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17/08/2016 Deus acredita em você?

Deus acredita em você?
Entrevista à Rádio Europa Livre (repórter Cristina Poienaru)
Bucareste, 21 de outubro de 1998

        — Você acredita em Deus?

        — Respondo como Henry Miller: o problema não é se eu acredito em Deus, mas se Deus
acredita em mim.
        A realidade de Deus é para mim uma evidência invencível, na medida em que Deus se
identifica com a infinitude metafísica que é o fundamento de toda realidade possível. As
pessoas hoje em dia têm alguma dificuldade de compreender isso porque se deixaram
enganar por falsas lógicas (como a de Georg Cantor, por exemplo) e acabaram por perder
todo sentido da infinitude metafísica.
        A resposta de Miller significa que nossa vida é uma história escrita tanto por Deus
quanto por nós mesmos, e que no enredo você corre o risco de escolher o papel de farsante,
de mentiroso, de vigarista. É importante ter idéias verdadeiras, mas isso não é tudo. É
preciso também viver no verdadeiro, isto é, não fingir que você sabe o que não sabe, nem que
não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. Se você não é fiel a essas duas exigências, sua
vida é uma mentira e o conteúdo pretensamente verdadeiro de seus pensamentos não é
senão uma parte da farsa total ­ aquela parcela de verdade de que a mentira precisa para se
tornar mais verossímil. Aí Deus não pode acreditar em você, porque, no fundo, você não
existe.

       — Você acha que é bom existir uma crença religiosa sem igreja?

       — Certamente. O alto clero mentiu muito para os fiéis no século XX e eles têm o direito
de guardar uma certa distância da Igreja, certamente sem renegá­la, mas num espírito de
espera prudente até que Deus se digne de lhes dar novas luzes. Para não dar senão um
exemplo, um pouco antes do Concílio a Igreja de Roma assinou com as autoridades
soviéticas o tristemente célebre Pacto de Metz, que a obrigava a abster­se de toda denúncia
contra os regimes comunistas durante as sessões do Concílio. O pacto, que era secreto, foi
ocultado da imprensa ocidental e não foi divulgado senão algum tempo depois, pelos jornais
soviéticos. Se você leva em conta que até essa época os regimes comunistas já tinham matado
quase uma centena de milhões de pessoas, das quais pelo menos uns trinta milhões de
cristãos que não tinham cometido outro crime senão o de ser cristãos, você compreende a
gravidade quase infinita desse acordo. Hoje em dia condena­se o Papa Pio XII por ter feito
certo silêncio em torno da perseguição aos judeus na Alemanha, mas quem queira desculpá­
lo pode ao menos alegar, para raciocinar por absurdo, que não eram ovelhas do seu rebanho,
que ele não tinha a obrigação de dar o alarme se o lobo atacava apenas as ovelhas do seu
vizinho. Mas o que se pode pensar do pastor que entrega ao lobo as ovelhas do seu próprio

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rebanho? Ante essa cumplicidade abominável, as críticas bem polidas e de ordem puramente
teórica que a Igreja continuou a fazer ao marxismo não passam de hipocrisia. E como você
haveria de querer que, depois de coisas desse gênero, milhões de fiéis não perdessem a
confiança na Igreja e não escolhessem ser, ao menos a título provisório, cristãos sem Igreja?
Foi o Vaticano que traiu a confiança deles, é a ele que cabe arrepender­se e lhes pedir perdão,
em vez de fazer essas ridículas genuflexões rituais ante o mundo ateu, que se tornaram a
moda oficial do dia.

        — O ecumenismo é possível?

        — No tempo em que os pensadores cristãos, muçulmanos e judeus se compreendiam uns
aos outros, não se falava de ecumenismo porque ele era uma realidade vivente que não
precisava de nome. Sto. Tomás e Sto. Alberto disputavam, decerto, com os judeus e
muçulmanos, mas eles os compreendiam e respeitavam. Após o século XIV todos os laços
espirituais e intelectuais com o Islam e o judaísmo se romperam e hoje em dia você não
encontra senão raros especialistas que sejam capazes, por exemplo, de lhe dizer os nomes de
três ou quatro pensadores muçulmanos modernos. O diálogo dos espíritos foi substituído
pelos acordos de chancelarias, e hoje em dia o ecumenismo não é senão o disfarce de uma
política globalizante que não tem nada de espiritual. No entanto o verdadeiro ecumenismo,
que é dos espíritos, permanece sempre possível, e basta recordar o diálogo de Franz
Rosenzweig e Eugen Rosenstock, ou as obras de Louis Massignon, para ter exemplos
concretos dessa possibilidade. Numa escala bem menor, fiz de minha própria vida um
exemplo desse gênero de ecumenismo, escrevendo por exemplo meu ensaio O Profeta da
Paz, que é uma exegese simbólica da vida do Profeta Maomé à luz das tradições católica e
judia. Creio que do ponto de vista da pura interioridade há sempre aproximações
surpreendentes entre as diversas religiões, mas que isso não tem nada a ver com os
espetáculos rituais ecumênicos transmitidos pela mídia. Falou­se muito do "Estado
espetáculo", mas há também uma "religião espetáculo" que arrisca submergir toda
espiritualidade sob uma chuva de falsas luzes.

       — Como você situa o conhecimento na Nova Ordem Mundial?

       — O conhecimento aí arrisca tornar­se uma coisa puramente material, como um arquivo
de dados registrados por meios eletrônicos e transmitidos de computador a computador sem
passar por uma consciência humana. Hoje em dia pode­se produzir teses acadêmicas apenas
sintetizando dados previamente hierarquizados por computadores, sem que haja
necessidade do menor esforço pessoal de intelecção. É a perfeição da "consciência coletiva"
formada de uma multidão de cientistas sonâmbulos. A doutrina de Wittgenstein sobre um
pensamento que se pensa a si mesmo sem necessidade de um sujeito humano torna­se assim
uma profecia auto­realizável. Creio que Wittgenstein foi um gênio da inconsciência, um herói
da covardia intelectual, o criador de uma doutrina que atinge os cumes de uma estupidez
quase inimaginável. No mundo wittgensteiniano que nos aguarda, os livros não serão lidos
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senão por eles mesmos, demitindo os leitores humanos. O conhecimento se tornará uma
figura de linguagem para designar os depósitos de dados que não serão conhecidos por
ninguém, e a cultura se tornará um museu eletrônico jamais visitado. Certamente, haverá
sempre alguns indivíduos que farão esforços para permanecer conscientes, e mesmo a elite
dominante terá certa necessidade dos serviços deles. Mas não consigo nem imaginar os
abismos de sofrimento que eles terão de suportar.

       — Você acredita que o século XXI será cristão?

       — Não. Bem ao contrário, ele é já em suas raízes o século do Anticristo, o século da
opressão travestida em liberdade, o século em que as pessoas que matarem os santos
acreditarão estar servindo a Deus. Já vemos formar­se uma espécie de religião administrada,
um falso ecumenismo que une os senhores do dia em torno de um credo todo feito de
lugares­comuns, uma mistura de banalidades moralistas, de oportunismo político e de um
desejo infinito de agradar a mídia. É certo que Deus pode dispor de outro modo, mas tudo
indica que estamos entrando numa era em que a impostura será a única forma de religião
admitida, e na qual o homem que queira permanecer fiel ao Espírito não poderá buscá­lo
senão no interior de sua alma solitária.

       — Qual é sua definição de cultura?

       — A cultura antigamente era a busca de objetivos superiores à simples sobrevivência
material. Esta definição aplicava­se igualmente bem à Grécia e às pequenas culturas
indígenas do Brasil. Mas hoje em dia o que se chama cultura se torna a criação ilimitada de
novos apetites materiais que se multiplicam sem fim e que impedem as pessoas de ter outras
ambições. Você vê, todos os debates ditos culturais da atualidade se desenvolvem em torno
de assuntos ligados à vida corporal e à busca de bens de ordem material. De um lado, são
desejos econômicos: os capitalistas proclamam que o único bem é a riqueza e os socialistas
respondem que o único mal é a pobreza. De outro lado, são ambições de ordem sexual
exaltadas até ao delírio: após os direitos dos homossexuais, proclama­se o direito à pedofilia,
e assim por diante. A multiplicação das necessidades e das insatisfações materiais (até
mesmo causadas pela própria abundância) não tem limite, uma vez que se tenha tomado
essa direção.
        O mais irônico de tudo é que a tradição da cultura "politicamente engajada", que foi
outrora um instrumento de libertação, se tornou um meio de escravização: ela tem por
missão tornar os homens escravos de suas insatisfações menores, de modo a jamais permitir
que olhem para o céu e aspirem a uma vida mais elevada. É preciso que cada um só pense
naquilo que o incomoda no meio imediato, seja o desejo sexual insatisfeito, seja a fumaça dos
cigarros que o perturba, seja a falta de dinheiro ou o ódio invejoso que ele volta contra
pessoas que ele imagina mais felizes. As pessoas que se ocupam desse gênero de coisas
permanecem para sempre crianças doentes, não chegam jamais à idade madura que é
renúncia, perdão, tolerância, generosidade. A cultura tornou­se instrumento da puerilização
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universal. Não vejo meio de encontrar uma definição de cultura que se aplique por igual a
isso e àquilo que outrora se chamava por esse nome. Não se trata de espécies do mesmo
gênero, e portanto toda filosofia da cultura está hoje condenada a não ser senão história das
culturas antigas ou legitimação ideológica desse novo fenômeno que não tem em comum
com elas senão o nome.

       — A literatura sul­americana está em vias de se tornar a mais importante
do mundo?

       — Talvez, mas isso é pouca coisa, numa época em que toda literatura se reduz a um
ludismo imaginativo feito para o consumo ou à manipulação das massas pela nova
administração da alma do mundo. O sucesso de Paulo Coelho e o Prêmio Nobel dado a esse
ridículo Saramago ilustram com perfeição essas duas funções da literatura. Meus interesses
passam a léguas de distância dessas futilidades, e estou pouco me lixando para a literatura,
seja sul­americana, européia ou marciana.

       — Quais são as fraquezas da democracia?

       — Georges Bernanos já tinha dito: a democracia não é o contrário da ditadura; ela é a
causa da ditadura. Basta ver como a noção de direitos humanos é hoje utilizada para impor
às pessoas novas formas tirânicas de controle do comportamento, para perceber que
Bernanos tinha razão. A democracia, para subsistir, tem de se apoiar sempre em alguma
coisa totalmente diversa, num sistema de valores extrapolíticos ou suprapolíticos, como por
exemplo o cristianismo. Mas a própria democracia tende a destruir esses valores e em
seguida é deixada a si mesma e se transforma em tirania: tudo democratizar é tudo politizar,
e quando não restam outros valores senão políticos, então é a ditadura, como a definia Carl
Schmitt, a pura luta pelo poder, que não pode levar senão à vitória dos mais fortes. Hoje em
dia, mesmo os debates ditos intelectuais se tornaram pura luta política, isto é, lobby, grupos
de pressão, manipulação de verbas, intimidação dos inimigos, e assim por diante. É o
resultado da democratização, e é indiscutivelmente ditadura. Para salvar a democracia seria
preciso saber limitá­la, isto é, restringir os critérios democráticos ao território estritamente
político e limitar o território da política, instituindo para além da política uma zona onde os
debates não sejam decididos por meios políticos mas pela razão, pela sabedoria e pelo amor.
Isto seria precisamente a função da cultura, mas a cultura já está quase completamente
politizada e vamos a largos passos para a ditadura universal, sob o aplauso geral das massas.
Como dizia uma velha canção americana, O when will they ever learn?

       — Qual a relação entre a literatura e o totalitarismo (dizem que o
totalitarismo produz boa literatura)?

       — Não creio que o verdadeiro artista, para criar belas obras, necessite nem da liberdade
política nem da opressão, nem de riqueza, nem de miséria. São estimulantes artificiais,

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exatamente como a cocaína. Tudo depende da livre vontade, a qual é ela mesma um tipo de
criação artística preliminar à materialização das obras. As condições exteriores não têm um
papel fixo e constante e o artista pode se adaptar às condições mais diversas. Veja: Thomas
Mann e Jacob Wassermann não esperaram o nazismo para escrever seus mais belos
romances, mas os produziram em plena democracia, ao passo que Dostoiévski criou toda a
sua obra sob a opressão tzarista e Soljenitsin sob a ditadura comunista. As teorias que fazem
a criação literária depender como um efeito mais ou menos passivo das condições exteriores
são obra de gente incapaz, de professores medíocres que, por si mesmos, não criam nada e
não compreendem a criação do que quer que seja. Infelizmente são essas pessoas que hoje
em dia dão o tom dos estudos literários.

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