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O MITO DE PERSÉFONE

Luciana Aires Mesquita

Resumo: O presente artigo é dividido em duas partes. A primeira parte é a apresentação do


mito de Perséfone, seguido de análises de autores da psicologia arquetípica: Patricia Berry,
Christine Dowining e James Hillman; e a segunda parte, uma interpretação pessoal e criação
mito-poética, do mesmo mito, para um roteiro de filme/vídeo.

Palavras-chave: Mitologia; Psicologia Arquetípica; Mitopoesis. Roteiro.

O mito de Perséfone conta que ela estava com suas amigas Oceânidas, a geração mais
velha de deusas do mar, colhendo flores, distante de sua mãe Deméter. Há versões do mito em
que Perséfone estava com as amigas Atena e Ártemis - ambas deusas virgens. As virgens são
chamadas de Core, nome genérico que significa "virgem" com variações e ambiguidades,
significando não apenas virgindade física, mas também completa consigo mesma. Gaia, a
personificação do planeta Terra, criou uma flor de Narciso, radiante, que certamente
surpreenderia e encantaria Perséfone. Quando Perséfone foi colhê-la, a terra se abriu e Hades
veio do mundo subterrâneo em sua carruagem de corcéis negros. Ele agarrou-a e levou-a para
o Reino dos Mortos, também chamado mundo de Hades. Perséfone foi raptada. Hades, Gaia e
Zeus, e provavelmente Poseidon, eram aliados neste plano. Deméter não sabia de nada.
Hécate e Hélio ajudaram Deméter chegar à verdade. Deméter ficou terrivelmente abatida e
deprimida quando soube que sua filha estava em Hades e, certamente, também sofreu um
rapto na alma. Em uma das versões do mito, Deméter vem para a Terra e não pára de chorar,
até que duas crianças a amparam e a levam para casa, onde passa a ser babá das crianças e do
bebê que havia recém-nascido. Ela se afeiçoa muito pelo bebê e faz, secretamente, libações ao
fogo com para torná-lo imortal. Deméter é descoberta pela mãe da criança e não consegue
finalizar seu plano. Ela então se revela como deusa e exige que se construa o Santuário de
Elêusis. Em outra versão, enquanto não parava de chorar, Baubo, uma anciã irreverente,
mostra sua vulva e Deméter finalmente ri. Renovada com as forças femininas, Deméter vai
até Zeus e exige o retorno de Perséfone, do contrário ela recusaria fornecer grãos à Terra.
Nesta situação, Zeus envia Hermes, o guia das almas, ao Mundo dos Mortos para trazer
Perséfone de volta e apaziguar Deméter. Quando Perséfone retorna, descobre-se que ela
ingeriu sementes de romã enquanto estava em Hades, o que a impede de ficar no Olimpo.
Zeus, aconselhado pela mãe Réa, decide que Perséfone deve passar um terço do ano em
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Hades e voltar para sua mãe na primavera. Conhecido como o Mistério de Elêusis, a história
do eterno retorno de Perséfone que renova a vida na Terra, é um tema central na mitologia e
talvez o mais importante ritual da Grécia antiga. Esses rituais gregos também são conhecidos
como um reconhecimento, não só do ciclo da vida vegetal, mas também como uma
experiência de superação do medo da morte, abrindo um portal para a imortalidade.
Este mito tem sido bastante explorado na psicologia por fazer várias conexões e reunir
muitos significados profundos por estar relacionado com a Deusa dos Grãos, Deméter, e,
consequentemente, ao Mistério de Elêusis, bem como com à velha Mãe Terra Gaia, o sombrio
Hades e o soberano Zeus, apenas para mencionar alguns. Este artigo está dividido em duas
partes. A intenção na primeira parte é trazer algumas análises de diferentes estudiosos da
psicologia arquetípica, como Patricia Berry, Christine Downing e James Hillman. Como este
mito tem muitas variações, e portanto, entendimentos diferentes, acredito que com três
perspectivas de autores diferentes para o mesmo mito, teremos uma melhor apreciação do
mesmo.
A segunda parte é um roteiro a ser adaptado para um vídeo de curta duração, intitulado
Eidola, contando a estória de Perséfone que não é contada na estória original. Trago minha
perspectiva para esta estória extraordinária do Reino do Mortos com um olhar imaginal. Dei-
me a liberdade de usar imagens e palavras inventadas fazendo conexões com arte e mito.
Christine Downing diz que, "mito é antes de tudo uma estória, e estórias são contadas, a fim
de serem recontadas." Então eu reconto a fim de contribuir, como ela diz "para uma
apreciação polifônica do mito". (Downing, 1994: 5, tradução nossa)
Parte I:
Patricia Berry, em sua análise deste mito, traz um quadro psicopatológico como
referência. Seu foco e interesse é o rapto de Perséfone, fazendo um paralelo com os processos
neuróticos da mãe, localizando padrões arquetipicamente evidentes na figura mítica de
Deméter. Para Patricia Berry, Deméter tem um comportamento claramente neurótico e é uma
deusa depressiva.
A consciência de Deméter torna-se deprimida, e dentro desta depressão, podemos
ver muitos atributos psiquiátricos clássicos: ela deixa de tomar banho, deixa de
comer, disfarça sua beleza, nega o futuro (suas possibilidades de
rejuvenescimento e produtividade), regride para servis tarefas aquém de sua
capacidade (ou vê suas tarefas como servis), torna-se narcisista e autorreferente,
vê (e realmente engendra) catástrofe mundial, e incessantemente, chora. (BERRY,
1982: 22, tradução nossa)

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Deméter é a deusa responsável pelo crescimento dos grãos, e toda a vegetação
agrícola, que explicitamente significa "vida". A violação de Perséfone, experimentada por
Deméter, faz com que ela abandone os cuidados com a vida. Deméter procura por sua filha
com um comportamento autodestrutivo. Suas qualidades mais profundas e poderes de ser uma
Mãe Terra e Deusa, são negligenciados. Deméter, em sua raiva e desespero, derrama suas
lágrimas salgadas, tornando o solo seco e menos fértil com sua dor - "lágrimas podem secar e
erodir o solo, seu sofrimento gera sofrimento para todo o mundo, seu luto, enluta" (idem,
tradução nossa). Seguindo o padrão neurótico de Deméter, Patricia Berry mostra-nos outra
peculiaridade no comportamento de Deméter:
Outra peculiaridade da depressão em Deméter é a sua tendência para procurar
refúgio entre a humanidade, o mundo social, a cidade. Ela não sai sozinha para a
floresta, como faria Ártemis, ou tenta provar a sua autossuficiência, como faria
Hera, ou apressa-se em um caso de amor, como Afrodite. Em vez disso, ela
quebra a conexão com os Deuses e busca refúgio na polis, o mundo dos eventos
diários, a "realidade". Desta maneira, ela defende-se das necessidades de seu
próprio aprofundamento com "desculpas da realidade". Torna-se 'impraticável'
cuidar de sua alma. (idem, 23, tradução nossa)

Indo contra a sua própria essência, o mundo inteiro sofre com ela. Por estar na polis,
ela, de fato, recusa-se dar as sementes da vida à Terra. É interessante notar que a sua
desconexão com o divino também resulta em uma desconexão entre a humanidade e os
deuses.
Gaia, a mais velha Mãe Terra, é a responsável pelo surgimento do Narciso, que
floresce e seduz também Hades, em acordância com Zeus. Do ponto de vista de Gaia, a morte
é necessária e natural. No entanto, para Deméter é realmente uma perda dentro de sua própria
natureza, a maternidade. Patricia Berry vê a jornada destrutiva de Deméter como um rapto de
si mesma. É um estupro no sentido mais amplo e profundo possível, é um estupro de
consciência, um estupro psíquico:
Como "Deméter Verde Verdure," ela lida com a vegetação do mundo horizontal.
Com o rapto, a sua perspectiva também muda para a posição vertical: agora
assumindo as profundezes e alturas das vias do espírito. Sem o sentido vertical,
Demeter não pode "ficar em baixo". Ela não pode mover-se em termos de
profundidade ou níveis. Não só a profundidade enquanto “o inconsciente," mas a
profundeza em potencial, como uma semente em cada momento da vida, suas
implicações metafóricas por trás de seu sentido aparente. (idem, 26, tradução
nossa)

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Já Christine Downing, abre este assunto como uma mulher fascinada com os mitos e
rituais sagrados de iniciação. Para ela, é através do mundo antigo que mulheres e homens são
ajudados a ir mais à fundo e descobrirem um sentido mais completo em tudo. Ela não vê esse
mito como negativo:
Eu, pelo contrário, falo da importância de Perséfone sendo tirada do papel de filha
e ganhando lugar como deusa do submundo. Meu foco é ver como Perséfone nos
inicia em um reconhecimento do submundo como um reino sagrado e, portanto,
trazendo uma relação diferente para os períodos de nossas vidas, quando somos
raptados de nossas preocupações e tarefas com o mundo mundano e com os
outros, para uma relação diferente com a morte. (DOWNING, 1994: 2, tradução
nossa)

Com uma perspectiva caleidoscópica, Christine Downing demonstra como esse mito
chama a atenção de muitas mulheres com diferentes interpretações. Ela reconhece que:
Algumas mulheres têm encontrado neste mito, recursos para a recriação imaginal
de uma matrística pré-patriarcal, ou seja, a mulher centrada, mundo. Muitas,
concentrando-se no amor de Deméter por Perséfone, vê essencialmente uma
história sobre violação paternal; sobre estupro, incesto, abuso; sobre a intrusão do
masculino nos mistérios das mulheres; sobre a ascensão do patriarcado e a
supressão da deusa na religião. (idem, 2, tradução nossa)

No entanto, Christine Downing interpreta que esse mito vai para além da fantasia e
ilusão de inocência feminina. Para ela: "representa uma iniciação necessária para que as
mulheres se libertem de serem definidas pelos papéis de mãe ou filha e ensina a necessidade
de se chegar a um acordo com a perda, limitações e com as experiências que provocam raiva e
tristeza" (Downing, 1994: 3, tradução nossa). Deste ponto de vista, ela demonstra também,
como esse mito tem sido entendido a partir de diferentes perspectivas, interpretações e visões
contemporâneas, como de feministas e eco feministas :
A maioria das feministas têm reconhecido que o mito não é apenas sobre a
psicologia das mulheres, mas também sobre as questões de gênero, não apenas
sobre mães e filhas, mas também sobre as relações dos homens e mulheres.
Algumas vão mais longe e sugerem que o mito pode ser profundamente
importante para a auto-compreensão tanto de homens, como de mulheres.
Observam que os Mistérios Eleusinos, os mais importantes ritos associados a
estas duas deusas, eram abertos à todos, homens e mulheres, e que todos os
iniciados, independentemente do sexo, adotavam temporariamente nomes com
finais femininos, como se a compreensão transformada das relações humanas e da
morte que os mistérios forneciam, exigissem uma perspectiva feminina. (idem, 3,
tradução nossa)

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As eco feministas têm uma interpretação ainda mais inclusiva, "se movem para ver o
mito para além da lente psicológica, enfatizando sua relevância com suas preocupações sobre
a renovação da Terra" (idem, tradução nossa). No entanto, Christine Downing, depois de
exibir esses diferentes pontos de vista, finalmente faz um salto, empurrando-nos para um
possível mundo pós patriarcal:
Tenho visto como a estória de Deméter e Perséfone pode nos fornecer recursos
para a articulação de uma visão extremamente necessária para todos nós, uma
visão que pode mover-nos para além de uma identificação com o peculiarmente
feminino ou perspectivas masculinas, e que não deixa de ser, sem dúvida alguma,
uma informação sobre aprendizados sobre algumas das coisas que as mulheres
aprendem com o passado matrístico, sobre nossos sonhos, na relação de um com o
outro, e sobre nossos corpos. Vejo a mim e a maioria de outras mulheres atraídas
por este mito, não apenas interessadas em aprender o que significava então, no
mundo da Grécia Clássica ou em um mundo pré-patriarcal imaginado, mas em
reimaginá-lo; isto é, no uso do mito para nos ajudar a imaginar adiante, um
possível mundo pós patriarcal. (idem, 4, tradução nossa)

Finalmente, James Hillman.: a fim de compreender melhor James Hillman, também é


importante entender melhor Hades. Para James Hillman, Hades "não é uma ausência, mas
uma presença escondida - até mesmo uma plenitude invisível" (Hilman, 1979: 28, tradução
nossa). James Hillman reserva um lugar muito especial para Hades:
... morrer é uma parte integrante da fantasia do renascimento, de modo que toda
renascença pertence, arquetipicamente, à Hades [...] Creio que o Deus do
Renascimento e de todas as renascenças psicológicas são de Hades, o princípio
arquetípico do aspecto mais profundo da alma. (HILLMAN, 1975: 206, tradução
nossa)

James Hillman também nos lembra sobre a conexão entre Hades e Zeus. Mostrando-
nos que eles são mais do que simples irmãos, são partes do mesmo universo:
A irmandade de Zeus e Hades diz que os mundos superior e inferior são os
mesmos; apenas as perspectivas são diferentes. Há apenas um único e mesmo
universo, coexistente e sincronístico, sendo que a visão de um irmão é vista de
cima e através da luz, e o outro a partir de baixo e em sua escuridão. (HILLMAN,
1979: 30, tradução nossa)

Este ponto de vista leva-nos a uma perspectiva mais profunda quando percebemos que
Perséfone torna-se, nada menos, que a Rainha do Submundo; que Hades passa a ser o lugar, e
nesta perspectiva, podemos ver também Hades como o reino das almas, tal como os gregos
Homéricos o viam. Lá, como diz James Hillman, "a psyché sozinha existe; todos os outros

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pontos de vista são dissolvidos” (Hillman, 1975: 207, tradução nossa). Através das lentes da
psicologia arquetípica, todos os aspectos que fazem a ponte entre o mundo e o submundo não
são possíveis somente na Grécia antiga, mas, psicologicamente, o Mistério de Elêusis
continua tendo lugar em nossas almas hoje:
A experiência Perséfone nos ocorre toda vez que temos depressões súbitas,
quando nos sentimos anestesiados, presos em ódios, frios e puxados para baixo,
para fora da vida, por uma força que não podemos ver, contra a qual fugiríamos,
distraidamente debatendo por explicações naturalistas e de conforto para o que
está acontecendo tão sombriamente. Sentimo-nos invadidos por baixo, agredidos,
e pensamos na morte. (idem, 49, tradução nossa).

Eu passei nove meses nos Estados Unidos e depois de uma curta visita ao Brasil, "a
depressão súbita" me ocorreu. É a partir dessa experiência que eu teço meus pensamentos
sobre este mito. O Deus Oculto (deus absconditus) - Aquele que Aceita Tantos, Aidoneus,
Plutão, Hades, Irmão de Zeus, Zeus Ctônio, Governante do Submundo, O Rei dos Mortos,
Rico e Doador de Riqueza -, arranca Perséfone como se arranca uma flor. Para Gaia, as
mortes são perfeitamente naturais, pois todas as coisas morrem e renascem novamente nas
intermináveis revoluções da grande natureza. Neste sentido, o Submundo aparece em
primeiro lugar, como uma flor de muitas faces despertando Perséfone para uma imagem mais
ampla e multifacetada, ao invés de uma visão única e protecionista de sua mãe. É muito
interessante perceber que toda a fertilidade e as belas flores da primavera vêm até nós por lá
debaixo.
É claro para mim que a separação de Perséfone de sua mãe permitiu-lhe ser capaz de
ver além da superfície da vida horizontal para as profundezas do Submundo. Ingerindo a
romã, Perséfone assimila o conhecimento do reino dos mortos e dos sonhos. Como Perséfone,
nós também passamos um terço de cada dia dormindo, para ter, felizmente, sonhos, ou mesmo
pesadelos. Neste reino, Perséfone é rainha, e nós, com a nossa psique, alcançamos e
mantemos conexão com o inconsciente, em vida, com Perséfone.
Os Hinos Homéricos nos conta a estória e nos permite acompanhar todo o sofrimento
de Deméter. No entanto, o que me chama à atenção, é o fato de Perséfone não ser mencionada
no poema depois que é raptada e não nos é dado quaisquer detalhes de sua experiência no
Submundo. Quando retorna à sua mãe, reconta o que já sabemos, e eu pergunto: o que
Perséfone têm a nos dizer sobre tudo isso? Nós sabemos sobre a mãe, sobre Gaia, Hades e

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Zeus. Mas o quê sobre Perséfone? A única maneira de ouvi-la é reimaginando-a, com uma
sabedoria do Submundo.
A segunda parte deste artigo tem a intenção de dar voz à Perséfone e deixá-la nos
dizer o que não é dito. Eu incluí algumas fotos-imagem para uma melhor apreciação deste
artigo-roteiro para um vídeo-artigo.
Parte II:
Eidola

As imagens começam como se a tela estivesse tentando ficar conectada a algum canal
à cabo sem sucesso. A tela fica estática, com chiados, e com algumas vozes distorcidas.
Algumas imagens começam a aparecer, sem som, como flashes rápidos de:
Imagem 1: um campo verde aberto e pacífico de um cemitério com um homem
vestido com terno preto, andando para a frente, mas olhando para trás. Não podemos ver seu
rosto.
Vozes e imagens estáticas e indefinidas.
Imagem 2: um campo seco aberto com uma fábrica ao fundo, com enormes nuvens
escuras cinza-amareladas de poluição.
Vozes e imagens estáticas e indefinidas.
Imagem 3: uma bela árvore com folhas em lágrimas.
Vozes e imagens estáticas e indefinidas.
Imagem 4: uma mulher com um caranguejo morto em suas mãos.
Vozes e imagens estáticas e indefinidas.
Imagem 5: Um pôr do sol junto com uma lua.
Vozes e imagens estáticas e indefinidas, mas finalmente, ouve-se uma música tocada
no violoncelo. A câmera se aproxima da Imagem 6:

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FIGURA 1 – Redemoinho. Carpinteria, CA, 2000.
A sombra torna-se maior e o movimento da imagem começa a girar mais rápido, como
se sugado por um redemoinho que puxa para baixo.
Abaixo. Abaixo. E preto.
Instantaneamente, uma radiante flor de Narciso de mil pétalas salta para a tela.
Silêncio. A flor surge com o movimento do redemoinho. Outras flores coloridas vêm junto
(açafrão, violetas, íris e jacintos), como numa infinita chuva poética de pequenas flores e o
enorme Narciso no centro. O fundo é preto.
Música tocada a partir de um didgeridoo, com uma imagem desfocada de um cão
movendo a cabeça em movimentos duplicados e lentos, dando a aparência de muitas cabeças
com as sombras. Um capacete sem foco e a estrutura óssea de uma asa de águia também
aparecem.
A tela é lentamente preenchida, de baixo para cima, com uma sobreposição de matizes
azul-escuro, até que esteja completamente coberta.
Agora o som muda para muitas vozes humanas sussurrantes, mas incompreensíveis.
Formas geométricas se multiplicam em fractais e, assim, diversificadas sombras e silhuetas de
efeitos de luz começam a voar na tela. É um jogo lúdico de triângulos e quadrados. Com a
vibração da luz, as imagens se movem. Estas formas, com uma distorção dos ângulos, tornam-
se curvas que terminam em formas indefinidas e onduladas. Com a luz frontal e baixa, tem-se
uma imagem distorcida, e dependendo da distância entre a luz e a figura, o tamanho também
pode aumentar ou diminuir.

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FIGURA 2 – Quadrados. In: AMARAL, Ana Maria. Teatro de Animação. SP: Ateliê Editorial, 1997.
Aparece então, partes de um corpo humano nu em movimentos sensuais de pés,
barriga, mãos, quadris e língua, mas sem aparecer totalmente o rosto. Com as sombras
projetadas na pele como asas voando em cor azul profundo, em um espaço infinito. Pela
primeira vez, Perséfone diz, com uma voz forte e distorcida eletronicamente:
Eu, Perséfone, em luz negra-azul, bebi o néctar dos ensinamentos do Submundo e do
Mundo Superior, com vestes negras, embora limpas, além de toda a tristeza, eu venho dizer-
lhe sobre meus véus e tons da escuridão, de onde eu sou. Já é hora de vocês, que
perseveraram nas emanações mais profundas da morte em vida, verem e ouvir-me. Eu sou a
Rainha dos Sonhos. Estou livre da roda do tempo. Eu sou a clareza na inexistência. Eu sou a
Rainha do Submundo.
A música do violoncelo volta, acompanhada por uma gaita rítmica. Há aqui um close-
up mostrando apenas seus olhos escuros. Com uma voz mais clara, ainda que eletronicamente
distorcida, os olhos dizem:
Alegrai-vos comigo; não há necessidade de medo. Às vezes sou visível, e às vezes,
invisível. Se você der este generoso salto cego na escuridão, eu abrirei portas para você,
trazendo consciência para o que está oculto, com uma realidade atemporal de seu próprio
ser.
A tela fina e transparente preta-azul cobre inteiramente a cena. Algum tempo em
silêncio aqui. O cenário muda para bolhas translúcidas. E a música é tocada suave em um
piano.

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FIGURA 3 – Bolhas. Los Angeles, 2000.
Perséfone anda para trás numa imagem ao infinito, vestida de preto. Sua caminhada aqui é
lenta, pé ante pé, como os dançarinos japoneses. Seu solo é a luz azul infinita de bolhas.
Enquanto ela se afasta de nós, só podemos ver suas costas, e a imagem se torna cada
vez menor, até o infinito. Quando a imagem está minúscula, restando apenas os pés, ela diz
com uma voz doce de uma jovem mulher:
Quando fui raptada e estuprada, eu, Perséfone, senti medo. Era muito forte e eu,
delicada. Não tive tempo para pensar e num tempo sem fim, deixei-me ser conduzida por uma
névoa. Confiei em minhas raízes. Elas existem. Entreguei-me por inteira. Eu era nada e tudo.
Estranhamente, uma doçura invadiu-me.
Quando a imagem de Perséfone é apenas um pequeno ponto preto perdido na tela, este
mesmo ponto torna-se uma luz que explode em várias luzes provocando diferentes
tonalidades de cores.

FIGURA 4 – Hexágonos. In: AMARAL, Ana Maria. Teatro de Animação. SP: Ateliê Editorial, 1997.
Voz profunda:
Quando finalmente olhei para mim mesma, deslumbrei-me com as milhares cores e
beleza dos minerais cuidadosamente guardados por Hades. Quartzos de todas as cores,

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rubis, esmeraldas, safiras, diamantes...Doei-me por inteira. Como que a plenitude reinava?
Como não havia dor? Como podia sorrir? Minhas fortes raízes, gratidão. Sou infinita.
O cenário muda para preto e branco. Um campo seco e rio negro com muitas sombras
projetadas. No rio há um esqueleto de crânio flutuante. Um homem vestido de preto, já dentro
do rio, caminhando lentamente para as águas mais profundas, diz:
O coração deste homem é negro. Este coração negro está pulsando com sangue
negro. Preencho os órgãos e a mente com a escuridão e crueldade. As orações deste homem
são para as catástrofes mundiais; a extinção da humanidade. Chegue perto de mim e eu terei
nenhuma outra intenção, a não ser derrotá-lo, quebrá-lo e comê-lo. Prazerosamente emano
escuridão; amo quando os fumos de ódio exalam na atmosfera. Como um sucesso, eu sou um
fracasso. Como um fracasso, sou completo e natural. Cheio de pecado e veneno. Eu sou mais
honesto do que qualquer virtude. Lute comigo e vou ganhar e perder. Deixe-me ser e eu
governo meu destino.
Quando ele termina, já está completamente submerso nas águas. O esqueleto do crânio
que flutua, finalmente diz:
Enxugue as lágrimas de seu rosto.
A câmera leva um tempo concentrando-se na água preta, sem movimentos.
A voz de Perséfone diz:
Foi-se! Basta. Não pode durar para sempre! Sou eu quem tomo decisões aqui. Eu
escuto todas essas almas e aprendo muito com elas. Aprendi a escutar profundamente e ver
através delas, transparentes, nuas, como cristais polidos. Memórias...Não é apenas ódio, mas
todas as emoções imagináveis. As memórias de amor, eu as guardo especialmente junto à
Mnemósine. Hades é muito fértil. Embora alguns dizem que Hades é estéril, eu vos digo, não
é verdade, ele é pleno. Além disso, eu sei que sou conhecida como a "horrível." Eu digo a
você, eu não sou assim "horrível." Cuido do que vocês mais temem e chamam de morte.
Desejo, no entanto, que seja vida após vida, com doçura.
O cenário finalmente muda. O esqueleto do crânio é transformado em um cisne. E não
é mais o mesmo rio. Uma bela voz feminina canta e flui com as águas límpidas. No fundo da
água, milhares de sementes vermelhas e romãs abertas preenchem a tela inteira. É um belo
cenário cheio de vermelho brilhante. A imagem fica e o canto diminui para que Perséfone
diga:

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Oh! Eu me senti abençoada pelo universo. No meu ser, as sementes. Que presente!
Um gozo de alma para além de qualquer limite. Que estrondo, nas minhas células, no
universo, dentro e fora de mim. Era aqui que começava a vida. Foi aqui que compreendi o
micro e o macrocosmo. E foi aqui que, determinada, reinava. Eu sou todos vocês. Eu sou
minha mãe, meu pai, minha avó, toda minha ancestralidade – e ainda assim, guardo minha
criança.
Uma imagem de uma borboleta aparece voando na tela. E assim, outra imagem nos é
revelada: é a primeira vez que podemos ver o rosto de Perséfone, ela repousa em águas doces
e límpidas. A voz de Perséfone:
Quando chego do Submundo, primeiro repouso para um doce sono, descansando em
paz nas águas sagradas e terras escondidas de minhas amigas Ártemis e Atena. Assim,
purifico o sonho e entro na luminosidade. E o sol nasce mais uma vez. Então, juntamente com
a grandeza de minha mãe Deméter, só agora compreendida em sua totalidade, trazemos
fertilidade, abundância, beleza, cheiro doce, alimento e alegria à Terra. É uma festa
maravilhosa. Juntas, celebramos a raiz profunda junto com os mais refinados ares, na mais
elaborada materialização do invisível, presenteando-lhes com este milagre de Beleza, com
Amor. Só resta Amor.
Um campo de flores vermelhas aparece na tela. Há uma camisola branca, delicada,
sobre as flores, que começa a voar poeticamente no céu azul aberto e sobre o belo e infinito
campo, acompanhado por uma canção no violoncelo.

Referências:
BERRY, Patricia. Echo ́s Subtle Body. Dallas: Spring Publications, 1982.
DOWNING, Christine. The Long Journey Home. Boston: Shambhala Publications, 1994.
HILLMAN, James. Re-Visioning Psychology. New York: Harper Perennial, 1975.
______. The Dream and the Underworld. New York: Harper Perennial, 1979.

The Myth of Persephone

Abstract: This article is divided in two parts. The first part is a presentation of the myth of
Persephone, followed by analyses of authors from archetypal psychology: Patricia Berry,
Christine Downing and James Hillman; the second part is a personal interpretation and a
mythopoetic creation of the same myth to a film/video script.
Keywords: Mythology; Archetypal Psychology; Mythopoesis.

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