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O método da criminologia: empirismo e interdisciplinaridade --


parte 1

Luiz Flávio Gomes *

Visando a divulgar a moderna Criminologia no Brasil, passamos a publicar nesta seção


alguns trechos do livro Criminologia, de autoria de Antonio García-Pablos de Molina e do
Dr. Luiz Flávio Gomes (5.ed.rev. e atual.- São Paulo: Revista dos Tribinais, 2007).

A Criminologia adquiriu autonomia e status de ciência quando o positivismo generalizou o


emprego do método empírico, isto é, quando a análise, a observação e a indução
substituíram a especulação e o silogismo, superando o método abstrato, formal e dedutivo
do mundo clássico. Submeter a imaginação à observação e os fenômenos sociais às leis
implacáveis da natureza foi uma das virtudes, segundo Comte, do método positivo, do
método empírico.[1]

De fato, como advertiu magistralmente Ferri, a luta de escolas (positivismo versus


classicismo) não foi senão um enfrentamento entre partidários do método abstrato, formal e
dedutivo (os clássicos) e os que propugnavam pelo método empírico e indutivo (os
positivistas).

"Falamos de duas linguagens diferentes - afirmou Ferri, referindo-se aos clássicos. Para
nós, o método experimental (indutivo) é a chave de todo conhecimento; para eles, tudo
deriva de deduções lógicas e da opinião tradicional. Para eles, os fatos devem ceder seu

lugar ao silogismo; para nós, os fatos mandam...; para eles, a ciência só necessita de papel,
caneta e lápis, e o resto sai de um cérebro cheio de leituras de livros, mais ou menos
abundantes e feitos da mesma matéria. Para nós, a ciência requer um gasto de muito tempo,
examinando os fatos um a um, avaliando-os, reduzindo-os a um denominador comum e
extraindo deles a idéia nuclear. Para eles, um silogismo ou uma anedota é suficiente para
demolir milhares de fatos conseguidos durante anos de observação e análise; para nós, o

contrário é a verdade".[2] E conclui Ferri: "A Escola Criminal Positiva não consiste
unicamente no estudo antropológico do criminoso, pois constitui uma renovação completa,
uma mudança radical de método científico no estudo da patologia social criminal e dos que
há de mais eficazes entre os remédios sociais e jurídicos que nos oferece. A ciência dos
delitos e das penas era uma exposição doutrinária de silogismos, dados à luz pela força
exclusiva da fantasia lógica; nossa escola fez disso uma ciência de observação positiva que,
fundando-se na Antropologia, na Psicologia e na Estatística criminal, assim como no
Direito Penal e nos estudos penitenciários, chega a ser a ciência sintética que eu mesmo
chamo Sociologia Criminal, e assim esta ciência, aplicando o método positivo no estudo do
delito, do delinqüente e do meio, não faz outra coisa que levar à Ciência Criminal clássica o
sopro vivificador das últimas e irrefutáveis conquistas feitas pela ciência do homem e da
sociedade, renovada pelas doutrinas evolucionistas".[3]

O método científico, isto é, o método empírico (baseado na observação e, no caso da


Criminologia, na experimentação), é considerado, na atualidade, extensível também ao
estudo do comportamento delitivo, sem descartar, em razão disso, o possível emprego de
outros métodos, é dizer, aplicação de forma não excludente[4] . O princípio da unidade do

método científico pôs fim, assim, à tradicional dicotomia metodológica defendida por
Dilthey, autor que sustentou a necessidade de que as ciências "naturais", de uma parte, e as
do "espírito", de outra, tivessem seus respectivos métodos.[5]

Em definitivo, o método empírico garante um conhecimento mais confiável e seguro do


problema criminal desde o momento em que o investigador pode verificar ou refutar suas
hipóteses e teorias sobre ele pelo procedimento mais objetivo: não a intuição, nem o mero
sentido comum ou a "communis opinio", mas sim a observação.[6]
A Criminologia é uma ciência do "ser", empírica; o Direito, uma ciência cultural, do "dever
ser", normativa. Em conseqüência, enquanto a primeira se serve de um método indutivo,
empírico, baseado na análise e na observação da realidade, as disciplinas jurídicas utilizam
um método lógico, abstrato e dedutivo.

Saber empírico e saber normativo são duas categorias antagônicas. Que a Criminologia
pertença ao âmbito das ciências empíricas significa, em primeiro lugar, que seu objeto
(delito, delinqüente, vítima e controle social) se insere no mundo do real, do verificável, do
mensurável, e não no dos valores. Que conta com um sólido substrato ontológico,
apresentando-se ao investigador como um fato a mais, como um fenômeno da realidade.
Estruturalmente isso descarta qualquer enfoque normativo. Porém, a natureza empírica da
Criminologia implica, antes de tudo, que esta se baseia mais em fatos que em opiniões,
mais na observação que nos discursos ou silogismos.[7] O proceder dos juristas e
criminólogos, assim, difere substancialmente. O jurista parte de umas premissas "corretas"
para "deduzir" delas as oportunas conseqüências. O criminólogo, pelo contrário, analisa
alguns dados e induz as correspondentes conclusões, porém, suas hipóteses se verificam - e
se reforçam - sempre por força dos fatos que prevalecem sobre os argumentos subjetivos de
autoridade.

A Criminologia pretende conhecer a realidade para explicá-la. O Direito valora, ordena e


orienta aquela com apoio em uma série de critérios axiológicos (valorativos). A
Criminologia se aproxima do fenômeno delitivo sem prejuízos, sem mediações, procurando

obter dele uma informação direta. O Direito limita interessadamente a realidade criminal
(da qual, por certo, só tem uma imagem fragmentada e seletiva), observando-a sempre sob
o prisma do modelo típico estabelecido na norma jurídica, isto é, de forma mediata. Se à
Criminologia interessa como é a realidade - a realidade em si mesma, tal e como se
apresenta -, para explicá-la cientificamente e compreender o problema do crime, ao Direito
só lhe preocupa o crime enquanto (hipotético) fato descrito na norma legal, para descobrir
sua adequação típica. A Ciência do Direito versa sobre normas que são interpretadas em
suas conexões internas, sistematicamente. Interpretar a norma, aplicá-la ao caso concreto e
elaborar um sistema são os três momentos fundamentais da tarefa jurídica nos modelos do
Direito codificado. Por isso, o método básico das ciências jurídicas (normativas) é o
dogmático e seu proceder o dedutivo sistemático.

A Criminologia é uma ciência empírica, mas não necessariamente experimental: o método


"experimental" é um método empírico, porém, não o único; de outro lado, nem todo

método empírico tem obrigatoriamente natureza experimental. A observação parece


necessária, pois o objeto da investigação - ou os fins desta - pode tornar inviável ou ilícita a
experimentação e, não obstante, o criminólogo seguirá em condições de constatar
empiricamente a hipótese de trabalho com as garantias que exige o conhecimento científico
mediante outras técnicas não experimentais, assegurando também, assim, a confiabilidade
do resultado.

Sustentar, pois, que só é científico o demonstrável de forma experimental dentro de um


laboratório carece de fundamento. Trata-se de um pressuposto simplificador no qual
incorrem, por exemplo, determinados setores criminológicos de natureza "biologicista"
(v.g., psicologia radical da conduta), que terminam por negar todo cientificismo à
psicoanálise, apesar de sua tradição empírica.

Mas, o método empírico não é o único método criminológico. Sendo o crime, em última
análise, um fenômeno humano e cultural, compreendê-lo exigirá do investigador uma
atitude aberta e flexível, intuitiva - empática -, capaz de captar as sutis arestas e as múltiplas
dimensões de um profundo problema humano e comunitário.

Uma análise puramente empírica do crime desconheceria que seu protagonista principal é o
homem. Que o homem não é objeto, senão sujeito da história. E que as razões e
significados de sua conduta transcendem a idéia de causalidade. Em conseqüência, como
adverte D. Matza, o subjetivismo, a empatia e a intuição não são incompatíveis com o
naturalismo corretamente entendido e têm perfeito cabimento no método crimi¬nológico, já
que permitem ao investigador captar e compreender os significados do mundo criminal.[8]
O método empírico contribuiu, sem dúvida, para a consolidação da Criminologia como
ciência e ao progresso da mesma. Sem embargo, foi objeto de numerosas críticas, tanto do
ponto de vista epistemológico como ideológico,[9] e não foram poucos os autores a
questionar sua possível aplicação ao âmbito das ciências humanas e sociais, argumentando
que não lhes caberia estabelecer generalizações, uma vez que o comportamento humano é

imprevisível ou de tal complexidade e riqueza de matizes que o método empírico não pode
captar sua essência e seu significado.[10]

Todavia, não parece existir uma alternativa ao método empírico, exceto que se dilua a
atividade científica e se converta em mera ideologia ou em um conjunto de slogans,[11]
Dada a complexidade do comportamento humano e dos fenômenos sociais, cabe sim
completar o método empírico com outros de natureza qualitativa, não incompatíveis com
aquele, capazes de captar e interpretar o significado profundo do drama criminal para além
do frio valor objetivo dos meros dados e análises estatísticas.[12]

O princípio interdisciplinar acha-se significativamente associado ao processo histórico de


consolidação da Criminologia como ciência autônoma.

São muitas as disciplinas científicas que se ocupam do crime como fenômeno individual e
social. A Biologia (criminal), a Psicologia (criminal) e a Sociologia (criminal), com seus
respectivos métodos, enfoques e pretensões foram acumulando valiosos saberes
especializados sobre o delito. Mas, a análise científica reclama uma instância superior que

integre e coordene as informações setoriais procedentes das diversas disciplinas


interessadas no fenômeno delitivo; que elimine possíveis contradições internas e
instrumentalize um genuíno sistema de "retroalimentação",[13] conforme o qual cada
conclusão particular é corrigida e enriquecida ao ser contrastada com as obtidas em outros
âmbitos e disciplinas. Somente por meio de um esforço de síntese e integração das
experiências setoriais e especializadas é que cabe formular um diagnóstico científico,
totalizador, do crime, mais além dos conhecimentos fragmentados, parciais e incompletos
que possam oferecer aquelas, e da perigosa "barbárie dos especialistas", tão acertadamente
denunciada por Ortega e Gasset.
Logicamente, esta é a função que corresponde à Criminologia, embora o princípio
interdisciplinar implique espinhosas dificuldades, tanto do ponto de vista conceitual como
operativo.

Como instância superior, não cabe identificar a Criminologia, desde logo, com nenhuma
das numerosas disciplinas que integram a enciclopédia do saber empírico sobre o crime,
disciplinas, por certo, todas elas, de igual categoria e importância em um modelo não
piramidal de ciência.[14]

Hoje, já não têm sentido velhas disputas de escola e ultrapassadas rivalidades


pseudocientíficas que polemizavam sobre as cotas de participação e lugar hierárquico das
respectivas disciplinas (Biologia, Psicologia, Sociologia etc.) no tronco comum da
Criminologia.[15]

O princípio interdisciplinar, portanto, é uma exigência estrutural do saber científico


imposto pela natureza totalizadora deste e não admite monopólios, prioridades, nem
exclusões entre as partes ou setores de seu tronco comum. De fato, parece, ademais, óbvio
que a Criminologia só pôde se consolidar como ciência, como ciência autônoma, quando
conseguiu se emancipar daquelas disciplinas setoriais em torno das quais nasceu e com as
quais, com freqüência, se identificou indevidamente. Isto é, quando ganhou consciência de
"instância superior", de sua estrutura interdisciplinar.[16]

Paradoxalmente, sem embargo, referido sistema complexo, plural e heterogêneo, que serve
de substrato à Criminologia, é invocado por um setor da doutrina para negar sua autonomia
científica.[17] E, por outro lado, para configurá-la como autêntica metadisciplina ou
superestrutura fictícia sem objeto próprio distinto do de cada uma das subdisciplinas que a
integram.[18] Tudo isso demonstra que a noção de "interdisciplinaridade" dista muito de
ser pacífica. Que subsiste a polêmica sobre sua delimitação em relação a outros conceitos
aparentemente afins (v.g., multidisciplinaridade) e suas implicações. Lembrar as
dificuldades práticas, operativas, de uma Criminologia efetivamente interdisciplinar não
parece necessário.

1.Comte, A. Discurso sobre el espiritu positivo, p. 54 e ss.

2.Ferri, E. Polemica in difesa della Scuola Criminale Positiva, 1886. Reimpresso como
Studi sulla criminalità ed altri saggi, p. 244.

3.Ferri, E. Polemica in difesa della Scuola Criminale Positiva. Cf. García-Pablos de


Molina, A. Tratado de criminología, 1999, p. 402 e ss.

4.Assim, Popper, K. R. La miseria del historicismo, p. 145 e ss., apud Serrano Maillo, A.
Introducción a la criminología, p. 27 e ss.

5.Idem, p. 28. Como observa o autor, a aplicação do método empírico ao estudo do


comportamento humano e social tem uma tradição antiquada que data de Guilherme de
Ockham (século XIV) e experimenta um forte impulso graças aos empiristas ingleses
(Locke, Hume etc.) dos séculos XVII e XVIII. O positivismo naturalista do século XIX
generalizou o emprego desse método como paradigma do cientificismo, sendo os êxitos e
progressos das ciências naturais os que consolidaram-no definitivamente (Introducción a la

criminología cit., p. 27-28).

6.Uma das aspirações do conhecimento científico é superar a barreira do mero sentido


comum, da intuição, da reflexão lógica (método lógico-dedutivo), do consenso
intersubjetivo. Cf. Serrano Maillo, A. op. cit., p. 29.

7.Kaiser, G. Kriminologie cit., p. 6-7.

8.Matza, D. El proceso de desviación, p. 36 e ss.


9.Cf. Serrano Maillo, A. op. cit., p. 36 e ss.

10.Idem, p. 37 e ss.

11.Vide Wilson, J. Q. Thinking about crime, p. 9.

12.Serrano Maillo, A. op. cit., p. 40. O autor propõe uma Criminologia "compreensiva",
que se inscreveria, também, em uma ciência empírica e positiva, integrando a metodologia
empírica e outros métodos qualitativos (idem, p. 43).

13.Vide Rodríguez Manzanera, L. Criminología, p. 42. Qualificando, não obstante, de


"obviedade" o debate sobre a "interdisciplinaridade" do método criminológico (e da própria
Criminologia como "ciência"); e de "instrumento de ciências" a compreensão desta
disciplina como instância superior que coordena e integra as informações setoriais sobre o
problema criminal procedentes das diversas ciências, temos Garrido Ge¬novés, V.;
Stangeland, P.; Redondo, S. Principios de criminología, p. 53-59.

14.Idem, p. 40 e ss., no sentido do texto.

15.Criticando o "imperialismo disciplinar", isto é, o intento de impor ao estudo do delito


perspecti¬vas próprias de disciplinas concretas: Zafirovski, M. The rational choice

generalization of neo¬classical economics reconsidered: any theoretical legitimation for


economic imperialism. Sociological Theory, n. 18, p. 467-468.

16.Sobre o princípio interdisciplinar, vide Göppinger, H. Criminologia, p. 136 e ss.;


Eisen¬berg, U. Kriminologie, p. 8 e ss.; García-Pablos de Molina, A. Tratado de
criminología cit., 1999, p. 51 e ss.

17.No sentido criticado, Taft, D. R.; England, R. W. op. cit., p. 12. Aceitando a
pluridimensiona¬lidade do substrato real do objeto da Criminologia sem que tal exigência
interdisciplinar questione sua unidade como disciplina científica: Siegel, L. J. Criminology,
p. 5.

18.Contemplando a Criminologia como uma mera superestrutura ou metadisciplina: Frey,


E. Krimi¬nologie: Programm und Wirklichkeit. Zweizerische Zeitschrift für Strafrecht, n.

66, p. 67. No sentido do texto: Eisenberg, U. op cit., p. 9. Em geral, sobre o problema:


Mannheim, H. Vergleichende Kriminologie: ein Lehrbuch in Zwei Bänden, p. 18 e ss.

* Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de


Madri, Mestre em Direito penal pela USP, Secretário-Geral do IPAN (Instituto
Panamericano de Política Criminal), Consultor e Parecerista, Fundador e Presidente da
Rede LFG – Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1ª Rede de Ensino Telepresencial do
Brasil e da América Latina - Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais –

Disponível em:
< http://www.wiki-iuspedia.com.br/article.php?story=20070326092114535
>.
Acesso em: 18 mar. 2008.

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