mais possível continuar o processo de divisão.
Uma objeção clássica consiste em dizer que, se o extenso pode ser dividido
indefinidamente, isto significaria que está composto de infinitas partes; neste caso,
entidades finitas estariam compostas de infinitas partes e deveriam ter uma exten
são infinita, o que é contraditório. Este aparente paradoxo costuma aparecer sob
o título de divisibilidade do contínuo. A resposta é também clássica e consiste em
distinguir a “divisibilidade potencial”, que sempre pode prosseguir indefinida
mente, e a “divisão atual”, que sempre proporcionará um número finito de partes:
nunca chegaremos a partes que, a princípio, sejam indivisíveis, de tal modo que
sempre será possível prosseguir a divisão, sem que, contudo, cheguemos a obter,
em nenhum momento, um número infinito de partes em ato.
c) Mensurabilidade
d) Individuação
O quantificado tem uma individuação que se deve precisamente à
quantidade. Com efeito, tudo o que possui quantidade possui, automaticamente,
individuação, porque é extenso e tem umas partes individuais fora de outras.
Atribui-se a individuação das entidades materiais à materialidade e à
quantidade. Seguindo uma expressão clássica, pode-se dizer que o princípio de
individuação dos entes materiais é a matéria determinada pela quantidade
(materia quantitate signata). Assim, mesmo supondo hipoteticamente duas
entidades materiais com modos de ser completamente idêntico, elas serão
diferentes, pois este modo dc ser estará presente em dois indivíduos
Dimensões quantitativas 169
18.2 O número
imaginária e o número “i” que é a raiz quadrada de menos um) e outros tipos
de números cuja definição e uso são objeto da matemática.
distinta de perfeição. Isto foi claramente percebido por Tomás de Aquino quando
escreveu: “Ainda que Deus criasse um ser corpóreo infinito em ato, este ser
corpóreo seria infinito em sua quantidade dimensional, mas teria uma natureza
necessariamente determinada em sua espécie, que seria limitada precisamente
porque é uma coisa natural. E, conseqüentemente, não seria igual a Deus, cujo
ser e essência é infinito em todos os sentidos”91. Por este motivo, Tomás de
Aquino sempre sustentou que um universo que possuísse uma duração eterna
deveria igualmente ser criado por Deus, ainda que pela revelação o cristão saiba
que o universo teve um começo.
O infinito ocupa um lugar importante na matemática e foi objeto de
teorias nas quais se distinguiram tipos distintos de infinitude. Contudo, quando
se aplica a matemática à física e nos resultados aparecem quantidades infinitas,
os físicos devem encontrar meios de eliminá-las.
realidade. Esta linha foi, de algum modo, continuada pelo platonismo, segundo
o qual os objetos matemáticos eram considerados existentes num mundo ideal,
do qual participam as coisas sensíveis. Para Aristóteles, a matemática é o estudo
abstrato da quantidade que, embora exista no mundo físico, é considerada pela
mente fora da matéria sensível.
Os pioneiros da ciência m oderna no século XVII atribuíram uma
importância decisiva à matemática. Já vimos que Descartes chegou a identificar
a substância material com a extensão, o que lhe permitia justificar a função
insubstituível da geometria no estudo da natureza. Galileu afirmou que a natureza
é como um livro escrito em linguagem matemática. Desde a consolidação da ciên
cia experimental naquela época, a matemática continuou o seu desenvolvimento
e propôs novas interpretações filosóficas que, em boa parte, giravam em tomo do
racionalismo e do empirismo. O racionalismo chegava, nos casos mais extremos,
a outorgar à matemática um caráter a priori, independente de toda experiência, en
quanto que o empirismo sublinhava que a matemática depende da experiência.
Durante a segunda metade do século XIX, algumas importantes novidades
levaram os teóricos a repensar os conceitos fundamentais tanto da física quando
da matemática. Na física, chegou-se a pensar que a obra de Newton tinha um
caráter definitivo e que os ulteriores progressos só seriam acréscimos de novos
elementos a um edifício já construído; novas abordagens foram minando estas
idéias e prepararam o terreno para a teoria da relatividade e para a física quântica
que, desde o século XX, provocaram uma mudança radical na avaliação das
teorias físicas. Na matemática, desde a Antigüidade, admitia-se a validade da
geometria euclidiana, considerada inclusive como a geometria própria do mundo
real; todavia, mostrou-se que era possível construir geometrias não-euclidianas,
que eram logicamente consistentes e que foram aplicadas com grande êxito às
novas teorias da física.
Esta renovação da matemática e o desenvolvimento da lógica simbólica
conduziram a novas idéias na filosofia da matemática, nas quais intervieram
muitas vezes não só os filósofos, mas também os matemáticos. O logicismo tentou
reduzir a matemática a princípios meramente lógicos, chegando a identificar de
algum modo a matemática com a lógica. Oformalismo sublinhou a importância
da axiomatização, tentando uma autofundamentação da matemática na qual não
seria necessário recorrer a princípios intuitivos externos. Os famosos trabalhos
realizados por Kurt Gödel em torno de 1931 mostraram os limites com os quais
esbarra qualquer tentativa de formular sistemas matemáticos de forma totalmente
auto-suficiente, mesmo quando se trata de ramos simples da matemática. O
intuicionismo, por sua vez, rechaçava o platonismo dos lógicos; negava que os
entes matemáticos tivessem uma espécie de existência ideal própria e sublinhava
178 Filosofia da Natureza
que são o resultado das nossas construções mentais, motivo pelo qual também
estava em desacordo com os formalistas: em última instância, seria preciso
recorrer a certas intuições primitivas.
As correntes mencionadas deram lugar a abordagens sincréticas e a
matizações entre seus defensores. Em geral, admite-se que a matemática não é
redutível à lógica e tampouco parece correto afirmar que seja um conjunto de
construções meramente convencionais.
Sem dúvida, a matemática é construção nossa. Algumas de suas noções
mais elementares guardam estreita relação com a experiência: sobretudo os
números inteiros positivos e os fracionários. Entretanto, quando introduzimos uma
notação matemática abstrata e definimos operações que não se relacionam
im ediatam ente com a experiência, criam os um mundo que possui certa
consistência própria. Com efeito, uma vez que definimos um determinado sistema
matemático, podemos descobrir muitas propriedades e conclusões que pareciam
estar à espera de que as descobríssemos, porque são uma conseqüência do sistema
que construímos. Às vezes acontece que se descobrem conclusões cuja validade
parece clara e que, não obstante, não têm, de modo algum, vida própria.
l12. RAYLHKilI, Lord. The Theiry ofSound. New York: Dover, 1945, prefácio. A citação foi extraída
de IIOWARD, John N. "Principalcs contribuciones de John Willian Strutt, tercer baron de Rayleigh'', in AR1S,
Rulhcrlbrd, DAV1S, lloward T. e STUHWLR, Roger II. (editores). Resortes de Ia creatividad cientifica:
cnsoyos sobre fundadores de Io ciência moderno, México: l-ondo de cultura econômica, 1989, pág. 150.
180 Filosofia da Natureza
93. lhicl. A frase ií extraída da Introdução de Lindsay íl obra de Rayleigh citada na nota anterior.
181
C apítulo VII
Espaço e Tempo
95. TOMÁS DE AQUINO aborda este tema em seu comentário à Física de Aristóteles: cfr. In Phys.,
IV, lectio 4.
Espaço e tempo 185
96. TOMÁS DH AQUINO explica a onipresença do Criador no universo por essência, potência e
presença: cfr. Snmma Theotogiae, I, q. 8, aa. 1, 3 e 4.
97. É um problema difícil e muito debatido, sobre o qual não há unanimidade entre os cientistas. Existe
uma ampla bibliografia. Cfr.. por exemplo: RED] 1EAD, M. lncompteteness, nonlocality, andrealism, Oxford:
Oxfor Universitv Press, 1987. Sobre as repercussões, tanto científicas como filosóficas, deste problema, cfr.
SUÁREZ, A. '"Unentscheidbarkeit. Unbestimmtlieit. Nicht-Lokalitãt. Gibt es unverfügbare
Causalverbindungen in der physikalischen Wirklichkeit?", in REICHEL, H. C. e PRAT, E. (editores).
NaturWissenschft un Weltbild. Mathematik und Qnantenphysik in unserem Denk - und Wertesystem, Wien:
Verlag Holder-Pichler-Tempsky, 1992, págs. 223-264.
98. O experimento mais famoso neste sentido foi o realizado por Alain Aspect e sua equipe em Paris,
em 1982. Foi uma versão do experimento proposto por Einstein em 1935, a respeito das primeiras discussões
sobre a teoria quântica. Uma introdução a estes temas encontra-se em: ARTIGAS, M. El homhre a Ia luz de
Ia ciência, Madrid: Palabra, 1992 (capítulo "Hl microcosmos y el hombre"). págs. 47-70.
Espaço e tempo 187
21.2 O espaço
a) A noção de espaço
99. Cfr. DRIESSEN, Alfred & SUÁREZ, Antoine (editores). Mathematical Undecidability, Quantum
Nonlocality and the Question ofthc Existence ofGod, Dordrecht: Kluwer, 1997.
100. As cinco cartas de Leibniz e as respostas de Clarke encontram-se em: RADA, Eloy (editor), La
polemica l.cihniz-Clarkc, Mmlrid: Tniirus, 1980.
188 Filosofia da Natureza
b) A realidade do espaço
não seria uma substância, pois seria continente de todas as substâncias; tampouco
seria um acidente, pois é concebido como independente de todo o material: não
se sabe, pois, que tipo de realidade teria.
O espaço concebido como uma forma a priori de nosso conhecimento,
como quis Kant, também não existe. Com efeito, não é uma noção independente
da experiência. Trata-se, como já percebemos, de uma relação de razão com um
fundamento na realidade: a extensão real dos corpos e das relações de distância.
Kant identificou o conteúdo da noção de espaço com o espaço da geometria
euclidiana, dotado das propriedades que a física newtoniana (de cuja verdade
definitiva estava convencido) lhe atribuía; o ulterior progresso da matemática,
a partir do qual se construíram espaços não-euclidianos, e da física, a partir da
qual estes espaços foram aplicados, mostram que a idéia de Kant não é, na
realidade, uma parte, conseqüência ou exigência da ciência.
As especulações atuais sobre o espaço e o tempo nos primeiros instantes
do universo possuem, como se percebeu, um caráter altamente hipotético. Em
qualquer caso, parece possível formular três observações. Por um lado, tanto o
espaço como o tempo dependem da realidade física: acompanham-na como um
dos seus aspectos; portanto, se as condições materiais no começo do universo
foram muito diferentes, isto se pode ver refletido nas relações espaciais e
temporais, que puderam ser diferentes do que mostra a experiência ordinária em
nossas circunstâncias atuais. Mas, por outro lado, não tem sentido afirmar, como
se fez em algumas ocasiões, que naquelas condições poderiam existir processos
tais como a inversão temporal (viagens ao passado ou prioridade de eventos que
conhecemos como posteriores). Finalmente, tampouco tem sentido postular a
existência, a princípio, de um espaço-tempo sem matéria, que presumivelmente
poderia ter surgido do nada como resultado de um processo quântico; de fato,
além do nonsense que representa uma criação sem Criador, não parece possível
atribuir uma realidade própria a um espaço-tempo sem matéria.
O espaço não pode ser identificado com um vazio ontológico que, a
princípio, não seria nada e não pode existir como algo real. Quando nas ciências
experimentais se fala do “vazio”, este termo é utilizado para designar um estado
no qual apenas existem umas poucas propriedades detectáveis; mas isto não
exclui a existência de todas as propriedades materiais: pelo contrário, o vazio
de que fala a ciência é definido de acordo com propriedades determinadas e
inclusive distinguem-se diferentes tipos de vazio, tais como o “vazio clássico”
e o “vazio quântico”, estudados mediante teorias da física. A noção de “nada”
expressa antes um pseudoconceito, visto que, por definição, não lhe corresponde
absolutamente nada na realidade. A existência de um espaço vazio no qual não
houvesse absolutamente nada carece de sentido.
Espaço e tempo 191
22.1 A duração
101. Cfr. SARANYANA, Josep I. “Santo Tomás. «De aeternitate mundi contra murmurantes»”, in
Anuário Filosófico, 9 (1976), págs. 399-424. Esta obra contém o texto de S. Tomás com introdução e
comentários.
Espaço e tempo 197
22.3 O tempo
102. Atualmente, existe uma rede de artefatos distribuídos pelo mundo, que são relógios atômicos de
césio controlados continuamente mediante procedimentos nos quais intervém sinais de rádio, televisão e
satélites. Os dados são recolhidos e analisados pela Oficina Internacional de Pesos e Medidas de Sèvres, próximo
de Paris, de onde se transmitem sinais que são recolhidos e emitidos por rádio. Utilizado em experimentos, o
mais preciso relógio por fonte de césio entrou em funcionamento em 1999, com uma incerteza de 1,7 partes
em 10-15, que corresponde a um erro de 1 segundo em cerca de 20 bilhões de anos.
103. ARISTÓTELES. Física, IV, 11,219 b 1-2.
104. Cfr. CON1LL. J. ”(,f lay tiempo sin alma?”, in Pensamienlo, 35 (1979), pág.s. 195-222; £7 tiempo
en Ia filosofia de Aristóteles. Utt estúdio dedicado especialmente al análisis dei tratado dei tiempo (Fisica
IV, 10-14), Valencia: Facultad de Teologia San Vicente Ferrer, 19X1.
Espaço e tempo 199
O conceito geral de tempo é uma abstração que supõe uma ampliação dos
conceitos de duração e de relação temporal: abrange todas as durações e todas
as relações temporais. O tempo abstrato tem certo caráter de totalidade, já que
a mente relaciona a ele todos os acontecimentos, sejam passados, presentes ou
futuros.
Neste contexto, pode-se dizer que só o tempo presente existe realmente:
com efeito, o passado já não existe e o futuro ainda não existe. Em nosso
pensamento, podemos considerar o passado e o futuro, mas fora dele existe
somente o presente. Evidentemente, os acontecimentos passados têm reper
cussões nos presentes e os presentes têm nos futuros: mas o que existe agora,
independentemente de toda consideração mental, é o presente, com determinadas
relações com os acontecimentos passados e futuros.
Levando em conta o paralelismo, parcial, mas importante, entre os
conceitos de espaço e tempo ao longo da história, algumas reflexões que
expusemos a propósito do conceito de espaço podem ser aplicadas, com as
oportunas matizações, ao conceito de tempo.
Concretamente, o tempo não corresponde a uma entidade real: a duração
e as relações temporais são reais, mas o tempo não tem uma existência
independente delas. Portanto, valem também para o tempo as observações que
a propósito do espaço foram feitas sobre a física newtoniana, na qual se susten
105. Cfr. W1UTROW, (i. J. Time in History: Views ofTimefrom Prehistory to the PresentDay, Oxford:
Oxford University Press, 10X0.
200 Filosofia da Natureza
C apítulo VIII
Aspectos qualitativos
quantidade sem forma seria, por assim dizer, cega. Negar o qualitativo equivale
a negar que realmente existem modos de ser.
Entretanto, ainda que se admita a existência de qualidades reais na
natureza, existem algumas interrogações que afetam a objetividade que podemos
atribuir a estas qualidades: como as conhecemos? Podemos dizer que as coisas
possuem as qualidades tal como nós as percebemos? Em que medida o nosso
conhecimento está condicionado pelo nosso modo particular de captar a
realidade?
a) Qualidades primárias e secundárias
No mecanicismo cartesiano e no empirismo pós-cartesiano, cunhou-se
uma terminologia que sobrevive até o presente momento. Características
quantitativas tais como magnitude, figura e movimento local corresponderiam
a qualidades prim árias, propriedades reais da natureza. Por outro lado,
qualidades sensíveis como cor, sabor, som, etc. (os objetos diretos dos nossos
sentidos) seriam qualidades secundárias, que não são propriedades reais, mas
efeitos que as coisas produzem nos nossos sentidos. Estaria estabelecida,
portanto, uma dicotomia entre o quantitativo, que seria objetivo e poderia ser
estudado pela matemática, e as qualidades, que existiriam somente no sujeito
cognoscente.
Esta dicotomia costuma ser apresentada como se estivesse apoiada pela
perspectiva quantitativa da ciência experimental, que consegue estudar as
qualidades primárias de modo intersubjetivo, o que não é possível com relação
às qualidades secundárias.
Para esclarecer este problema é importante compreender a função da
matemática no estudo da natureza. Os conceitos matemáticos, especialmente os
mais abstratos, são construções nossas. É possível aplicar a matemática nas ciên
cias naturais, pois definimos as magnitudes em relação com as formulações
matemáticas e com os experimentos. O êxito destas construções não contradiz
a existência das qualidades.
O progresso científico permite conhecer muitos processos físicos que
intervêm na sensação, tais como os fenômenos eletromagnéticos relacionados
com a luz e com a visão e os mecanismos cerebrais relacionados com a
percepção. Levando em conta os conhecimentos atuais, não é difícil verificar
as deficiências do realismo e do subjetivismo radicais, que são concepções
extremas acerca da objetividade das sensações e das qualidades.
O realismo das qualidades em sua forma extrema, ou seja, a doutrina
segundo a qual as qualidades sensíveis existem na realidade tal como as
percebemos, não parece sustentável. Nos órgãos dos sentidos recebemos sinais
214 Filosofia da Natureza
107. Cfr. NASSAU, K. “Las causas dei color", in Investigación v ciência, n. 51, dezembro de 10X0, págs.
56-72; TRIÍISMAN, A. “Características y objetos dei procesamiento visual”, in Investigacióny ciência, n.
124, janeiro de 1987, págs. 68-78.
Aspectos qualitativos 215
108. Cfr. HARRÉ, R. "Powers”, in The Brilish Journalfor lhe Philosophy ujScience, 21 (1970), p. 81-101;
THOMPSON, I. J. “Real Dispositions in (he Physical World", in The Brilish Journalfor the Philosophy o f
Science, 39 (1988), p. 67-79.
216 Filosofia da Natureza
109. STEVENS, Peter S. Patrones vpautas en la naluraleza, Barcelona: Salvat, 1986, págs. 1-2.
110. Ibici., pág. 26.
111. THOMPSON. D'Arcy Wentworth. Sobre el crecimiento y Ia forma, Madrid: Hermann, 1980 (a
edição original é de 1917), pág. 35.
112. //>/</., págs. 45-46.
Aspectos qualitativos 219
113. Esta ideia é fortemente salientada, por exemplo, em: STEWART, Ian e GOLUBITSKY, Martin.
<Es Dios un geómetra?, Barcelona: Crítica, 1995.
220 Filosofia da Natureza
114. ARTIGAS, Mariano. “Nicolas Oresme, gran maestre dei Colégio de Navarra, y el origen de la ciência
moderna”, op. cit.
Aspectos qualitativos 221
115. Encontram-se raciocínios deste tipo, por exemplo, em: GIBSON, Q. “Tendencies”, in Philosophy
o f Science, 50 (1983), págs. 296-308.
222 Filosofia da Natureza
116. Um realismo deste tipo encontra-se, por exemplo, em: BHASKAR, Roy. A Realist Theory ofScience,
Leeds: Leeds Books, 1975, págs. 33-36; HARRÉ, Rom. The Principies o f Scientific Thinking, London: Mac
Millan, 1970.
117. Cfr. HARRÉ, Rom. The Principies ofScientific Thinking, op. cit., pág. 278.1larré usa aqui e em muitos
outros lugares o termo power, que traduzimos por potência; trata-se, evidentemente, de uma potência ativa ou
capacidade de atuar.
118. HARRÉ, Rom, “Powers”, op. cit., págs. 8 1,83 e 85.
Aspectos qualitativos 223
não se manifestou e que têm forma: “ao submeter-se a tais condições, acontecerá
tal efeito”. Harré afirma que as entidades têm potências, mesmo se não as
exercitam. A diferença entre o que tem uma potência para comportar-se de um
determinado modo e o que não a tem, não se refere à sua atuação, pois pode
ocorrer que esta potência nunca seja exercida; a diferença refere-se ao que as
entidades são: é uma diferença em sua natureza intrínseca.
Neste contexto, as potências correspondem ao conceito clássico de
potência ativa e o conceito oposto —liability —ao de potência passiva. Harré
assinala que estes dois conceitos são os extremos de todo um espectro, no qual
existem diferentes graus.
Harré adverte que, segundo o realismo, existe uma necessidade natural,
e o que acontece corresponde ao modo de ser das entidades; ao contrário, o
empirismo só considera legítimo afirmar a existência de concomitâncias entre
os eventos, negando a possibilidade de conhecer conexões causais reais que
correspondam à natureza das coisas. Assim, as duas perspectivas conduzem a
dois tipos diferentes de investigação científica: a empírica buscará novos casos
de concomitâncias e a realista buscará conhecer melhor as causas e os seus
efeitos; chega-se, com isso, à conclusão de que a investigação científica acaba
sempre por atuar - mesmo que “inconscientemente” - de acordo com a
perspectiva realista.
As conclusões de Harré coincidem basicamente com as de Bhaskar.
Ambos defendem um realismo segundo o qual, para dar conta da inteligibilidade
na ciência, é necessário admitir que a ordem que se descobre na natureza existe
independentemente da atividade humana. Esta ordem consiste na estrutura e
constituição das entidades e nas leis causais. Para justificar a ciência requer-se
uma ontologia que proporcione uma resposta esquemática à questão: como deve
ser o mundo para que a ciência seja possível119.
Bhaskar e Harré sublinham que uma ontologia coerente com os conheci
mentos científicos atuais inclui, como ingrediente fundamental, a existência de
relações causais que se fundamentam em disposições, tendências e capacidades;
que estas características correspondem ao modo de ser próprio das entidades; e
que é necessário admitir esta ordem natural para dar razão da ciência120.
As construções científicas não podem ser identificadas levianamente com
as características reais da natureza. Entretanto, os pressupostos básicos da ciência
experimental incluem a existência de entidades naturais que possuem um modo
C apítulo IX
Investigar a causa de algo é tentar explicar por que existe e tem o seu modo
de ser característico. A busca por explicações concretiza-se, em boa parte, na
busca pelas causas.
O que é uma causa? Um conceito clássico é o seguinte: causa é o princípio
de que algo depende em seu ser ou em seu realizar-se. É um princípio, mas não
um princípio qualquer como um simples começo podería ser; trata-se de um
princípio que influi realmente no ser do que existe ou na produção das
transformações.
O estudo sistemático da causalidade é um tema próprio da metafísica, mas,
como acontece também com outros temas, as modalidades mais básicas da
causalidade são as que se realizam na natureza e, por isso, vamos dirigir a elas a
nossa atenção.
No primeiro livro da Metafísica, Aristóteles analisa o que os filósofos
anteriores disseram sobre as causas e expõe a sua doutrina das quatro causas:
material, formal, eficiente e final. Trata-se de uma doutrina enormemente
230 Filosofia da Natureza
a) Agentes e interações
Neste âmbito, a ciência experimental conduziu a uma situação um tanto
paradoxal: diz-se, por um lado, que a ciência se ocupa somente da causa material
e da causa eficiente, rejeitando, ao contrário, o resto das causas; mas, por outro
lado, a noção de causa eficiente é posta igualmente em questão. Com efeito, a
ciência busca leis que permitam determinar o comportamento dos corpos sob a
ação de forças, mas estas forças não correspondem a agentes, mas a interações.
Por exemplo, no nível físico fundamental, as explicações centram-se no modelo
das quatro interações fundamentais que são estudadas mediante teorias de
campos (gravidade, eletromagnetismo e as duas forças nucleares). Portanto, as
distinções clássicas entre agente e paciente, motores e móveis, parecem ficar
desvanecidas e, em seu lugar, a ciência concentra-se na determinação de
fenômenos sob leis gerais.
Todavia, a representação habitual das ações em termos de sujeitos agentes
conserva a sua validade, porque as interações supõem, de um modo ou de outro,
sistemas unitários que são seus sujeitos. Isto é patente no caso de sujeitos que
possuem um alto nível de organização, especialmente os viventes; porém, mesmo
Atividades e causalidade dos seres naturais 233
123. ARISTÓTELES, Física, III, 2,202 a 5-12. Cfr. também ibid,. VII, 2.; o capítulo inteiro está dedicado
ao estudo deste problema. E interessante perceber que, neste texto citado, se afirma que em toda ação há uma
interação.
124. Em cada uma das quatro interações fundamentais têm associadas uma ou várias partículas
intermediárias: o fóton no eletromagnetismo, os hipotéticos grávitons na gravidade, os gluons na força nuclear
forte e as partículas IV e Z na força nuclear fraca.
234 Filosofia da Natureza
c) O princípio da causalidade
De modo geral, o princípio da causalidade afirma que tudo o que existe
deve ter uma causa proporcionada que explique sua existência. Se pretendermos
aplicar este princípio de modo completo, todas as causas que intervenham em
cada caso deverão ser levadas em conta. No entanto, limitaremos o nosso exame
aqui a como pode ser aplicado ao problema da causa agente e da explicação do
movimento.
Sob esta perspectiva particular, o princípio poderia ser formulado
expressando a necessidade de um agente para explicar o movimento. É
conveniente advertir, desde o começo, que uma explicação completa das ações
e transformações deverá levar em conta também a ação divina fundante, que dá
o ser e a capacidade de agir a tudo o que existe. Além disso, o nosso
conhecimento é muito limitado, também nas ciências, pois o nosso aparato
cognoscitivo, embora nos permita alcançar conclusões que para nós são
extraordinárias, não nos permite esgotar, nem de longe, a explicação da natureza.
Portanto, não podemos nos surpreender se, mais uma vez, damos de frente com
os limites da nossa capacidade de representação e explicação.
Um problema refere-se à afirmação aristotélica segundo a qual tudo o que
se move é movido por outro125. Aristóteles dedica-lhe grande atenção, pois ocupa
um lugar importante na prova da existência do Primeiro Motor e, portanto, na
conexão entre a física e a metafísica. Para demonstrá-la, propõe três argumentos
que, em parte, se relacionam com aspectos controversos de sua cosmovisão 126.
125. Tomás de Aquino formula em linguagem lapidar: quidquid movetur ab alio moventur; e a utiliza
no raciocínio de sua primeira via para provar a existência de Deus. Cfr. Suma Teológica, I, q. 2, a. 3, c.
126. Cfr. ARISTÓTELES, Física, VII, 1,241 b24 242 a 16; VIII, 4,254 b 24-256 a3 ; VIII, 5,257 bó-
13. Tomás de Aquino apresenta e utiliza estes argumentos na Suma contra os gentios, livro 1, capítulo 13, no
qual expõe amplamente a prova que se encontra sintetizada na primeira via da Suma teológica.
Atividades e causalidade dos seres naturais 235
ativos das ações que realizamos e sujeitos passivos das ações de outros seres.
Da mesma forma, pode-se dizer algo semelhante de outros viventes, que têm
uma unidade e uma individualidade bem definida; esta consideração pode ser
estendida ao âmbito dos seres não-viventes na medida em que tratamos de
substâncias, que são sistemas unitários individuais e também às interações entre
viventes e não-viventes, e entre partes destes seres.
Esta concepção aplica-se também quando se estudam fenômenos naturais
muito afastados da experiência ordinária, tal como acontece com as partículas
subatômicas. Com efeito, fala-se de partículas que estão submetidas à ação de
campos produzidos pela atividade de outros sistemas. As partículas interagem
e as interações são precisamente ações mútuas.
Considerada sob a perspectiva da filosofia da natureza, a ação é um
acidente que consiste na atualização da potência ativa de uma substância. O
natural caracteriza-se por possuir um dinamismo próprio; mas este dinamismo
não está completamente atualizado segundo todas as suas possibilidades: algu
mas possibilidades são atualizadas de acordo com as circunstâncias presentes
em cada caso particular (ou seja, de acordo com a presença de outros
dinamismos). Por este motivo, a ação é um acidente: é algo real que acontece
em um sujeito, é a atualização de algumas das suas potencialidades, mas não
muda o modo de ser essencial do sujeito.
Estamos nos referindo aqui à ação predicamental, ou seja, à ação
considerada como um predicamento ou categoria, como um dos acidentes. A
realidade deste acidente pode ser percebida facilmente ao considerarmos o que
aconteceria se fosse negada; neste caso, deveriamos admitir que todos os sujeitos
estão atualizando continuam ente todas as suas potencialidades, o que
evidentemente é falso. Admitir a realidade da ação equivale a reconhecer que,
na natureza, os sujeitos atuam desenvolvendo de cada vez só uma parte das suas
potencialidades.
Pode-se dizer que, mediante a ação, ou seja, ao atuar, ao atualizar
potencialidades, um sujeito (substância ou matéria segunda) que possui uma
capacidade de atuar (potência ativa, ato primeiro, modo de ser) atualiza esta capa
cidade (passa para ato segundo).
O aforismo o agir segue o ser expressa que todo sujeito agente atua de
acordo com as potencialidades que lhe são próprias, que correspondem ao seu
modo de ser. Por este motivo, o modo de ser dos sujeitos é conhecido através
de suas ações. Quanto mais perfeito é um ser, tem a capacidade de exercer ações
que são mais perfeitas.
Além disso, é certo que as ações aperfeiçoam o sujeito que as exerce, ao
menos sob o ponto de vista ontológico, já que equivalem a desenvolveras poten-
Atividades e causalidade dos seres naturais 237
a) As leis científicas
A ciência experimental busca um conhecimento da natureza que possa
ser submetido ao controle experimental, e o consegue, em boa parte, através dos
enunciados que se denominam leis.
As leis científicas são enunciados que relacionam diferentes aspectos dos
fenômenos naturais. Quando são leis formuladas matematicamente, relacionam
magnitudes que podem ser medidas direta ou indiretamente; por exemplo, as
leis experimentais relacionam magnitudes cujos valores podem ser medidos
diretamente, e os princípios gerais, como os distintos princípios de conservação
(da energia, da carga elétrica, etc.), expressam condições gerais que são
cumpridas em todos os processos ou em algum tipo concreto de processo. Outras
leis são expressas sem o uso da matemática, mas são a base para a formulação
de leis matemáticas; assim, na teoria da relatividade postula-se que as leis
científicas sejam expressas sempre do mesmo modo, ainda que se utilizem
diferentes sistemas de referência.
Quando estão bem comprovadas, as leis científicas expressam aspectos
da realidade. No entanto, referem-se à realidade através de construções teóricas
(conceitos e relações que são construídas), e não são simples fotografias da
natureza. Por exemplo, quando se afirma que a força é igual à massa multiplicada
pela aceleração, antecipam-se os resultados de possíveis medições em
circunstâncias particulares; esta lei expressa, portanto, relações entre magnitudes
cujas definições e medições não são dadas pela própria natureza, mas dependem
dos contextos conceituais e experimentais construídos pelos cientistas.
As leis científicas expressam regularidades que realmente existem na
natureza, de acordo com as modalidades próprias de cada tipo de lei (leis
experimentais ou princípios gerais, leis deterministas ou probabilísticas, etc.).
Como o nosso conhecimento é muito limitado, não podemos afirmar que as leis
científicas, por mais comprovadas que estejam, se identificam completamente
com as leis naturais. Contudo, se estiverem bem comprovadas, podemos dizer
que não são puras construções mentais feitas por nós e que refletem a ordem
real da natureza.
As leis científicas têm um caráter aproximativo e perfectível. sempre é
possível descrever melhor os fenômenos aos quais as leis se referem, por
Atividades e causalidade dos seres naturais 241
possuem a necessidade dos seres espirituais, de modo que, uma vez que
existimos, poderíamos deixar de existir somente por aniquilação por parte de
Deus; mas estamos fadados à morte, que implica a separação do espírito e da
matéria, passando o espírito a viver em condições um tanto misteriosas, mas que
correspondem ao tipo de necessidade própria das realidades espirituais.
Obviamente, apenas Deus existe com uma necessidade completa e própria, já
que se identifica com o seu próprio ser, sem depender de nada que esteja fora
de si mesmo: tudo o que existe fora de Deus são criaturas que dependem
completamente de Deus em seu ser, ainda que possuam diversos graus de
necessidade no ser.
Até agora referimo-nos à necessidade como uma perfeição: algo é mais
perfeito quanto maior for a consistência própria em seu ser e depender menos
de circunstâncias cambiantes. Contudo, é possível se dizer da necessidade em
outro sentido, como algo próprio dos seres mais imperfeitos, como sinal de
imperfeição. Dissemos, por exemplo, que seres especialmente simples (como
algumas partículas subatômicas, núcleos de átomos ou bactérias) têm uma
consistência especialmente forte precisamente por causa da sua simplicidade ma
terial, e podemos acrescentar, ao contrário, que seres especialmente perfeitos,
como é o caso de viventes superiores em geral e dos seres humanos em particular,
têm uma grande fragilidade em seu ser material: com efeito, requerem uma
organização muito sofisticada que pode deixar de existir com certa facilidade,
devido ao grande número de circunstâncias capazes de provocar a sua morte.
b) Necessidade e contingência no agir
A maior dependência da matéria implica uma maior necessidade no agir,
que é um sinal de imperfeição. Os seres mais perfeitos possuem uma maior
independência em relação às condições materiais, por possuírem conhecimento
e sensibilidade. No caso do ser humano, devido a sua espiritualidade, dá-se uma
autêntica liberdade. Neste âmbito, necessidade costuma contrapor-se à liberdade.
O ser humano executa muitas ações de modo necessário, pois correspondem ao
desenvolvimento automático do seu dinamismo material; ao contrário, em sua
dimensão espiritual, tem um agir necessário naqueles atos que derivam
necessariamente do seu modo de ser (por exemplo, a busca pela sua felicidade,
ainda que possa se equivocar quanto ao modo de atingi-la) e um agir livre nos
atos sobre os quais tem domínio. Estas referências são suficientes, em se tratando
de um tema que transcende o objeto próprio da filosofia da natureza. Um estudo
mais completo exigiria considerar, por exemplo, que a possibilidade de falhar
dos atos livres não é propriamente uma perfeição, já que a liberdade alcança a
sua perfeição autêntica quando é usada para agir bem.
Atividades e causalidade dos seres naturais 245
127. DE LAPLACE, Pierre Simon. Ensayo filosófico sobre Ias probabilidades, Madrid: Alianza, 1985,
pág. 25.
246 Filosofia da Natureza
128. A bibliografia a este respeito é extensa. Cfr., por exemplo: CARTWR1GHT, N. “Philosophical Problems
of Quantum Theory” in KRÜGER, L., DATON, L. J. e HEIDELBERGER, M. (editores) The Probahilistic
Revolution, Cambridge: The MIT Press (Mass), vol. II, Ideas in the Sciences, 1989, págs. 417-435;
DELIGEORGES, S. (editor) El mundo cuántico, Madrid: Alianza, 1990; JAKI, S. L. Chance andReality and
other Essays, Lanham: University Press o f America, 1986, págs. 1-21; SELVAGGI, F. Causalitá e
indeterminismo, Roma: Universitá Gregoriana, 1964.
Atividades e causalidade dos seres naturais 247
terminação no agir natural, de tal modo que não se possam formular leis físicas
completamente deterministas que permitam uma predição exata do futuro no
sentido de Laplace. Algumas das implicações que esta situação pode ter em ou
tros âmbitos, especialmente quando se pensa na existência de um plano divino
que rege a natureza, serão examinadas a seguir, após analisarmos a noção de
acaso.
C apítulo X
Os viventes
129. MARCOS, Alfredo. Aristótelesy otros animales. Una lecturafilosófica de la Biologia aristotélica,
Barcelona: PPU, 1996, pág. 192.
252 Filosofia da Natureza
ponto de partida as ideias comuns que todos possuímos acerca dos seres vivos e
estas ideias servem como base suficiente para construir a sua ciência.
No entanto, a biologia molecular proporcionou conhecimentos que
colocaram as nossas ideias sobre a vida em um novo nível, antes desconhecido.
Em sua busca do material físico-químico que explica a hereditariedade, os
cientistas dirigiram a atenção para o núcleo das células e, concretamente, para
os cromossomos. Antes de 1900 já estava determinado que os cromossomos da
maioria dos organismos continham proteínas e DNA (ácido desoxirribonucléico).
Durante um tempo pensou-se que as proteínas eram o material genético, porque
somente elas eram suficientemente complexas para conter a informação genética.
Contudo, por volta de 1940 a evidência a favor do DNA como material genético
aumentava. Até 1950 já se possuíam muitos conhecimentos acerca da estrutu
ração química do DNA. Finalmente, James Watson e Francis Crick propuseram,
em 1953, o modelo de estrutura em dupla hélice do DNA, que foi confirmada
pelos trabalhos posteriores e constitui um dos avanços mais importantes da
ciência moderna.
Desde então, multiplicaram-se as descobertas sobre o código genético, a
fabricação de proteínas, a informação que dirige o desenvolvimento dos seres
vivos, a estrutura e função dos genes e outros temas relacionados. Os progressos
da biologia molecular, que estuda as estruturas e as funções das moléculas que
compõem os viventes, levaram a conhecer também outros importantes aspectos
dos seres vivos, como a comunicação molecular. Este progresso está possi
bilitando o desenvolvimento de novas ideias acerca das características dos seres
vivos.
Os seres vivos unicelulares consistem em uma única célula e os plurice-
lulares são compostos de um conjunto de células. Todas as células possuem o
DNA, que contêm a informação para a replicação do vivente e para a fabricação
de muitos de seus componentes principais, exceto alguns vírus cujo material
genético é o RNA (ácido ribonucléico, semelhante ao DNA, mas diferente dele
em alguns aspectos da sua composição). Diferentemente das células “procarion-
tes”, que não têm um núcleo organizado (é o caso das bactérias), o DNA dos
organismos “eucariontes” está contido em um núcleo rodeado por uma
membrana.
Na caracterização da vida que existe em nosso planeta ocupam um lugar
muito destacado: o DNA, como material genético; o RNA, que intervêm na
tradução e transcrição do DNA do núcleo em proteínas fabricadas nos
ribossomos das células; e as proteínas (macromoléculas compostas por ami-
noácidos), que existem numa grande variedade, adotam estruturas espaciais
muito específicas e exercem funções também muito diversas.
254 Filosofia da Natureza
130. Trata-se dos agentes causadores da doença da vaca louca: cfr. PRUSINIiR, Stanley B. “Priones”,
in Investigacióny ciência, n. 222, março de 1995, págs. 14-21.
Os viventes 255
131. As citações de Beardsley incluídas nesta parte foram extraídas de BEARDSLEY, Tim. “Genes
inteligentes”, in Investigación e ciência, n. 181, outubro de 1991, págs. 76-85.
256 Filosofia da Natureza
132. Encontra-se uma crítica interessante do reducionismo biológico atual no artigo: "Biology isn’t
destiny”, in The Economist, 14 de fevereiro de 1998, págs. 97-99.
Os viventes 257
próprio, os seres vivos são aqueles que possuem uma unidade e uma indivi
dualidade fortes e o seu dinamismo é tal que a sua atividade tem como resultado,
em boa parte, algo que contribui para manter e desenvolver o ser do próprio
sujeito que a executa. Além do mais, o automovimento dos seres vivos manifesta-
se em dois aspectos que são típicos: o desenvolvimento e a reprodução.
A organicidade é outra característica típica de muitos seres vivos. Não
dizemos que seja de todos, pois, como já indicamos, não é habitual falar de
“organismo” quando nos referimos a seres vivos primitivos; no entanto, também
neles encontramos estruturas complexas e cooperativas que correspondem à ideia
da organização própria dos seres vivos. Com relação à organicidade, existem
algumas características que possibilitam a manutenção dos seres vivos em seu
ser: o metabolismo ou conjunto de reações químicas nas quais é produzida a
energia que o organismo necessita para se manter e realizar as suas funções; e a
homeostase ou manutenção de algumas características nos níveis constantes
através das circunstâncias externas cambiantes. São características muito gerais,
às quais poderiam ser acrescentadas muitas outras particulares que se identificam
nos diferentes tipos de seres vivos.
A geração refere-se ao começo da existência do ser vivo, que se forma
como um ser individual e unitário a partir de outros seres vivos. Em muitos seres
vivos, a geração é seguida por um desenvolvimento gradual que conduz à
realização do tipo específico de acordo com pautas estabelecidas e, finalmente,
pela morte ou desaparecimento do ser vivo, que deixa de existir como tal e se
transforma em material inerte.
A reprodução é uma das características básicas dos seres vivos, que
transmitem de geração em geração as características típicas de cada espécie.
Além disso, a herança constitui a base sobre a qual podem ocorrer as mutações
que possibilitam a evolução das espécies.
mente dito foi defendido por Descartes, que afirmou que todo ente natural,
inclusive os seres vivos (com exceção da alma humana), são puras máquinas
mecânicas. Esta versão do mecanicismo é claramente insuficiente e foi
substituída por explicações mais sofisticadas que apresentam os viventes como
máquinas cibernéticas, afirmando que é inútil buscar nos seres vivos algo que
ultrapasse o alcance da ciência experimental. Ao contrário, o vitalismo sublinha
as características peculiares dos seres vivos e postula algum fator metaempírico,
algum tipo de princípio vital, que seria necessário para dar conta do ser e do
agir dos seres vivos.
Ainda que existam interpretações diferentes do fato, hoje em dia geral
mente se admite que os seres vivos possuem características específicas que não
são encontradas em outros níveis do natural. Sem dúvida, seguem as leis da física
e da química, mas as transcendem.
A filosofia de Aristóteles proporciona conceitos que esclarecem esse
problema. Com efeito, quando Aristóteles fala da “alma” dos seres vivos, refere-
se ao seu modo de ser, que certamente possui caracteres peculiares. No segundo
livro do seu tratado Acerca da alma, Aristóteles propôs uma definição geral da
alma mediante três passos sucessivos. Em primeiro lugar, diz que “costumamos
a chamar de vida o alimentar-se, crescer e envelhecer por si mesmo" e pergunta-
se pela diferença entre um corpo natural vivo e outro que não está vivo; afirma
que a diferença não está no corpo, já que há corpos vivos e não vivos, e conclui
que a alma é “a forma específica de um corpo natural que, em potência, tem vida”
(aqui, “forma especifica” é a tradução do grego eidos). Em segundo lugar,
Aristóteles acrescenta que ter vida é anterior a exercitá-la e, portanto, afirma
que “a alma é o ato primeiro de um corpo natural que tem vida em potência”.
Imediatamente, comenta que um corpo deste tipo, com vida em potência, é um
organismo. Daí conclui, em terceiro lugar, que a alma é “o ato primeiro de um
corpo natural organizado”133. Em seu comentário a Aristóteles, Tomás de Aquino
acolhe estas mesmas ideias134.
Já vimos o que significam os conceitos de “forma substancial ou
específica”, “ato primeiro” e “potência”. Vimos também que as essências dos
seres naturais não são simples, mas compostas: existem em condições materiais
(matéria prima) e abrangem as perfeições que determinam o modo de ser
específico (forma substancial). Matéria e forma não são entes completos nem
partes físicas; são co-princípios, que se comportam como potência e ato: a
matéria prima é o princípio potencial e indeterminado e a forma substancial é o
135. Pode-se ver, por exemplo: TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 71, a. I, ad 1m; I, q. 91, a. 2, ad
2m. Nestes textos afirma-se a geração dos viventes imperfeitos a partir da putrefação, sob a ação dos corpos
celestes, e nega-se que deste modo possam ser gerados animais perfeitos, em cuja geração intervém o sêmen.
Os viventes 265
136. Cfr. GORE, R. “Our Restless Planet Earth”, in National Geographic Magazine, vol. 168, n. 2, agosto
de 1985, pág. 151: este artigo é um exemplo da segurança com que esta hipótese costuma ser apresentada.
137. Cfr. CAIRNS-SMITH, A. G. "Los primeros organismos”, in Investigacióny ciência, n. 107, agosto
de 1985, págs. 54-63.
138. Sobre este tipo de processo e a sua aplicação ao problema da origem da vida, cfr. EIGEN, M.,
GARDINER, W., SCHUSTER, P. e W1NKLER-OSWATITSCH, R. “Origen de la informacióngenética”, in
Investigación y ciência, n. 57, junho de 1981, págs. 62-81. Eigen e Schuster propuseram esta explicação em
1977.
266 Filosofia da Natureza
“molde”: o RNA pode dirigir tanto a replicação como a produção dos fatores
necessários para ela139.
Existem, no entanto, outras explicações possíveis para a origem da vida.
Já aludimos a algumas delas, mas existem ainda outras. Ainda que frequentemen
te se afirme, sobretudo em textos de divulgação, que a origem da vida já foi
explicada - e existem de fato teorias que gozam de certa aceitação -, os enigmas
que ainda esperam uma resposta não são poucos nem pequenos140. Alguns
cientistas consideram muitíssimo improvável que a vida sobre a Terra tenha sido
formada de modo espontâneo, e postulam que a vida, ou ao menos alguns dos
componentes orgânicos básicos, deve ter chegado à Terra do espaço exterior ou
de algum planeta habitado141; porém, deste modo, o problema não é resolvido:
as interrogações são somente deslocadas para um outro planeta.
139. Cfr. GESTELAND. R. F. e ATKINS, J. F. (editores) The RNA World, Plainview (New York): Cold
Spring Harbor Laboratory Press, 1983, em que se estudam os diferentes aspectos deste modelo e os argumentos
que o apoiam.
140. As dificuldades refletem-se em HORGAN. John. “Tendências en evolución. En el principio...",
Invesligaeión y ciência, n. 175, abril de 1991, págs. 80-90. no qual se analisa o panorama das diferentes
explicações que já foram propostas. No subtítulo deste artigo diz-se que "existem pontos de vista muito díspares
sobre quando, onde e, sobretudo, como começou a vida sobre a Terra". Chama-se a atenção a que as explicações
que costumam aparecer nos livros de estudo foram seriamente questionadas. Analisam-se as diversas propostas.
E, em um resumo esquemático. diz-se que este problema “é um tear de Penélope, no qual novos dados arruinam
as idéias assentadas”.
141. A hipótese da “panspermia", segundo a qual existem germens de vida no espaço e que estes teriam
chegado à Terra, é antiga. Em nossos dias, Francis Crick (prêmio Nobel, junto com James Watson, por seu
descobrimento da estrutura ent dupla hélice do DNA), fala da “panspermia dirigida": germens de vida, ou
talvez bactérias, poderíam ter sido enviados ao nosso planeta de modo intencional. Cfr. CRICK, F. “Foreword”,
m GESTELAND, R. F. e ATKINS. J. F. (editores), The RNA World. <>/>. cit., pág. xiv.
Os viventes 267
142. Encontra-se uma coleção de estudos sobre a evolução, interpretada à luz do neodarwinismo, em:
AA. VV. Evolución, Barcelona: Labor, 1982. Sobre os princípios básicos do neodarwinismo, cfr. AY AL A,
Mecanismos de evolución, ibid., págs. 13-28.
268 Filosofia da Natureza
matizações científicas e filosóficas, mas, em todo caso, seu trabalho constitui uma mostra dos problemas
que devem ser enfrentados pelas atuais teorias evolucionistas e de algumas soluções na linha da auto-
organizaçào.
146. Pode-se ver, por exemplo, STEBBINS, G. L. e AYALA, F. J. “La evolución dei darwinismo”, in
Investigación y ciência, n. 108, setembro de 1985, págs. 42-53. Os autores concluem o artigo com as seguintes
palavras: “Qualquer que seja o novo acordo que surja da investigação e da controvérsia atuais, não é provável
que exija a negação do programa básico do darwinismo c da teoria elaborada a meados deste século. A teoria
sintética do século XXI afastar-se-á consideravelmente da que foi elaborada há umas poucas décadas, mas o
seu processo de aparição terá mais de evolução que de cataclismo”.
270 Filosofia da Natureza
indo além do que a ciência permite afirmar, nega a criação ou a ação divina no
mundo, e por outro, a de alguns fundamentalistas religiosos que, em nome da
Bíblia, negam a possibilidade da evolução biológica. Mas ambas as posições
são ilegítimas: nem a ciência pode negar a ação divina, nem a religião é
competente para refutar argumentos verdadeiramente científicos.
b) Evolução e finalidade
147. Pierre Teilhard de Chardin tentou provar que existe na evolução uma direcionalidade ascendente.
Os seus argumentos baseiam-se na existência de níveis crescentes de organização, que culminam no sistema
nervoso e na cerebralização, e encontram-se unidos a um aumento progressivo da consciência. Sobre esta
base, considerou-se autorizado a afirmar, como se fosse uma conclusão científica, que a evolução está
“dirigida". Cfr. TEILHARD DE CHARDIN, P. Elfenômeno humano. Madrid: Taurus, 1967, págs. 173-178.
Trata-se de uma versão teísta do “impulso vital" de Bergson. Cfr. BERGSON, H. La evolnción creadora,
Madrid: Espasa-Calpe, 1985 (original de 1907).
272 Filosofia da Natureza
c) Evolução e emergência
148. DU DUVE, Christian. La célula viva, Barcelona: Labor, 1988. pág. 35. Encontram-se interessantes
reflexões em torno desta temática cm: MeMULLIN, Ernan, “Contingência evolutiva y finalidad dei cosmos”,
iu Scripta Theologica, 30 (1998). págs. 227-251.
Os viventes 273
o mais não pode surgir do menos, ou seja, que o efeito não pode ser superior
em perfeição à causa. Como se explica que, ao longo do processo evolutivo,
produzam-se novas perfeições que antes não existiam?
A emergência de novas perfeições explica-se, em primeiro lugar, pela
integração de diferentes fatores em um novo sistema unitário. De fato, no nível
físico-químico existem muitos processos nos quais se formam novos sistemas
dotados de caracteres holísticos e propriedades emergentes. No nível biológico,
as mutações genéticas provocam mudanças na informação genética e, se são
viáveis, produzirão novas características. As mutações têm causas determinadas
e o desenvolvimento do programa genético é a causa das novas características.
Assim se explica que possam aparecer novidades nos organismos.
No entanto, as novidades estruturais estão unidas, no nível biológico, a
modos de ser peculiares, a uma “interioridade” cuja realização com a
“exterioridade” estrutural é um tanto misteriosa: as tendências dos seres vivos
e o psiquismo do animais. Parece indubitável que exista um paralelismo entre o
grau de organização e a interioridade dos seres vivos; e também é claro que, à
medida que se avança no conhecimento das estruturas biológicas, determinam-
se melhor os aspectos concretos deste paralelismo. Contudo, a interioridade dos
seres vivos continua sendo objeto mais de admiração que de compreensão.
É lógico que as teorias evolucionistas encontrem limites neste âmbito. As
explicações científicas são tanto mais rigorosas quanto mais diretamente possam
ser comprovadas mediante o controle experimental; mas é difícil submeter a
interioridade dos seres vivos ao controle experimental: a ciência deve se
contentar em estudar as conexões entre esta interioridade e as estruturas espaço-
temporais que se relacionam com ela.
149. Jacques Monod, prêmio Nobel pelos seus trabalhos em biologia, é um exemplo paradigmático desta
atitude (cfr. a sua obra El azar y Ia necesictad, Barcelona: Barrai. 1971), que foi defendida posteriormente
com grande vigor por Richard Dawkins, professor de biologia na Universidade de Oxford, em sua obra El
relojero, Barcelona: Labor, I9NX.
Os viventes 275
150. O caso de Dawkins é claro. Seu livro destina-se a mostrar que não é necessário recorrer a Deus
para explicar a evolução. Foi dito que a existência de um relógio remete necessariamente a um relojoeiro,
mas Dawkins pretende mostrar que bastaria o recurso à seleção natural, que é um “relojoeiro cego": "A seleção
natural, o processo automático, cego e inconsciente que Darwin descobriu, e que agora sabemos que é a
explicação da existência e forma de todo tipo de vida com um propósito aparente, não tem nenhuma finalidade
em mente. Não tem mente nem imaginação. Não planifica o futuro. Não tem nenhuma visão, nem previsão,
nem vista. Se se pode dizer que cumpre uma função de relojoeiro na natureza, esta é a de relojoeiro cego...; o
‘desenhista’ é a seleção natural inconsciente, o relojoeiro cego...; nossa hipótese atual é que o trabalho foi
feito pela seleção natural, em estágios evolutivos graduais”. El relojero ciego, op. cit., págs. 4, 27 e 28.
151. Também neste aspecto é paradigmático o caso de Dawkins. Afirma que, se existe alguma coisa
complexa que não entendemos ainda, poderemos chegar a compreendê-la em termos de partes mais simples
que já compreendemos; e acrescenta que, se um engenheiro, ao proporcionar explicações deste tipo, “começasse
a aborrecer-se dizendo que o conjunto é maior que a soma das partes, o interrompería: Isto não me importa,
diga-me só como trabalha”. Cfr. DARWK1NS, R. El Relojero ciego, op. cit., pág. 9. Evidentemente, esta
posição é um reducionismo, como o próprio Darwkins o reconhece (ainda que pretenda justificar seu enfoque
dizendo que admite uma hierarquia de níveis naturais): leva em conta somente as explicações em termos dos
componentes e dofuncionamento, e deixa de lado qualquer pergunta filosófica. E legítimo circunscrever-se a
um método particular; mas quando nega-se que exista aquilo que não pode ser estudado mediante este método,
chega-se a uma perspectiva incompleta e arbitrária.
152. Encontra-se um exemplo deste tipo em: DELSOL, M. et alii. “Le hasard et la sélection expliquentíls
Tévolution? Biologie ou métaphysique”, in Lavai théologique et philosophique, 50 (1994), págs. 7-41. Os
autores afirmam que o neo-darwinismo explica completamente a evolução no nível científico, o que é discutível;
mas afirmam ao mesmo tempo a legitimidade das interrogações filosóficas sobre a evolução e proporcionam
uma base para elas, sobretudo quando sublinham com ênfase a existência de potencialidades muito específicas
na natureza como condição da evolução.
276 Filosofia da Natureza
existência de um plano divino que o governa. Isto não se opõe em nada à ciência,
pois a afirmação da ação divina que dá o ser a tudo o que existe na natureza e a
governa, possibilitando o desenvolvimento dos dinamismos naturais e da
produção de novidades emergentes, não se refere aos mecanismos concretos
estudados pelas ciências, mas ao seu fundamento radical: situa-se num nível que
é diferente ao das ciências e que as complementa.
153. Um bom resumo dos dados científicos acerca da hominizaçâo. junto com interessantes reflexões
acerca dos aspectos filosóficos e teológicos, que incluem uma proposta original do autor, encontra-se em:
JORDANA, R. “El origem dei hombre. Estado actual de Ia investigación paleoantropológica”. in Scripta
Theologica, 20 (1988). págs. 65-99.
Os viventes 277
anos), “Homo habilis” (entre 2,5 e 1 milhão de anos), “Homo erectus" (entre
1,6 milhões e 200 mil anos), “Homo sapiens” (130 mil anos). O homem atual
existiría há cerca de 30 mil anos.
Todavia, com relação aos detalhes concretos, também existem
dificuldades e diferenças de opinião entre os cientistas154. Definitivamente, as
dificuldades para se reconstruir a origem do homem continuam sendo grandes,
o que não impede a existência de um consenso científico generalizado sobre a
existência do processo em seu conjunto. Entre os cientistas existe uma
unanimidade quase total acerca do fato, ou seja, da origem do homem atual a
partir dos antepassados mencionados, junto com importantes discrepâncias
acerca das explicações concretas, ou seja, quando e como se originaram os
diversos ramos e quando se pode dizer que um fóssil concreto corresponde a
um ser humano em sentido pleno.
Por exemplo, está claro que o “Australopithecus” não era um ser propria
mente humano, mas as opiniões divergem quando se trata de indicar qual seria
o primeiro ser verdadeiramente humano: alguns sugerem que seria o “homo
habilis”, ainda que possuísse uma capacidade craniana muito inferior à do
homem atual155, e outros se inclinam, ao contrário, por seres muito posteriores.
O estudo do DNA mitocondrial, que é herdado por via materna, foi
utilizado para sustentar que, segundo a genética, uma mulher africana de 200
mil anos foi nosso antepassado comum; os seus descendentes teriam substituído
outros humanos primitivos que existiam em outros lugares. Na realidade, estes
dados parecem conduzir somente a uma povoação concreta, não a uma mulher
individual. Entretanto, alguns paleontólogos não compartilham esta conclusão156.
154. Sobre este tema, cfr. WASHBURN, S. L. “La evolución de la especie humana”, na obra coletiva
Evolución, Barcelona: Labor, 1982, págs. 128-137; PILBEAM, D. “Origem de los hominídeos y homínidos”,
in Investigación y ciência, n. 92, maio de 1984. Ainda que ao longo das pesquisas aumente a quantidade de
dados, Pilbeam conclui: “ao mesmo tempo, aumentaram as dúvidas sobre o grau de confiança que pode inspirar
qualquer relato da evolução humana. Que precisão e que confiabilidade podem alcançar estas reconstruções?
Os diversos estágios primitivos da evolução humana apresentam-se a nós, por enquanto, de digestão muito
dura”. Estas dificuldades subsistem na atualidade: é muito difícil obter conclusões seguras e consensuais sobre
os detalhes do processo de hominização.
155. Esta opinião encontra-se em: JORDANA, R. “El origem Del hombre. Estado actual de la
investigación paleoantropológica", op. cit. A capacidade craniana do “homo habilis" poderia chegar aos 775
centímetros cúbicos, frente aos 1.345 do “homo sapiens”; todavia, sugeriu-se que possuía as bases fisiológicas
necessárias para poder falar e, portanto, poderia possuir as principais características humanas. Cfr. TOB1AS,
P. V. “Recent Advances in the Evolution of the Hominids with Especial Reference to Brain and Speech”, in
CHAGAS, C. (editor), Recent Advances in the Evolution ofPrimates, Città dei Vaticano: Pontifícia Academia
Scientiarum, 1983, págs. 85-140.
156. Ambas as posições estão expostas em Investigacióny ciência, n. 189, junho de 1992: WILSON.
A. C. e CANN, R. L. ("Origen africano recientede los humanos”, págs. 8-13) argumentam a favor; T1IORNE,
A. G. e WOLPOFF, M. II. (“Evolución multirregional de los humanos”, págs. 14-20) argumentam contra.
278 Filosofia da Natureza
157. GOULD, S. J. Desite Darwin, Madrid: 1lermann Blume, 19X3. pág. 53.
Os viventes 279
C apítulo XI
158. Um amplo estudo sobre este tema, que inclui a sua história, os dados científicos e as oportunas
reflexões filosóficas, em: SANGUINETI, Juan José. El origen dei universo. A cosmología en busca de la
filosofia, Buenos Aires: Educa, 1994.
159. Em sua História geral da natureza e teoria do céu, ou seja, o estudo da constituição e origem
mecânica do universo, conforme os princípios newtonianos, obra publicada de modo anônimo em 1755.
160. Em sua obra Exposição do sistema do mundo, publicada em 1796.
161. Por exemplo, Kant admitiu, na obra mencionada, que existe uma finalidade no universo que implica
a existência de um Criador.
284 Filosofia da Natureza
162. A lei de Hubble apóia-se na interpretação da variação até o vermelho dos espectros das galáxias como
resultado do efeito Doppler. O comprimento das ondas de luz - e, portanto, a cor - varia com a velocidade relativa
da fonte luminosa. As componentes da luz enviada por um objeto luminoso deslocam-se para o azul se o objeto
estiver se aproximando e para o vermelho, se estiver se afastando.
Origem e sentido da natureza 285
163. Cfr. Catecismo de Ia Iglesia católica, Madrid: Asociación dc Editores dei Catecismo, 1992, ns.
279-301.
Origem e sentido da natureza 287
divina produz totalmente o ser, sem se apoiar em algo preexistente: não é uma
simples transformação de algo que já existia164.
É lógico perguntar-se se a criação do universo é somente um conteúdo da
fé religiosa ou se, além disso, pode ser provada racionalmente. A doutrina católica
afirma que a existência de Deus criador, princípio e fim de todas as coisas, pode
ser conhecida com certeza à luz da razão natural a partir das coisas criadas, de tal
modo que a inteligência humana pode encontrar por si mesma uma resposta à
questão das origens165.
As provas racionais da criação remetem, em última análise, a um dilema:
ou o universo é auto-suficiente, ou seja, existe por si mesmo e não há nada fora
dele que explique a sua existência, ou remete a uma causa que é diferente do
universo, que o produziu e lhe deu o ser. A primeira possibilidade é, na realidade,
impossível; com efeito, se o universo fosse auto-suficiente, deveria possuir
características divinas que, contudo, não possui. Os seres materiais são
limitados, mudam, geram-se e corrompem-se: têm um ser que não dá a razão
completa de si mesmo. Estas dificuldades não se solucionam recorrendo a uma
cadeia infinita, ou seja, supondo que o universo tenha existido sempre; de fato,
a insuficiência do material para dar razão de si mesmo subsiste ainda que as
cadeias causais se multipliquem indefinidamente: não se trata de um problema
de número, mas de qualidade. O modo de ser dos não-viventes implica que não
podem ser auto-suficientes e, para estes efeitos, é indiferente considerar somente
um ser, alguns seres ou uma série indefinida de seres.
Portanto, o universo físico remete a uma causa superior que lhe tenha
dado o ser. Somente um Deus pessoal pode possuir as características próprias
da divindade. Os seres particulares, limitados, mutáveis, remetem a um Ser que
possui o ser por si mesmo e que, por este motivo, pode dar o ser a outros seres,
de modo limitado e particular: é o que se denomina “participação do ser”. Não
significa que as criaturas tenham uma parte do ser divino, mas que possuem de
modo parcial e limitado o ser, recebido de Deus.
Para afirmar a criação divina do universo, pouco importa quando e como
tenha começado a existir. Em relação ao quando, o universo deve ser criado,
independentemente de sua duração: os raciocínios que conduzem à criação não
têm nada a ver com o problema da duração. Em relação ao como, também é
irrelevante; deve-se afirmar a criação tanto se o universo foi uma ínfima bolha
164. Cfr. GOTTIER, G. “La doctrine de la création et le concept de néant”, inActa Philosophica, 1 (1992),
págs. 6-16.
165. Cfr. DENZINGER, H. e SCHÕNMETZER, A. Enchiridion symbolorum, defínitionum et
deelarationum de rebus fidei et morum. 36a. ed., Barcelona-Freiburg-Roma: Herder, 1976, ns. 3004 e 3026;
( 'atecisnw de la Iglesia católica, op. cit., n. 286.
288 Filosofia da Natureza
166. Cfr. SARANYANA. J. I. "Santo Tomás: «De aetemitate mundi contra murmurantes»”, in Anuário
Filosófico, 9 (1976), págs. 399-424.
167. Neste contexto, Tomás de Aquino acrescentou que se o cristão afirma a origem temporal do universo
mediante argumentos racionais, poderia dar ocasião de troça ao não-crente que conhece a ilegitimidade de
tais argumentos. Cfr. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 46, a. 2, c.
168. Além do opúsculo citado, pode-se ver: TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 44. a. 1 I, q.
45, aa. 1 e 2; I, q. 46, aa. I e 2 , Suma conta os gentios, II. c. 38.
Origem e sentido da natureza 289
169. Cfr. ANDRESCIANI, D. "Lo studio dell'origine delEunverso nel contesto delia cosmologia
quantistica”, in Excerpta e dissertationibus in Philosophia, vol. II, Pamplona: Facultad Eclesiástica de Filosofia
Universidade de Navarra, 1993, págs. 9-88.
170. Cfr. ISHAM, C. J. “Quantum Theories of the Creation of the Universe”, in RUSSELL, R. J.,
MURPHY, N. e ISHAM, C. J. (editores) Quantum Cosmology and the Laws ofNature, Vatican City State:
Vatican Observatory Publications, 1993, p. 49-89.
171. Propostas deste tipo podem ser encontradas, por exemplo, em: DAV1ES, Paul. God and the NewPhy-
sics, London: Dent, 1983; SMITH, Quentin. “TheUncausedBeginningofthe Universe”, in Philosophy o f Scien
ce, 55 (1998), págs. 39-57: ATKINS, Peter W. Cómo crearelmundo, Barcelona: Grijalbo Mondadori, 1995.
290 Filosofia da Natureza
172. YAN, Philip. “Aprovechamiento energético dei punto cero”, in Investigacióny ciência, n. 257,
fevereiro de 1998, págs. 42-45. Na página 42 lê-se: “a energia do vazio é bem real. Segundo a física moderna o
vazio nàoéo nada".
Origem e sentido da natureza 291
173. Encontram-se análises críticas desta proposta em CRAIG, William L. "God, CreationandMr. Davies",
in The British Journalfor the Philosophy o f Science, 37 (1086),págs. 163-175; ARTIGAS, Mariano. "Física y
creación: ei origen dcl universo". Scripta Theologica, 19 (1987), págs. 347-373 e"Explicación física yautocrea-
ción dei universo” in AA. VV. Et hombre: inmanenciay trascendencia, Pamplona: Servicio de Publicaciones
de la Universidadde Navarra, 1991, págs. 109-129; CARROLL, William. "Big Bang Cosmology, Quantum
Tunnelling fromNothing, andCreation", in Lava! Théologique et Philosophiqite, 44 (1988), págs. 59-75.
174. Não é pouco frequente, contudo, que boas exposições científicas destes temas se misturem com
reflexões filosóficas que dào a impressão de levar a física para além de suas possibilidades, tal como acontece,
por exemplo, em: HALL1WELL, Jonathan J. “Cosmologíacuánticay creación dei universo”, in Investigación
y ciência, n. 185, fevereiro de 1992, págs. 12-20.
292 Filosofia da Natureza
175. Por exemplo, Edgar Morin afirma que a organização da natureza teria surgido de um caos, concebido
à maneira do fogo de Heráclito: um “caos original de onde surge o logos”. MORIN, E. El Método. I. La
naturaleza de Ia Naturaleza, Madrid: Cátedra. 1991,págs. 76-78. Morin parece identificar o estado primitivo
do universo e, em geral, o mundo microfisico, com um caos em sentido estrito. No entanto, esta identificação
é muito problemática, porque o mundo microfisico, também em um estado primitivo, deve possuir as
virtualidades cuja atualização provocou a formação de estruturas mais organizadas. A física supõe que sempre
existem leis e, de fato. consegue formulá-las; ante a reflexão filosófica é inverossímil que a organização atual
da natureza provenha de um caos propriamente dito. carente de qualquer tipo de estrutura e leis.
294 Filosofia da Natureza
176. Esta afirmação traz um juízo prévio sobre o problema do indeterminismo. Falamos de tendências,
que são compatíveis com a existência de certo determinismo: na física quântica, que é o âmbito principal de
onde surge este problema, formulam-se leis probabilísticas e as teorias sobre o caos também assinalam
tendências específicas.
Origem e sentido da natureza 297
finalidade não são, na realidade, mais que exemplos de uma “utilidade externa”
e não podem ser utilizados para argumentar a favor da finalidade. Esta objeção tem
uma parte de razão; não seria correto, por exemplo, chamar de finalidade “natural”
certas condições climáticas ou de uma vegetação favorável para determinadas
espécies. Contudo, muitos casos de “utilidade externa” convertem-se em casos
de “funcionalidade interna” desde que estas condições englobem, como
componentes, sistemas maiores. Desenvolvendo o exemplo anterior, o clima e a
existência das plantas são condições imprescindíveis para a existência humana;
portanto, caso consideremos os sistemas que incluem a vida humana, trata-se de
componentes aos quais se deverá atribuir uma autêntica funcionalidade interna.
Evidentemente, existem graus de funcionalidade. Por exemplo, algumas
funções dos organismos são completamente necessárias para a sua sobrevivência
e outras, ao contrário, são somente convenientes. Algo análogo ocorre ao
considerarmos sistemas maiores.
A funcionalidade é o aspecto dinâmico da estruturação. A estruturação
dos organismos e das suas partes é o substrato que possibilita a funcionalidade;
isto, por sua vez, é uma manifestação do entrelaçamento entre o dinamismo e a
estruturação. Não é necessário apresentar exemplos: existem por toda parte nos
seres vivos. Ao contrário, é conveniente analisar a funcionalidade dos diferentes
níveis naturais, considerando uns como condição de possibilidade dos outros.
Com efeito, a continuidade dos diferentes níveis significa que uns são
condição de possibilidade de outros (não em todos os seus aspectos, mas em
alguns deles ou em seu conjunto). O nível físico-químico proporciona os
constituintes de todos os demais; o astrofísico proporciona os constituintes do
geológico, que exerce uma função semelhante em relação ao nível biológico;
os níveis astrofísico e geológico proporcionam o meio ambiente necessário para
a existência do biológico; e, no nível biológico, certos organismos são condição
de possibilidade de outros: por exemplo, as plantas são indispensáveis para a
existência de seres vivos heterótrofos, ou seja, de todos os demais seres vivos.
Se contemplarmos agora as condições de possibilidade da vida humana,
perceberemos facilmente que a organização dos níveis naturais adquire um
sentido óbvio. Não pretendemos afirmar que a existência de cada componente
da natureza deve ser explicada em função de conveniências humanas particu
lares; isto seria um antropocentrismo ingênuo e insustentável. No entanto, existe
um antropocentrismo legítimo, que considera a pessoa humana como o cume
da natureza e reconhece que a existência do homem só é possível porque há uma
grande funcionalidade em todos os demais níveis da natureza. Portanto, se reco
nhecemos que a vida humana tem um valor, é possível atribuir um significado à
organização da natureza cm função da vida humana.
300 Filosofia da Natureza
177. Jacques Monod, em El azary la necesidad, proporciona inúmeros exemplos, que se multiplicaram
nas décadas posteriores. O que ele nega é que esta funcionalidade corresponda a um plano, mas a sua obra
põe em relevo que, mesmo aqueles que se opõem à ideia de um plano superior admitem a existência de um
grau notável de direcionalidade, cooperação e funcionalidade na natureza e que o progresso científico sublinha,
de modo cada vez mais amplo, a existência destas características da natureza.
Origem e sentido da natureza 301
a) Finalidade e cosmologia
178. BARROW, John D. eTRIPLER, Frank J. The Anthropic Cosmological Principie, Oxford: Clarendon
Press, 1986.
Origem e sentido da natureza 303
própria ciência, diante do que, com razão, não poucos cientistas protestam. Em
algumas ocasiões, defende-se uma versão forte do princípio antrópico sem
admitir, no entanto, a existência de um Deus pessoal; daí surgem posições um
tanto confusas, de tipo mais ou menos panteísta.
Em todo caso, o acolhimento que o princípio antrópico teve na atualidade
põe em relevo que é muito difícil deixar de lado as dimensões finalistas da
natureza.
b) A finalidade no nível biológico
Ainda que o progresso da biologia nos leve a conhecer cada vez melhor
as dimensões finalistas da natureza, uma das principais objeções que se
apresentam contra a finalidade natural é a que provém, também no âmbito da
biologia, da teoria da evolução. Embora este tema já tenha sido estudado,
algumas reflexões complementares se fazem necessárias.
A tese evolucionista sustenta que os organismos viventes poderiam ser
explicados a partir da sua origem, por evolução desde formas menos organizadas,
mediante causas eficientes naturais: concretamente, como o resultado da com
binação de variações aleatórias e seleção natural. As novidades seriam produ
zidas por acaso e a competência adaptativa motivaria a sobrevivência somente dos
organismos mais adaptados, dando a impressão de um progresso programado.
Segundo uma interpretação difundida amplamente, o evolucionismo
excluiria a finalidade do mundo biológico, que viria a ser o seu último reduto; a
evolução tornaria inútil qualquer explicação finalista, pois a aparente finalidade
dos seres vivos seria explicada mediante a sua origem evolutiva. Além disso, não
se poderia afirmar que o homem é o fim da evolução, já que esta depende de fatores
aleatórios e imprevisíveis. Por fim, a evolução invalidaria também o argumento
teleológico (plano divino), que seria substituído pelas explicações naturalistas (a
combinação do acaso com a necessidade)179. Vamos examinar estas três objeções,
com o objetivo de mostrar que a evolução não elimina a causalidade.
Em primeiro lugar, a evolução não proporciona uma explicação completa
da finalidade natural. Com efeito, não explica que existam na natureza
virtualidades muito específicas, cuja atualização conduz a novas virtualidades
179. Não é necessário abordar com mais detalhes as teorias evolucionistas, pois já o fizemos anteriormente.
Sobre o tema do finalismo, destacam-se as posições cientificistas de Jacques Monod (na obra El azar y la
necesidad) e de Richard Dawkins (na obra El relojero ciego), dois representantes de um antifínalismo que
pretende se apoiar na biologia. Segundo o antifínalismo radical defendido por Monod, a ciência fundamenta-
se no postulado da objetividade, que exclui qualquer “projeto” ou plano superior; se a isto se acrescenta o
cientifícismo, conclui-se (como o faz Monod) que não existe nenhum plano. Dawkins chega à mesma
conclusão, sublinhando o papel diretivo que a seleção natural desempenha no processo evolutivo e sustentando
a suficiência deste fator para explicar a organização atual dos seres vivos.
304 Filosofia da Natureza
físicas não são algo externo ou acidental na pessoa, mas um dos seus aspectos
básicos. Mas a pessoa não se esgota nas dim ensões natural-físicas. A
peculiaridade do ser humano consiste em que a sua natureza pertence ao mesmo
tempo ao mundo físico e ao mundo espiritual.
A realidade do eu pessoal, dotado de dimensões espirituais, é indubitável.
O problema não consiste em encontrar alguma atividade singular que o
testemunhe. A nossa experiência está cheia desta realidade: a sua negação exige
violentar todo um conjunto de convicções profundas e adotar atitudes práticas
impossíveis. Temos experiência clara e ampla do que significa a espiritualidade:
personalidade, criatividade, capacidade de argumentação e crítica, atuação ética,
liberdade, apreciar os valores, responsabilidade.
O caráter simultaneamente material e espiritual da pessoa humana tem
aspectos difíceis de conceber, mas correspondem fielmente à experiência. O
físico no homem é humano, nunca puramente animal; encontra-se compenetrado
nas dimensões espirituais que lhe são características. Ao mesmo tempo, a vida
espiritual desenvolve-se juntamente com as capacidades psíquicas, biológicas
e físicas. Todo o humano encontra-se encarnado e espiritualizado. O homem é,
ao mesmo tempo, material e espiritual.
b) Criatividade científica e singularidade humana
O progresso da ciência experimental evidencia a existência das dimensões
específicas da pessoa humana. Analisaremos agora o sentido desta afirmação,
referindo-nos à atividade científica, aos seus métodos, aos seus resultados e aos
seus pressupostos ou condições de possibilidade.
A atividade científica destina-se a um duplo objetivo: o conhecimento da
natureza e o seu domínio controlado. Não se busca nenhum dos dois
separadamente, mas uma combinação peculiar deles: trata-se de conseguir um
conhecimento que possa ser submetido ao controle experimental.
O cientista adota uma atitude muito especial diante da natureza. Deseja
conhecê-la, mas encontra uma dificuldade fundamental: a natureza não fala.
Portanto, para conhecer os aspectos da natureza que não aparecem diante da
experiência ordinária, deve encontrar um modo de desvendar os seus “segredos”.
O método científico é, essencialmente, o caminho que o homem encontrou para
interrogar a natureza em busca de respostas às suas perguntas.
O método científico é extraordinariamente sutil e não podemos estranhar
o quanto demorou até que se desenvolvesse sistematicamente; de fato, não se
consolidou até o século XVII. Às vezes afirma-se que o método científico
consiste em observar a natureza, recolher com cuidado os dados e sistematizá-
los em leis. Porém, isso não passa de uma caricatura do método realmcnte
308 Filosofia da Natureza
sempre é possível que apareçam novos casos nos quais a hipótese não funcione:
a história da ciência é pródiga em exemplos deste tipo.
Portanto, a ciência experimental exige fortes doses de criatividade,
interpretação e argumentação. De fato, a ciência existe e o seu progresso é muito
notável. Isto só é possível porque o homem possui algumas capacidades que lhe
permitem desenvolver métodos enormemente sofisticados, graças aos quais é
possível estudar aspectos da natureza que se encontram muito afastados das
possibilidades de observação, formulando hipóteses cada vez mais elaboradas
e submetendo-as ao controle experimental mediante técnicas não menos refinadas.
Por conseguinte, a análise da ciência experimental mostra o caráter
completamente singular da pessoa humana, já que esta ciência pressupõe certas
capacidades que não estão presentes em outros seres naturais. Trata-se de uma
maneira de posicionar-se perante a natureza, de estudá-la e dominá-la, que só é
possível porque possuímos capacidade criativa, que nos permite idealizar
métodos e conceitos; capacidade argumentativa, que nos permite avaliar as
soluções; o sentido da evidência, que se encontra implícito na capacidade
argumentativa; capacidade de auto-reflexão, sem a qual seria impossível a
existência das capacidades mencionadas. Além disso, todas estas capacidades
referem-se à combinação do racional e do empírico, de tal modo que manifestam
a interpenetração de ambos os aspectos na pessoa humana.
Definitivamente, o progresso da ciência experimental demonstra que a
pessoa humana possui dimensões materiais e racionais que estão interpenetradas.
O materialismo e o empirismo cm um extremo, c o idealismo e o apriorismo em
outro, não conseguem dar razões da ciência experimental e, de fato, enfrentam
dificuldades insuperáveis quando procuram propor uma imagem da ciência que
corresponda à atividade científica real e às suas conquistas180. A reflexão sobre
as características da ciência experimental indica que somente uma antropologia
em que se reconheça a existência e a mútua dependência das dimensões materiais
e racionais na pessoa humana encontra-se em condições de explicar a atividade
científica e as suas conquistas reais.
180. Esta ideia encontra-se amplamente ilustrada em: JAKI, Stanley L. Angels, Apes andMen. La Salle
(Illinois): Sherwood Sugden, 1982.
310 Filosofia da Natureza
é um fato claro e é lógico utilizar um termo específico para designar este tipo
de características. Neste sentido, falamos de qualidades espirituais.
A utilização do termo espiritual neste contexto não apresenta nenhum
problema, uma vez que se trata somente de apresentar as qualidades especi
ficamente humanas, cuja existência é patente. Os problemas surgem quando nos
perguntamos pelas relações entre a espiritualidade humana e as condições mate
riais. É o problema que examinaremos a seguir.
a) O material e o espiritual: quatro problemas
Consideremos agora os quatro problemas que as relações entre a espiri
tualidade humana e as condições materiais nos apresentam. O primeiro é
epistemológico e refere-se à possibilidade de observar manifestações concretas
das dimensões espirituais. O segundo é ontológico e refere-se à caracterização
do modo de ser próprio do espiritual e à coexistência do espiritual e do material.
O terceiro é metafísico e refere-se à necessidade de admitir uma ação divina para
explicar a espiritualidade humana. O quarto é existencial e refere-se à sobrevi
vência do espírito humano após a morte.
A respeito do problema epistemológico, se levarmos em conta a unidade
da pessoa humana, é inútil buscar manifestações da espiritualidade humana que
não estejam relacionadas de algum modo com as condições materiais. A
existência das dimensões espirituais é patente, mas também é patente que a
atividade humana está mediada pelas condições materiais. Uma busca por
dimensões não ligadas ao material equivaleria a buscar um fantasma alojado em
alguns espaços vazios do organismo humano, e este fantasma não existe. Entre
tanto, as dimensões propriamente espirituais manifestam-se através de toda a
atividade consciente da pessoa e o progresso da ciência experimental é um dos
melhores exemplos disto: a criatividade e a capacidade de argumentação, que
alcançam um nível muito alto na ciência experimental, manifestam claramente
que fazemos parte da natureza mas que, ao mesmo tempo, a transcendemos.
A respeito do problema ontológico, o modo de ser próprio da pessoa inclui
como parte constitutiva o modo de ser natural, mas o transcende. A pessoa possui
um dinamismo próprio que ultrapassa as possibilidades das pautas espaço-
temporais, tal como é demonstrado, por exemplo, pela sua capacidade de
questionar e desejar que extrapolam o âmbito do espaço-temporal e pela sua
capacidade de se autodeterminar livremente sobre a base do conhecimento dos
valores éticos. Mas o dinamismo da pessoa é unitário e, portanto, o problema
da interação entre o espiritual e o material corresponde a uma abordagem
equivocada. Com efeito, muitas vezes se supõe erroneamente que existam na
pessoa duas realidades diferentes que interajam exteriormente. Na verdade, a
Origem e sentido da natureza 311
pessoa possui um ser único e, ainda que o seu modo de ser inclua dimensões
materiais e espirituais com manifestações específicas, ambas se encontram
compenetradas em um modo de ser único.
O problema metafísico não oferece nenhuma dificuldade que já não esteja
presente no caso das entidades puramente naturais. É necessário admitir a ação
divina fundante tanto no caso da pessoa como em relação aos demais seres
naturais. Quando se fala de uma criação especial da alma humana, o que é especial
são os resultados da ação divina, ou seja, as dimensões espirituais da pessoa, mas
é necessário admitir a ação divina fundante em todos os casos e não só no caso do
ser humano. Portanto, esta criação especial não representa, por assim dizer, uma
alteração no curso ordinário da natureza, e a peculiaridade no caso do homem é
resultado de a ação divina possuir uma “densidade ontológica” que supera o mo
do de ser próprio das entidades naturais. Além disso, o modo de ser da pessoa
humana é possível porque existem algumas condições naturais muito específicas;
portanto, também sob este ponto de vista, pode-se perceber que a criação especial
da alma humana se encontra em continuidade, e não em oposição, com o curso
ordinário da natureza. Definitivamente, a espiritualidade da alma humana exige
que cada alma seja criada diretamente por Deus, já que o espírito não pode pro
ceder de uma transformação da matéria, mas isto não significa que o mundo natural
não necessita da ação divina fundante181.
Sem dúvida, o problema existencial da sobrevivência da alma humana
após a morte é o mais difícil. Entretanto, se a pessoa humana possui dimensões
ontológicas que supõem uma participação no ser próprio da divindade e seu ser
depende da ação divina, é lógico que, quando as condições naturais tomam
impossível a continuação da vida humana em seu modo de ser completo, a pessoa
continue vivendo em seu ser espiritual. Caso fosse contrário, para que o espírito
deixasse de existir, seria preciso um aniquilamento, ou seja, uma ação divina
que parece contradizer a ação criadora. As principais dificuldades provêm da
dificuldade de representar a vida humana em condições não-naturais: são,
contudo, dificuldades secundárias, porque se devem somente às nossas
possibilidades de representação.
181. Sobre este tema, cfr. capítulo X, tópico 29.4.C. Pode-se ver a respeito: VERNEAUX, Roger. Filosofia
dei hombre, Barcelona: Herder, 1971, págs. 219-220; YEPES, Ricardo. Fundamentos de antropologia. Un
ideal de la excelencia humana, 2a ed., Pamplona: EUNSA, 1997, págs. 474-479. ARTIGAS, Mariano. Las
fronteras dei evolucionismo, 5a ed., Madrid: Palabra, 1991, págs. 163-169, 171-177 e 198-200. Encontra-se
uma análise do contexto científico deste tema, com o qual se chega à conclusão da criação divina da alma
humana, em: ECCLES, John C. Evolution oftheBrain: Creation oftheSelf London and New York: Routledge,
1991, pág. 237.
312 Filosofia da Natureza
b) O hilemorfismo espiritualista
A singularidade humana é um fato evidente; os problemas surgem em
torno da sua explicação. Trata-se de problemas que têm sido colocados e
discutidos desde a Antigüidade.
Segundo o monismo materialista, não há no ser humano matéria e espírito;
tudo seria matéria e diversas manifestações de fenômenos materiais. Uma versão
mais sofisticada do materialismo é o materialismo emergentista. Admite a
realidade do mental, que não está reduzido ao físico-químico. Afirma que o
mental é algo qualitativamente diferente do físico, mas afirma também que é
um resultado emergente dos processos neuronais. Recorrendo à teoria dos
sistemas, sustenta que a interação dos componentes explica suficientemente a
existência de propriedades emergentes, sem que seja necessário admitir
realidades imateriais que não levariam a efeitos observáveis e nem poderiam
interagir com os componentes materiais.
A emergência significa que um sistema possui propriedades que não se
encontravam nos seus componentes. Trata-se de propriedades sistêmicas, origi
nadas pela interação entre os componentes. Não é preciso recorrer a novas causas
para explicar a emergência; basta levar em conta que as interações dos componen
tes - neste caso, dos neurônios - têm como resultado propriedades realmente no-
vas que se verificam somente nos sistemas. No entanto, afirmar a emergência da
mente não equivale a proporcionar uma explicação das características especifica
mente humanas. O emergentismo não faz mais que constatar que estas caracte
rísticas existem e acrescenta, contra todas as evidências, que as propriedades mate
riais não suficientes para explicá-las: nega a espiritualidade humana e, para isso,
precisa fazer violência a todo um conjunto de experiências fundamentais.
O materialismo não pode ser defendido utilizando-se os avanços da
psicologia experimental: estes avanços mostram somente que existe uma relação
entre o psiquismo humano e as condições materiais nas quais este psiquismo
existe e se exercita.
O dualismo interacionista sustenta que existe na pessoa humana, junta
mente com o material, uma realidade imaterial que interage com as condições
materiais, denominada - conforme cada autor - mente, espírito ou alma.
Entretanto, este interacionismo enfrenta as dificuldades relacionadas com o clás
sico problema da comunicação das substâncias, apresentado na Idade Moderna
por Descartes e central na filosofia pós-cartesiana, mas que nunca encontrou
uma resposta satisfatória: como se relacionam duas realidades tão heterogêneas?
Além disso, permanece o problema da origem da mente. O recurso às explicações
evolucionistas não o soluciona. Assim, um partidário do dualismo interacionista
como Karl Popper afirma, por um dado, que a evolução por seleção natural
Origem e sentido da natureza 313
182. Cfr. POPPER, Karl R. "Natural Selection and thc Emergence of Mind", in RANDN1TZKI, G. e
BARTLEY, W. W. III (editores) Evolutionary Epistemology, Rationalitv, and lhe Sociology o f Knowledge,
La Salle (Illinois): Open Court, 1987, pàgs. 139-155.
183. POPPER, Karl R. e ECCLES, John C. E ly o y su cerehro, Barcelona: Labor, 1980, pág. 622.
184. Ibid.
314 Filosofia da Natureza
homem não é formado por duas substâncias justapostas que atuam entre si, mas
é uma única substância: o hilemorfismo sustenta esta tese ao comparar a união
entre alma e corpo com a existente entre forma com a matéria. Forma e matéria
não são entidades complexas. O espiritual exige um sujeito, a alma, mas esta
não é um sujeito completo que se junta ao corpo: como forma da matéria, a alma
expressa o modo de ser característico da pessoa. Por outro lado, as dimensões
espirituais não podem derivar da matéria; assim, a criação divina da alma é neces
sária, pois ainda que alma seja forma da matéria, não depende dela por sua
espiritualidade e subsiste quando a desagregação da matéria provoca a morte.
De acordo com esta perspectiva, não ocorre propriamente uma interação entre
a alma e o corpo, visto que alma e corpo constituem uma única substância.
185. SM()l .1J( 11( )WSK I, Roman. El sistema solar, Barcelona: Prensa científica-Labor, 1986, pág. 50.
316 Filosofia da Natureza
autor da natureza, com o qual tem uma relação única, de caráter pessoal. Se toda
a natureza corresponde a um desenvolvimento dos efeitos da ação divina, este
desenvolvimento adquire matizes únicos no caso do homem, cuja relação com
o resto da natureza pode ser contemplada em continuidade com a ação divina: a
perspectiva teológica contempla a pessoa humana como responsável por
desenvolver uma tarefa que Deus lhe encomendou no mundo e vê a natureza
com um papel de destaque nesta tarefa.
186. Os aspectos epistemológicos deste problema sào tratados amplamente em: ARTIGAS, Mariano.
Filosofia de Ia ciência experimental. La objetividad y Ia verdad en Ias ciências, op. cit.
Origem e sentido da natureza 317
Uma vez que cada disciplina age dentro de uma objetivação particular, o
método científico abre a possibilidade de um estudo dirigido para as condições
radicais do ser. Qualquer que seja a posição metafísica adotada, é forçoso reco
nhecer que existe sempre um salto metodológico entre as perspectivas científica
e metafísica.
Entretanto, também se afirma freqüentemente que ambas as perspectivas
devem se relacionar mediante um diálogo e que a ciência conduz a questõesfron
teiriças com a teologia. Tais “questões surgem da ciência e exigem insistente
mente uma resposta, mas, por sua natureza, transcendem as competências da
ciência” 187.
Estas questões podem surgir de duas maneiras. A primeira refere-se a
problemas científicos que provocam interrogações metafísicas nos sujeitos que
os estudam; é compreensível que isto aconteça, mas afetará somente o cientista
como pessoa individual. Ao contrário, a segunda refere-se aos pressupostos
gerais da ciência e às implicações das suas conquistas; estes problemas são
candidatos melhores para serem questões fronteiriças. Pode-se mencionar neste
contexto, sobretudo, a inteligibilidade da natureza, a sua racionalidade: trata-
se de uma parte importante dos pressupostos da atividade científica, que não
existiria nem teria sentido se estes pressupostos não fossem verdadeiros. Sem
dúvida, existe um longo caminho desde a admissão implícita destes pressupostos
por parte dos cientistas até sua articulação filosófica. Apesar disso, são questões
que podem ser estudadas de modo objetivo e que assinalam pontos importantes
de confluência entre a atividade científica e as idéias metafísicas188.
Em qualquer caso, a afirmação de Deus e de um plano divino que governa
a natureza ultrapassa o nível próprio das ciências e remete a raciocínios metafí
sicos. Mas, pelo mesmo motivo, não é legítimo negar a existência do plano divino
em nome das ciências. As ciências não têm condições de afirmar ou negar que exis-
ta um plano divino acerca da natureza, pois estes temas extrapolam o seu método:
as ciências proporcionam conhecimentos acerca das manifestações das dimensões
ontológicas e metafísicas da natureza, mas o estudo explícito destas dimensões re
quer a adoção de uma perspectiva propriamente filosófica. De fato, encontra-se
todo tipo de posições filosóficas e teológicas entre os cientistas, o que mostra que
estas posições não estão determinadas unicamente pela ciência189.
187. POLKINGHORNE, John C. "A Revived Natural Theology”, in FENNEMA, J. e PAUL. I. (editores)
Science andReligion. One World: Chaging Perspectives on Reality\ Dordrecht: Kluwer Academic Publishers,
1990, pág. 88.
188. Encontra-se um estudo amplo destes temas em: ARTIGAS, Mariano. The Mind o f the Universe
(Templeton Foundation Press).
189. Esta diversidade é refletida, por exemplo, em: MARGENAU, Henry e VARGHESE, Roy Abraham
(editores) Cosmos, Bios, Theos: Scientists Reflect on Science, God, and the Origins o f Universe, Life and
Homo, Peru (Illinois): Open Court, 1992.
318 Filosofia da Natureza
192. Cfr. TOMÁS DE AQU1NO. Suma contra os gentios, I, c. 13; 111, c. 64; Depotentia, q. 3, a. 6, c.;
Comentário à Metafísica de Aristóteles, livro XVII, capítulo 10, lectio 12; Comentário ao Evangelho de São
João, prólogo; Comentário ao Símbolo dos Apóstolos, artigo I.
Origem e sentido da natureza 321
os seres têm tendências, que correspondem ao seu modo de ser, mas somente
os agentes intelectuais podem propor-se objetivos de modo consciente e livre.
Na primeira parte do argumento teleológico afirma-se que os seres naturais
que carecem de conhecimento possuem tendências constantes cuja atualização
produz resultados ótimos. Por sua vez, a constância das tendências demonstra
que estes seres não agem por acaso, mas de acordo com a necessidade
característica das causas agentes. Além disso, acrescenta-se que a produção de
resultados ótimos demonstra que estes resultados são um objetivo previsto pelo
agente intelectual. Portanto, há uma dupla referência ao acaso: nega-se que as
tendências naturais correspondam ao acaso e nega-se que a bondade dos
resultados possa ser devida exclusivamente à confluência ao acaso de causas
necessárias. Esta dupla referência corresponde aos dois níveis da finalidade.
Conseqüentemente, quando se rejeita a finalidade natural, é preciso determinar
a que aspecto se refere esta rejeição, ou seja, se é negada a existência de
tendências naturais ou a existência de umafinalidade superior que se relaciona
com o governo divino da natureza.
Ao negar a existência de tendências, é preciso enfrentar não somente a
evidência própria da experiência ordinária, mas as conquistas do progresso
científico, que sublinham amplamente a existência de direcionalidade na
natureza.
Freqüentemente, não se nega a existência de tendências particulares na
natureza, mas a existência de uma tendência na evolução. Afirma-se que a
evolução procede por “ziguezagues” oportunistas, de um modo de ser que se
parece mais com uma bricolagem do que com um plano premeditado. Nestas
condições, como seria possível ainda falar de um plano divino?
Contudo, esta dificuldade desaparece quando se percebe que o plano
divino não implica uma evolução retilínea, sempre progressiva, sem acidentes:
é mais lógico supor que Deus conta com a complexidade própria das causas
naturais para realizar o seu plano. A existência de um plano divino é plenamente
congruente com o caráter complexo da evolução. Mais ainda: a complexidade
do universo adquire assim um novo relevo. Pode-se compreender, por exemplo,
que talvez Deus tenha querido que existam milhões de galáxias para que possam
existir a Terra e o homem. Com efeito, as teorias cosmológicas atuais afirmam
que os átomos mais pesados foram produzidos no interior das estrelas e pode
ter sido preciso que isto tenha acontecido milhões de vezes para que, finalmente,
se produzisse um só planeta com as características concretas da Terra. A
existência de milhões de galáxias e estrelas, que de outro modo parecería
desnecessária, poderia ser necessária para que, mediante processos naturais,
tenha sido possível o surgimento da vida humana.
Origem e sentido da natureza 323
Tomás de Aquino afirma que o mundo não só é bom, mas muito bom. Esta
afirmação encontra-se, em parte, relacionada com uma cosmovisão superada,
segundo a qual mesmo os movimentos dos corpos físicos poderiam ser
considerados bons porque se relacionam com o seu lugar natural, que determina
uma ordem na estrutura do universo. Mas a idéia fundamental continua sendo
atual. Tomás de Aquino afirma que a intenção (intentio) de tudo o que se move
é uma tendência para um ato ou perfeição, e acrescenta: “Nos atos das formas
existem graus. Com efeito, a matéria prima está primeiramente em potência em
relação à forma do elemento. Mas, existindo sob a forma do elemento, está em
potência para a forma do composto, pelo qual os elementos são a matéria do
composto. Considerada sob a forma do composto, está em potência para a alma
vegetativa, já que a alma é o ato de um corpo deste tipo. Além disso, a alma
vegetativa está em potência para a sensitiva, e a sensitiva para a intelectiva...
Mas depois desta forma não se encontra no gerável e corruptível uma forma
posterior mais digna. Portanto, o último fim de toda geração é a alma humana
e para ela tende a matéria como para a última forma. Conseqüentemente, os
elementos existem por causa dos corpos compostos; estes por causa dos viventes;
entre os quais, as plantas por causa dos animais e os animais por causa do homem.
Portanto, o homem é o fim de toda geração”195.
Este texto mostra o que Tomás de Aquino entende quando afirma que os
corpos naturais “sempre ou muito freqüentemente agem da mesma maneira para
conseguir o melhor”. Trata-se de um ponto de vista plenamente atual. As entidades
naturais apresentam-se em níveis hierarquizados. A sua atividade consiste no
desenvolvimento de capacidades direcionais, que correspondem ao seu modo de
ser próprio. O desenvolvimento destas capacidades possibilita a existência de
níveis de maior organização e, finalmente, a existência do homem. Definitivamen
te, a atividade tendencial das entidades naturais torna possível a existência da
pessoa humana.
Tomás de Aquino afirma expressamente que Deus criou o universo para
o homem. Recorda que se pode falar da finalidade em dois sentidos: como
tendência natural ou como plano de um agente inteligente, e afirma que o homem
é o fim das criaturas nos dois sentidos196.
Para afirmar que Deus criou o universo em vista do homem é preciso
recorrer a raciocínios que transcendem o âmbito do argumento teleológico. Mas
esta afirmação é plenamente congruente com a existência, em todos os níveis da
197. “Se for tomada de maneira literal, a fórmula inteligência inconsciente é uma contradição, um puro
absurdo, e, no entanto, tem certo sentido se tomada como uma metáfora. Assim entendida, significa que é a
capacidade de ajustar o comportamento a certo fim, apesar de não ter nenhuma ideia dele, isto é, como se a
ideia correspondente estivesse sendo conhecida pelo ser que atua assim. Tomada desta maneira, seria uma
capacidade que pode ser afirmada sem incorrer em nenhum antropomorfismo, já que não implica a identidade
absoluta do comportamento humano e do não-humano, mas tão somente uma analogia entre eles... Todo o
ser do apetecer é a tensão para um fim, com ou sem consciência. E isto é o que em grego é designado com o
termo orexis, de onde vem o adjetivo orético, utilizado na terminologia contemporânea como sinônimo do
que também pode ser chamado tendencial, isto é, concernente ou relativo à tendência”. MILLAN-PUELLES,
A. Léxico filosófico, Madrid: Rialp, pág. 452.
326 Filosofia da Natureza
como tampouco teria sentido falar de desordem se não existisse nenhum tipo
de ordem.
As críticas contra a teleologia geralmente supõem que existe uma contra
dição absoluta entre o acaso e a finalidade; conseqiientemente, as explicações
nas quais o acaso intervém são vistas como argumentos contra a finalidade. No
entanto, não existe tal contradição absoluta entre acaso e finalidade. Ao afirmar
a finalidade, não pretendemos negar que exista o acaso. Sublinhamos simples
mente que o acaso e, em geral, qualquer combinação de forças “cegas”, não
pode ser considerado como uma explicação total.
Por exemplo, para explicar a origem de uma frase que tem sentido em
um determinado idioma, não basta provar que existe alguma probabilidade de
que se tenha produzido mediante combinações de letras ao acaso: se não existe
previamente um idioma, com o seu alfabeto, seu dicionário e suas regras grama
ticais, nenhuma combinação de letras poderá formar termos com significado.
Na origem tem que haver uma inteligência. Isto é igualmente válido em relação
à natureza. A afirmação da finalidade equivale a sustentar que a inteligibilidade
da natureza fundamenta-se, em última análise, em uma atividade inteligente. A
inteligência inconsciente deve estar baseada em uma inteligência consciente.
b) A natureza sob a perspectiva metafísica
Ao comentar as idéias de Aristóteles sobre a finalidade natural, Tomás
de Aquino propôs uma espécie de definição da natureza. Para este fim,
contempla-a desde o seu fundamento metafísico radical, que é muito original e
ultrapassa em profundidade as idéias de Aristóteles, além de ser surpreenden
temente coerente com a cosmovisão atual. Diz assim: “a natureza é, precisa
mente, o plano de certa arte (concretamente, a arte divina), impresso nas coisas,
pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado: como se o
artífice que fabrica uma embarcação pudesse outorgar à madeira a capacidade
de mover-se por si mesma para formar a estrutura do navio” 198.
Três aspectos desta “definição” merecem uma atenção especial: a racio
nalidade da natureza, a sua conexão com o plano divino e a ênfase que é posta
na auto-organização.
Em primeiro lugar, ressalta-se a racionalidade da natureza ao identificar
a natureza como o plano de uma arte (no original latino, ratio cuiusdam artis).
De fato, o progresso científico põe em relevo, até extremos antes ignorados, a
eficiência e sutileza da natureza. O êxito da ciência amplia cada vez mais o nosso
conhecimento da racionalidade da natureza. Ainda que os produtos da tecnologia
ll)8. TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Física de Aristóteles, livro II, capítulo 8, Icctio 14.
Origem e sentido da natureza 327
c) A autonomia da natureza
Ao se afirmar que a natureza remete a um plano divino, a autonomia da
natureza não é desvalorizada. Antes, acontece o contrário. É a perfeição da
natureza que exige, como explicação adequada, a existência de um plano divino
criador.
A afirmação de Deus como fundamento radical da natureza coincide com
várias perspectivas filosóficas: com a pré-socrática, que afirmava que a natureza
era impregnada por algo divino; com a elevação ao ato puro a partir do movimento
de Aristóteles; com o argumento teleológico baseado na direcionalidade da
natureza; com os argumentos de Leibniz, que sublinham o dinamismo básico do
natural e a harmonia da natureza; e com outros argumentos que foram propostos
em todas as épocas. Podemos sustentar que, em nossa época, a cosmovisão cien
tífica é coerente com a existência de um fundamento que transcende a natureza.
Desde já, para que a coerência se transforme em prova, deve-se recorrer ao racio
cínio filosófico: a natureza pede um fundamento metafísico, porque o dinamismo
natural não é auto-suficiente e o seu desenvolvimento produz resultados enorme
mente racionais que exigem uma causa inteligente superior.
As fronteiras entre físico e metafísico são colocadas às vezes entre a
matéria e a vida, às vezes entre a vida e o espírito, e às vezes entre a natureza e
o espírito. Em algumas ocasiões a existência de tais fronteiras é negada, porque
se nega o metafísico. Embora, em sentido estrito, estas fronteiras não existam,
não é por não existir o metafísico, mas porque todo ente natural inclui dimensões
metafísicas. O fundamento metafísico é necessário para explicar a origem da
natureza e também para explicar o seu dinamismo, a sua estruturação e o entre
laçamento de ambos em todos os níveis.
Diante da experiência ordinária, o mundo aparece como um cosmos com
dimensões metafísicas. As reflexões dos pré-socráticos e das culturas antigas
refletiam um universo encantado ou mítico, no qual o natural está entrelaçado
com o divino. A perspectiva da ciência experimental objetiva a natureza e neu
traliza as suas dimensões metafísicas. Trata-se de uma perspectiva legítima, sem
pre que não seja absolutizada. Quando se afirma que esta perspectiva pretende
esgotar tudo o que pode ser conhecido acerca da natureza, é destruída a filosofia
natural e, com ela, o elo entre a natureza e a reflexão metafísica. Mas esta abso-
lutização é uma extrapolação ilegítima que carece de base e afasta-se do rigor
próprio do método científico.
Na atualidade, a nova cosmovisão científica proporciona as bases para
uma verdadeira reavaliação da natureza, que supera as contradições do cien-
tifi cismo e do naturalismo. Com efeito, proporciona uma base muito sugestiva
para contemplar a natureza sob uma nova luz.
Origem e sentido da natureza 329
Bibliografia
1. Manuais
2. Monografias