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UNIVERSIDADE PAULISTA - UNIP

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOTERAPIA JUNGUIANA

Pamela Cristina Celentano Costa

A DEUSA PERSÉFONE COMO ARQUÉTIPO


FEMININO SOMBRIO: UM BREVE ESTUDO

São Paulo

2023
Pamela Cristina Celentano Costa

A DEUSA PERSÉFONE COMO ARQUÉTIPO


FEMININO SOMBRIO: UM BREVE ESTUDO

Artigo apresentado ao Curso de


Psicoterapia Junguiana da Universidade
Paulista - UNIP - Campus São Paulo
como Pré-requisito para obtenção do título
de especialista.

Orientador Prof. Ms. Leonardo Tondato de


Mello

São Paulo
2023

RESUMO

Ao pensar em Coré-Perséfone, o que costuma vir à nossa mente? Num primeiro


momento, talvez pensemos em sua vulnerabilidade e, portanto, numa jovem doce,
ingênua e submissa, sempre junto à sua mãe e, posteriormente, ao seu marido.
Neste trabalho, objetivo trazer a versão sombria da deusa Perséfone, que passa por
diversos percalços em sua jornada rumo ao processo de individuação, realizando a
passagem de um estágio de sua vida para outro e encontrando, através de sua dor e
perda, uma nova identidade, mais autônoma e soberana de si.

Palavras-Chave: deusa Perséfone; arquétipo; sombra; Hades; individuação.

ABSTRACT

When we think of Kore-Persephone, what usually comes to mind? At first, perhaps


we think of her vulnerability and, therefore, of a sweet, naive and submissive young
woman, always close to her mother and, later, to her husband. In this study, I aim to
bring the dark version of the goddess, who goes through several challenges on her
journey of individuation, going from one stage of her life to the next and finding,
through pain and loss, a new identity, more autonomous and a ruler of her own self.

Keywords: goddess Persephone; archetype; shadow; Hades; individuation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................. 4
2. Desenvolvimento................................................................................................................ 8
2.1 Da descida aos ínferos como morte simbólica..............................................................8
2.2 Dos mistérios de Elêusis................................................................................... 10
2.3 Do amadurecimento e sustentação das decisões....................................................... 11
2.4 Uma deusa sombria e poderosa....................................................................................13
3. Considerações finais........................................................................................... 18
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA...............................................................................20
Perséfone, abençoada filha do grande Zeus, filha única
de Deméter, venha e aceite este gracioso sacrifício.
Muito honrada esposa de Pluto, discreta e doadora da vida,
tu comandas os portões do Hades nas entranhas da terra,
Praxidikê (justiça exata) amavelmente trançada, pura flor de Deo,
mãe das Fúrias, rainha do mundo inferior,
a quem Zeus gerou em união clandestina.
Mãe do Eubouleus que tem várias formas e que ruge alto,
radiante e luminosa companheira de recreação das Estações,
augusta, toda-poderosa, rica donzela em frutos,
brilhante e de cornos, só tu és a amada dos mortais.
Na primavera tu rejubilaste nas brisas das campinas
e mostras tua figura sagrada nos brotos e frutos verdes.
Foste feita esposa de um raptor no outono,
e apenas tu és vida e morte para os mortais que labutam;
Ó Perséfone, pois tu sempre nutres tudo e matas tudo também.
Escutai, ó abençoada deusa, e enviai os frutos da terra.
Tu que floresces em paz, em saúde de mão suave,
e em uma vida de fartura transportas pelo ar a velha idade
em conforto até teu reino, ó rainha, e para o reino do poderoso Pluto.
— “Hino Órfico a Perséfone”.

INTRODUÇÃO

Buscando apontar para os aspectos sombrios da deusa Perséfone, referida


na mitologia grega como uma deusa vulnerável quando ainda é Coré, filha de
Deméter, o presente trabalho pretende trazer uma versão menos juvenil e inocente
da também Rainha do Mundo Inferior, que apropria-se de si e integra suas
características escuras após sua jornada nos ínferos.
Para Woolger e Woolger (2007), por exemplo, Perséfone é famosa entre os
gregos como a “Rainha absoluta do Mundo Avernal” e, em contrapartida, também é
conhecida como Coré, a donzela virginal protegida por sua mãe Deméter, que um
dia se viu afastada abruptamente de seus cuidados ao ser raptada por Hades,
evidenciando a dicotomia existente na história da deusa. De acordo com o mito, a
jovem Coré, então donzela, um dia brincava com suas irmãs, as deusas Ártemis e
Atená, quando repentinamente, Hades surgiu fazendo a terra se abrir, levando-a
diretamente para os ínferos com o objetivo de desposá-la (WOOLGER &
WOOLGER, 2007).

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Bolen (1990), conta que a deusa Deméter pôde ouvir o eco dos gritos de
Perséfone, sua única filha com Zeus, enquanto descia para o submundo procurando
encontrá-la avidamente durante nove dias e nove noites, sem nesse período haver
comido, bebido ou descansado, buscando Coré por terra e mar. Clamava a donzela
pela ajuda de Zeus, seu pai, no momento do seu rapto, sem no entanto obter
nenhuma resposta.
Bolen (1990), ainda pontua que já no décimo dia de sua procura implacável,
Deméter finalmente encontrou a deusa Hécate, senhora dos caminhos e da lua
negra. Hécate lhe sugeriu que encontrasse Hélio, deus do sol. Hélio foi quem
finalmente contou o que havia acontecido e relatou que Perséfone havia sido
raptada com a permissão de Zeus, mas contra a sua vontade, e continuou dizendo
que, muito embora Hades a houvesse levado à força, o deus do submundo não era
afinal um genro de má qualidade, orientando Deméter a se resignar (BOLEN, 1990).
De acordo com o hino homérico a Deméter, como contam Woolger e Woolger
(2007), a deusa mãe não seguiu o conselho dado por Hélio e agora estava ainda
mais obstinada, pois o seu sofrimento havia sido aumentado pela ira em relação a
Zeus e sua atitude para com a filha. Dessa forma, deixou finalmente o Olimpo para
habitar o mundo dos mortais disfarçada de anciã, chegando até Elêusis, onde
sentada no Poço das Donzelas, foi vista pela filha do rei, para quem ofereceu seus
serviços de ama, cuidando, a partir de então, do bebê Demófon, filho da rainha
Metaneira (WOOLGER & WOOLGER, 2007). Mas Deméter não o amamenta como
foi acordado a princípio e, ao invés disso, passa no bebê ambrosia e
encobertamente o esconde no fogo, com o objetivo de torná-lo imortal. O ritual, no
entanto, não se completa, já que sua mãe, Metaneira, o encontra e, estarrecida em
virtude do que vê, o tira do fogo, fazendo Deméter se enfurecer, alegando que a
rainha tirou de Demófon a chance da imortalidade, ao que se desvela sua grandeza
de deusa, quando todo o lugar é tomado por uma deslumbrante luz ao destituir-se,
Deméter, do disfarce adotado. A deusa mãe, então no mundo dos mortais, exigiu
que fosse erguido para ela um templo, a fim de que, daquele momento em diante,
pudesse ensinar aos mortais sobre seus ritos (WOOLGER & WOOLGER, 2007).
Segundo Bolen (1990), Deméter, deprimida pela perda de sua filha, se
afastou e permaneceu isolada no templo construído para ela, se recusando a

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dedicar-se ao seu trabalho, o que gerou escassez no mundo mortal, fazendo com
que aos deuses não fosse possível oferecer suplícios ou oferendas.
Woolger e Woolger (2007), contam que a seca enviada pela deusa resultou
numa grande ameaça à raça humana e, ainda assim, Deméter não ouvia nenhum
dos mensageiros enviados por Zeus para dissuadi-la.
Bolen (1990), explica que, a despeito dos inúmeros presentes trazidos pelas
divindades enviadas por Zeus com o objetivo de convencer Deméter a perdoar o
ocorrido e retomar o seu trabalho, a deusa não cedeu, e esclareceu que só
retornaria ao Olimpo e permitiria o crescimento das colheitas, quando tivesse sua
Perséfone de volta. Por fim, Zeus acabou cedendo à exigência e enviou Hermes, o
mensageiro, para o submundo, a fim de reclamar Perséfone à Hades, para que
pudesse estabelecer pacificidade novamente, acalmando Deméter e garantindo que
suas atividades voltassem a ser feitas.
Ainda segundo Bolen (1990), o deus Hermes encontrou Perséfone abatida
próxima a Hades, que antes de permitir que o mensageiro a levasse, lhe deu
algumas sementes de romã para que comesse e ela as comeu. A jovem, contente,
voltou rapidamente para a sua mãe, que lhe estendeu os braços e a recebeu com
afeto e alegria, mas em seguida lhe perguntou se havia comido algo no submundo,
já tendo conhecimento de que, se a resposta fosse negativa, a filha poderia voltar
inteiramente aos seus cuidados, permanecendo sempre ao seu lado, como antes
fora. Perséfone, no entanto, contou-lhe sobre as sementes de romã e foi informada
pela mãe que, por tê-las comido, de agora em diante passaria uma parte de seu
tempo anual com Hades no mundo inferior e apenas uma outra parte ao seu lado no
mundo superior.
No que diz respeito às sementes de romã, comê-las significava ligar-se ao
lugar de onde ela veio e ao qual pertencia. Assim, a atitude tomada por Perséfone
representa um laço eterno com o submundo, de modo que, apesar do acordo feito
entre Zeus e Deméter, a jovem estaria fadada a passar um terço do ano no
submundo e, somente no restante do tempo, poderia ficar na companhia de sua mãe
(ALVARENGA, 2007).
Segundo Woolger e Woolger (2007), o que acontece com Perséfone depois
de seu rapto, já nos ínferos, é um grande mistério e, no mito, contato de diferentes
maneiras, encontramos um predominante silêncio nessa parte da história, como se

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se tratasse de algo sobre o qual realmente não se pode falar. Assim, o que se
encontra na mitologia após a descida de Perséfone é o sofrimento de sua mãe,
Deméter, bem como as narrativas que contam sobre sua movimentação para obter a
filha de volta. Mas encontramos também uma série de informações que apontam
para o quanto este evento foi necessário para o desenvolvimento de Perséfone, que
retorna para a sua mãe já bastante diferente da menina que era antes.
Para George (2021), a descida de Coré, pode representar para nós no mundo
moderno, o encontro com o inconsciente e a transformação advinda desse processo.
Todo o mistério envolvendo a história de Perséfone e Deméter, podem remontar ao
medo daquilo que nos é desconhecido, que está nas sombras, no inconsciente do
ser humano. Dos ritos de passagem que foram sendo introjetados ao longo do
tempo, muitos por meio da história de mãe e filha, podemos dizer que houve uma
transfiguração facilitadora dos processos psíquicos nesse sentido. Os mistérios de
Elêusis, viriam a auxiliar então na superação do medo do desconhecido, da morte.
Além disso, uma vez que Deméter e Perséfone representam as fases da lua: clara e
escura, vida e morte, as deusas estão intimamente ligadas, mesmo após a
separação. A história de mãe e filha, é também uma história sobre retorno e
renascimento após a morte e, para a autora, pode remontar ao processo da semente
que morre para germinar, deixando aquilo que era, para o crescimento daquilo que
virá a ser.
Ainda de acordo com George (2021), Perséfone possui lugar ímpar como
deusa da lua negra e, diferente de outras deusas, não foi remontada e difundida pela
literatura como aterrorizante, feia, ou velha, mas como uma mulher sempre jovem e
bela, representando aquele exato ponto em que a lua negra passa a ser lua nova.
Apesar disso, a autora nos alerta para o fato de que, a mulher que carrega a força
desse arquétipo como principal em sua personalidade, tem por privilégio a
abundância do mundo interno, do conhecimento profundo de si, mas costuma
passar por algum tipo de situação trágica ainda muito cedo para chegar a ter este
poder, sem ter ainda estrutura psíquica resistente o suficiente para compreender ou
suportar tal situação, seja ela de violência, ou de desamparo. A adversidade tende a
marcar sua vida, deixando-a mais introspectiva e temerosa quando o assunto é o
mundo externo. No entanto, uma vez que essa mulher dá vazão ao encontro com o

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inconsciente, encontra também o acesso à sua intuição e à grande gama de
potências psíquicas da Rainha do Mundo Inferior.

2. Desenvolvimento

2.1 Da descida aos ínferos como morte simbólica

De acordo com Bolen (2007), enquanto rainha, Perséfone recebeu a visita de


várias heroínas e heróis, auxiliando e os guiando em sua jornada no mundo inferior.
Entre eles, Odisseu, para quem mostrou os espíritos de mulheres historicamente
valorosas; Psique, que buscava o bálsamo da beleza solicitado pela deusa do amor,
Afrodite e também Héracles, que buscava emprestar o cão de três cabeças,
Cérbero. Quando Perséfone se torna guia e condutora de outros no caminho para os
ínferos, fica claro seu crescimento e desenvolvimento. Ela é agora experiente e tem
a habilidade de habitar o limiar, de transitar entre dois mundos. É, portanto, capaz de
se mover entre o mundo da realidade palpável e não palpável, ou seja do ego e do
inconsciente.
Segundo Alvarenga (2007), além desses heróis, a deusa também recebeu no
submundo Adonis, Orfeu e Teseu: Adonis, que foi enviado por Afrodite para ser
protegido enquanto criança, mas ao se tornar um jovem, originou a briga entre as
deusas que agora o queriam para si. Orfeu, que foi buscar Eurídice, sua amada,
mas por ficar por demais preso ao passado e não ter confiança, perdeu-se a si
mesmo, apesar da misericórdia de Hades e Perséfone. E Teseu, que raptou Helena
de Tróia e em sua descida aos ínferos, tinha a intenção de raptar também
Perséfone, removendo-a de seu trono. Mas a deusa, e agora, rainha, foi
veementemente protegida por Hades, seu marido (ALVARENGA, 2007).
O processo de descida aos Ínferos, é citado por Brandão (2015), quando
Héracles é mandado para lá por Euristeu, como a décima primeira das tarefas
incubidas a ele para alcançar a remissão pela terrível ira e loucura que o levaram a
matar aos seus filhos e sobrinhos e, para obter também, a imortalidade. Para tal
descida, Héracles precisa completar o rito iniciático que dá “ingresso” ao processo
de catábase, que configura a morte simbólica, uma vez que, somente dessa forma,
seria possível realizar uma anábase, a subida que traria uma transformação e
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renovação, a busca e conhecimento de si mesmo. Assim, após obter a ajuda de
Hermes e Atená na preparação para a sua jornada nos ínferos, Héracles pôde ser
iniciado e, através dos mistérios eleusinos, ser conduzido de forma segura para lá.
Para Eliade (2010), o rapto de Perséfone representa também a sua “morte”
simbólica e seu destino ao lado do Rei dos Ínferos gerou consequências
importantes, uma vez que uma deusa bondosa e olímpica passaria agora a viver
uma parte de sua existência também no reino dos mortos, aproximando de alguma
forma dois mundos tão distintos quanto são o Olimpo e o Hades. Este foi um fato tão
significativo que lhe conferiu não apenas acesso, mas o direito de interferir no
destino dos homens mortais.
Esse processo pelo qual Perséfone passa, gera transformações: Apesar do
silêncio que se instaura após o rapto de Coré, Alvarenga (2007) aponta que, ao
descer aos ínferos, a jovem deusa tem sua primeira menstruação, anunciando a
passagem da donzela para a mulher. Nesse ponto, a menina não mais retornará, o
que significa que, tudo aquilo que representa sua figura infantil - modos de menina,
inocência, pureza e suavidade - agora não existem mais. O assentimento deste fato
por Coré gera a tomada de consciência, mostrando que as questões da vida de
antes não fazem mais sentido e a persona outrora criada não possui mais espaço.
Assim, quem retorna agora é Perséfone, a mulher. Desse momento em diante, a
relação simbiótica com Deméter tem seu desfecho e Coré, que antes era apenas
uma extensão da existência de sua mãe, agora passa a ser uma mulher, que sabe
que pode guiar seu próprio destino (ALVARENGA, 2007).
Alvarenga (2007) informa que, segundo Pollack (1998), em virtude do
estrógeno natural que a romã possui, além do tom vermelho que apresenta e pela
grande quantidade de sementes, esta pode vir a simbolizar o renascimento. A
descida de Coré até o submundo vem representar o caminho percorrido até o
inconsciente. Esse movimento trata-se da necessidade de introspecção, para que
encontre a si mesma, e sua completude. Inicialmente, a jovem Coré não tinha
conhecimento de que precisava abrir mão da postura casta que havia adotado para,
então, conhecer seu poder, que viria a partir da integração do lado obscuro e da luz
que a caracterizam.

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2.2 Dos mistérios de Elêusis

George (2021) pontua que, o fato de Perséfone passar um período de cada


ano no reino dos mortos, permitiu que a deusa desenvolvesse o seu poder, uma vez
que foi possível aprofundar-se nos mistérios trazidos pela noite e aprender a falar
com as almas, auxiliando-as com o tema do renascimento. A passagem da deusa
para a lua negra é realizada em meio à tragédia, mas traz, além do profundo
conhecimento de seu mundo interno e potências, um novo senso de identidade.
Quando falamos sobre morte e renascimento neste mito, é importante citar
também os Mistérios de Elêusis. Para Campbell (2016), não há como saber o que
acontecia nos mistérios, uma vez que, falar sobre eles era uma grande ofensa e
poderia levar à morte. Quem participava precisava guardar segredo. Assim, foram
milhares de pessoas que guardaram esse segredo através dos anos. Entretanto, por
intermédio de vasos sarcófagos, foi possível, por meio de sequências de imagens,
remontar algumas das cenas destes rituais.
George (2021), conta que os mistérios eram feitos de rituais que pretendiam
representar a transformação, morte e renascimento. A renovação buscada acontecia
por meio deste processo, quando os iniciados, aspirando uma conexão com o
sagrado, remontavam esta morte simbólica e aprendiam a compreender e aceitar
melhor, ainda em vida, os eventos de seu fim. “Os mistérios eram essencialmente
uma experiência emocional que dava às pessoas uma esperança para o futuro”.
(GEORGE, 2021, p. 294).

Esses rituais eram, principalmente, de qualidade emocional e não mental, ou


intelectual. Além disso, pretendiam trazer alguma esperança a respeito da morte
para aqueles que dele participavam, sempre em segredo sacro, promovendo
incentivo ao desenvolvimento do universo inconsciente através do atravessamento
da sombra para a luz, numa espécie de nascimento de um “novo eu” de uma
transformação, aproximando o iniciado daquilo que não é lógico, do
incompreensível, como uma grande experiência espiritual (GEORGE, 2021).
De acordo com Eliade (2010), os ritos dos Mistérios de Elêusis foram
celebrados como forma de declarar apoio e solidariedade diante da mística
envolvendo Coré, a violência, a união do casal divino e a agricultura. Foram

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celebrados também para levar algum conforto às pessoas no que tange ao tema da
morte e do pós-morte.
Eliade (2010), ainda conta que as celebrações dos mistérios eram divididas
em etapas. Além disso, eram realizadas uma vez ao ano, durando vários dias. Os
ritos foram remontados e festejados durante aproximadamente dois mil anos e,
assim sendo, terminaram ganhando notoriedade entre os povos vindouros. Além do
prestígio e do importante lugar que os mistérios eleusinos conquistaram entre o povo
de Atenas, uma porção de seu conteúdo seguiu sendo retratado ao longo dos anos
por meio da arte, uma vez que somente sua primeira parte, o processo de iniciação,
não era um segredo completo. Havia, então, a celebração de pequenos e grandes
mistérios, não chegando esses últimos a serem jamais revelados.
Apesar disso, Eliade (2010), nos conta que diversos estudiosos procuraram
referências e materiais antigos, inclusive por meio de escavações no santuário de
Deméter, na tentativa de descobrir o conteúdo das teletai e da epoptéia: os grandes
mistérios e o ápice/a última das experiências, respectivamente. Há, a partir disso,
muitas conjecturas sobre o que acontecia de fato e tentativas de reconstituir os
cultos, utilizando as informações que seguiram sendo difundidas por pessoas como
os estudiosos, religiosos e filósofos através do tempo.

2.3 Do amadurecimento e sustentação das decisões

Segundo Woolger e Woolger (2007), há aspectos em Coré-Perséfone que


devem morrer, como seu papel de menina sempre meiga, doce e condescendente,
para que enfim haja um rompimento com a inocente vítima, portadora de uma
grande luminosidade, que carrega também uma grande sombra. Sua sombra é
justamente o desejo por poder. Perséfone precisa abrir mão dos ganhos que
adquiriu mantendo uma postura passiva, para que possa, por fim, conquistar os
frutos que obscuramente deseja e que, somente através do seu encontro com
Hades, quando esse encontro for legítimo, pode obter. Além disso, Perséfone
possui uma intensa raiva dentro de si e, por isso, a ela é atribuído o título de “mãe
das fúrias” no Hino Órfico. Sem saber lidar com esses sentimentos, a mulher
Perséfone tende a projetar esta figura “inimiga” em outras mulheres, começando
pela sua mãe carnal (WOOLGER E WOOLGER, 2007).

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Alvarenga (2007), pontua que as sementes de romã comidas por Perséfone
nos ínferos representam a fecundação que se deu, anunciando uma nova vida que,
a partir de então, terá junto a Hades, o senhor do submundo. Apesar de ter dito à
mãe que foi forçada a comer, Perséfone deu início a uma aliança com Hades,
contraiu com ele núpcias por livre e espontânea vontade, agora comandando suas
escolhas e passando a conhecer-se enquanto mulher, realizadora e gestora da vida.
Perséfone não viveu a mesma violência sofrida por Deméter no passado, mas
encerrou um ciclo que fortalecia a dicotomia característica do patriarcado, unindo
corpo e espírito num processo que traria uma nova compreensão a respeito do fim e
do princípio da existência.
O amadurecimento de Perséfone, quando esta concebe o menino
Zagreu-Dioniso - símbolo da decadência dos tabus e impedimentos, que integra as
polaridades femino e masculino - completa o processo de individuação da deusa.
Perséfone se torna uma mulher adulta quando gera Dioniso, fruto de sua relação
com Hades, pois agora não é apenas filha, é também mãe. Passa a caminhar com
Hécate, representante da lua cheia, que simboliza o ciclo completo, aquela que
esteve presente e vigiou os caminhos percorridos por Perséfone, sem interferir nos
processos que tinham propósito e precisavam acontecer, além de viabilizar a
concepção e o parto de Dioniso. A presença de Hécate sela então um processo de
empoderamento, integrando as fases da jornada percorrida por
Deméter-Coré-Perséfone e mostrando também um ganho de autonomia em relação
a essa mãe (ALVARENGA, 2007).
Para George (2021), podemos tender, em um primeiro momento, a considerar
que o rapto de Perséfone foi algo vil, uma vez que soa como um ato de extrema
violência tirar uma filha ingênua, casta e jovem de sua mãe para desposá-la “à
força”. Do ponto de vista simbólico, sem a intenção de justificar de forma alguma os
meios em virtude dos fins, fazendo então uma apologia ao que poderia ser
considerado um estupro, este episódio radical foi de suma importância para os
eventos psicológicos, para que a filha pudesse se diferenciar de sua mãe, uma vez
que as duas estavam completamente entrelaçadas numa simbiose que distanciaria
Perséfone de si mesma e dificultaria o seu crescimento, distanciamento saudável da
figura materna e processo de individuação.

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Para Berry (2014), o evento do rapto é algo não apenas justificável, mas
necessário para mulheres do tipo Perséfone, mesmo se tratando de algo pavoroso.
No entanto, a mesma circunstância seria, provavelmente, devastadora se ocorresse
a outras deusas virgens como Ártemis, ou Atená, que não demandam o mesmo tipo
de desdobramento. Perséfone, no entanto, tende a seguir pelo caminho do mundo
avernal, invariavelmente, para o bem de seu processo de desenvolvimento.
Berry (2014), ainda fala sobre a dificuldade que costumamos ter de nos
entregar para o necessário processo da descida aos ínferos, desviando desse
caminho, como se houvesse uma maneira mais efetiva de crescer, assim como a
deusa Deméter. Para a consciência de Deméter, era intolerável o rapto de sua filha
e, sem a sua presença, ela se viu sem o chão, o apoio que de alguma forma a
sustentava. Assim, ao invés de entrar em contato com seu mundo interno no
momento da dor e do luto, algo que permitiria que seu olhar se ampliasse agora
verticalmente, a deusa fugiu para longe e ficou enfurecida, procurando todo tipo de
subterfúgio para não olhar para as questões mais profundas de si. Faz-se relevante,
nesse sentido, analisarmos as nossas defesas por meio da reflexão no mito de
Coré-Perséfone-Deméter (BERRY, 2014).
É importante salientar, novamente, que há outros caminhos para diferentes
tipos de pessoas. Como aponta Bernardini (2020), também é possível viver
experiências de profundidade e dar vazão ao si mesmo, sem necessariamente ter
vivenciado uma depressão, ou grande trauma e sofrimento, embora grandes
transformações possam acontecer por meio das angústias experimentadas através
de dores emocionais e até mesmo de psicopatologias. Isso também não significa
que essas questões tragam uma experiência totalmente transformadora todas as
vezes, dado que, nem sempre as coisas são passíveis de transformação.

2.4 Uma deusa sombria e poderosa

Não mais sendo Coré, mas Perséfone, rainha dos ínferos, de acordo com
Bolen (1990), a deusa possui a habilidade de transitar entre mundos, portanto, é
capaz de auxiliar na caminhada dos que trilham pelos ínferos, seja essa descida
feita através do mundo onírico, seja ocorrendo por meio de um “rapto”, passando
pelo que ela mesma já passou. Desse modo, Perséfone é aquela que pode ajudar
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àqueles que perderam a ligação com o mundo real, de distintas maneiras. Além
disso, a sob forte influência do arquétipo de Perséfone, pode estar em destaque
quando em profissões em que possa exercer o papel de “guia”, ou conselheira.
Ainda de acordo com Bolen (1990), a mulher Perséfone possui dificuldade no
que tange aos afazeres do mundo imediato e, concluir tarefas que pareceriam
simples, para ela pode ser um martírio, mesmo que, inicialmente, tenha se
entusiasmado e estabelecido um compromisso com o tema. Por isso, um grande
desafio para o seu desenvolvimento pode ser combater a estagnação para ir em
frente com seus objetivos e finalizar o que tiver iniciado, mesmo que isso já não
traga a mesma empolgação do começo. Assim, um passo muito importante pode
ser escolher suas “batalhas”, apropriando-se desta escolha.
Bolen (1990), ainda traz algumas falhas de caráter que as “persefonianas”
podem trazer quando tomadas pela sombra: há uma grande necessidade de serem
bem vistas, seja no que diz respeito à aparência física, sua beleza, ou à figura de
boa moça. Essas mulheres tendem a evitar o sentimento de raiva, por exemplo, a
todo custo, pois a ideia de mostrar esse lado menos sóbrio e sereno para as
pessoas é muito desafiadora, posto que elas podem não gostar do que verão e
então desaprová-las. Além disso, podem ter traços narcisistas, já que, em virtude
desse “ensimesmamento”, passam tempo demais focadas em si mesmas, se
preparando de alguma maneira para estarem sempre apresentáveis aos olhos dos
outros e necessitam feedbacks positivos e elogios.
Para Woolger e Woolger (2007), quando uma mulher Perséfone não
completou sua descida, algo de suma importância para o seu processo, pode
também tornar-se manipuladora e até mesmo mentirosa, — como mentiu a deusa
para a mãe ao dizer que Hades a obrigou a comer as sementes de romã — uma
eterna vítima das circunstâncias, nunca tomando para si a responsabilidade pelas
suas ações, ou pelo que lhe acontece, colocando a culpa sempre nos outros. Age no
mundo como se as coisas simplesmente lhe acontecessem, tudo muito
circunstancial e sem escolhas, possuindo uma grande passividade e dificuldade de
tomar para si o controle da própria vida e decisões.
Woolger e Woolger (2007), ainda explicam que é crucial que a mulher
Perséfone aprenda a administrar o trânsito que fará, sozinha, pelos dois mundos, os
dois lugares que são seus. Para isso, é indispensável que se aproprie da descida

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depois de uma perda ou situação traumática e, também da subida, já que ficar
tempo demais no mundo avernal, mesmo para ela, pode trazer uma forma de
depressão crônica e patológica, não sendo mais ser algo natural e transitório. Assim,
é muito importante que perceba esses movimentos e os efeitos gerados por eles,
para que, através da tomada de consciência (que pode ser facilitada pela busca de
um psicoterapeuta, por exemplo) não continue a atrair para si situações de crise.
Perséfone possui qualidade medial, ou mediúnica e isso pode trazer
demasiada pressão para a psique, pois a deusa passa a ter um dever de fidelidade
tanto para com vivos quanto para com mortos após sua descida. Mulheres com esse
tipo de personalidade costumam enxergar sempre muito profundamente e, para
além da realidade concreta, sentindo-se, muitas vezes incompreendidas, esgotadas
psiquicamente. Estando fora do seu alcance trabalhar em atividades em que possam
ser elas mesmas, a estrutura do ego fica abalada, evidenciando o quão desafiador é
operar no mundo tangível com esses dons (WOOLGER E WOOLGER, 2007).
Para Kast (2022), a aceitação de nossa sombra é de vital importância para o
desenvolvimento e, para isso, é necessário que também tenhamos empatia com os
nossos aspectos sombrios e com os dos demais, uma vez que, com eles, também
costuma vir dor e sofrimento. Ter empatia com a sombra, não significa justificá-la, ou
não procurar aprimorar alguns dos comportamentos que podem fazer parte de seu
repertório, ou que não somos responsáveis por eles, mas que os olharemos com
compaixão. “É justamente a identificação com a sombra que significa a morte do
antigo eu, que permite o renascimento”. (KAST, 2022)
De acordo com Woolger e Woolger (2007), Perséfone tem um chamado e,
sendo este chamado sacro, trata-se de algo maior que os desígnios anteriores dela
mesma, pois seu destino pertence a este propósito. Assim, as vivências iniciais de
Perséfone foram uma forma de iniciação e as iniciações pressupõem mudanças
sobre a vida levada antes para fazer parte da nova realidade que se apresenta.
Para Carvalho (2019), Apesar de não haver muitas informações sobre o
trabalho exercido pela deusa quando se torna rainha do submundo, é possível
encontrar, em poemas arcaicos, Perséfone, como possuidora de grande influência
sobre os mortos, tendo o poder de mantê-los sãos, ou de fazê-los confusos e
esquecidos. Por esse motivo, os que morrem depois de passar pela iniciação nos
mistérios de elêusis e prestar honras à Perséfone, poderão ter uma boa morte.

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Reforçando este tema, de acordo com LaPrade (2023), todos aqueles que
desejam ter uma boa passagem para o mundo dos mortos, precisam pedir o auxílio
e permissão da deusa Perséfone, sendo ela a rainha do além-túmulo. Além disso,
muitos lhe ofereciam oferendas para obter este favor.
LaPrade (2023), ainda evidencia o poder de Perséfone que, ao passar por
uma situação de medo, solidão e desamparo, terminou por encontrar êxito e triunfo
ao se tornar governante do Hades, deixando reflexões sobre as escolhas que podem
ser feitas quando somos raptados pela depressão e pela dor. Coré certamente
passou por grandes transformações depois de seu sequestro e luto e, não obstante,
tornou-se senhora de suas escolhas. (LAPRADE, 2023).
Ainda de acordo com LaPrade (2023), Perséfone passou a simbolizar a terra
fecunda, uma vez que os deuses ctônicos, alguns adorados por muitos pagãos,
eram associados à fertilidade e a profundidade que torna a terra apta para fazer
brotar as sementes, como um útero que gera a vida, a protege e nutre. Perséfone
pode vir então a representar aquela semente que caiu em solo frio e sem luz, mas
que apesar disso, terminou por florescer, mostrando que há possibilidades diversas
de futuro, mesmo em histórias de angústia e sofrimento.
Quando vivenciamos essas histórias, não voltamos a ser como éramos mas,
certamente passamos por transformações. Outrossim, podemos escolher, após
obtermos os cuidados necessários, gradativamente integrar as nossas partes novas
e ter uma vida digna, onde somos os regentes de nosso destino (LAPRADE, 2023).
Woolger e Woolger (2007), apontam para o fato de que Hécate, a deusa
conhecida por representar a fase mais escura da lua e também a bruxaria, esteve
presente no processo de catábase de Perséfone, corroborando, inclusive, com a sua
descida. Sendo associada à ela, deve ser também reverenciada pelas mulheres
influenciadas por sua energia arquetípica, já que Hécate tem suma importância na
construção da versão madura da deusa. É importante que a mulher-Perséfone viva
em harmonia com as partes sombrias de si que estão também associadas à Hécate,
que a auxilia nos métodos de iniciação.
A mulher Perséfone, quando já madura, é a mulher feiticeira, capaz de reunir
em si mesma os mistérios do início e do fim da vida, a filha, a mãe e a anciã, numa
espécie de integridade espiritual. Sendo portanto sábia e mantendo espaço para a
juventude dentro de si; sua forma de ver o mundo agora é mais leve e saudável e,

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mesmo que distante do mundo concreto, também é íntima com ele, o observa como
conhecedora de suas mazelas e insanidades (WOOLGER & WOOLGER).
Bolen (1990), vem corroborar com este tema quando fala da afinidade
existente entre Perséfone, Hécate e Dioniso, que acaba por revelar nessas mulheres
uma vocação para o numinoso e para as experiências espirituais e mediúnicas,
podendo fazê-las boas sacerdotisas. Uma vez que conseguem se desassociar da
menina Coré e unir-se à Hécate, podem encontrar sentido e vocação neste universo
místico e desenvolver seu potencial, não possuindo mais medo de estar e de viver
em meio à escuridão e ao desconhecido (BOLEN, 1990).
De acordo com Mclean (2020), a figura de Hécate e os mistérios eleusinos
estão presentes desde sempre na cultura pagã e, o paganismo, como representante
das pessoas que viviam nos campos, carregava naturalmente esse arquétipo, sendo
também Deméter a deusa da agricultura. As mulheres eram então associadas à
deusa da magia, Hécate, enquanto os homens eram relativos ao deus Pã. Essa
cultura foi sendo aos poucos massacrada pela era Cristã e havia a salvaguarda de
serem os seus líderes “guiados” pelo próprio deus, com a possibilidade de estarem
temerosos de que a figura da deusa tríplice, Perséfone-Deméter-Hécate, ferisse seu
ponto de vista acerca do mundo: um ponto de vista dualista.

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3. Considerações finais

Tendo em vista os aspectos observados, o presente trabalho teve como


motivação melhor compreender, através da perspectiva mítica da psicologia
junguiana, como uma deusa, tida como vulnerável, em sua vulnerabilidade traz na
personalidade aspectos poderosos e, apesar de sua doçura característica, também
apresenta atributos sombrios, uma vez que, uma luz tão acentuada, naturalmente
geraria uma sombra de similar intensidade.
Coré-Perséfone é a filha de sua mãe e depois, a esposa de seu marido. É
sempre em conjunto. A forma como costuma ser superficialmente retratada muitas
vezes, traz uma ideia de fragilidade. De fato, ela usa isso ao seu favor, se deixa ser
conduzida e colhe os louros desses "cuidados", o que ainda revela uma habilidade.
Todavia, quando se trata de Perséfone, não estamos falando de uma força física,
mas de uma grande potência psíquica. Sua força vem das profundezas da alma, de
sua intuição e amorosidade. Perséfone é aquela que, não sem medo ou sem dor, se
entrega ao seu processo e se transforma, completando sua descida aos ínferos. A
deusa mergulha profundamente na experiência de encontrar com seus aspectos de
sombra quando completa a sua descida ao mundo dos mortos, mas para isso, passa
por momentos de intenso sofrimento e, mesmo assim, decide ficar.
A sombra, como bem sabemos, costuma ser difícil de ser aceita, uma vez que
ameaça a consciência, mas, para Berry (2020), talvez sintamos um certo prazer
quando somos confrontados por ela, sendo levados a questionar a maneira como
sempre percebemos as coisas e assumindo um ponto de vista totalmente novo. A
tensão gerada a partir dessa experiência de tomada de consciência, a despeito do
sofrimento intrínseco a ela, pode ter influência positiva e trazer também
contentamento.
Jung (2013), postulou que a sombra é um problema de categoria moral e,
portanto, lidar com ela e integrá-la à consciência pode ser algo bastante desafiador
para o indivíduo que tem já estabelecida uma imagem de si e de sua personalidade,
sem a menor intenção de a isso acrescer aspectos com os quais não se sente
confortável do ponto de vista de sua moralidade. Ainda assim, é de suma
importância olhar para esses conteúdos de maneira compreensiva e com
benevolência, posto que, o autoconhecimento se dá também por meio deles que
acabam tendo, inclusive, certa autonomia na psique, na medida em que se
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expandem por meio das emoções, sendo de natureza emocional, e portanto,
sobrepujando as ações e a racionalidade.
A conexão que Perséfone possui com o inconsciente, com o dela mesma e
também com o coletivo, seu intenso sentir e empatia, permitem que suas
percepções alcancem além do óbvio. Perséfone não deixa de enxergar a realidade
tal qual é em função disso, mas percebe aquilo que está implícito, aquilo que ainda é
vir a ser, e, portanto, pode ser facilmente mal interpretada. A deusa traduz um
arquétipo idealista. Em seu universo as coisas são simbólicas, cheias de significado.
Vivendo inicialmente no limiar entre dois mundos e, como uma luz que guia os que
descem depois de aprender a completar a própria descida, retorna também para o
alto, para a outra parte de sua família, trazendo as flores da primavera. Representa
os processos de morte e renascimento, aponta para os aspectos que precisam
morrer para que o ego se fortaleça e o feminino nasça de uma forma mais poderosa.
Em suma, Perséfone é a deusa que, possuindo uma face meiga e enigmática,
conquistou autoridade de rainha, conferindo seu lugar em cima e embaixo. Para
Kast (2022), quando estamos diante de uma situação muito desafiadora e inusitada,
com potencial de grande transformação, isso pode ser tão assustador a ponto de
representar uma ameaça equivalente ao que seria a experiência da morte. Esse tipo
de medo está atrelado àquilo que é estranho, desconhecido, portanto,
"assombroso".
Perséfone encontrou a si mesma nesse desconhecido e estranho mundo,
bem onde moravam os seus medos; teve que morrer para alcançar a vida em sua
essência mais pura — algo que pode ser traduzido como sinônimo de poder.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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