Você está na página 1de 9

Introdução

A importância dos amuletos mágicos para o povo Maraguá é


maior que se pode ler no dicionário escrito pelos brancos:​ espécie de
talismã usado para defender dos males da sorte tais como feitiços e
venenos. O autor deste livro relaciona os amuletos a um presente
respeitoso deixado por um antepassado ou alguém com o poder de
abençoar quem precisar de sua proteção. Ao final deste volume,
encontramos um interessante glossário que nos pode ajudar no
conhecimento da língua nhegatu.
As peças encontradas debaixo da terra, tal como um muirakitã
descoberto nas margens do rio, podem trazer um enorme valor, como,
por exemplo, a memória da mãe das águas e do barro de onde foi
extraído.
Yaguarê Yamã conversa com o mundo através de suas histórias.
Filho e neto de contadores tradicionais, ele faz parte de um grupo de
narradores comprometidos com a memória de seus antepassados. As
palavras que carregamos ao contar uma história foram tomadas de
empréstimo dos mais velhos e sábios da nação…
As verdades sobre a origem de um grupo de pessoas como os
Maraguás, dos quais existem hoje apenas 350 integrantes, são como
segredos; os valores coletivos devem ser repassados de forma oral com
paciência e de modo a incentivar a vivência em grupo.
Os Maraguás residentes no Paraná dos Abacaxis, territórios de
floresta no alto rio Amazonas, cultivam suas histórias tais como seus
amuletos desenterrados e por isso merecem ser abençoados pela
própria mãe natureza.

Denyse Catuária

1
Uma figura de sapo esculpida em uma pedra verde. O verde que
simboliza a floresta, a beleza das folhas e das águas do rio Tapajós.
Mito verde, quanta riqueza há escondida em teus seios? Seios das
mulheres guerreiras, as belas Ikamiabas, comandadas por Konory.
Seios de mulheres românticas à espera de seus maridos em tempos de
guerra; isso, antes da chegada dos Paranã’karaywa, que mudaram tudo
na floresta e fizeram seus astros mudarem de percurso e saírem da
órbita. Seios da selva-mãe, que tanto deu de mamar para seus filhos
antes que os filhos dos outros chegassem e roubassem seus pertences
sagrados. Nesse momento pergunto: quantos mistérios Tupana tem
posto em sigilo neste mundo?- os muito fortes pés descalcos que já
andaram por esta vasta Mundurukãnia sabem. As muitas línguas e
culturas ricas que senhorearam essa sabem, região que há muito tempo
foi pátria dos poderosos mundurukus, dos inteligentes mawés, dos
religiosos parintintins, dos amigáveis tenharins, dos resistentes apiakás,
além dos extintos maraguás, awakaxis, sapupés e anhangatingas.
Todos esses povos são ou foram nações distintas e filhos
verdadeiros da mãe terra. Hábeis ceramistas capazes de modelar vasos
incríveis, de fabricar grandes embarcações e de esculpir tão
perfeitamente animais em pedras preciosas, a maioria de cor verde,
extraídos da superfície da natureza. Essas nações formaram um dia a
civilização madeiro-tapajoara. E é a essas nações que eu oferto esta
singela obra como homenagem aos seus filhos e filhas, que viveram e
morreram protegendo a selva-mãe.
Tinha sete anos e andava pela mata à procura de frutas silvestres
quando encontrei no fundo de um olho-d’água um belo exemplar de
muirakitã. Era a figura de um sapo do tamanho de minha mão, lotado de
grafismo simbólicos, que eu nem sequer sabia pra que serviam. Lavei-o
tirei o kawixy que o cercava e o levei para casa. Chegando lá, o
coloquei junto aos meus brinquedos e o esqueci.
Uma vez, papai me contando da história dos antepassados falou
sobre os amuletos de pedra e pena que ainda nos tempos de seus avós
eram cultuados.
— Papai! — disse eu. — Alguns dias atrás achei um muirakitã
desses que o senhor falou. Estava num olho-d’água lá trás do ygarapé.
— Como ele é filho? — Perguntou-me.
— É um sapo verde, papai.
— Trás aqui para eu vê-lo.
Imediatamente corri e o trouxe e o trouxe depressa. Mostrei-o.
— Esse é um tesouro! — disse ele. — Esses símbolos gravados
em seu pescoço significam que é um amuleto mágico. Vamos? —
convidou-me ele.
— Para onde papai?
— Mostre-me para onde o encontrou.
Minutos depois estávamos nos debruçando à beira do
olho-d’água, procurando vestígios.
— Vestígios do que papai? — perguntei sem entender nada. — O
senhor está procurando outro desses sapos verdes é?
— Não, filho, quero saber da terra, do tempo… Quando foi que
esse amuleto foi posto aqui.
— E como pensa em perguntar-lhes papai?
— Já perguntei. Mas nem o tempo soube me responder.
— E quanto à terra?
— Também nada me contou. Só disse que faz muito tempo.
— O senhor fez as perguntas com o pensamento?
— Não, lhes perguntei com os olhos.
Com sua resposta, minha cabeça entrou em parafuso.
— Mas os olhos não ouvem! — disse eu.
Papai riu-se nesse instante e disse:
― Perguntei-lhes no momento em que estava procurando com os
olhos, meu filho. Ouvi-lhes quando vi que não havia nada, nenhum
vestígio nem rastro. Mas não é só isso. Os olhos da natureza são os
mesmos olhos dos muiraktãs. Quando acreditamos neles, logo os
nossos olhos são os deles. Assim, por meio da magia dos antigos pajés
que esculpiram os muirakitãs mágicos, podemos realmente conversar
sobre o muirakitã com a natureza. Mas dessa vez não me disseram
nada, assim tive de contentar ouvindo com meus próprios olhos.
— Por que eles não conversam com o senhor, papai?
— Não sei, mas isso quer dizer que esse muirakitã não értencia
mais a um crente. Não há vestígio e também não há mais magia. O
descrente que o pegou acabou com a magia do muirakitã, que tinha o
poder de proteger seu dono.
Caminhamos de volta para casa e no caminho papai me contou
mais a respeito desse tão místico amuleto:
— Era noite de sábado. A lua estava cheia e alumiava toda a
margem do rio Mariakuã. Minha avó ainda era menina e vagava com
sua mãe, Marary, pela praia do rio, sem destino. Estavam cansadas.
Não sabiam para onde ir. O que precisavam mesmo era encontrar um
lugar para se esconder, pois naqueles tempos os brancos nos
persiguiam incessantemente com intuito de escravizar os índios. Elas
nem sequer eram daquele lugar, tinham chegado ali quando fugiram dos
invasores que haviam destruído suas aldeias na boca do rio Mamuru,
distante duas luas de lá. Muitos moradores foram assassinados,
inclusive seu pai, o restante de sua família conseguiu escapar.
Tão fatigadas, estavam para desfalecer quando ouviram vozes
vindo de uma enseada:
— Heirá e á… Typa’aneá… Ikatu! Heirá eá… Muirak ata eneá,...
heiru!
Ficaram em silêncio ouvindo aquelas palavras quase que
cantadas:
— Pia’ãk atoiá, erewá kiapoát, kawã! Pia’ãk atoá, erewá kiapoát,
ka’hã!
Era uma voz trêmula, parecia um lamento. Mas que o entoava?
Cuidadosas, achegaram-se até o rochedo e de lá avistaram um
velho acocado na beira da praia. O luar cintilante clareava a água como
um espelho. As duas mulheres ficaram olhando aquela figura
enigmática plantada junto d’água cantarolando palavras tão enigmáticas
quanto ele. O velho riscava o ar com seu dedo indicador, mas nunca
mudava de posição. Vez ou outra assobiava estridente e soltava uma
gargalhada de leve como se, mesmo que em lamentos, procurasse
alegrar-se naquele momento.
― Heirá ea Typá aneá, ikatu! — dizia de novo. — Eru kunhã
aporé, erú ce marupiara. Eru cecy purãga… Eru… fiuuu… ― voltava a
asobiar a margem do rio naquela noite clara. E quando parecia que
nada mais iria acontecer, de repente aconteceu. As águas do rio
começaram a se agitar e os peixes se debatiam na beirada. Logo, tudo
voltou a silenciar. E no meio do rio de águas pretas, para espanto das
duas mulheres, surguiu do fundo um ser.
Até então não dava para vê-lo direito. Mas ele se aproximou
devagar. Quando já estava próximo da praia, a lua clareou sua face e
deu para ver uma bela mulher de cabelos compridos e olhos verdes.
Enquanto ela se aproximava, o velho não temeu esperá-la. Continuou
acocado na beirada com um sorriso no rosto. Ela não sorriu, estava
séria, também não se ergueu para fora d’água, apenas chegou o mais
próximo possível do velho e de lá levantou na mão um amuleto.
Prontamente o velho se pôs de pé. A mulher encantada então atirou um
objeto nas mãos do velho e em seguida mergulhou como um boto
mergulha, mostrando a calda longa de escamas brilhantes. Aquele ser
era, ou só podia ser uma Y’yara, não tinha outra explicação para isso.
Quem mais nadaria daquele jeito?
Assim, logo que voltou para o fundo do rio, com o jeito gracioso
que só as mães-d’águas tem, o vento continuou a soprar e tudo voltou
ao normal.
Assobiando com ar de satisfação, o velhinho se pôs a andar para
a terra firme.
— E agora? — perguntaram-se elas. — O que era esse objeto
dado pela mãe-d’água? E o que esse velhinho quer com ele?
Perguntas de serem respondidas. O velho subiu a praia e sumiu
no escuro. As duas, sem entender nada, acabaram adormecendo
naquele mesmo lugar.
Na manhã seguinte, antes de o sol nascer, mãe e filha acordaram
com o som de rezas vindo do outro lado do barranco. Mais uma vez
foram ver e encontraram o homem de cocóras na margem do rio, era o
mesmo velho que, na noite passada havia ganhado um objeto de uma
Y’yara. Então elas compreenderam.
Aquele homem era um pajé detentor dos segredos do muirakitãs,
amuleto de cura de propriedade dos índios Kundury, antigo povo do
pajé Sabák e das famosas Ikamiabas, as mulheres guerreiras
exterminadas há séculos já haviam despertado a cobiça dos pajés de
outros povos. Aquele homem não era um Kundury, mas estava de
posse de muirakitã poderoso, se não fosse assim, não lhe seria dado
pessoalmente por uma Y’yara, senhora das águas.
Logo pensaram: “O que faremos? Vamos falar com ele! Quem
sabe ele nós dá um lar e assim vivemos bem até acharmos um jeito de
voltarmos para nosso povo. Sim, vamos falar com ele!”
Mas, antes de qualquer iniciativa das duas, o velhinho, que estava
agachado, foi surpreendido com uma cacetada na cabeça. Ao se
aproximar, viram um outro homem que chegou por trás do velho e o
acertou. O velho caiu inconsciente na areia enquanto o misterioso
homem lhe tirava o muirakitã de uma das mãos. Parece que não era só
elas que estavam sabendo do muirakitã ganho pelo velhinho. Havia
outro pajé e, quem sabe, vários outros que estavam de olho naquele
amuleto precioso.
O homem carregou o velho e, para certificar-se de que morreria, o
jogou na parte mais funda do rio, além da margem. Em seguida disse:
— Ceí tuyé katu! Kori xe yrõ. (Adeus velho do bem, agora sou só
eu.)
As duas mulheres que não tinham nada a ver com aquilo e
assistiram escondidas ao desenrolar daquela cena, decidiram seguir o
assassino.
Aquele homem havia roubado o amuleto do velho pajé, portanto o
amuleto não tinha mais dono. Acharam certo tirá-lo das mãos do ladrão
e combinaram:
—Vamos segui-lo! Assim saberemos onde ele mora. Se morar
sozinho, poderemos tirar-lhe o muirakitã.
Assim, quando o homem retornou para a floresta, elas o seguiram.
Andaram muito, atravessaram furos e ygarapés, até que finalmente o
viram chegar a uma casa de palha, bem no meio de uma capoeira.
O homem olhou para um lado, olhou para o outro, em seguida
entrou na cabana, enquanto elas se agachavam em meio ao capim alto
tentando se esconder. Viram lá de fora que tudo estava em silêncio,
nada lá dentro se movia. Então pensaram em entrar para falar com o
homem, mas analisaram melhor: “Não vai ser fácil tirar o amuleto da
mão desse homem, pois é muito misterioso”.
Achando que poderia tratar-se de um feiticeiro mau, pois morava
sozinho e, segundo a crença, só os feiticeiros maus moram sozinhos,
decidiram aguardar.
O tempo passou, finalmente lá pelas quatro horas da tarde o
homem saiu de casa e se pôs a andar em direção a um ygarapé não
muito distante.
Nisso, as duas mulheres, apesar do medo, resolveram entrar na
cabana. Como estavam com fome, foram logo procurando o que comer.
Mexeram aqui e ali até que a mãe gritou:
— Achei, Ajarany! — E completou: — Encontrei o muirakitã, o
homem malvado não o levou, e com ele estão mais dois amuletos de
cura e dois wirapurus empalhados.
Também observando melhor, a mãe encontrou uma vasilha
grande, do tipo kamuty, com sangue.
— Vamos correr, Ajarany! — falou a mãe. — Esse homem é um
feiticeiro mau!
Mas que depressa, elas recolheram todos os amuletos, porém,
antes que pudessem sair, apareceu-lhes o homem na porta.
— Uaa! — exclamou com raiva. — Awa pe peen? Ma’ã pe
monhãg iké? (Quem são vocês e o que estão fazendo aqui?)
As duas sem responder, tentaram fugir pelo fundos, mas a casa
só tinha uma abertura.
— Não tem como escapar! — falou o homem. — Agora vocês
serão minhas prisioneiras.
Dizendo isso, ele uivou como se fosse cachorro, e logo toda a
casa estava cercada de morcegos -vampiros, denominados Kãwéras.
Os Kãwéras ao pousarem, transformaram-se em gente, e um
deles tomou a frente e disse:
— O que deseja meu mestre?
— Uaa! Levem essa mulher e essa menina para sua morada.
Vigiem-nas e esperem até que eu decida o que fazer com elas.
Temendo o pior, Marary escondeu os wirapurus e os muirakitãs na
sua saia para que o feiticeiro não os visse. Ele, sem desconfiar que elas
haviam lhe surrupiado, despediu-se dos servos. Imediatamente os
Kãwéras as levaram, voando para bem longe. Para um lugar em que
elas jamais haviam estado, o lago encantado Waruã.
— Isso é verdade, filho. — papai interrompeu sua história por um
instante, para confirmá-la. — Antigamente, voavam pelo baixo Tapajós,
os homens-morcegos, os populares Kãwéras, que os brancos chamam
de morceganjos. Criaturas “visajentas” de Anhãga, o senhor do mau a
quem obedeciam e prestavam serviços malignos. Eles eram assim
como gente, mais largos em cima e finos embaixo e no meio das costas
havia asas, não tinha mãos, somente asas. Na boca, em meio aos
dentes pontiagudos, tinham a língua como a das cobras. Eles moravam
numa ilha no centro do lago perdido Waruã, lago sagrado de onde
ninguém jamais retornava. Wãrua é um lago que pode estar em todo
lugar, nunca está dois dias no mesmo local, ninguém sabe onde nem
quando surgirá. Até então, todos que tinha ido para este lago nunca
mais haviam retornado, desapareciam para sempre nas suas águas
negras, onde fluí a maldade e a força de Anhãga.
Na ilha, havia cavernas bem escuras, era lá a morada desses
demônios, que constantemente saíam para ver se havia algo estranho
por perto.
Quando as duas mulheres chegaram à ilhano meio do lago
Wãrua, os Kãwéras as prenderam dentro de uma das cavernas. Lá elas
ficaram confinadas durante dias. E, mesmo passados alguns dias, por
sorte do destino, o feiticeiro não mais as molestou, nem deu por falta
dos amuletos mágicos. Não se sabe como, talvez estivesse deixando
para usá-los numa outra hora. Por isso não os procurou.

Você também pode gostar