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DOIS MITOS DA HOSPITALIDADE

Fernando Freitas Fuão

Leonardo Boff em seu livro A Hospitalidade, virtudes para um mundo possível,


apresenta o mito da hospitalidade contido nas Metamorfoses, de Ovidio: o mito
de Filemon e Báucis.
Boff re-apresenta o mito numa linguagem mais atual, mais ou menos assim:
certa vez Júpiter e seu filho Hermes resolveram se disfarçar de pobres e vir ao
reino dos mortais para ver como ia a criação, Passaram por muitas terras e
encontraram muita gente, pediam ajuda a uns e a outros. Ninguém lhes
estendia a mão. Recebiam maus-tratos e ouviram palavras ofensivas. Depois
de muito peregrinar e se sentirem alijados por todos, um dia chegaram à Frígia,
província das mais longínquas e pobres do Império Romano, lugar para onde
eram desterrados rebeldes e criminosos. Aí vivia um casal de velhos e muito
pobre, ele se chamava Filêmon e ela Báucis. Viviam em paz e harmonia.
Eis que chegam a choupana Júpiter e Hermes, disfarçados de pobres mortais.
Filêmon sorridente abriu a porta sorrindo e foi logo dizendo entrem, devem
estar muito cansados forasteiros. Convidaram para sentarem, deram-lhes de
beber e comer o pouco que tinham. Por fim os dois velhinhos ofereceram sua
própria cama. Instados a recolher-se, Júpiter e Hermes se dirigiam para a cama
quando veio uma grande e inesperada tempestade. Foi então que ocorreu a
metamorfose. Repentinamente a tempestade cessou. E num abrir e fechar de
olhos a choupana foi transformada num luzidio templo de mármore.
Júpiter e Hermes finalmente mostraram quem eram. Júpiter então disse para
Filemon e Báucis que fizessem um pedido que ele iria atender. E, como se
tivessem combinado os dois disseram que seu desejo era servir-lhes nesse
templo por todo tempo que restasse. E Hermes acrescentou: eu também quero
que façam um pedido para que eu Hermes possa realizar. E eles novamente
juntos disseram: depois de tão longo amor gostaríamos de morrer juntos. Seus
votos foram ouvidos e receberam a promessa de cumprimento.
Certo dia, sentados à tardinha no átrio, recordavam a história do lugar, e de
como hospedaram os deuses em sua choupana. Nesse momento Filêmon viu
que o corpo de Báucis se revestia de ramos e flores, da cabeça aos pés. E
Báucis viu também que o corpo de Filêmon se cobria todo de folhagens verdes.
Mal puderam balbuciar juntos o derradeiro adeus porque havia se completado
a grande metamorfose. Filêmon foi transformado num enorme carvalho e
Báucis numa frondosa tília. Suas copas e galhos se entrelaçaram no alto. E
assim abraçados ficaram”1
O outro mito, o mito Da hospitalidade apresentado por Jacques Derrida 2,
também está atado ao temática da morte, da morada última, e para isso se
serve do mito da morte do Édipo que ilustra essa estranha experiência da
hospitalidade, diz ele: Morre-se no estrangeiro e nunca como se gostaria.
Antígona não suporta e nomeia essa coisa terrível: estar privada da tumba de
seu pai, privada, sobretudo, como sua irmã Ismene, de não saber da última
1 Boff, op. Cit; p.78-84. Para Boff fica claro que na narrativa do mito que a hospitalidade está relacionada com os mínimos cuidados humanos, sem esses mínimos materiais
ninguém vive e sobrevive. Mas o mínimo material também remete a um mínimo espiritual, mais profundo e que torna propriamente humanos. P..96

2 Da hospitalidade
morada de seu pai, privadas pelo pai, segundo um desejo do próprio pai. E
segundo um juramento no momento de morrer, Édipo ordena expressamente a
Teseu jamais revelar o lugar de sua tumba a quem quer que seja, em particular
a suas filhas. “Édipo no limiar da morte declara a Teseu: a ti, filho de Egeu, dir-
te-ei qual tesouro conservareis, tu e tua cidade, ao abrigo da idade e das
inquietações. O lugar como Kurt, o lugar, o pátio, o intervalo onde devo morrer,
levar-te-ei ali eu mesmo sem que qualquer guia me tenha pela mão. Derrida
explica, Édipo pretende assim escolher a morada, sua última morada. Ele quer
ser o único a fazê-lo, ele é o único a decidir isso. Ele conduz suas próprias
exéquias em segredo, e apesar do amor por suas filhas, ele não revela a elas,
como se amar fosse finalmente isso mesmo que deveria significar, diz Derrida,
essa última prova de amor que consiste em deixar saber aos bem-amados
onde se morre, onde se está morto, e como se essa última prova de amor,
Édipo estivesse privado do direito de oferecê-la a quem devota seu amor.
“Estrangeiro, em país estrangeiro, então Édipo está numa situação de
clandestinidade, ele aí será escondido na morte: sepultado, inumado, levado
em segredo para dentro da noite de uma cripta.”
Teseu é seu hospedeiro, mas ele acabará se tornando refém do morto.
Édipo se dirige a Teseu, seu hospedeiro, como a um estrangeiro no momento
que vai morrer em terra estrangeira, a todos que te seguem diz ele, desejo que
sejam felizes, mas no meio da felicidade, não me esqueçam, mesmo morto, se
quereis que a prosperidade continue vosso legado para sempre
Ele roga, mas essa rogativa, diz Derrida, é uma injunção, ela deixa pressentir
uma ameaça, ela prepara uma chantagem, uma maldição caso não seja
cumprido o juramento.
O que está nas fundações da hospitalidade não é o monos dos vivos mas a lei
não escrita dos mortos. O que está enterrado, oculto, guardado, não são os
mortos, mas as leis não ditas que ditam as vidas dos vivos. Os mitos e as
superstições.
Todos os vivos na religião dos deuses lares se tornavam reféns dos mortos, por
sua obrigação de culto. O hospedeiro tornava-se um refém retido, um
destinatário detido. E quando as filhas de Édipo pedirem e suplicarem para
Teseu, para deixa-lãs ver a tumba, irem ao lugar secreto do segredo, Teseu
recusará alegando o juramento que o liga ao Deus.
Diz Derrida: ”Todo mundo é refém do morto, a começar pelo hospedeiro
(Teseu), ligado pelo segredo que lhe foi doado, confiado, obrigado desde então
pela lei que lhe tomba nas costas sem que ele tenha escolhido escolher ou
obedecer.
As duas filhas se lamentam, mas elas não deploram apenas não poder ver o
pai, mas elas se lamentam, diz Derrida, de duas coisas: de uma parte que seu
pai esteja morto em terra estrangeira, e de outra parte, que esta escondido,
em segredo, em uma terra estrangeira, seu cadáver, sem tumba, sem lugar
determinado, sem monumento, sem lugar de luto, sem culto, sem lar.
Na verdade. Derrida se serve de Édipo para mostrar a origem de uma
hospitalidade incondicional, de um segredo compactuado entre hospede e
hospedeiro, acima de qualquer monos, mesmo que esse hospede seja um
anomos, um fora-da-lei. Anne Dufourmantelle, em paralelo e simultaneamente
no livro “Da Hospitalidade“, comenta também o direito de morrer, quase
impossível hoje em dia, de morrer em casa, no lar, ao lado dos familiares.
Um acontecimento cruel em termos de hospitalidade foi o ato de jogar o corpo
de Osama Bin Laden perpetrado pelos EUA, no meio do oceano, para que as
pessoas nunca fossem visitá-lo e cultuá-lo.

O estrangeiro tanto em Derrida, como em Boff e Levinas é sobretudo esse


outro que chamamos de excluído, o que está de fora, fora de tudo, e a beira da
margem, nas bordas da sociedade de consumo, são os que tem estampado no
rosto o sofrimento, a pobreza. Sua vida nua e cinzenta assombra, perturba.
Essa desfamiliarização se torna rejeição, porque os mesmos já não
reconhecem o humano que existe por detrás de sua vida nua. Para a cultura
greco-romana que se sedimenta na religião, na propriedade privada, ao
primeiro estrangeiro será a mulher, a esposa. a primeiro outro, a outra, a figura
perigosa. Na cultura da antiguidade ela abandona a casa dos pais, de seus
antepassados, a quem venera, e pelas regras religiosa dos lares, quando casar
será obrigada a recusar seus deuses, sua família para cuidar de seus novos
deuses. Será justamente a esse feminino que Levinas montará seu discurso da
alteridade.
Os estudiosos da hospitalidade sabem quanto ela é fragil e facilmente pode se
tornar hostilidade, os adeptos de Levinas, Derrida também sabem da
impossibilidade da hospitalidade incondicional. Essa hospitalidade, no universo
dos arquitetos, não deve ser pensada em termos comerciais, de uma
arquitetura comercial voltada para estimular a hospitalidade hoteleira, repleta
de formas regionalistas, reenvios pitorescos e contextualistas, como o que
aconteceu nos anos 80.
A hospitalidade é a hospitalidade, da cidade, mas antes de nada, é a
hospitalidade com que cidadãos se tratam uns aos outros. Hospitalidade é
capacidade de receber o outro, os outros, o estrangeiro, e para isso não é
necessário dar nada, hospitalidade não se funda na dadiva, na divida, na
duvida, e na retribuição. O que funda a hospitalidade é o lugar, como disse
Derrida, e o lugar não pede nada em troca, a não ser a presença do que
chega..
O ser é o lugar primeiro. Mas como não há ser sem lugar, lugar e ser são
indivisíveis.
Hoje o tema hospitalidade também se refere as migrações turisticas que vem
se intensificando desde a segunda metade do século passado, não é por acaso
que nos EUA, e Europa o termo hospitalidade hoje remete exclusivamente a
instituições, empresas e pessoas relacionadas a receber essas multidões de
classes privilegiadas.
A hospitalidade sempre foi atributo de pessoas e espaços e não de empresas,
mas porque a maioria dos estudos insistem relacionar a hospitalidade com
oferecer abrigo e comida? Que hospitalidade é essa a hospitalidade que teima
em diriger-se ao mesmos? Que sentido pode haver em oferecer abrigo a quem
tem uma casa, que sentido tem oferecer comida a quem tem de sobra?
A noção de hospitalidade como dadiva, dom, também arrasta a idéia de
sacrificio. Por que a hostilidade enquanto sacrificio representa uma certa perda
necessaria para receber outra coisa em troca. Não estaria ai o fundamento do
paradoxo da hospitalidade desde a otica da propriedade privada, dos lares, do
fogo sagrado, e do comercio da hospitalagem?
A dadiva não anula o interesse, apenas exige que ele não se manifeste sob a
forma de negócio.
Mas o que esperar em troca quando não se tem nada para dar, muito menos
uma casa para retribuir sua acolhida, o que esperar dos sem-teto, dos errantes,
quando não se tem sequer comida pra compartilhar, de uma carencia que
percorre milênios. Entretanto, a hospitalidade é mais visível e mais bela ali
onde falta tudo, quando não há quase nada para oferecer, só importando
apenas os vínculos de solidariedade, antes mesmo de qualquer possibilidade
de retribuição. O mito da hospitalidade se funda na pobreza, de uma pobreza
que não tem quase nada para oferecer, essa pobreza talvez não deva ser
interpretada como pobreza, mas numa vida nua, numa destituição de bens e
valores materiais, uma abnegação do consumismo.
Do errante e do estrangeiro não se pode esperar muito, muito menos uma
retribuição de uma hospedagem num lugar longínquo, que provavelmente
nunca iremos, e tampouco saberemos se é acolhedor ou não, do estrangeiro
nunca saberemos o que ele fala e diz é verdade ou não.
O conceito de sacrifício permeia e funda a economia das religiões, é como o
dizimo. Não pode haver hospitalidade absoluta onde reina o sacrificio, onde
reina a moeda.
O problema enfim da hospitalidade é que passa também pela língua, não em
seu sentido de língua, mas de uma especificidade cultural, cada povo na terra,
cada cultura tem seu sentido de hospitalidade, e mesmo o conceito de
hospitalidade dentro da civilização ocidental é flexível. Enfim a hospitalidade
esta atrelada à uma fixação, e nunca de um deslocamento, de uma visão
errante. A visão da hospitalidade tem sido muito mais a visão do hospedeiro do
que a do hospede, do excluido, daquele que não tem a escrita, o registro.
Qualquer gesto de hospitalidade manifesta-se quando há uma reciprocidade
entre dois tipos de indivíduos: o anfitrião, que está “dentro” desse relativo
dentro, no interior de algum espaço, sempre a espera. Esse lugar pode ser até
um lugar aberto que recebe o  hóspede que vem de outro lugar, de fora, de
fora de mim, fora da casa, do bairro ou da cidade. O forasteiro é sempre aquele
que está de passagem, ele é um errante que está pronto para permanecer
definitivamente, ou partir a qualquer momento.
Todo passo é um acontecimento, cada passo um evento, uma relação que se
trava com a natureza, a idéia de um espaço geográfico limitado acaba
desmerecendo a vida, também estamos e somos sempre, quando andamos no
território do outro. A natureza, a vida, é sempre o território do outro. O ato de
exteriorização é uma permanencia no território do outro, na interioridade do
outro.

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