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ENTRE O SUBMUNDO E O SÓTÃO: EXPLORANDO O ENCLAUSURAMENTO DE

PERSÉFONE E BERTHA MASON


Luana da Silva Bueno Bertoni1

Resumo: Este trabalho analisa, de forma comparativa, as histórias de Perséfone, da


mitologia grega, e Bertha Mason, do romance "Jane Eyre" (1847) de Charlotte Brontë, com o
objetivo de fazer um cotejo entre seus raptos e brevemente atrelá-los à complexidade da
condição feminina ao longo dos tempos. Ambas as narrativas, apesar de distantes no tempo,
têm como principal paralelo notável o sequestro das protagonistas em decorrência de
diferentes motivos que as direcionam a uma subsequente reclusão em ambientes inóspitos.
Desta forma, deve-se destacar pontos de confluência e contraste no diálogo entre as
personagens, ressaltando a ideia de que as histórias podem refletir, de certo modo, a luta das
mulheres por liberdade, identidade e autonomia em diferentes contextos culturais e sociais. A
fim de cumprir tais objetivos, reportamo-nos aos estudos sobre mito e realidade segundo
Mircea Eliade (1978), bem como, em menor grau, às reflexões teóricas sobre a origem e
avanços do feminismo, conforme postulado por autoras como Daflon e Sorj (2021), Sandra
Gilbert e Susan Gubar (1979), entre outras.
Palavras-chave: Perséfone, Bertha Mason, Complexidade Feminina, Mitologia
Grega.

Abstract: This paper analyzes, in a comparative way, the stories of Persephone, from
Greek mythology, and Bertha Mason, from the novel "Jane Eyre" (1847) by Charlotte Brontë,
with the aim of comparing their abductions and briefly linking them to complexity of the
female condition over time. Both narratives, despite being distant in time, have as their main
notable parallel the kidnapping of the protagonists due to different reasons that direct them to
subsequent seclusion in inhospitable environments. That way, points of confluence and
contrast must be highlighted in the dialogue between the characters, highlighting the idea that
the stories can reflect, in a certain way, women's struggle for freedom, identity and autonomy
in different cultural and social contexts. In order to fulfill these objectives, we refer to studies
on myth and reality according to Mircea Eliade (1978), as well as, to a lesser extent, to
theoretical reflections on the origin and advances of feminism, as postulated by authors such
as Daflon and Sorj (2021), Sandra Gilbert and Susan Gubar (1979), among others.
Keywords: Persephone, Bertha Mason, Feminine Complexity, Greek Mythology.
1
Mestranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: bueno.lb@gmail.com.
1. INTRODUÇÃO
Estudar a importância do mito se faz necessário para a melhor compreensão da história
primordial do homem, uma vez que o mito desempenha um papel multifacetado na vida
humana desde a antiguidade à modernidade, da origem ao contemporâneo, ajudando a moldar
e transmitir valores, explicar o mundo e fornecer uma rica fonte de inspiração e entendimento.
Isso porque o mito está diretamente atrelado a questões culturais, sociais, religiosas, e pode
ser ligado ao âmbito literário de modo a explorar aspectos do pensamento mítico presentes
nas personagens.
Para a melhor compreensão e definição de mito, faz-se necessário que primeiramente
se retorne às origens, ou seja, ao mito primitivo. O mito não possui uma definição engessada,
única, exclusiva. Sua definição é ampla, e segundo Eliade (1978, p. 9), o mito narra como,
graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade
total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: ele relata de que modo algo foi produzido e
começou a ser. Assim, o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma “história
verdadeira”.
Ao analisar mitos como de Prometeu, Zeus, entre outros, é não apenas viável extrair
suas lições, mas também estabelecer um diálogo e forjar conexões com outras divindades que
estão intrinsecamente entrelaçadas nas narrativas por razões mais profundas. Esses deuses e
deusas desempenharam papéis significativos na evolução da história e contribuíram para
moldar outras narrativas, permitindo-nos acessar os mitos femininos que conquistaram seu
lugar em um espaço historicamente dominado pelo gênero masculino.
De acordo com Agha-Jaffar (2002, p. 15), “um mito só se torna uma entidade que
respira quando o despojamos da sua cobertura superficial e lhe permitimos revelar as suas
muitas camadas de significado e interpretação”. Ou seja, só penetrando nas suas profundezas
ocultas poderemos começar a decifrar as formas como o mito continua a abordar as
preocupações perenes da humanidade.
É neste encalço que pensamos o mito de Hades, o deus do submundo e, portanto,
guardião do lugar que recebia as almas dos mortos. Irmão de Zeus, casou-se com Perséfone
logo após sequestrá-la para o submundo com ele e, assim, tornou-se a deusa grega reinante no
inferno. Entre as narrativas mitológicas gregas mais renomadas e amplamente reconhecidas
que fornecem um insight valioso sobre a natureza humana, em particular sobre o papel da
mulher, destacamos o mito de Perséfone e Hades por encapsular conceitos profundos que
oferecem uma visão substancial sobre a condição feminina.
Ao longo da história, esse mito tem sido analisado sob diversas perspectivas,
interpretações e enfoques, permitindo sua conexão com estudos sobre a experiência feminina
e a busca com as mais diversas intertextualidades. Essas abordagens exploram temas como o
enclausuramento, a renúncia, a marginalização da mulher e até mesmo a rotulagem como
"louca" quando ela não se conformava com as normas sociais estabelecidas.

Ao longo dos séculos XIX e XX, escritores influenciados por relatos


românticos e vitorianos de Perséfone retratariam as complexidades da
ambivalência feminina em relação ao desenvolvimento, centrando-se nas
mulheres que descem aos submundos como consortes das figuras de Hades.
Relatos literários influentes sobre as jornadas de meninas, feitos por E. T. A.
Hoffmann, Emily Brontë, Louisa May Alcott e J. M. Barrie, moldariam o
destino das descidas ao submundo do século XX para um amplo espectro de
escritoras femininas (Blackford, 2014, p.3).

Além destes relatos influentes mencionados, tal descida ao submundo é perfeitamente


retratada no romance Jane Eyre, de Charlotte Brontë, escrito em 1847. O romance apresenta
diversas facetas do feminino em personagens bastante diversas como a própria Jane, Ms.
Temple, Ms. Reed e Bertha Mason que, por sua vez, foi uma personagem considerada como
louca por ser mantida reclusa em Thornfield dentro de um sótão – ou o seu próprio inferno
particular vivido –, tal qual o de Perséfone, mas dentro na casa de Rochester, seu marido em
um casamento arranjado que não sucedeu como o esperado.
Jane Eyre, a personagem recém-chegada em Thornfield para exercer o ofício de
preceptora, por não saber que Bertha é aprisionada por Rochester, em muitas situações
conjectura ser de um fantasma os sons guturais e pedidos de socorro advindos de um quarto
no terceiro andar.

“Deus! Que grito! A noite – seu silêncio e sua tranquilidade – foi rasgada
por um som selvagem, agudo e estridente que atravessou Thornfield Hall de
ponta a ponta. Minha pulsação cessou, meu coração se imobilizou, meu
braço esticado paralisou. O grito morreu e não soou outra vez. Sem dúvida,
qualquer que fosse o ser que tivesse proferido aquele guincho temível não
poderia tão cedo repeti-lo: nem o condor de asas mais largas nos Andes
poderia, duas vezes seguidas, emitir um tal grito da nuvem que oculta seu
ninho. A criatura que proferiu tal som precisaria descansar antes de repetir o
esforço” (Brontë), 2023, p. 266).

Ao buscarmos elementos do mito de Perséfone em relação à personagem Bertha,


verificamos que é possível investigar a influência da opressão enfrentada pelas mulheres em
sua época. O inferno, o submundo, a escuridão e o sótão são apenas símbolos da obscuridade
que a deusa mitológica e a personagem vitoriana do romance viveram, cada uma à sua
maneira, o que nos convida a pensar, também, em questões que remontam a características de
gênero como construção social e discursiva, uma vez que tocam na separação e no isolamento
da esfera privada – um espaço socialmente designado às mulheres.

Assim, a análise ambivalente entre o mito de Perséfone e as desventuras de Bertha


Manson neste artigo oferece uma perspectiva sobre as complexidades da experiência feminina
que decorre desde a origem até a atualidade. No contexto literário, veremos como o impacto
do mito de Perséfone ecoa através das gerações, influenciando autores e autoras a explorar as
profundezas da experiência feminina.

2. O INFERNO EM PERSÉFONE E BERTHA MASON


A palavra "inferno”2 refere-se ao que está situado abaixo, mais especificamente
debaixo da superfície da Terra, em contraste com "superus" que se relaciona com o que está
acima. Essa distinção posteriormente deu origem à dualidade céu/inferno. Quando rastreamos
as raízes do conceito de inferno, encontramos um paralelo na mitologia grega, na história de
Perséfone, uma jovem que foi raptada por Hades, o herdeiro das profundezas da terra e irmão
de Zeus. Hades era o soberano do lugar para onde todos os falecidos se dirigiam,
independentemente de suas ações más ou boas em vida.
Em Hades, protegido contra intrusos pelo cão de três cabeças, Cérbero, residiam tanto
os deuses subterrâneos quanto as almas dos mortos. Somente após o Antigo Testamento e o
subsequente desenvolvimento da cultura judaico-cristã é que o inferno passou a ser
representado como um local de tormento eterno, reservado para aqueles que mereciam a
condenação divina e que faleceram em estado de pecado (conforme exemplificado na
parábola de Lucas 16:19-31, em que um mendigo vai para o céu e um homem rico para o
inferno). Assim, o que nos é transmitido, como habitantes do mundo ocidental com influência
cristã, é a noção de um inferno que simboliza o pior tipo de sofrimento como punição pelos
pecados, e, de maneira conotativa, uma experiência de tormento pessoal.
Estando Bertha muito distante da figura de um anjo, em Jane Eyre, há diversos
excertos relacionados ao inferno entre as suspeitas de Jane sobre quem ou o que poderia estar
emitindo sons tão obscuros dentro da mansão de Thornfield Hall. Tais menções repetem-se
por diversas vezes a cada alusão feita à Bertha, como podemos ver a seguir:

2
Responde ao latim como infernum, compreendendo a passagem e o mundo em que residem
as almas perdidas dos mortos, intimamente relacionado ao adjetivo inferus, no sentido de
inferior.
“Em meio a tudo isso, eu precisava, além de observar, ouvir os movimentos
da fera ou demônio no covil do outro lado. No entanto, desde a visita do Sr.
Rochester, ela parecia estar enfeitiçada. A noite toda, ouvi apenas três sons
em três longos intervalos – um passo que fez o piso ranger, uma
movimentação momentânea do rosnado canino, e um grunhido humano
grave. Então esses meus próprios pensamentos me ocuparam. Que crime era
esse que vivia encarnado naquela mansão isolada e não podia ser nem
expulso, nem subjugado pelo seu próprio proprietário? Que mistério era esse
que irrompia, ora em fogo e ora em sangue, nas horas mais mortas da noite?
Que criatura era essa que se mascarava sob o rosto e forma de uma mulher
comum, mas proferia a voz ora de um demônio escarnecedor, ora de uma
ave de rapina à procura de carniça?” (Brontë, 2023, p. 271, grifo nosso).
Por outro lado, segundo Daflon e Sorj (p. 130, 2021), o movimento para frente e para
trás entre os níveis de realidade (a realidade conceitual e a realidade material da opressão,
ambas realidades sociais), é feito por meio da linguagem. Ou seja, a “destruição” da imagem
de Bertha é implicada principalmente à forma como se é referida dentro do espaço em que
está presa sob a apropriação de seu marido, não havendo, assim, espaço sequer para sua
autodefesa.
Bertha Antoinette Mason é a primeira esposa de Edward Rochester. Ela é descrita no
romance como de origem caribenha, bonita, mas mentalmente instável. Rochester a conheceu
na Jamaica e casou-se com ela por razões financeiras, sem compreender sua doença ou ter
sido previamente informado sobre sua patologia. Por esse motivo, Bertha é mantida escondida
em Thornfield Hall e cuidada por uma enfermeira. Sua presença impacta Jane Eyre, a
protagonista, que descobre o segredo de Rochester – pois ele não é desimpedido, mas casado
–, já estando envolvida sentimentalmente com ele.
A descrição caribenha de Bertha comunica que suas características físicas mais se
aproximam das de uma mulher negra do que branca, e segundo Daflon e Sorj (p. 77, 2021),
embora não seja anunciada de forma explícita, não passa despercebida a falta de
reconhecimento pelo trabalho e impacto das mulheres de cor da América. A relação de poder
que Rochester detém sob Bertha é baseada nas questões matrimoniais da época que o
obrigavam a zelar por sua esposa e ela, enquanto mulher, se abnegar aos desejos de seu
marido; um poder arbitrário, que mesmo com tão amplas diferenças – e por muito saberem
um do outro, vivem cada qual em uma metade diferente do globo dentro de uma Thornfield
dividida.
A história de Perséfone começa com o nascimento de Core, filha de Zeus e Deméter,
que mais tarde se tornaria Perséfone. Deméter, a deusa da agricultura, ensinava os mortais a
plantar e colher com a ajuda de sua filha. Core gostava de passear e colher flores, mas um dia,
enquanto colhia uma flor de Narciso, foi raptada por Hades, o deus do submundo. Isso causou
desespero a Deméter. Zeus sugeriu que o casamento de Core com Hades não era prejudicial,
mas Deméter se recusou a aceitar a situação e chorou incessantemente, afetando a agricultura.
Zeus enviou Hermes para comunicar a Hades que Core deveria ser libertada, contanto que ela
não comesse nada no submundo. No entanto, Core comeu uma romã, simbolizando a relação
sexual, tornando-se Perséfone, ligada permanentemente a Hades e mergulhando no
inconsciente, colocando, definitivamente, Hades em seu poder.
Perséfone revela uma dualidade solar e sombria, irradiando luminosidade ao visitar
sua mãe e mergulhando na obscuridade ao retornar ao inferno. Este estudo focalizará
principalmente seu aspecto mais sombrio durante o confinamento, buscando estabelecer uma
relação ambivalente entre o Mito e o Literário em Perséfone e Bertha.
Veremos como tal imersão configura-se como patriarcal a partir do momento em que
há a separação evidente entre o sujeito opressor e o sujeito oprimido, destacando o sequestro e
a separação de uma personagem central e abrindo portas para reflexões que exploram
diferentes órbitas tendo como base a mitologia que, embora pareça remota, está também
diretamente ligada a questões fundamentais de luta por direito e lugar desde a sua origem até
a contemporaneidade, não podendo, assim, ser indiferentemente narrada.

2.1. SEMELHANÇAS E PARALELOS ENTRE PERSÉFONE E BERTHA


Como visto anteriormente, segundo o mito, Perséfone estava distraída colhendo flores
e, ao estender a mão para apanhar um bonito narciso que a atraiu, o solo fendeu-se e surgiu
Hades com sua carruagem de ouro puxada por cavalos pretos, levando-a para viver com ele
contra sua vontade em um rapto súbito. Bertha, enquanto jovem residente da Jamaica, havia
sido prometida à Rochester como “a sensação de Spanish Town” (Brontë, 2023, p. 357)
devido à sua beleza: alta, morena e majestosa, e ainda que soubesse que Rochester não a
amava verdadeiramente, casou-se com ele em troca das trinta mil libras que seu pai e seu
irmão Rowland o ofereceram. Deixou sua Terra em direção à Europa e, aos poucos, sob a
condição de louca, sua identidade começa a ser aniquilada.
“E a lei e a sociedade a consideravam parte de mim, e eu não podia me livrar
dela por meio de nenhum procedimento legal, pois os médicos agora haviam
descoberto que minha esposa era louca... seus excessos desenvolveram
prematuramente os germes da insanidade” (Brontë, 2023, p. 359, grifo
nosso).
A origem da doença mental de Bertha não é claramente evidenciada no romance, mas
fortemente salientada por Rochester como o principal fator de impedimento para que pudesse
amá-la, além de possuir um vocabulário sujo e emitir gritos lupinos (Brontë, 2023, p. 360).
Entretanto, Liu (2023, p.3) nos traz uma importante reflexão acerca da loucura de Bertha:
Na verdade, Bertha pode não ser tão louca assim. Segundo o romance, ela
nasceu em uma família rica, era normal e muito bonita em sua tenra idade.
Também não há evidências visíveis de sua insanidade genética, exceto sua
mãe com problemas de saúde mental. Mas uma verdade é que Rochester, seu
marido, realmente a odeia, pelo menos sem nenhum lampejo de amor.
Portanto, uma explicação para seus comportamentos anormais é que ela não
tem outra maneira de defender seu próprio amor, mas se comportar de
maneira rude porque Rochester não se simpatiza com ela e ninguém acredita
nela. Bertha é uma vítima da sociedade patriarcal e reflete a situação real das
mulheres nesse quadro. Bertha não apenas reflete de forma independente o
tema do feminismo, mas também dá um palco para Jane.
Tal como Bertha, Perséfone também era muito bela e chamava a atenção de muitos
deuses. Após o rapto, Deméter, sua mãe, pediu a ajuda de Zeus para encontrar sua filha e,
Hades, o deus do submundo, a ludibriou a casar-se com ele logo após ela ter ingerido o fruto
de romã que prometeu que não comeria – e selaria o seu casamento. Como consequência
desse ato, ela ficaria com ele um terço do ano. Portanto, nos meses de outono, primavera e
verão, ela renasceria na Terra e compartilharia sua companhia com sua mãe, enquanto nos
meses de inverno, ela residiria no submundo, ao lado de Hades.
Essa deusa é vista como o arquétipo da intuição, da introspecção e sensibilidade, pois
o "submundo", no caso, está associado ao inconsciente e à interiorização. Perséfone traz como
símbolo a dualidade, a importância de estar em conexão com nosso mundo interior, mas
sempre emergindo à superfície para aplicar a sabedoria no mundo material e colher bons
frutos.
Além do rapto e separação, há outras relações entre as histórias de Perséfone e Bertha
Mason que envolvem, sobretudo, o luto e o desespero, uma vez que Deméter, a mãe de Core,
fica devastada com a perda de sua filha e deixa a terra estéril, enquanto a presença de Bertha
em Thornfield Hall tem um impacto emocional profundo em Rochester e na protagonista Jane
Eyre uma vez que a impossibilidade de matrimônio do casal acarreta uma peregrinação de
estações pela personagem principal até que, por fim, seus caminhos acabam trazendo-a
novamente para perto de Rochester em uma realidade distinta – numa Thornfield ateada em
fogo por Bertha e a perda da visão de Rochester em consequência do acidente.

Um dos símbolos importantes do romance Jane Eyre é o fogo. O fogo é


empregado diversas vezes para reforçar o tema do feminismo e transmitir
significados específicos. O crítico literário americano David Lodge
reconheceu o uso repetido do fogo no romance. O fogo de Jane é uma
configuração de amor, esperança e espírito de rebelião. E também é
significativo para Bertha (Liu, 2023, p. 2).
Além disso, há de ser mencionado que a intervenção divina surge de maneiras
diferentes nas duas histórias: Zeus em Perséfone e Richard Mason em Jane Eyre, um deus e
um personagem que intervêm para tentar resolver os conflitos. Em ambas as situações, há
tentativas de negociação para liberá-las, tanto a deusa quanto a personagem Bertha, do
sequestro ou enclausuramento, embora essas tentativas não tenham obtido sucesso completo.
Zeus não sucede em sua tentativa de retirar sua filha do submundo em função da romã que
Hades ofereceu à Perséfone e, Bertha, ainda que não fosse salva por completo de sua situação
de aprisionamento, contou com a ajuda de seu irmão, Richard Mason, que interferiu no
casamento de Rochester e Jane em meio a cerimônia no altar ao proferir a realidade em que o
dono de Thornfield ainda se encontrava: casado oficialmente com outra pessoa 3 e, portanto,
impedido de casar-se novamente.
Assim, inevitavelmente, Perséfone e Bertha acabam solidificando ligações
permanentes nos ambientes em que foram raptadas. Perséfone com sua romã no submundo,
ligando-a permanentemente a Hades, e Bertha permanece presa em Thornfield Hall devido ao
seu estado mental e obrigação, da parte de Rochester enquanto esposo, em abrigá-la, ainda
que não seja sua real vontade e por pura obrigação. “‘Esta vida’, eu disse, por fim, ‘é o
inferno: este é o ar... estes são os sons do poço sem fundo! Tenho direito de me libertar dele,
se puder” (Brontë, 2023, p. 360).
Tanto a narrativa de Perséfone quanto a história de Bertha Mason exercem uma
influência profunda nas histórias em que se desenrolam. Em Jane Eyre, a presença de Bertha
desempenha um papel fundamental na evolução do romance entre Jane Eyre e Rochester,
enquanto a história de Perséfone funciona como um elemento central em muitos mitos gregos
e suscita conexões significativas em estudos relacionados ao papel das mulheres na sociedade.
Se o Mito serve para narrar não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas e
do homem, mas também de todos os acontecimentos primordiais em consequência do quais o
homem se converteu no que é hoje (Eliade, p. 13, 1978), também as questões de gênero vêm
enquadradas nesta multiplicação de exemplos que o Mito se propõe a ensinar.
A maioria das feministas têm reconhecido que o mito não é apenas sobre a
psicologia das mulheres, mas também sobre as questões de gênero, não
apenas sobre mães e filhas, mas também sobre as relações dos homens e
mulheres. Algumas vão mais longe e sugerem que o mito pode ser

3
A ação do romance se passa em momento histórico anterior às Matrimonial Causes do Parlamento
britânico, promulgadas em 1857, que reformam a Lei do Divórcio e retiram os pleitos do âmbito
religioso para restringi-los (assim como o contrato matrimonial) ao foro civil. Até então o divórcio era
questão de deliberação religiosa, feita na Corte dos Arcos sob as leis canônicas da Igreja Anglicana. O
custo da moção era altíssimo, mobilizava as diferentes divisões do complexo direito inglês (dividido
em leis canônicas, comuns e civis) e ficava restrito à elite. (Brontë, 2022, p. 359 – nota de rodapé).
profundamente importante para a autocompreensão tanto de homens, como
de mulheres. Observam que os Mistérios Eleusinos, os mais importantes
ritos associados a estas duas deusas, eram abertos a todos, homens e
mulheres, e que todos os iniciados, independentemente do sexo, adotavam
temporariamente nomes com finais femininos, como se a compreensão
transformada das relações humanas e da morte que os mistérios forneciam,
exigissem uma perspectiva feminina (Downing, 1978, p. 3).
Downing complementa, ainda, que algumas mulheres têm encontrado neste mito,
recursos para a recriação imaginal de uma matrística pré-patriarcal, ou seja, a mulher
centrada. Muitas, concentrando-se no amor de Deméter por Perséfone, vê essencialmente uma
história sobre violação paternal; sobre estupro, incesto, abuso; sobre a intrusão do masculino
nos mistérios das mulheres; sobre a ascensão do patriarcado e a supressão da deusa na
religião.

Um arquétipo, segundo o dicionário Michaelis, é o tipo primitivo ou ideal; o que serve


de modelo, o exemplar. Assim, os arquétipos relacionados a Perséfone e Bertha Mason podem
ser compreendidos como representações de transformação pessoal em face da escuridão e da
adversidade. Perséfone personifica o arquétipo da "deusa da primavera" ou do
"renascimento", representando a capacidade da natureza de se recuperar e florescer após
períodos de escuridão, refletindo a resiliência e renovação.

A noção de arquétipo sugere que imagens primordiais e universais, presentes


desde os tempos mais remotos, ressurgiriam sempre de um inconsciente
coletivo humano, revelando-se simbolicamente na arte em geral, na criação
poética, nos sonhos ou na religião. Assim, quando nos referimos a aspectos
do mito presentes no romance Jane Eyre, basicamente na personagem
“Bertha”, estamos nos referindo a algo que surge do inconsciente coletivo,
na intuição da autora, motivada, possivelmente, pela situação opressiva
vivida pela mulher em seu meio. A própria história da publicação da obra,
informada na Introdução, exemplifica este fato: receosa da má recepção da
autoria feminina, Charlotte publica o livro inicialmente sob o pseudônimo
masculino de Currer Bell (Almeida, 2008, p. 2).
Bertha Mason, por sua vez, é associada ao arquétipo da "mulher enclausurada" e da
"loucura". Sua reclusão simboliza a repressão das mulheres na sociedade vitoriana, a perda de
identidade e autonomia, bem como as consequências do tratamento desumano e negligência
em uma época em que a sociedade inglesa ainda limitava a mulher, em parte, aos papéis de
esposa e mãe, em regime de opressão familiar e dependência econômica, uma vez que tais
papéis só viriam a ser contestados fortemente pelo movimento feminista no século XX. A
análise da condição da mulher nesse contexto também deve considerar a moral veiculada pelo
cristianismo organizado, caracteristicamente patriarcal e repressora da sexualidade, por
considerá-la pecaminosa e contra os padrões que favoreciam a figura ligada ao “anjo do lar”.
Apesar de estarem reclusas em dois mundos e tempos diferentes, tanto Perséfone,
quanto Bertha e o restante das mulheres vitorianas tinham o mesmo sentimento de privação
estando “presas” ao seu marido e em suas casas. As representações patriarcais das mulheres
na literatura vitoriana frequentemente se encaixam em oposições binárias amplamente
debatidas, mais notavelmente a dicotomia 'anjo' ou 'monstro'.
Em 1979, Sandra Gilbert e Susan Gubar deram um passo significativo na crítica
feminista com sua obra 'A Louca no Sótão: A Mulher Escritora e a Imaginação Literária do
Século XIX4'. Conforme argumentado pelas autoras, todas as personagens femininas em obras
escritas por homens podem ser classificadas como 'anjo' ou 'monstro'.
Na narrativa de Brontë, Bertha é retratada como uma lunática furiosa, o que
leva os leitores a acreditarem que ela merece ser excluída da sociedade. A
autora não concede a Bertha a oportunidade de justificar suas ações,
privando-a de qualquer voz própria. Essa abordagem nos leva a questionar se
a personalidade de Bertha realmente corresponde à de uma lunática, ou se
ela é, na verdade, uma vítima da imposição da feminilidade patriarcal,
forçada a se enquadrar nos estereótipos que os homens esperam que ela
encarne. A dicotomia entre o 'anjo do lar' e ‘a louca do sótão” exemplifica as
táticas empregadas pela sociedade para moldar as mulheres de acordo com
os padrões patriarcais vigentes (Bhawar, 2021, p. 35).
Ambos os arquétipos de Perséfone e Bertha ressaltam os desafios que as mulheres
enfrentaram em diferentes contextos históricos sob um pano de fundo patriarcal, destacando a
luta pela liberdade, identidade e voz, fibras que se encontram tão intimamente ligadas. Em
última análise, eles ilustram a capacidade humana de se adaptar e se transformar diante das
adversidades, bem como o poder de resiliência que acabaram desenvolvendo dentro de um
mundo onde não podiam descobrir o que acontece “lá fora” por estarem sob os cuidados de
um master, ou seja, preterindo a própria noção de si em prol do outro.
Enquanto a mulher permaneceu com os olhos enfaixados e as mãos
algemadas, presa nas garras da ignorância e da inação, o mundo do
pensamento moveu-se na sua órbita como as revoluções da lua: com um
rosto (o rosto do homem) sempre à mostra, de modo que o espectador não
podia distinguir se [a lua] era um disco ou uma esfera Daflon e Sorj (2021, p.
79).
Assim, o ciclo de descida ao mundo subterrâneo está intimamente ligado à natureza
transformadora do feminino uma vez que a cultura patriarcal em que a humanidade vive há
mais de cinco milênios valoriza o princípio da força e do domínio. Essas semelhanças
destacam como o sequestro, separação e prisão de uma personagem central podem ser
elementos poderosos e complexos, trazendo à tona e reflexão questões como de gênero, classe
e poder que comumente orbitam o eixo da complexidade feminina.
4
No Inglês: The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth-century Literacy
Imagination, tradução nossa.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo das histórias de Perséfone e Bertha Mason nos leva a uma profunda reflexão
sobre a condição feminina ao longo da história, ressaltando as complexidades e desafios
enfrentados pelas mulheres em diferentes contextos culturais e sociais. Essas narrativas, que
remontam a tempos antigos e a uma era vitoriana, permanecem relevantes e poderosas,
proporcionando reflexões sobre a experiência feminina e a busca por identidade e autonomia.
Os paralelos entre Perséfone e Bertha destacam a persistência de arquétipos femininos
ao longo do tempo, revelando a capacidade de transformação e resiliência das mulheres diante
da adversidade e da opressão. Enquanto Perséfone personifica a renovação e a capacidade da
natureza de florescer após a escuridão, Bertha representa a luta das mulheres por liberdade e
identidade em uma sociedade patriarcal – que, em sua época, costumava generalizar certos
problemas femininos como loucura ou insanidade ao invés de buscar solução para tanto.
Além disso, essas histórias nos mostram como o mito pode ser uma ferramenta
poderosa para a compreensão da psicologia humana, bem como das relações entre homens e
mulheres. Os Mistérios Eleusinos, associados a Perséfone, eram igualmente abertos a homens
e mulheres, sugerindo que a compreensão transformada das relações humanas e da morte
demanda uma perspectiva feminina. Essa dimensão do mito ressalta sua importância na busca
por igualdade de gênero e na exploração das complexidades das relações humanas.
Em resumo, as histórias de Perséfone e Bertha Mason são testemunhos de como o mito
transcende o tempo e o espaço, continuando a inspirar e iluminar nossa compreensão da
condição humana no decorrer das eras. Elas nos convidam a refletir sobre as lutas e triunfos
das mulheres ao longo da história e a reconhecer a importância de se explorar a riqueza dos
arquétipos femininos e, sobretudo, o que eles têm a dizer. No mundo moderno, à medida que
a sociedade avança em direção à igualdade de gênero, essas narrativas continuam a nos
fornecer compreensões valiosas sobre a jornada das mulheres em busca de sua voz, identidade
e liberdade.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Agha-Jaffar, Tamara. Demeter and Persephone: Lessons from a Myth. North Carolina:
McFarland & Company, Inc., 2002.
Almeida, Marcos Stulzer. Ecos do Mito de Lilith em Jane Eyre, de Charlotte Brontë. XI
Congresso Internacional da ABRALIC. Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo,
2008.

Balieiro, Cristina. O legado das deusas: Caminhos para a busca de uma nova identidade
feminina. 2. ed. São Paulo: Pólen, 2019.
Bhawar, Pradnya. Bertha Mason ‘The Mad Woman in the Attic’: A Subaltern Voice.
International Journal of English Literature and Social Sciences. Savitribai Phule Pune
University, Maharashtra, India: 2021.

Blackford, Holly. The Myth of Persephone in Girls’ Fantasy Literature. New York; London,
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SOBRE A AUTORA

Mestranda em Letras e Especialista em Língua Inglesa e Literaturas pela Universidade


Presbiteriana Mackenzie (UPM), a autora possui experiência na área de Letras, Editoração e
Literatura Inglesa, buscando voltar-se em suas pesquisas aos estudos de Língua, Cultura e
Literaturas de Língua Inglesa, bem como o seu contexto histórico de atravessamentos em
personagens femininas que representam ruptura, quebra de contrato social e
representatividade.

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