Você está na página 1de 57

1

Ruy Mauro Marini (1932-1997)


"Desenvolvendo sua economia mercantil, em função do
mercado mundial, a América Latina é levada a reproduzir
em seu seio as relações de produção que se
encontravam na origem da formação desse mercado e
determinavam seu caráter e sua expansão.
Mas esse processo estava marcado por uma profunda
contradição: chamada para contribuir com a acumulação
baseada na superexploração do trabalhador.
É nessa contradição que se radica a essência da
dependência latino-americana."

I- VIDA E OBRA

1- Nós, os filhos do subdesenvolvimento (1932 – 1957)


“Por minha origem, sou bem um produto das tendências profundas que determinaram o
surgimento do Brasil moderno, que emergiu naquela década.” (Memória acadêmica)

Ruy Mauro Marini faz parte da geração de trabalhadores brasileiros que


viveu a transição do arcaico para moderno, como Lima Barreto nos mostra no
livro Os Bruzundangas (1923), alegoria do Brasil: "A Bruzundanga tem carvão, mas
não queima o seu nas fornalhas de suas locomotivas. Compra-o à Inglaterra, que o vende por
bom preço. Quando se pergunta aos sábios do país porque isto se dá, eles fazem um relatório
deste tamanho e nada dizem." A independência de Portugal e a constituição da
República, não alteraram a realidade da dependência do Brasil aos países de
capitalismo desenvolvido, como a Inglaterra, e, depois os países imperialistas,
como os Estados Unidos.
Representante da sociologia crítica, marxista, Ruy Mauro Marini, dedicou
a sua vida à tarefa de explicar a causa da dependência e a desigualdade social
no Brasil e na América Latina e da criação dos meios para a sua superação:
"Forjada no calor da expansão comercial promovida no século 16 pelo capitalismo nascente, a
América Latina se desenvolve em estreita consonância com a dinâmica do capitalismo
internacional. Colônia produtora de metais preciosos e gêneros exóticos, a América Latina
contribui em um primeiro momento com o aumento do fluxo de mercadorias e a expansão dos
meios de pagamento, que, ao mesmo tempo em que permitiam o desenvolvimento do capital
comercial e bancário na Europa , sustentaram o sistema manufatureiro europeu e propiciaram
o caminho para a criação da grande indústria. A revolução industrial, que dará início a ela,
corresponde na América Latina à independência política que, conquistada nas primeiras
décadas do século 19, fará surgir , com base na estrutura demográfica e administrativa
construída durante a colônia, um conjunto de países que passam a girar em torno da Inglaterra.
Os fluxos de mercadorias e, posteriormente, de capitais têm nesta seu ponto de
entroncamento: ignorando uns aos outros, os novos países se articularão diretamente com a
metrópole inglesa e, em função dos requerimentos desta, começarão a produzir e a exportar
bens primários, em troca de manufaturas de consumo e - quando a exportação supera as
importações - de dívidas." (Dialética da Dependência)
A vida e a obra de Ruy Mauro Marini só pode ser compreendida na
constituição de uma geração de militantes que se dedicaram a compreender e
a lutar pela superação da dependência. Essa geração de intelectuais
brasileiros é forjada com o desenvolvimento do capitalismo, com a crise da
economia tradicional agrária, a expulsão dos camponeses de suas terras, o
incentivo à industrialização e crescimento dos grandes centros, como a
geração dos escritores do romance social, descrita por Graciliano Ramos, em
2

Linhas Tortas (1935): "Os escritores atuais foram estudar o subúrbio, a fábrica, o engenho,
a prisão da roça, o colégio do professor cambembe. Para isso resignaram-se a abandonar o
asfalto e o café, viram de perto muita porcaria, tiveram a coragem de falar errado, como toda
gente, sem dicionário, sem gramática, sem manual de retórica. Ouviram gritos, pragas,
palavrões e meteram tudo nos livros que escreveram. Podiam ter mudado os gritos em
suspiros, as pragas em orações. Podiam, mas acharam melhor pôr os pontos nos ii."
Ruy Mauro pertence a geração seguinte, de militantes da chamada
"nova esquerda" que nasce com os movimentos nacionais de libertação, o
rompimento da política reformista, dos Partidos Comunistas, de aliança de
classes no contexto da Guerra Fria, e pela retomada dos processos
revolucionários na América Latina dos anos 1950 a 1970. A vitória da revolução
cubana que depôs a ditadura de Batista, em 1959, e se tornou socialista, em
1961, foi uma das expressões luta revolucionária dessa nova geração de
revolucionários da nova esquerda.

Infância e Adolescência em Barbacena (1932- 1949)


Ruy Mauro Marini nasceu em 1932, em Barbacena, Minas Gerais, entre
as serras da Mantiqueira, Conceição, Ibitipoca e Sapateiro, na cabeceira do Rio
das Mortes. Ruy era o sétimo na família de dez filhos. O pai, Humberto,
imigrante italiano, e a mãe, Conceição, era filha de latifundiário mineiro
arruinado. Em sua memória acadêmica, Ruy mostra que o pai, professor de
matemática da Escola Agrícola, tornou-se fiscal de renda, por concurso, depois
de cursar Direito. Em sua memória acadêmica, Ruy explica a sua origem
social: "Meu pai era o primeiro filho de um alfaiate artesão de Gênova e de uma camponesa
da Calábria (Itália), que já o trouxeram concebido, ao emigrar para o Brasil, em 1888; minha
mãe, filha caçula de uma tradicional família de latifundiários mineiros, acompanhou, menina a
mudança de meu avô de sua fazenda, perto de Livramento, para Barbacena (Minas Gerais),
após a quebra que sofreu com a abolição da escravatura, e ali assistiu à dilapidação dos restos
da sua fortuna em almoços e jantares que reuniam habitualmente não menos de vinte pessoas.
Professor de matemática na Escola Agrícola local, meu pai, depois do casamento e estimulado
pela energia de minha mãe, ascendeu socialmente, formando-se em Direito e ingressando, por
concurso público, à casta dos então chamados “príncipes da República” – os fiscais de imposto
de consumo. Liberal na juventude, ele adaptou-se bem – embora mais por laços pessoais e
familiares – ao clã local vinculado ao Estado Novo e, mais tarde, ao PSD. A imagem que
deixou foi a de um homem simples, severo e surpreendentemente – se se têm em conta as
tentações a que seu cargo o expunha – honesto.” (Memória acadêmica)
Conceição além dos dez filhos, teve mais dois que viriam a morrer. Na
última gestação, teve uma complicação conhecida como "febre de parto",
resultado de infecção, e morreu com apenas 40 anos. Humberto educou os dez
filhos com auxílio da filha mais velha, Ophélia, para cuidar dos mais novos. Ruy
tinha, então, apenas 3 anos de idade. "Era um menino pequeno, fraquinho,
mas muito valente, cheio de força interior, muito falador e brincalhão", como
lembra sua irmã Beatriz, dois anos mais velha que ele.
No Colégio Estadual de Barbacena, Ruy e seus irmãos teriam, além da
formação humanística, o sentido do patriotismo, com as marchas de 7 de
setembro, a presença dos hinos nacionais todos os dias, a memória dos
Inconfidentes, e o contato com a alta literatura, estimulado pelo professor de
Português, Honório Armand, conhecido como "Príncipe dos Poetas Mineiros":
"Após receber a boa formação que o ensino público proporcionava , principalmente no terreno
humanístico – em sete anos do curso ginasial e científico no Colégio Estadual de Barbacena,fiz
quatro de latim e sete de português, inclusive dois anos dedicados à literatura brasileira e
portuguesa, e aprendi a ler inglês, francês e espanhol, além de obter uma boa base de
matemática,história e geografia, e conhecimentos um tanto antiquados (como eu descobriria
3

logo) em física, química e biologia – transferi-me para o Rio de Janeiro, em 1950,para me


preparar para o vestibular de Medicina." (Memória acadêmica)
Como nos versos de Armand, em Insônia, Ruy está vigilante, noite
adentro, acompanhado pelos ventos gelados de Barbacena: "Lá fora a noite é
enluarada e fria,/uivam molossos longamente à lua/ e a tristeza glacial dessa envernia/nos
meus nervos de triste se insinua./ E eu me ponho a pensar... Que nostalgia!/ Que falta o sol me
faz... que falta a sua.../ E o vento zombador uiva e assobia/ nos fios telegráficos da rua..."
Durante a infância, Ruy e a irmã Beatriz se protegem do vento gelado e
se aquecem na literatura de Monteiro Lobato e Alexandre Dumas, e durante a
adolescência, em Proust, Tolstoi e Thomas Man. O poeta Raul de Leoni
também chama a atenção de Ruy pela beleza dos versos, mas muito mais pela
elegância e clareza das ideias, como no poema Sinceridade: "Homem que pensas/
e que dizes o que pensas:/Se queres que entre os homens e entre as cousas/Tuas ideias
vivam pelo mundo/ Crê bem nelas primeiro, sofre-as bem,/Faze com que elas vivam na tua
alma,/Na mais sincera intimidade do teu Ser!"
Segundo Theotônio dos Santos, Minas Gerais se transformou em um
centro de formação intelectual nos anos 1955 a 1960, porque o governo da
presidência de Juscelino Kubitscheck trouxe a região para o centro político do
país, com um movimento cultural muito importante nesse período. Nesse
contexto, forma-se um grupo de estudantes bolsistas na Faculdade de Ciências
Econômicas de Minas Gerais para Sociologia e Política e para Economia, além
de Administração Pública, que em sistema integral e com espaço e materiais
adequados realizavam pesquisa. Tanto Theotônio quanto Vânia fizeram parte
dessa geração de sociólogos formados para a pesquisa e para a participação
política, num contexto mundial de líderes jovens, como é o caso de Che
Guevara e de Fidel Castro: "Era uma geração muito autoafirmativa, que não
aceitava lideranças externas, comandos de fora e tivemos essa ousadia fazer a
crítica ao reformismo do PCB, de aliança com a burguesia nacional para o
desenvolvimento capitalista, com reformas, como a agrária ", explica Theotonio.
Essa geração tinha sido formada na Juventude do Partido Trabalhista, que
cresceu com o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, num forte clima nacional-
democrático. E Juscelino aproveita-se do nacionalismo de Vargas para criar o
seu projeto político, e o Jango, como vice, mantém o governo para responder
às várias demandas populares.
Muitos intelectuais se aproximaram do PTB nessa perspectiva nacional-
democrático, anti-imperialista, pois a década de 1950 é marcada pelas lutas
anticoloniais, já desde 1949 na China, depois Coreia, depois na Indochina, com
a guerra do Vietnã durante toda a década de 1960 e a derrota dos Estados
Unidos em 1973. Além da Ásia, a luta anticolonial na Índia, no Egito, com o
chamado socialismo árabe, além dos movimentos rebeldes na América Latina,
como em 1952 na Bolívia, com o governo progressista invadido pela CIA na
Guatemala, em 1954, a revolução Venezuelana, em 1958, que derruba a
ditadura, e a revolução cubana, em 1959, que também derruba a ditadura e
inicia um processo de transformação mais radical, refletindo em movimentos de
apoio no Brasil e na América Latina. Portanto, o campo burguês democrático
não era cativante para essa juventude ousada e decidida.
Essa nova geração de militantes era um encontro de ex-militantes da
juventude comunista, da juventude trabalhista, da qual faria parte Vânia
Bambirra e Theotônio dos Santos, futuros companheiros de luta e de teoria de
Ruy, e da Juventude Estudantil Católica (JEC) e a Juventude Universitária
Católica (JUC) que formaria a Ação Popular, além do Partido Socialista (RJ),
do qual participava o Erich Sachs.
4

Mas, Ruy Mauro não se encontraria com essa juventude em Minas


Gerais, mas anos depois no Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro: a formação cultural, o encontro com movimento estudantil


e com as ciências sociais (1950- 1958)
Como no poema Sinceridade, Ruy toma como referência os valores do
pai, sempre muito elegante e sério: o sentido da honra, do caráter e da ética,
contra todas as formas de falsidade e de hipocrisia. Depois de concluir o
colegial, Ruy segue a orientação que o pai dava para todos os filhos: fazer
concursos públicos, trabalhar e dar continuidade aos estudos. O Rio de Janeiro
se transformou na terra do Sol, refúgio dos irmãos de Ruy contra o frio de
Barbacena. Ao chegar ao Rio de Janeiro, em 1950, aos 18 anos de idade,
morou primeiro com Beatriz e depois com a irmã mais velha, Ophélia.
Com a intenção inicial de estudar Medicina, Ruy entra em contato com
uma nova realidade social e cultural que o encaminhará para as Ciências
Sociais: "A mudança alterou meus planos. Embora no cursinho eu fosse me atualizando em
ciências físicas e naturais,estas não eram o meu forte e perdiam de longe para as atrações que
a cidade me oferecia em matéria de cinema, teatro, praias e boemia.A experiência de um
emprego provisório – como recenseador no Censo Demográfico daquele ano – fez-me tomar
gosto pela independência e levou-me a, deixando os estudos, ocupar cargos menores,
sucessivamente, na Central do Brasil, no Ministério da Aeronáutica e no Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Industriários (Iapi), onde,havendo entrado também por concurso,
acabei por ficar. Traduções, em geral do inglês, de matérias para jornais e agências de notícias
ou de histórias em quadrinhos, revisão de textos para impressão etc., permitiam que, sem
grandes apertos, eu me entregasse à minha maior paixão – os livros. Junto à experiência de
vida que eu adquiri, longe da casa de meu pai e do círculo de amigos da infância, aqueles
foram anos que eu dediquei a completar minha formação, principalmente em literatura, poesia
e teatro, história e filosofia.” (Memória acadêmica)
Depois da sua "universidade livre", seguiu para o curso acadêmico, em
1953, como muitos jovens da classe média, mas no lugar de Medicina, escolhe
Direito, na Universidade do Brasil. Embora os professores fossem bons, viu
suas questões respondidas pelos colegas do Centro Acadêmico. Coração da
universidade. Quais as causas da desigualdade social, como superá-la?
Envolveu-se nas pelejas estudantis no mar revolto do movimento estudantil,
enfrentado por militantes experientes que lutaram contra a ditadura de Getúlio
Vargas e que apoiaram a resistência ao fascismo da Segunda Guerra Mundial
dos anos 1940.
Ruy recorda-se da fase de formação política junto aos militantes do
movimento estudantil, no curso noturno da Faculdade de Direito: “Só em 1953 eu
voltaria a me preocupar com a formação escolar. Mas as vocações para as ciências humanas
não tinham, então, curso fácil. O ensino de economia apenas se iniciava e se confundia muito –
tradição com a qual nunca chegamos a romper totalmente, no Brasil – com o de contabilidade.
A Faculdade de Filosofia não abria mais horizonte do que o de vir a ser professor do ensino
médio. O grande centro de formação humanística, no Rio daquela época, continuava sendo a
Faculdade de Direito da Universidade do Brasil. Foi para lá que eu me dirigi. (...) Mas, aluno do
curso noturno, o mais politizado e a que concorriam pessoas mais maduras, muitas já bem-
sucedidas em sua profissão, foi com meus colegas que aprendi mais. Particularmente no que
era o coração da faculdade, o ponto em que ideias e inclinações assumiam perfil mais
acusador, enfrentando-se com determinação: o Caco, expressão maior do movimento
estudantil da década de 1950, movimento que fazia então o supremo esforço de – superando a
ideologia meramente democrática da década anterior – forjar um projeto de país, no calor das
campanhas nacionalistas e desenvolvimentistas. Apesar da distância que eu tomava deles –
irritado, como todos os independentes de esquerda, com a sua prática instrumentalista e
prepotente – justiça seja feita aos comunistas que militavam (sob a direção de um jovem que
5

se chamava nada menos que Lenin!), os quais não importa quão minoritários e sectários
fossem, muito me ensinaram sobre o Brasil e o mundo.” (Memória acadêmica)
Nos anos 1950, mais do que defender que o sistema democrático
poderia ajudar a superar a desigualdade no Brasil, como nos anos1930 e 1940,
contra a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945), os estudantes progressistas
queriam construir um projeto de país. Não bastava mudar a forma de governo,
era preciso mudar a estrutura econômica do país, que gerasse o
desenvolvimento econômico, a riqueza e a igualdade social. O Brasil para o
povo brasileiro, não para o imperialismo. As campanhas nacionalistas e
desenvolvimentistas eram bandeiras levadas pelos estudantes, como a
campanha do Petróleo é nosso.

Romper com o colonialismo intelectual: a influência de Alberto Guerreiro


Ramos na Escola Brasileira de Administração Pública (Ebap)
Depois dessa primeira fase de formação humanística e política na
Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, Marini relata a segunda fase
da formação nas ciências humanas na Escola Brasileira de Administração
Pública (Ebap), onde ingressa em 1954, sendo influenciado pelo nacional-
desenvolvimentismo da Cepal pelo professor Alberto Guerreiro Ramos (1915-
1982): "Abria-se uma nova época em minha formação. Nova época, em todos os sentidos.
Frente ao clima intelectual tradicionalista e rarefeito que privava na Universidade de então, a
Ebap abria amplo espaço às ciências sociais e recrutava seu corpo docente na
intelectualidade mais jovem, que a universidade mandarinesca excluía, ou no exterior.Figura
marcante era ali Alberto Guerreiro Ramos, professor de Sociologia, crítico irreverente de tudo
que cheirasse a oficialismo, eclético incorrigível, aberto às novas ideias que se originavam de
Bandung e da Cepal; sua influência sobre mim, nasqueles anos, foi absoluta.”
Guerreiro Ramos foi um grande sociólogo brasileiro, um dos criadores
do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), com obras de grande
impacto na sociologia brasileira até os anos 1960, segundo Theotonio dos
Santos. No ISEB, Guerreiro Ramos realizou estudos ao lado de intelectuais de
esquerda, como Álvaro Vieira Pinto e Nelson Werneck Sodré. Embora
cultivasse o marxismo, foi um sociólogo de enfoque nacional-democrático,
segundo Teothônio dos Santos, com a crítica da absorção de um pensamento
externo dos grandes centros para conformar a visão de mundo dos brasileiros.
Guerreiro Ramos influencia Ruy Mauro para o movimento inverso, construção
de uma visão crítica das periferias do capitalismo para o centro. Embora lesse
obras marxistas, Guerreiro Ramos não se identificava como tal.
Na Escola Brasileira de Administração Pública, Ruy iniciou-se nas
ciências sociais. Estuda as soluções apontadas pela Comissão Econômica
para a América Latina e Caribe da Organização das Nações Unidas, a Cepal
da ONU, criada em 1948. Para os estudiosos da Cepal, a causa da
desigualdade social é o atraso econômico dos países subdesenvolvidos como
o Brasil. Para os cepalinos, é o desenvolvimento desigual, quer dizer a
diferença entre centro e periferia, que impede a América Latina de sair do
atraso e na desigualdade. Para a Cepal, a raiz da desigualdade é a troca
desigual dos produtos entre os países desenvolvidos e os países
subdesenvolvidos. As mercadorias produzidas por países da periferia eram
produtos primários, com menos valor do que os produtos do centro, sempre
com mais valor incorporado pelas tecnologias avançadas.
Ruy observa os dois projetos em disputa: nacional-desenvolvimentismo
e desenvolvimento associado ao imperialismo. Estuda os economistas
brasileiros da Cepal, Celso Furtado (1920-2004) e Ignácio Rangel (1914-1994)
6

para compreender o projeto nacional-desenvolvimentista: o Estado deveria ser


o planejador da economia, criando indústrias nacionais que produzissem
mercadorias manufaturadas, deixando de importar produtos dos países mais
avançados.
Aos olhos atentos de Ruy, a modernização da economia do governo de
Juscelino Kubitschek faz parte de um projeto de nação que mantém o atraso, o
subdesenvolvimento. É o velho esquema de dominação da periferia pelo centro
do capitalismo. O Plano de Metas que prometia o acelerado crescimento
econômico de 50 anos em apenas 5, criou a base para a implantação das
indústrias multinacionais e o desenvolvimento da indústria automobilística. O
Estado brasileiro, de periferia, abria o país para o capital internacional. O
desenvolvimento industrial não resultou na diminuição da desigualdade, pelo
contrário só acentuou. Foram anos de ouro para a grande burguesia brasileira
e internacional, mas anos de penúria para a classe trabalhadora. Os
camponeses são expulsos à bala de suas terras pelos coronéis e são forçados
a procurar trabalho nas grandes cidades. Os fugitivos da fome ocupam cortiços
e favelas. Desempregados, disputam jornadas extenuantes e frequentes
acidentes de trabalho.
Ruy também acompanha atentamente o crescimento do apoio ao projeto
do nacional-desenvolvimentismo da Cepal pela pequena e média burguesia. A
Cepal explica a subordinação da periferia ao centro e seu permanente atraso,
questionando a Escola Clássica do Valor, de David Ricardo que defende a
divisão social do trabalho, como forma de especialização do mercado
internacional. O projeto cepalino para a América Latina, influenciado por
diferentes tendências, entre elas de John Keynes (1883-1943), defende o
Estado como planejador da industrialização, implementação das indústrias de
base no continente, políticas públicas de distribuição de renda, formação do
mercado interno para a indústria nacional, reforma agrária, fim do êxodo rural
com a interiorização da industrialização ligada à agricultura, incorporação de
tecnologia na produção e não especialização em produtos primários para
exportação.
A herança política e teórica do Partido Comunista Brasileiro (PCB) é
analisada por Ruy Mauro. Criado em 1922, ligado à União Soviética, a proposta
política do PCB variou muito desde seu surgimento, em 1922, passando pelo
“Manifesto de Agosto”, de 1950, de proposta de radicalização das lutas
proletárias e de organização do exército popular, e a adoção da estratégia
nacional-democrática após o suicídio de Vargas, em 1954, sendo firmada na
"Declaração de Março de 1958". O PCB reconhece a exploração do
trabalhador pelo capitalista nacional, mas avalia que o inimigo principal é o
imperialismo, os países capitalistas mais avançados que mantêm a relação
desigual com os países mais atrasados. Ruy percebe a existência da linha
política da "convivência pacífica" ditada pela URSS, para evitar o confronto
com os Estados Unidos, e defesa da etapa da revolução brasileira como anti-
imperialista, antifeudal, nacional e democrática. O atraso econômico brasileiro,
assim como de todos os países subdesenvolvidos, era explicado pelo PCB pela
constituição de uma economia feudal ou pré-capitalista.
À diferença do pensamento da CEPAL, por exemplo, o PCB reconhecia
a existência da contradição entre a burguesia e o proletariado, e entendia a
exploração do trabalho como aquela que permite a acumulação de capital. No
entanto, essas questões deveriam ser deixadas para um segundo momento,
7

para uma outra etapa. Como a contradição principal a ser enfrentada seria a da
nação contra o imperialismo e seus aliados locais, a etapa da revolução no
Brasil,segundo o PCB da época:"[...] não é ainda socialista, mas anti-
imperialista e antifeudal, nacional e democrática.". Assim resultava uma
proposta política de aliança de classes: trabalhadores e burguesia nacional
contra burguesia internacional (imperialismo) e latifúndio feudal.

2- Filhos do subdesenvolvimento, à luta (1958 – 1964)


"As teorias do desenvolvimento, em voga nos Estados Unidos e nos centros
europeus, se me revelaram, então , com o que realmente eram: instrumento de
mistificação e domesticação dos povos oprimidos do Terceiro Mundo e arma com
a qual o imperialismo buscava fazer frente aos problemas criados no pós-guerra
pela descolonização." (Memória acadêmica)

Paris: da periferia ao centro, o encontro com a teoria marxista os


movimentos de libertação nacional e a nova esquerda (1958-1960)
Com essa vontade de entender a situação do Brasil como país
subdesenvolvido, Ruy parte como bolsista para a França em 1958, apoiado por
Guerreiro Ramos, Gazier e Michel Debrun para estudar no Instituto de Estudos
Políticos da Universidade de Paris (SciencesPo, a Escola de Ciências
Políticas). Embora o badalado SciencesPo fosse considerado mais elitista do
que propriamente de esquerda, a intenção de Ruy é aproximar-se dos
intelectuais marxistas em Paris e aprofundar o conhecimento sobre o
marxismo, desde a influência da Dialética de Georg W. F. Hegel (1770-1831)
até Ulianov Lênin (1870-1924) . Ruy aprofunda-se no conhecimento sobre a
teoria criada por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), no
século 19, o materialismo histórico e dialético, para a compreensão do
funcionamento do capitalismo e as alternativas científicas para a sua
superação e a construção da sociedade sem exploração, o socialismo.
"Os dois anos passados na França completaram, praticamente, a minha formação.
(...)realizar, por primeira vez, a leitura de Hegel e o estudo sistemático da obra de Marx e
aprofundar-me no estudo dos autores marxistas, Lenin principalmente(...) O período que ali
passei coincidiu com o auge da teoria desenvolvimentista na América Latina e no Brasil – com
a qual eu me familiarizara na Ebap, pela mão de Guerreiro Ramos, havendo inclusive assistido
de perto ao processo de formação do Iseb (e, antes dele, do Ibesp) – e com sua difusão na
academia francesa, tendo Balandier como pontífice." (Memória Acadêmica)
Ruy Mauro parte da periferia do capitalismo para o centro. Encontra uma
Europa abalada pelos movimentos de libertação nacional. Paris fervia com uma
a retomada do marxismo e a crítica ao stalinismo. Conhece jovens militantes
dos movimentos de libertação nacional e, com eles, questiona as raízes do
subdesenvolvimento. Ruy compreende a necessidade de uma visão crítica das
teorias enviadas pelo centro do capitalismo. As teorias do desenvolvimento,
última moda nos Estados Unidos e Europa, revelam-se como instrumento de
mistificação e domesticação dos povos oprimidos do Terceiro Mundo. Era a
arma do imperialismo para a criação de uma nova forma de dominação depois
da descolonização.
"Ao mesmo tempo, esse era o momento em que a descolonização era vivida
dramaticamente pela França, mediante a derrota da guerra da Argélia, provocando rupturas ao
interior dos grupos políticos e intelectuais – fenômeno que acompanhei com vivo interesse,
tanto mais que, em meu meio, eu convivia com jovens militantes argelinos, cambojanos e
vietnamitas, além dos que provinham das colônias da África negra. As teorias do
desenvolvimento, em voga nos Estados Unidos e nos centros europeus, se me revelaram,
8

então , com o que realmente eram: instrumento de mistificação e domesticação dos povos
oprimidos do Terceiro Mundo e arma com a qual o imperialismo buscava fazer frente aos
problemas criados no pós-guerra pela descolonização. Começa, então, o meu afastamento da
Cepal,fortemente influenciado, ademais, pela minha crescente adscrição ao marxismo."
(Memória Acadêmica)

Afastamento da Cepal e aproximação da Nova Esquerda


Ruy se afasta, então, das teses da Cepal. Dedica-se ao estudo das
obras de Marx, Engels e Lênin, principalmente, para entender a história do
capitalismo e a atual fase imperialista. Se aproxima, na França, do grupo que
editava, no Brasil, Movimento Socialista, a revista da juventude do Partido
Socialista Brasileiro. Fundado em 1947, o PSB nasceu na Esquerda
Democrática de 1945, com a participação de intelectuais como Antonio
Cândido, João Mangabeira, Hermes Lima, Rubem Braga, Joel Silveira, José
Lins do Rego, Sérgio Buarque de Holanda, e líderes como o deputado de
Pernambuco, Francisco Julião, das Ligas Camponesas, e Pedro Teixeira,
presidente da Liga em Sapé, assassinado por latifundiários na Paraíba.
Ruy faz um acerto de contas com o nacional-desenvolvimentismo em
artigo publicado na revista Movimento Socialista, se aproxima de Erich Sachs e
participa do grupo constituído em Belo Horizonte, Rio e São Paulo, que dará
origem à Organização Revolucionária Marxista - Política Operária. Era a
primeira organização no Brasil, com exceção das organizações trotskistas, da
chamada Nova Esquerda que surgia na América Latina.
"Isso me levaria, ainda na França, a tomar contato com o grupo que editava, no Brasil, a
revista Movimento Socialista, órgão da juventude do Partido Socialista (que publicou um artigo
meu, em que ajustava contas com o nacional-desenvolvimentismo), em particular Eric Sachs,
com o qual eu viria a estabelecer, no meu regresso, uma grande amizade e cuja experiência e
cultura política me influenciaram fortemente. Esse grupo, com suas principais vertentes no Rio,
São Paulo e Belo Horizonte, constituirá, mais adiante, a Organização Revolucionária Marxista –
Política Operária (Polop), primeira expressão no Brasil da esquerda revolucionária que emergia
em toda a América Latina." (Memória Acadêmica)
A revolução Cubana, em 1959, chama atenção da esquerda na França,
como explica Ruy: "Cabe observar, aqui, que o interesse que a Revolução Cubana
despertara na França, dando lugar à intensa cobertura da imprensa e à publicação de livros
significativos, como de Sartre, era muito maior que o que se verificava no Brasil – fato que
constato com surpresa, ao regressar. Essa situação só se modificará depois da tentativa de
invasão estadunidense e da decorrente posição cubana, em favor do marxismo e da URSS. A
gestação da esquerda revolucionária brasileira e latino-americana – particularmente na
Argentina, no Peru, na Venezuela e na Nicarágua – não é, como se pretende, efeito da
Revolução Cubana, mas parte do mesmo processo que deu origem a ela – independentemente
de que passe a sofrer forte influência sua, nos anos de 1960.” (Memória Acadêmica)
O filósofo marxista Jean-Paul Sartre escreve em Furacão sobre Cuba
(1960): “O maior escândalo da revolução cubana não é ter desapropriado as terras, mas ter
posto meninos no poder. (...) Armando Hart tem 27 anos, Guevara e Raul Castro mal
ultrapassaram os 30. (...)A juventude nada tinha a perder: via os mais velhos acomodarem-se à
tirania e pensava: ‘É às nossas desgraças que eles se resignam’. Lançando-se contra os
privilégios, esses meninos se revoltaram também contra os mais velhos. Face à omissão dos
adultos, eles criaram uma intransigência que nunca perderam e que lhes permitiu
compreender o apelo lançado pela intransigência de Castro.” (Furacão sobre Cuba)
Sartre mostrava o processo da revolução na aliança entre operários,
intelectuais, estudantes rebeldes e camponeses: “Para que os camponeses se
transformassem em rebeldes, os rebeldes viraram camponeses: passaram a tomar parte nos
trabalhos do campo. Não bastava conhecer as necessidades, a miséria dos roceiros: era
preciso ao mesmo tempo sofrer e lutar contra elas. Os camponeses se sentiriam mais
dispostos a ouvi-los, se com eles se identificassem: uma machadada certa, cortando com
exatidão a haste, faria mais do que um longo discurso. A guerrilha, estabelecendo estes novos
9

laços entre os revolucionários e o povo, tornou-se afinal conhecida sob seu verdadeiro nome: a
guerra popular. (...) Desde que conheça suas causas e suas exigências, a necessidade vai até
o fundo de si mesma. A tomada de consciência, negativa ainda, foi rápida e geral, e nesta fase
nova da guerra, os camponeses se transformaram: estes seres resignados tomaram a seu
cargo os planos dos insurretos, fizeram dos mesmos suas reivindicações, e de certo modo,
serão eles que radicalizarão os rebeldes. (...) A reforma agrária era a guerrilha. Mas a guerrilha
era a verdadeira reforma: era o povo, apoiando a conspiração, absorvendo-a e transformando
aqueles rebeldes de origem burguesa em camponeses revolucionários.” (Furacão sobre Cuba)
Somente em 1961, depois da tentativa de invasão estadunidense, da
declaração de Cuba ao socialismo e adesão à União Soviética, que a revolução
cubana terá maior apoio da esquerda no Brasil. Ruy percebe, em convivência
com militantes da América Latina na França, que o mesmo processo
revolucionário vivenciado por Cuba também estava em curso na Argentina,
Peru, Venezuela e Nicarágua.

Retorno à periferia, a imprensa de esquerda e a organização política


Em 1960, Ruy retorna ao Brasil com adesão à teoria marxista em
processo de desenvolvimento. Torna-se pesquisador no Iapi e inicia o sua
carreira como jornalista na agência cubana Prensa Latina, dirigida por Aroldo
Wall, como correspondente da noite, onde trabalhou até setembro de 1961,
além de colaborar no jornal O Metropolitano, da União Metropolitana dos
Estudantes (UEM), publicado como encarte de O Diário de Notícias. Como
jornalista, acompanhou as disputas políticas do governo Jânio Quadros e
Jango: "Foi nessa condição que acompanhei – virando, às vezes, até à madrugada – o
governo Jânio Quadros, a crise da renúncia e a primeira fase do governo Jango." Retoma sua
participação no movimento estudantil, com auxílio de Aluízio Leite Filho, escrevendo artigos
para O Metropolitano, encarte dominical de O Diário de Notícias." (Memória acadêmica)
Ruy entende que a imprensa estudantil deve auxiliar o debate da
esquerda sobre as lutas populares: "Em um dos meus raros trabalhos de reportagem,
eu cobri, pela Prensa Latina, o Congresso Nacional de Camponeses, que teve lugar em Belo
Horizonte, em 1961, e tornei pública, por meio de O Metropolitano, a luta surda que se travava
entre o PCB e as Ligas Camponesas, de Julião – um dos pontos fortes do trabalho de massas
da esquerda revolucionária. Essa matéria, além de surpreender pela novidade, ao trazer à luz
do dia assuntos da esquerda (que, fora de sua própria imprensa, eram tabu nos grandes meios
de comunicação), favoreceu o desenvolvimento da luta ideológica e política então em curso, ao
torná-la explícita.” (Memória acadêmica)
O Metropolitano reuniu militantes do movimento estudantil como Paulo
Alberto, um dos fundadores, conhecido como Artur da Távola, Ferreira Gullar,
Carlos Estevam Martins, César Guimarães, que participariam mais tarde da
criação do Centro Popular de Cultura (CPC).

Organização Revolucionária Marxista - Política Operária: a organização


política para a superação da desigualdade social na América Latina
Em 1961, Ruy reflete sobre a necessidade do partido como instrumento
de luta política, para sair do campo restrito do campo burguês nacional-
democrático, para uma perspectiva socialista que permitisse que a classe
operária, em um momento de consolidação, se definisse como "uma classe
para si", com objetivos históricos de classe. O núcleo inicial do movimento
criado para a construção de um partido revolucionário era formado por grupos
socialistas em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, que mais
tarde se aproximaria das Ligas Camponesas do Sul.
10

Vânia Bambira, uma das fundadoras desse núcleo inicial do movimento


pela construção de um partido revolucionário, que viria a ser a Organização
Marxista Revolucionária - Política Operária (ORM-PO), nota a importância de
militantes de Minas Gerais na constituição da esquerda brasileira, tanto de
origem marxista quanto de origem cristã. Assim seria criada a Ação Popular
(AP), pelo sociólogo Herbert José de Souza, conhecido como Betinho, onde
nasce a Teologia da Libertação. O movimento estudantil era a grande escola
onde se formarão os militantes que participarão da nova esquerda brasileira.
Com base na análise marxista da história, Ruy percebe que é necessária
a criação de um partido político sob direção da classe operária, principal força
política para a luta socialista, além do campesinato que levavam a luta no
campo. Para isso, seria necessário construir uma frente de esquerda para a
formação desse partido.
Marini participa, com Eric Sachs, do I Congresso da fundação da
primeira organização da chamada Nova Esquerda no Brasil, a Organização
Revolucionária Marxista-Política Operária, a ORM-PO, união da Juventude do
Partido Socialista (Guanabara), como Paul Singer e Moniz Bandeira,
intelectuais da esquerda (São Paulo) influenciados pela teoria de Rosa
Luxemburgo, como Sachs e Luiz Eduardo. Lá conhece Vânia Bambirra e
Theotônio dos Santos com quem compartilhará militância política, criação
teórica e uma grande amizade.
Vânia recorda-se que foi a militância na ORM-PO, com a tarefa política
de formação de quadros, fortalecerá a amizade com Ruy e Theotônio. Foram
criados vários níveis de formação de quadros, desde quadros sumples até os
quadros formadores de quadros, no movimento estudantil, os chamados
multiplicadores. No movimento operário, havia a preocupação de formar a
vanguarda, mas a ORM-PO enfrentava grande dificuldade para penetrar e
organizar a vanguarda operária. E o trabalho com o trabalhador rural se deu
pela aliança com as Ligas Camponesas. Segundo Vânia, Julião tornou-se uma
forte liderança por perceber a importância do advogado na luta pela terra,
contra os latifundiários que usavam da violência para expulsar os trabalhadores
de suas terras. Enquanto a luta jurídica demorava em torno de quinze anos, a
ORM-PO aproveitava para desenvolver um trabalho de organização política
dos camponeses.
Naquele período, o PCB tinha maior penetração no movimento operário
pela estrutura sindical, e, embora considerasse de grande combatividade os
militantes da ORM-PO, estigmatizava-os como "trotskistas" por defenderem a
ruptura com a burguesia e o socialismo e por serem críticos às políticas
reformistas, segundo Vânia.
Theotônio, Vânia e Ruy percebem que a ORM-PO, embora pequena e
de origem estudantil, poderia contribuir para o debate e a organização política
da classe trabalhadora, com base no marxismo que pudesse responder à
problemática brasileira na perspectiva socialista, com a tradição do
pensamento leninista, sem a interpretação stalinista dominante no PCB. Vânia
explica que não havia pretensão de que a ORM-PO fosse um partido, era
apenas um movimento de organização da esquerda que seria dissolvido assim
que fosse criado o partido revolucionário. Também não aceitavam uma
organização internacional hierárquica com o centro na União Soviética, porque
esses partidos copiavam as resoluções do PCUS. Em termos teóricos, a
grande contribuição seria desenvolver um marxismo próprio para análise do
11

Brasil e da América Latina, com a publicação de textos de Mariátegui, por


exemplo, na revista Movimento Socialista.
Ruy observa o desenvolvimento dos movimentos revolucionários na
América Latina que deram origem ao que se chamou Nova Esquerda: “A
gestação da esquerda revolucionária brasileira e latino-americana – particularmente na
Argentina, no Peru, na Venezuela e na Nicarágua – não é, como se pretende, efeito da
Revolução Cubana, mas parte do mesmo processo que deu origem a ela – independentemente
de que passe a sofrer forte influência sua, nos anos 60… as duas tendências, a que gerou o
MIR-Praxis [Praxis y Movimiento de Izquierda Revolucionaria, organização fundada em 1956
por iniciativa de Silvio Frondizi], na Argentina, e a ORM-POLOP, no Brasil, coincidiam nos dois
países como em outros países da América do Sul, como no Chile, onde se formou a
Vanguarda Revolucionária Marxista, que depois deu origem ao MIR chileno. Da facção
conhecida como APRA-REBELDE [facção expulsa da Alianza Popular Revolucionaria
Americana (APRA) peruana em 1959], à qual pertencia a primeira mulher de Guevara. Surgiu o
MIR [Movimiento de Izquierda Revolucionaria] no Peru, sob a liderança de Luis de la Puente
Uzeda [principal liderança e fundador da APRA Rebelde] e Guilhermo Lobatón [militante do
MIR peruano, coordenador da zona de influência do Centro do Peru (Túpac Amaru)], com os
quais a POLOP, por meu intermédio, manteve bom relacionamento na primeira metade dos
1
anos de 1960.” (Memória acadêmica)
Theotonio analisa o período de desenvolvimento da nova esquerda
lembrando que um exemplo de nova esquerda poderia ser observado na
Bolívia, em que as reivindicações dos povos indígenas foram incorporadas às
lutas da classe trabalhadora boliviana, além dos operários e camponeses.
Mariátegui havia desenvolvido o marxismo latino-americano que incorporava o
movimento indígena na luta pelo socialismo. Por isso, no caso cubano, o
Partido Comunista apoiou a revolução na fase final, mesmo porque o grupo
mais ligado a Fidel também não procurou a aliança dos comunistas. Mas, em
seguida, com o apoio do PCC foi organizada uma greve geral que ajudou na
vitória da revolução, com a derrubada da ditadura de Batista. E só depois de
1961, com a tentativa de invasão da Baía dos Porcos, numa vitória espetacular,
a revolução se define como socialista, com vínculo com a União Soviética.
Cuba serviu para análise da questão da dependência na América Latina,
pois o problema não se resolvia apenas com a derrubada da ditadura, pois a
desigualdade era mantida por conta do sistema capitalista sob domínio
imperialista. Era preciso se preparar para o confronto que viria a seguir.
Os revolucionários cubanos aprenderam com a revolução boliviana de
1952, pois as milícias mineiras e camponesas foram derrotadas pela polícia
militar e o exército da burguesia, com apoio imperialista, que deu um violento
golpe. Essa experiência também tinha sido limitada, pois a revolução havia se
caracterizado como democrática burguesa, com uma reforma agrária limitada,
para alguns camponeses, ao invés de um grande coletivo camponês, formando
um grupo de minifúndios. Nesse período, foi a Cepal que orientou as políticas
de reforma do governo boliviano. Mais tarde, um dos integrantes da Cepal
também fará parte do ministério do planejamento do governo Allende, e
denunciará que a ajuda dos Estados Unidos era cobrada por líder sindical
morto.
O governo boliviano foi se comprometendo com a política imperialista,
de repressão do movimento mineiro, e precisava matar uma determinada

1
Depoimento de Ruy Mauro Marini no artigo Extrema-esquerda e desenvolvimentismo (8)A história da POLOP pode
ajudar a compreender melhor os zigue-zagues da esquerda nas décadas de 1950 e 1960. Por Manolo In:
Passapalavra- http://passapalavra.info/2011/08/44467
12

quantidade de líderes sindicais para receber ajuda dos Estados Unidos. O


terror estava intimamente ligado com as necessidades de expansão do capital.
A morte do Che, mais tarde, está relacionado com o modo pelo qual o Estado
boliviano, por meio do exército, se organizou para a contrainsurgência, desde o
golpe de 1961, pois a CIA participou diretamente de sua captura e assassinato.
Assim, essa nova esquerda, segundo Theotônio do Santos, está
relacionado aos processos revolucionários na América Latina, que tendo a
vitória da revolução cubana, se multiplicarão em organizações guerrilheiras. A
origem dessas organizações são facções dos movimentos nacional-
democráticos que se veiculam ao processo revolucionário cubano. Na
Argentina, é um grupo do peronismo que vai fazer a primeira tentativa
argentina da guerrilha; na Colômbia, outro grupo surge do Partido Liberal; na
Venezuela, com a cisão da Ação Democrática, os comunistas partem para
guerrilha; no Brasil, uma parte da ORM-POLOP, da nova esquerda, surge da
cisão do trabalhismo, mas não diretamente ligada a guerrilha mais ao
movimento para construção do partido revolucionário.
Durante a década de 1960, a guerrilha está na ordem do dia porque o
golpe de Estado passa a ser uma ameaça permanente. O continente latino-
americano insere-se no contexto do processo revolucionário que enfrenta a
contrarrevolução. Neste cenário, em 1961, há tentativa da grande burguesia
nacional e internacional de impedir a posse de João Goulart, derrotada por um
movimento de massas com apoio militar dirigido por Brizola. Nesse momento,
há um debate sobre a formação de uma frente esquerda com Brizola e com o
PCdoB, com as Ligas Camponesas de Francisco Julião, que se radicalizará
com os movimentos guerrilheiros para apoio das lutas camponesas. Mas, essa
frente não chegou a ser formada no Brasil.

UnB: a crítica ao desenvolvimentismo


Em Brasília, no início dos anos 1960, há o debate sobre a necessidade
de formar uma frente de esquerda contra o golpe que batia às portas. Nesse
momento, Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos estão se
apropriando criativamente do marxismo para a interpretação do processo
revolucionário brasileiro, voltada para as questões da formação do capitalismo
brasileiro.
Theotônio dos Santos, da ORM-PO se recorda das reuniões com o
PCdoB para formar uma frente, criando um grupo independente, como o caso
de Perseu Abramo, que não pertencia a uma organização de esquerda, mas
era simpatizante da PO. Outro elemento importante, destacado por Theotônio
nesse período, é a radicalização dos cristãos, contra o grupão do PCB que
dominava o movimento estudantil, com o desenvolvimento da Ação Popular
entre os estudantes. Por isso, a ORM-PO apoiou a candidatura de Betinho pela
AP, mas o PCB não aceitou. Em 1961, apoiam Aldo Arantes com o apoio de
Betinho, com a criação do movimento de cultura popular, e do jornal O
Metropolitano, da União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro. O Centro
de Cultura Popular, criado pela esquerda do movimento estudantil, foi um
movimento de criação de música, teatro, artes, literatura e cinema sobre a
realidade brasileira que demonstrava a política de aliança estudantil, operária e
camponesa.
Criada por Darcy Ribeiro, no governo João Goulart, em abril de 1962, a
UnB é o solo onde germinará a crítica às teses cepalinas. Em setembro, Ruy é
13

contratado como auxiliar de ensino, e, logo em seguida, como professor


assistente. Lá, o coletivo de professores e estudantes desenvolvem pesquisas
sobre o projeto de nação: “Realizei ali uma das experiências mais ricas da minha vida
acadêmica – já como docente, lecionando com Victor Nunes Leal, Lincoln Ribeiro e Theotônio
dos Santos as cadeiras de Introdução à Ciência Política e Teoria Política, em nível de
graduação, e codirigindo o seminário de pós-graduação sobre Ideologia Brasileira; já como
estudante, preparando minha tese de doutorado sobre o bonapartismo no Brasil; (...) já,
finalmente, convivendo (...) com André Gunder Frank, que ali aportou em 1963. Cabe assinalar,
aqui, que, embora já possuísse um pensamento inquieto e original, formado no seu contato
com Paul Baran, Paul Sweezy, Harry Huberman, em Monthly Review ,foi então que Frank –
absorvendo os novos elementos teóricos que surgiam no seio da esquerda revolucionária
brasileira – amadureceu as teses que exporia, de maneira provocativa e audaz, em seu
Capitalismo e Subdesenvolvimento na América Latina, publicado em 1967, livro que representa
um marco do que viria a se chamar de ‘teoria da dependência’.” (Memória acadêmica)
Vânia Bambirra recorda-se que a Teoria Marxista da Dependência só
seria produzida no Chile, junto com Theotônio e Ruy, sem a participação direta
de Gunder Frank, pois trazia ainda a forte influência da Escola de Chicago, de
Milton Friedman, o monetarista liberal, que no futuro fará a assessoria ao
governo golpista de Pinochet no Chile.
Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Ruy Mauro Marini, da Política
Operária (PO), formam um grupo de estudo de O Capital, de Marx, com outros
professores de esquerda, como Perseu Abramo, José Albertino Rodrigues, e,
mais tarde, André Gunder Frank, e estabelecem análises críticas à Teoria
Desenvolvimentista, dominante entre os partidos comunistas da América
Latina. Ruy explica que a tarefa para a construção da Teoria Marxista da
Dependência só poderia ser realizada por militantes da nova esquerda : “Na
realidade, e contrariando interpretações correntes que a veem como subproduto e alternativa
acadêmica à teoria desenvolvimentista da Cepal, a teoria da dependência tem suas raízes nas
concepções da ‘nova esquerda’ – particularmente no Brasil, embora seu desenvolvimento
político fosse maior em Cuba, na Venezuela e no Peru – elaborou, para fazer frente à ideologia
dos partidos comunistas.” (Memória acadêmica)
André Gunder Frank, segundo Theotônio dos Santos, organizou um
seminário sobre o pensamento estrutural funcionalista norte-americano no qual
era especialista, porque fez o doutorado na Escola de Chicago, centro da
direita estadunidense. O grupo de Chicago mais tarde será responsável pela
política econômica do governo Pinochet, no Chile, ou seja, a primeira
experiência do neoliberalismo na América Latina, que será desenvolvido com
Margaret Thatcher na Inglaterra. Em seguida, como discípulo de Paul Baran e
Paul Sweezy, Frank colaborou ao aproximá-los das discussões dos marxistas
brasileiros. Baran e Sweezy perceberá a riqueza das interpretações dos
marxistas brasileiros que buscavam analisar o capitalismo a partir da situação
dos países dependentes, com base no marxismo. Por isso, Sweezy convidou
Theotônio para estudar o capistalismo imperialista e Vânia para estudar o
capitalismo latino-americano, nos Estados Unidos.
Vânia Bambirra se recorda que André Gunder Frank, embora tenha se
aproximado dos marxistas dos EUA e do Brasil, não consegue se apropriar da
concepção marxista, com análises extremamente mecanicistas, em que
observava a relação entre o capitalismo desenvolvido e o dependende apenas
como causa e efeito de expansão ou contração do capital internacional. Por
isso, nota que a teoria marxista da dependência não surgirá nesse contexto,
pois não há cumplicidade nem utilização conjunta da metodologia dialética
marxista,como já faziam Ruy, Vânia e Theotônio. Gunder não havia conseguido
14

romper com as antigas referências de Robert Erza Park e com as leituras de


manuais sobre Marx.
A crítica, na UnB, passa da teoria desenvolvimentista à Cepal, para o
acerto de contas com o princípio da revolução democrático-burguesa, anti-
imperialista e antifeudal. Na UnB, Darcy solicitou um curso com os principais
membros da Cepal, com conhecimento detalhado das principais teses. Nesse
momento, estava sendo gestada a crítica marxista às teses cepalinas. Em
seguida, Darcy Ribeiro convidou o historiador do PCB, Nelson Werneck Sodré,
para organizar um curso sobre civilização brasileira, para alunos da pós-
graduação e professores da graduação. A tese sobre a formação do
capitalismo brasileiro e a questão do feudalismo foi debatida diretamente com
Werneck Sodré. Com isso, foi possível aprofundar a análise crítica sobre
relação entre as teses econômicas cepalinas e suas consequências políticas
para o continente latino-americano, para estabelecer o necessário
desembaraçamento da esquerda: “A Cepal só se converteu também em alvo na medida
em que os comunistas, que se haviam dedicado mais à história que à economia e à sociologia,
se apoiaram nas teses cepalinas da deterioração das relações de troca, do dualismo estrutural
e da viabilidade do desenvolvimento capitalista autônomo, para sustentar o princípio da
revolução democrático-burguesa, anti-imperialista e antifeudal, que eles haviam herdado da
Terceira Internacional.” (Memória acadêmica)
Com base nos estudos econômicos de Marx, Ruy, Vânia e Theotônio
desmontam a ilusão criada pela Cepal de que o desenvolvimento econômico
dos países subdesenvolvidos poderia levar ao fim da desigualdade social. Em
termos políticos, era uma crítica à concepção da necessidade de uma
revolução burguesa, como etapa para a revolução socialista, fim da
desigualdade social: “Contrapondo-se a isso, a ‘nova esquerda’ caracterizava a revolução
como, simultaneamente, anti-imperialista e socialista, rechaçando a ideia do predomínio de
relações feudais no campo e negando à burguesia latino-americana capacidade para dirigir a
luta anti-imperialista. Foi no Brasil da primeira metade dos anos 1960 que essa confrontação
ideológica assumiu perfil mais definido e que surgiram proposições suficientemente
significativas para abrir caminho a uma elaboração teórica, capaz de enfrentar e, a seu tempo,
derrotar a ideologia cepalina – não podendo ser, pois, motivo de surpresa o papel destacado
que nesse processo desempenharam intelectuais brasileiros ou ligados, de alguma forma, ao
Brasil.” (Memória acadêmica)
O projeto inicial da UnB é de conteúdo popular e crítico para a reflexão
sobre o Brasil e para a formação de estudantes que fossem criadores e não
apenas repetidores de teorias. A atividade política de Ruy, Vânia e Theotônio
está voltada em grande parte para teórica, com a apropriação criativa do
marxismo e para a análise do Brasil e a experiência da esquerda brasileira.
Na UnB, há uma forte politização do debate teórico e Marini inicia um
trabalho de organização dos professores, como continuidade das tarefas de
militância da Política Operária: “No começo da década, a teorização encontrava-se ainda
estreitamente ligada ao combate político, e os êxitos ou fracassos se mediam através de
indicadores muito concretos. No caso da UnB, vale ressaltar que a esquerda revolucionária se
constituiu na força principal do nascente movimento estudantil de Brasília, hegemonizando a
Federação de Estudantes que se criou, e – fato inédito no Brasil e na América Latina – de um
significativo movimento docente, que deflagrou, em 1963, a primeira greve de professores
universitários de que temos notícia, a qual culminou com a formação de uma pioneira
Associação de Professores, em cuja direção a nova esquerda era absolutamente majoritária.
Seria um erro pensar que ela ficou restrita à universidade: a nova esquerda vinculou-se ao
sindicalismo militar então ascendente, principalmente ao movimento dos sargentos, e ao
próprio movimento operário se constituía na capital, a ponto de, no I Congresso Sindical de
Brasília, em 1963, estar em condições de ‘bater chapa’ com o PCB, perdendo por escassa
margem.” (Memória acadêmica)
15

Ruy percebe que enquanto o governo de João Goulart procurava fazer


as Reformas de Base (reforma agrária, urbana, educacional, bancária e fiscal),
além da nacionalização de vários setores industriais, Celso Furtado
implementava o Plano Trienal para o controle da dívida pública, da inflação e
captação de recursos para as reformas. Ele analisa que embora contasse com
o apoio popular e de setores da pequena e média burguesia nacional, o
nacional-desenvolvimentismo do governo Jango não poderia resolver as
contradições do capitalismo dependente.
A Política Operária desenvolve a militância no meio estudantil e nas
lutas camponesas, tanto em Minas Gerais quanto em Goiás, marcado por
fortes movimentos de posse de terra dos anos 1950. E também na aliança com
o PCdoB e com os independentes, a PO passou a ter uma certa influência
sobre o movimento sindical e camponês de Brasília. Francisco Julião foi
importante nessa aliança, com a organização conjunta do I Congresso
Camponês, em 1961, no Brasil. Ruy Mauro mostrou, em reportagem, para o
jornal estudantil O Metropolitano, que o PCB ficou acuado nesse congresso. A
relação de Julião e o PO ficou mais forte com a criação do Movimento Radical
Tiradentes, em Ouro Preto (MG), onde Tiradentes havia sido enforcado, e
também com os estudos de Vânia sobre o movimento camponês. Esse
movimento se tornou mais expressivo no norte de Minas, na região de
Governador Valadares, com a criação de Ligas Camponesas.
Além do movimento estudantil e camponês, a PO havia estabelecido
uma relação com o líder do Comando Nacional dos Sargentos, aluno de Vânia
na UnB, com influência no movimento dos sargentos e dos marinheiros. No Rio
de Janeiro também foi feito um contato com os sargentos e em São Paulo
havia um contato com um grupo da polícia militar e outro grupo de oficiais,
onde estava Lamarca. A articulação dessas forças tinha o objetivo de compor o
movimento insurreicional.
O reajuste de 56,25% para o salário em 1963 provocou a ira não
somente da grande burguesia, mas também de seus aliados que tinham a
superexploração como forma de acumulação do capital. As primeiras
desapropriações de terras foram recebidas com manifestações pelos
latifundiários. E as desnacionalizações foram tomadas como o maior pecado
pelos governos imperialistas, especialmente o estadunidense.
Mas rapidamente o projeto do desenvolvimento associado ao
imperialismo, do governo de Juscelino Kubitschek, derrotado pelo governo
João Goulart, democraticamente eleito, seria imposto, com a aliança da grande
burguesia nacional e internacional, por uma sangrenta ditadura militar. E de
proporções continentais: em toda a América Latina.

Golpe de 1964: a ditadura para uma nova fase de expansão do capitalismo


Com o golpe militar, Brizola propõe retomar o movimento de 1961, com
uma ala das forças armadas do III Exército, e daí partir para formar a coluna
para tomar o Rio de Janeiro e depois Brasília. Diante da resistência, organizou-
se a primeira guerrilha, na Serra de Caparaó, entre Espírito Santo e Minas
Gerais com os sargentos expulsos do exército. Mas, a PO não concordou com
a estratégia da guerrilha como foco, mas sim como tática de complemento às
lutas no centro do sistema, nos meios industriais. A PO participou como direção
política da guerrilha de Caparaó com a participação de Eric Sachs, Brizola,
entre outros. De acordo com Moniz Sodré, o serviço secreto da Marinha,
16

CENIMAR, infiltrou um agente no grupo guerrilheiro e ordenou a prisão de


sargentos, marinheiros, e Ruy Mauro, junto com Arnaldo Mourthé, no Rio de
Janeiro, como dirigentes da PO. Na realidade, Ruy Mauro havia sido
responsabilizado pelo CENIMAR como organizador do movimento dos
marinheiros. Depois de um ano, Marini e Mourthé foram liberados sem provas.
Ruy Mauro Marini foi um dos milhares de trabalhadores brasileiros
perseguidos pelo governo militar da grande burguesia em associação ao
imperialismo. Como todos os professores de esquerda, logo em seguida ao
golpe, Ruy foi demitido. Depois de preso no Centro de Informações da Marinha
em seguida foi sequestrado pelo Cenimar e entregue para o Exército. “Minha
estada em Brasília foi cortada bruscamente pelo golpe de 1964. Naquele momento, eu me
encontrava no Rio, onde – sabedor de que era procurado em Brasília – permaneci, o que não
impediu de que eu fosse sumariamente demitido, com outros doze professores, na primeira
medida tomada pela ditadura contra a universidade. Depois de escapar de ser preso, em maio
caí finalmente, em julho, nas mãos do Cenimar. Em setembro, beneficiado por habeas corpus
do STF (que a Justiça militar negara, anteriormente), fui sequestrado pela Marinha e entregue
ao Exército, em Brasília, por conta de outro processo que se movia por lá. Repeti o itinerário
Justiça militar-STF e obtive, em dezembro, novo habeas corpus, que desta vez foi acatado.
Embora por pouco tempo: não houvesse eu deixado a cidade discretamente, horas depois da
minha libertação, e teria sido preso novamente.” (Memória acadêmica)
Vânia Bambirra e Theotonio dos Santos recebem Marini em apartamento
da Política Operária e o preparam para a clandestinidade e para o asilo político
no México: “Após um período de clandestinidade de quase três meses, quando a pressão
policial-militar sobre meus companheiros e minha família tornou-se pesada, a ponto de forçar
um dos meus irmãos a passar também à clandestinidade, asilei-me na Embaixada do México,
no Rio, e viajei para esse país, um mês depois.”
Theotônio se recorda que quando Ruy é libertado, a PO decide enviá-lo
ao México para fazer contato com os cubanos, que não se realizaria.
Mais tarde, Ruy compreende o golpe como instrumento para a
acumulação de capital e hegemonia do capital financeiro na economia
brasileira, bem como a sua contradição da necessidade de se expandir e a
dependência do capital internacional. Para Ruy, o nível teórico de confrontação
com a perspectiva cepalina só se desenvolveria depois do golpe, como tarefa
política dos intelectuais exilados e resistentes à contrarrevolução na América
Latina: "No nível teórico, isso só viria a dar todos os seus frutos após o golpe militar de 1964,
quando, limitada em sua militância, a jovem intelectualidade brasileira encontraria tempo e
condições para se dedicar plenamente ao trabalho acadêmico e se veria, de fato, convocada a
isso pela situação reinante em toda a América Latina, assolada pela contrarrevolução.”
(Memória acadêmica) Na América do Sul, o imperialismo criou o Plano Condor
para a organização da contrarrevolução.

3- México, Primeiro Exílio:


o marxismo latino-americano (1964 – 1969)
Ruy procura asilo na Embaixada do México no Rio de Janeiro, e inicia
uma amizade com os asilados brasileiros, como intelectuais, militantes das
Ligas Camponesas e do movimento estudantil. “Reencontrei, também, Andre Gunder
Frank, lecionando então na Unam, que me facilitou os primeiros contatos com intelectuais e
militantes políticos mexicanos. (...) Aos quinze dias da minha chegada ao México, obtive, por
meio de Mario Ojeda Gómez, então diretor do Centro de Estudos Internacionais (CEI) do
Colégio do México um lugar na instituição.” (Memória acadêmica)
Muito disciplinado e preocupado com a segurança da PO, Ruy nunca
permitiu que tirassem fotos, para que não fosse identificado pela repressão
17

política, mas desenvolveu um trabalho de agitação e propaganda no México,


seja na formação política dos estudantes, seja na publicação de análises
marxistas sobre a realidade brasileira e latina americana.

O golpe militar no Brasil não é um raio no céu azul


Retoma o trabalho como professor e pesquisador do Centro de Estudos
Internacionais do Colégio do México. E inicia o trabalho coletivo para entender
o capitalismo latino-americano e o marxismo na realidade do
subdesenvolvimento. Publica um artigo para a revista da CEI, a Foro
Internacional, sobre o golpe militar no Brasil, baseado em grande parte na
análise sobre a situação política brasileira produzida junto com o Comitê
Central da Política Operária, em março de 1965, para o Programa Socialista
para o Brasil, no contexto de preparação do movimento de resistência à
contrarrevolução: “As interpretações correntes sobre o golpe de 1964, além de considerá-lo
mais uma simples quartelada, apresentavam-no essencialmente como resultado da
intervenção estadunidense, um corpo estranho, de certo modo –ou, como dissera Leonel
Brizola, um raio no céu azul-, à lógica interna da vida brasileira. Meu ponto de vista era
radicalmente oposto: a ação dos Estados Unidos no Brasil não se podia entender como alheia
à realidade nacional, mas como elemento constitutivo dela, e só pudera se tornar efetiva (e,
portanto, só se explicava) à luz da luta de classes no país, que fincava suas raízes na
economia e determinava o jogo político – e da qual as Forças Armadas eram parte plena.”
(Memória acadêmica)
Nem simples quartelada, nem imposição dos Estados Unidos, o golpe
militar no Brasil, segundo Ruy Mauro deveria ser melhor compreendido para a
organização da resistência à contrarrevolução na América Latina.

Subimperialismo: um novo conceito marxista para a América Latina


Em seguida, Ruy escreve um segundo artigo sobre o golpe militar para a
revista da esquerda estadunidense, Monthly Review, a pedido de Andre
Gunder Frank com o enfoque nas causas econômicas e as consequências para
a América Latina. Cria o conceito de subimperialismo e de burguesia
integrada para explicar o papel do Brasil na nova etapa de desenvolvimento do
capitalismo: “Nele, modificando o enfoque, eu colocava em primeiro plano as transformações
da economia mundial no pós-guerra (especialmente a centralização de capital nos Estados
Unidos e seu efeito sobre as exportações de capitais) e seu impacto na economia do Brasil e
na diferenciação da sua classe burguesa, para examinar, à luz desses fenômenos, a política
exterior brasileira nos anos de 1960 e suas implicações para a América Latina. Esse estudo
teve três resultados importantes. Primeiro, impulsionou a superação do enfoque meramente
institucional- e, frequentemente, jurídico- que primava nas análises da política exterior latino-
americana, motivando os estudiosos a investigar suas determinações econômicas e de
classe. Segundo, despertou maior atenção para a mudança operada nos movimentos de
capital no pós-guerra, com vantagem para os investimentos diretos na indústria, tese que se
constituiria em um dos pilares da teoria da dependência, principalmente pelas implicações do
fenômeno na diferenciação interna da burguesia, que eu apontava no artigo e que sustentavam
o conceito de ‘burguesia integrada’, que eu ali expunha. Terceiro, levantou a questão do
subimperialismo, que tratei ali pela primeira vez e que despertou particular interesse em
círculos intelectuais argentinos e uruguaios, assim como de brasileiros que os integravam,
graças à difusão que deu ao meu ensaio sua publicação em Buenos Aires.(...)” (Memória
acadêmica)
Theotônio dos Santos identifica como originalidade da teoria produzida
por Marini, a criação do conceito de subimperialismo, "identificando um projeto
da ditadura como tentativa de criar um pólo de expansão do capital brasileiro
para a região latino-americana, com o general Golbery do Couto e Silva como
ideólogo desse projeto geopolítico, mas atualmente é o capital financeiro quem
18

comanda esse processo, usando o Brasil como ponta de lança para a


expansão no mercado regional. Hoje, o Brasil já não têm o mesmo poder, pois
não tem um pólo industrial com a mesma importância que antes, com a perda
da competitividade industrial."

A História da América Latina pelos latino-americanos: a luta contra


o enfoque parternalista elitista
No final de 1965, ao se debruçar sobre os livros, para a disciplina de
História Diplomática da América Latina, Ruy encontra apenas autores
estrangeiros com enfoque paternalista elitista. Inicia a crítica da visão
deformante da imagem da periferia pelo centro do capitalismo. Parte, então,
para a análise marxista do capitalismo latino-americano criando conceitos que
explicassem a realidade da dependência ao capital internacional, com grande
aceitação dos professores e estudantes: “Na realidade, salvo informação direta e
noções superficiais sobre o tema, adquiridas durante a minha estada na França, eu não sabia
muito sobre a América Latina. Por cerca de três meses, dediquei-me, pois, ao estudo da
bibliografia disponível, utilizando principalmente a biblioteca do Colégio – bastante boa, nesse
particular. Ali, à parte estudos nacionais, na maioria clássicos, e uma ou outra tentativa de
teorização mais geral (como os trabalhos da Cepal e as obras de Gino Germani e Torcuato S.
Di Tella), fiz a desagradável constatação de que os estudos latino-americanos provinham
essencialmente dos países desenvolvidos – principalmente Estados Unidos, Inglaterra e
França, nessa ordem – e padeciam, no mais das vezes, de um paternialismo elitista, que me
recordava os cursos de Balandier, em SciencesPo. Organizei o programa, buscando combinar
certas formulações de caráter global com a análise por países e excluindo a América Central e
o México, não só por serem suficientemente – no caso do México, amplamente – tratados em
outras disciplinas, mas também para evitar problemas políticos. A metodologia era,
essencialmente, a que eu desenvolvera nos meus trabalhos sobre Brasil, levando a que as
questões de política exterior, além de se enfocarem a partir de suas determinações
socieconômicas, constituíssem apenas uma dimensão do objeto de conhecimento construído
no curso. Quando necessário, o programa introduzia o exame de categorias e teses marxistas,
já que era no marxismo que ele se fundamentava. Essas modificações fizeram com que o
curso viesse a se intitular, mais tarde, Problemas Internacionais da América Latina.” (Memória
acadêmica)

O caráter da revolução brasileira e o capitalismo latino-americano: o


debate da esquerda
Em 1966, Ruy escreve o terceiro artigo sobre o golpe militar no Brasil,
publicado na revista Cuadernos Americanos. Parte da análise da luta de
classes, presente no primeiro artigo, da análise da economia brasileira
articulada com o imperialismo e suas implicações para a América Latina,
presente no segundo artigo para a compreensão do processo revolucionário
brasileiro: “Este terceiro estudo procurava sintetizar os dois enfoques, com o propósito de
desvendar as grandes linhas do processo histórico do Brasil moderno e a gestação das
condições da revolução socialista.” (Memória acadêmica)
Já em 1967, Ruy consegue criar o ambiente para o debate sobre o
capitalismo latino-americano no CEI : “ Além de convidar especialistas mexicanos e
estadunidenses, aproveitei a passagem pelo país de intelectuais latino-americanos, em
particular brasileiros, como Celso Furtado, Hélio Jaguaribe e Octavio Ianni. (...) Lembro-me,
especialmente, da discussão que mantive com Celso Furtado, uma noite, no Café de Las
Américas, juntamente com José Thiago Cintra – Furtado, defendendo sua tese sobre a
“pastorização”, isto é, do retrocesso da economia brasileira ao estádio meramente agrícola,
que a ditadura brasileira estaria promovendo (...); eu, insistindo no eixo central da minha
reflexão sobre o Brasil, ou seja, na ideia de que a ditadura correspondia à dominação do
grande capital nacional e estrangeiro e impulsionava a economia do país a uma etapa superior
do seu desenvolvimento capitalista.” (Memória acadêmica)
19

Subdesenvolvimento e Revolução: a primeira obra de referência


Com o título Subdesenvolvimento e revolução, Ruy publica na revista
cubana Tricontinental, uma das mais importantes análises da Teoria Marxista
da Dependência e a saída para a superação da dependência: a revolução. Ele
apresenta a nova divisão internacional do trabalho e a constituição de novos
subcentros (capitalismo dependente, com a subordinação da periferia ao
centro): “Esse ensaio, que reflete o essencial das investigações que eu vinha realizando
desde fins de 1965, resume seu conteúdo na declaração inicial- ‘a história do
subdesenvolvimento latino-americano é a história do desenvolvimento do sistema capitalista
mundial’ – e se dedica a demonstrar que esse subdesenvolvimento é simplesmente a forma
particular que a região assumiu ao se integrar ao capitalismo mundial.” (Subdesenvolvimento
e Revolução)
Nesse artigo, Ruy desmistifica a ideia do desenvolvimento econômico
como saída para o subdesenvolvimento. O subdesenvolvimento é a outra face
do desenvolvimento no capitalismo mundial. Uma como capitalismo
dependente e a outra como capitalismo imperialista. Não há desenvolvimento
do capitalismo mundial, sem o subdesenvolvimento: “A história do
subdesenvolvimento latino-americano é a história do sistema capitalista capitalista
mundial.(...)A América Latina surge como tal ao se incorporar no sistema capitalista em
formação, isto é, no momento da expansão mercantilista europeia do século XVI."
(Subdesenvolvimento e Revolução)
Ruy desmistifica também a ideia do golpe militar, no Brasil, como uma
dominação direta dos Estados Unidos. Ele argumenta que é uma ação da
grande burguesia brasileira associada ao imperialismo estadunidense:
“O golpe militar que depôs o presidente constitucional do Brasil, João Goulart, em abril de
1964, foi apresentado pelos militares brasileiros como uma revolução e definido um ano depois
por um de seus porta-vozes como uma ‘contrarrevolução preventiva’. Por suas repercussões
internacionais, sobretudo na América Latina, e diante das concessões econômicas aos capitais
norte-americanos, muitos consideram o golpe simplesmente como uma intervenção disfarçada
dos Estados Unidos.Essa opinião é compartilhada por determinados setores da esquerda
brasileira que, no entanto, nunca souberam explicar por que, precisamente quando pareciam
chegar ao poder, este lhes foi inesperadamente arrebatado sem que se disparasse um só tiro.”
A crise conjuntural enfrentada pela economia brasileira a partir de 1962 e o correspondente
acirramento dos conflitos sociais e políticos puseram em relevo, com singular nitidez, as
distorções estruturais que o desenvolvimento capitalista no Brasil engendrou. Isso propiciou um
deslinde entre os interesses das diferentes forças que articulam a sociedade brasileira e
conduziu a luta de classes a uma aguda polarização. (...)"(Subdesenvolvimento e
Revolução)
A imposição de uma nova fase de superexploração do trabalho era o
objetivo principal da grande burguesia nacional associada à grande burguesia
internacional, por meio da ditadura militar. O desafio maior da esquerda
brasileira era a resistência organizada da classe operária a essa sangria
descontrolada. Mas, o divórcio entre a vanguarda e a massa era a fragilidade
que a burguesia aproveitou para impor o aprofundamento da superexploração
pela violência do regime militar : "A grande força da esquerda seguia sendo o velho
Partido Comunista, que, em conluio, com os “pelegos varguistas”, obstruía o caminho da nova
vanguarda em direção à classe operária e tratava de enquadrá-la numa política de colaboração
de classes. Com isso, as organizações da esquerda radical – constituídas em sua maioria por
estudantes, intelectuais e profissionais liberais – buscavam como campo de ação os setores
mais permeáveis a sua propaganda radical: o movimento estudantil, principalmente; os setores
camponeses mais explorados (pequenos proprietários, parceiros, colonos e ‘posseiros’),
utilizando a fórmula das Ligas Camponesas, que Francisco Julião empregara com êxito no
Nordeste; e a massa crescente do subproletariado urbano, através das organizações das
favelas. Assim, enquanto o movimento operário via seu enorme potencial de luta ser desviado
pelas direções reformistas para questões meramente reivindicativas e para o apoio político a
uma fração da burguesia, as organizações da esquerda revolucionária, que propunham
20

transformações estruturais e mudanças nas relações de poder, eram forçadas a limitar sua
base social à pequena burguesia e ao subproletariado da cidade e do campo. Esse divórcio,
fatal para o conjunto dos movimentos de massa, foi o que facilitou a implementação do terror
militar e permitiu a burguesia impor soberanamente sua lei ao processo de exploração do
proletariado brasileiro." (Subdesenvolvimento e Revolução)
Se por um lado a velha esquerda ainda buscava alianças com a
burguesia nacional, por outra, a nova esquerda, isolada das massas, decide
pela resistência armada. Durante a ditadura militar do capital, a classe operária
torna-se presa fácil dos sangessugas nacionais e internacionais: "O s reformistas
viram no golpe mais uma prova do poder mítico com o qual revestem o capital e seus agentes,
tratando assim de buscar fórmulas de arranjo com estes; e os grupos revolucionários
reforçaram suas dúvidas quanto ao potencial de luta da classe operária e passaram à
preparação de ações guerrilheiras, no campo e na cidade, atribuindo-se o caráter mágico de
catalisador da luta de massas. No entanto, aquilo que a esquerda brasileira não soube fazer
conscientemente foi se impondo pela própria dialética da luta de classes. Diante das
exortações à luta armada, na qual não era oferecida à classe operária outra participação que a
de força auxiliar ou logística – o que, na prática, deixava a burguesia com as mãos livres para
superexplorá-la -, a classe operária se preparou para defender-se, usando as armas que
historicamente aprendera a manejar. Privados de seus sindicatos, os trabalhadores se
entregaram a um lento processo de reorganização, centrado em torno do pilar da política
burguesa: a lei antigreve, o arrocho salarial, a estabilidade de emprego."
(Subdesenvolvimento e Revolução)
Para Ruy, o comitê de fábrica foi a criação original da classe operária
para a resistência à violência da superexploração do regime militar, sem o
apoio da pequena burguesia radical ou dos reformistas: " Nesta árdua tarefa –
desprovida dos atrativos com que o pequeno-burguês radical reveste sua concepção de luta
revolucionária, mas demasiado consequente para que os reformistas pudesssem apoiá-la-, a
classe operária forjou o instrumento que lhe permitiu se afirmar novamente na luta de classes,
após escassos três anos do golpe militar: o comitê de empresas." (Subdesenvolvimento e
Revolução)
A reorganização das lutas dos trabalhadores, segundo Ruy, se deu de
forma instintiva, com base nas reivindicações imediatas dos operários e
camponeses e com o renascimento das lutas de massas dos estudantes: "Esses
setores atuaram instintivamente no sentido de abrir vias para a reaglutinação de suas forças,
com o objetivo de poder atuar, enquanto movimento de massas, no plano político. O
catalisador dessa reaglutinação foram sempre reivindicações imediatas (no caso dos
estudantes: a nova lei de organização estudantil, conhecida como Lei Suplicy, a redução do
orçamento para a educação e o problema da falta de vagas nas universidades; no caso dos
trabalhadores rurais e dos camponeses: os problemas dos salários e do emprego e a defesa
do preço de seus produtos), que colocavam em xeque aspectos da política governamental e
conduziam à denúncia da própria ditadura de classe." (Subdesenvolvimento e Revolução)
No exílio mexicano, Ruy analisa as manifestações de 1968 no Brasil,
como o início de uma nova fase de resistência ao regime militar, é o apito da
panela de pressão: “O sinal de partida foi dado pelos estudantes. Ao final de março de
1968, quando se aproximava a comemoração do aniversário do golpe militar, a União Nacional
dos Estudantes começou a mobilizar as suas forças, com base em reivindicações puramente
estudantis (como, por exemplo, a redução dos preços dos restaurantes universitários). (...) A
polícia matou a tiros um jovem de 17 anos, provocando uma onda de indignação em todo país.
De norte a sul houve manifestações de massas – agora já não apenas estudantis-, e o governo
respondeu lançando a polícia e o exército contra o povo.” (Subdesenvolvimento e
Revolução)
Com base na concepção marxista, Ruy mostra a importância da
retomada da luta aberta da classe operária, seja nas greves, seja nas
manifestações de rua contra a superexploração, como sujeito histórico
determinante para a resistência à contrarrevolução e avanço revolucionário:
“Enquanto a rebeldia estudantil obtinha grande repercussão (...) algo mais grave surgia na
ascensão da luta de massas: a resistência aberta da classe operária. (...)Nesta tarefa se
21

destacaram os setores mais avançados da classe, dotados de uma maior consciência e de


uma tradição de luta mais acentuada, particularmente os trabalhadores metalúrgicos.(...) O
esforço da classe operária para se afirmar novamente como polo dinâmico das lutas de classes
apenas começavam e era preciso tempo para eu dessem resultados.De imediato, seu efeito foi
despertar a confusão entre as filas da burguesia(...)”(Subdesenvolvimento e Revolução)
Além dos estudantes e dos operários, estouram os movimentos pela
terra e pelos direitos dos trabalhadores rurais: “Ainda assim, junto aos conflitos
espontâneos pela terra, via-se também a ação decidida dos sindicatos rurais nos lugares onde
puderam se reestruturar , principalmente em alguns estados do Nordeste, como Pernambuco e
Maranhão.” (Subdesenvolvimento e Revolução)
No entanto, Ruy observa que a criação do AI-5 se deu com o aumento
da resistência, aprofundando e extendendo a violência da ditadura para outros
setores da própria burguesia, mas lembra que o regime tem a face militar, mas
também civil, fincada na força do capital: “A promulgação do Ato Institucional nº5
suspendeu a Constituição de 1967, fechou o Congresso, calou a imprensa e reduziu a
importância do STF. Não era tanto a esquerda o objetivo dos militares: era a própria burguesia.
(...)Com isso, caiu o último véu que cobria o poder burguês, que exibe agora sem pudor aquilo
que constitui sua essência: a força. (...)É equivocado acreditar que o regime militar se desligou
realmente do solo onde finca suas raízes, isto é, o capital. (...)”(Subdesenvolvimento e
Revolução)
A esquerda brasileira que ora se apoiava na pequena burguesia
estudantil, ora na média burguesia nacional, com o avanço da violência do
regime militar, observa a ausência da organização política junto aos
trabalhadores rurais e operários, contra a ditadura do capital: “A crise da esquerda
brasileira é a crise da base social em que se apoiava, mas é também uma crise ideológica.
Neste contexto, a esquerda está obrigada a viver esta crise até suas últimas consequências,
esgotando todas as vias de autocrítica e chegando ao embate extremo da luta interna.
Somente assim poderá enfrentar o desafio colocado pela luta de classes: a organização das
massas exploradas para a guerra contra a ditadura do capital.” (Subdesenvolvimento e
Revolução)
A verdadeira face da ditadura militar brasileira é o subimperialismo
Em Subimperialismo e revolução, Ruy cria um novo conceito marxista
com base na análise do capitalismo dependente da América Latina, o
subimperialismo: “A ditadura militar é uma resposta à crise econômica que afetou a
economia brasileira entre 1962 e 1967 e à consequente intensificação da luta de classes. É
também algo mais: o instrumento e resultado de um desenvolvimento de tipo capitalista de
Estado e subimperialista. Nesta perspectiva, a ditadura constitui, de um lado, o suporte da
acumulação de capital baseada na superexploração das massas trabalhadoras, tanto urbanas
como rurais, e, de outro, a expressão da hegemonia conquistada, devido à crise, pelos
monopólios industriais e pelo capital financeiro nacional e internacional.”
(Subdesenvolvimento e Revolução)
Assim, Ruy demonstra que o desenvolvimento do capitalismo brasileiro,
de Estado e dependente, enfrenta uma crise contínua de realização do capital
e o subimperialismo é a forma assumida para a resolução dessa crise para o
grande capital, saída criada pelos monópolios industriais e financeiros para a
expansão do mercado de bens duráveis: “Esta crise aparece como uma crise de
realização, que estabelecia a necessidade de abrir mercados para a produção de bens
duráveis (de consumo e de capital), com o objetivo de assegurar campos de investimento para
os monopólios industriais e para o capital financeiro interessado nessa produção.
Simultaneamente, o desenvolvimento dessas linhas de produção exigia uma acumulação de
capital mais intensa, o que supunha romper a dinâmica reivindicativa do proletariado industrial
e das massas do campo, dinâmica esta que fora particularmente forte depois de 1959. (...)” Em
1964 a situação é outra: a elite militar que encabeça o golpe não apenas intervém na luta de
classes, como também apresenta todo um esquema econômico-político no qual consagra
definitivamente a fusão de interesses com o grande capital. Este esquema é o subimperialismo,
a forma que assume o capitalismo dependente ao atingir a etapa dos monopólios e do capital
financeiro. (...) O eixo do esquema subimperialista está constituído pelo problema do mercado.
22

Para a indústria de bens duráveis, a crise dos anos 1960 se apresenta como a impossibilidade
desta indústria seguir se desenvolvendo em linha ascendente com base num mercado interno
insuficiente.” (Subdesenvolvimento e Revolução)
Ruy demonstra que antes da ditadura militar, havia dois projetos de
nação em disputa: mercado interno e redistribuição de renda (nacional-
desenvolvimentismo) x expansão do mercado e concentração de renda
(desenvolvimento associado ao imperialismo). No governo de Jango, cujo
projeto era nacional-desenvolvimentista, a saída para a crise não era o
expansionismo, mas o mercado interno, com a política de redistribuição de
renda.No entanto, Ruy observa que o projeto do desenvolvimento associado ao
capital internacional, era conflitante com a política de redistribuição de renda:
“Isso leva os governos anteriores, principalmente o de João Goulart, a insistir na dinamização
do mercado interno mediante a redistribuição da renda.As tentativas de redistribuição, porém,
foram se revelando uma má solução para o grande capital, por duas razões: a) a redistribuição
(operando, entre outros mecanismos, através de aumentos salariais) se refletia principalmente
no aumento da demanda de bens não duráveis, que o grande capital não produzia ou produzia
em pequena escala; e b) a redistribuição afetava duramente a mais-valia das pequenas e
médias empresas, produtoras de bens não duráveis, restringindo ainda mais sua capacidade
de absorver bens duráveis.” (Subdesenvolvimento e Revolução)
Com base na análise da luta de classes realizada por Ruy, é possível
compreender o modo pelo qual o projeto nacional-desenvolvimentista foi
abandonado pelo projeto do capital nacional associado ao imperialismo: “ As
camadas mais baixas da burguesia – as mesmas que, em aliança com os setores populares,
sobretudo a classe operária organizada, formavam a base social do governo de Goulart –
sofriam contraditoriamente o impacto da política redistributiva, ao mesmo tempo em que a
grande burguesia se opunha abertamente a tal política. Na medida em que o movimento
reivindicativo das massas se acentua, a pequena e média burguesia veem aumentar suas
dificuldades econômicas, que se tornam insuportáveis no momento em que, cedendo à
pressão do grande capital, o governo tenta levar a cabo a estabilização monetária (1963),
restringindo o crédito. Com isso, Goulart perde sua base social burguesa, que acaba sendo
levada aos braços do grande capital, e perde também a base popular, na medida em que a
estabilização afeta negativamente as pressões salariais.Dentro dessa nova correlação de
forças, e considerando a oposição que os latifundiários tinham apresentado sistematicamente
ao reformismo governamental, criam-se as condições para o golpe de abril de 1964, cujo
resultado é a ditadura militar encabeçada pelo marechal Castelo Branco.”
(Subdesenvolvimento e Revolução)
Desse modo, a ditadura do capital garante o aumento da concentração
de renda e da desigualdade social. Ruy destaca que no projeto do capital
nacional associado ao imperialismo há maior concentração de renda, ao invés
da distribuição: “A política da equipe tecnocrático-militar de Castelo Branco vai atender
fundamentalmente os interesses do grande capital. Em linhas gerais, trata de concentrar ainda
mais a renda e suas fontes de produção através de medidas destinadas a reduzir os salários
(arrocho salarial) ou orientadas a facilitar a incorporação mais ou menos violenta das empresas
menores pelas grandes empresas (via créditos, tributação etc). O efeito imediato desta política
é evidentemente o agravamento da crise interna de realização, o que pode parecer paradoxal.
No entanto, sempre atendendo aos interesses do grande capital, o novo regime propõe uma
solução diferente para a crise, baseada em dois elementos: em primeiro lugar, a exportação de
manufaturas, tanto de bens duráveis como não-duráveis (sendo conveniente apontar que a
exportação destes últimos requer a elevação do nível tecnológico das empresas, o que implica
maiores possibilidades de absorção de bens de capital; em segundo lugar, o aumento da
capacidade de compra do Estado, através de uma política ativa de desenvolvimento da
infraestrutura de transporte, eletrificação e reequipamento das forças armadas, tudo isso
ocasionando uma expansão do mercado de bens de capital.” (Subdesenvolvimento e
Revolução)
Nesse projeto de desenvolvimento dependente, o capital internacional
passa a dominar o mercado, as matérias primas e a grande indústria nacional,
como mostra Ruy: “A novidade era o papel atribuído ao capital estrangeiro. Provedores da
23

tecnologia indispensável para a almejada expansão comercial, os monopólios imperialistas são


também os donos do mercado mundial. (...)A solução encontrada – própria de um país
dependente e que converte seu imperialismo em subimperialismo – foi a de oferecer aos
monopólios estrangeiros participação na exploração do trabalhador brasileiro e nos lucros
derivados da expansão comercial, ou seja, a saída foi realizar essa política mediante uma
aliança irrestrita com o capital estrangeiro.” (Subdesenvolvimento e Revolução)
Rapidamente, o imperialismo passou a explorar não só as matérias-
primas, mas a grande indústria nacional, como aponta Marini: “ O imperialismo
aceitou a participação, mas impôs suas condições. O capital estrangeiro tornou-se mais
presente que nunca na grande indústria e na exploração de matérias-primas básicas. A
realização desta política provocou, de imediato, o reforço da tendência do capitalismo brasileiro
à monopolização, com o propósito de criar uma estrutura de produção apta a competir no
mercado internacional. Além de facilitar a desnacionalização da indústria, isso levou a pequena
e média empresa à falência ou à absorção pelo grande capital, no mesmo momento em que o
desenvolvimento do capital financeiro – através das companhias financeiras e dos bancos de
investimento, com forte participação estrangeira – criava o instrumento capaz de centralizar o
capital social em poucas mãos.” (Subdesenvolvimento e Revolução)

Ruy levanta a possibilidade do triunfo da revolução no continente latino-


americano, em Subdesenvolvimento e Revolução, em 1968, mas já adverte
para a polarização política causada pelo subimperialismo brasileiro na região,
de onde estava sendo organizada a contrarrevolução com o imperialismo
estadunidense, conhecida como Plano Condor: “A perspectiva de Ernesto Che
Guevara de uma revolução continental que expresse nos fatos o internacionalismo proletário
está se tornando realidade na América Latina. A polarização política, que a dinâmica do
subimperialismo brasileiro não pode senão agravar, determina os marcos nos quais o processo
vai se desenrolar. Herdeiras legítimas do Che, as vanguardas latino-americanas têm somente
um papel a cumprir: tomar a direção da luta, conscientes de que seu desfecho pode fazer soar
para todos os povos a hora final em que os expropriadores são expropriados.”
(Subdesenvolvimento e Revolução)
Subdesenvolvimento e Revolução marcará os debates na esquerda
como análise marxista da realidade latino-americana para se pensar em novas
estratégias de luta para enfrentar a nova realidade do subimperialismo. E será
sempre lembrado por ter conclamado as vanguardas latino-americanas para
tomar a direção da luta para a superação do subdesenvolvimento, o
capitalismo dependente e mundial.

Um professor do movimento estudantil mexicano


Em 1968, o movimento estudantil mexicano, identificado com o projeto
revolucionário para a América Latina, abria a universidade para a reflexão
sobre o subdesenvolvimento. Na Universidade Nacional Autônoma de México,
convidado para ser professor sobre História do Brasil, Ruy aplica a sua
metodologia: partir dos conceitos gerais do marxismo e aplicar na realidade
latino-americana: "Como se tratava de um curso de dois semestres, destinei o primeiro a
expor a teoria e o método marxistas discutindo como aplicá-los ao estudo da América Latina; e
o segundo a, sobre essa base, analisar o processo econômico, social e político do Brasil."
(Memória acadêmica)
Como professor, Ruy percebeu que a sala de aula seria o local para a
formação política da vanguarda estudantil, que entendesse a realidade do
capitalismo dependente, as forças sociais em luta e o seu papel na luta dos
trabalhadores para a superação da desigualdade: "O interesse que despertou o
curso provocou não só um notável aumento do número de alunos, motivando sucessivas
mudanças de sala até chegar a um auditório, mas também a modificação qualitativa do
alunato, que passou a vir de diferentes faculdades, tanto da área de humanidades quanto da
de ciências exatas e naturais." (Memória acadêmica)
24

Em julho, os estudantes unem-se às manifestações dos trabalhadores.


Ruy passa a colaborar com o jornal El Dia, a convite de Cláudio Colombani, e
escreve sobre as definições programáticas, táticas de luta do movimento
estudantil brasileiro, publicado logo a seguir das manifestações populares, em
agosto. O governo mexicano passa a vigiá-lo: " Tornou-se pesado o ambiente que me
cercava, até em minha casa (que passou a ser vigiada e a sofrer censura telefônica); no órgão
da Secetaria de Governación, encarregado do controle dos asilados, recebi tratamento
francamente hostil." (Memória acadêmica)
Em 2 de outubro de 1968, a revolta estudantil, na Praça Tlatelolco, é
violentamente reprimida, com o assassinato de mais de 400 pessoas por
ordem do ex-presidente Gustavo Díaz Ordaz e o então secretário de Governo,
Luís Echeverría Alvarez. Ruy passa a ser um dos professores ameaçados pela
repressão: "Ao ter lugar, em outubro, a repressão governamental, com o massacre de
Tlatelolco, minha situação se tornou insustentável.” (Memória acadêmica)
Com auditórios lotados para a discussão sobre a realidade latino-
americana e as formas de superação da dependência, Ruy percebeu que os
seus estudantes eram os mesmos que criaram novas palavras de ordem nas
ruas: "Na realidade, ali se reuniu a vanguarda estudantil da Unam – a ponto de, após a
repressão ao movimento estudantil, em outubro daquele ano, ter-me sido sugerido, meio em
zombaria, meio a sério, que eu fosse ministrá-lo na prisão. Por pressão dos estudantes, fui
levado a realizar também um seminário de leitura de O Capital. Dificuldades institucionais
fizeram com que o mesmo se realizasse em minha casa, nas manhãs de sábado, com a
participação de estudantes e professores jovens do Colégio e da Unam.” (Memória
acadêmica)
Em 1969, enquanto trabalha como pesquisador sobre arquitetura e
urbanismo no Centro Regional de Construções Escolares para a América
Latina (Conescal), continua produzindo artigos sobre o movimento estudantil na
América Latina. Pressionado pelo governo, Ruy é obrigado a pedir o fim do
asilo, sendo indiretamente expulso do México: "A vitória de Luís Echeverría nas
eleições de 1969 – que, como secrtetário de Gobernación, comandara a repressão ao
movimento estudantil – e a negativa da França de deixar-me entrar ou passar pelo seu território
sem documentação (que me era negada tanto pelo governo brasileiro quanto pelo mexicano)
levaram-me a, renunciando ao asilo, decidir-me pelo Chile, onde a situação política poderia
facilitar as coisas. Em novembro de 1969, desembarquei em Santiago.” (Memória
acadêmica)
Ao ter a notícia da publicação de Subdesenvolvimento e Revolução,
pela Siglo XXI, em 1969, em sua saída do México, Ruy percebe a repercussão
das principais teses da Teoria Marxista da Dependência para o debate da
esquerda latino-americana, fechando com "chave de ouro o primeiro exílio no
México": “A meu ver, o interesse que despertou se deve, em parte, à novidade do enfoque –
inserido como está o livro na corrente das novas ideias que cristalizaram na teoria da
dependência; em parte, à metodologia, que buscava utilizar o marxismo de modo criador para
a compreensão de um processo nacional latino-americano, e, finalmente, à sua audácia
política, que rompia com o academicismo timorato e asséptico que primara, até então, os
estudos dessa natureza. O último capítulo, sobretudo, que aborda os problemas da esquerda
armada e o faz de dentro (o único precedente, nesta linha, havia sido Revolução na
revolução?, de Régis Debray, em 1967), suscitou entusiasmo na intelectualidade jovem e, em
geral, na militância de esquerda. Problemas, é certo, o livro criou, mas em países como Brasil
e Argentina, que apreenderam e destruíram remessas inteiras dele."
25

4- Chile, Segundo Exílio : o amadurecimento intelectual e


político (1969-1973)
No Chile, com a experiência do governo popular de Allende, Ruy Mauro
Marini participará com Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos da elaboração
da Teoria Marxista da Dependência com a tese de que a tendência do
desenvolvimento capitalista é o aprofundamento da pobreza e da exclusão
social, o que na época era chamado de subproletariado, conhecido hoje como
marginalidade ou excluídos.
Theotônio foi exilado com Vânia, então companheira, e filhos, para o
Chile, porque tinha sido condenado a 15 anos de prisão no Brasil. Torna-se
professor da Faculdade de Economia da Universidade de Santiago e continua
o trabalho de formação de quadros, convidando os estudantes que se
destacavam a participar de um grupo de pesquisa sobre o novo caráter da
dependência na América Latina, quando as máquinas não são mais trazidas
para os países latino-americanos como mercadorias, mas como investimento
de capital.
Nesse período, Fernando Henrique Cardoso também era professor em
Santiago e Vânia, que era a sua assistente, passou a substituí-lo. Mas, ao
contrário dos exilados brasileiros no Chile, Fernando Henrique não havia se
ligado a partido, nem fazia militância política, preocupava-se apenas em fazer
sua carreira acadêmica.
Theotônio analisou nesse período o caráter da classe dominante
brasileira e caracterizou-a como capitalista desde o período colonial, e não
como feudal, pois já estava integrada ao capitalismo comercial, com a
organização de uma economia exportadora complexa. Por conta de defender
seus interesses, a classe dominante brasileira participou de algumas
rebeliões,como no caso do ouro, pois vendiam o produto aqui, mas não tinham
controle do comércio exterior, que ficava nas mãos dos portugueses que
vendiam para os ingleses, e, no final, era convertido em acumulação primitiva
para a revolução industrial.
Assim, a classe dominante, já no período colonial, assumia seu papel na
formação do capitalismo brasileiro. Só no final do século 18 e início do século
19, o Brasil assume o seu papel na formação da economia capitalista mundial.
Ruy aprofundará a ideia da formação do excedente que é distribuído
entre a burguesia local e internacional com o conceito de superexploração, na
Dialética da Dependência. Marini parte das categorias do marxismo para
compreender a taxa de exploração e as modalidades da exploração, e a
posição do capitalismo brasileiro na divisão internacional do trabalho.
Segundo Theotônio dos Santos, essa superexploração passa a ser uma
categoria da relação econômica internacional, como forma de especialização
do capitalismo dependente nas atividades de menor remuneração do sistema
do setor primário exportador. A superexploração é a parte necessária e
integrante do sistema capitalista mundial que assume novas formas com a
expansão do capitalismo, inclusive com o processo industrial onde se reproduz
essa modalidade de superexploração, já no sistema assalariado.
Com base nos estudos de Lênin, a Teoria Marxista da Dependência
comprova que a essência do imperialismo é o movimento do capital, a
exploração desde o centro para a periferia. O capital dominante vai explorar a
outras economias para a formação do excedente a nível mundial. Portanto, a
26

essência não é o comércio, mas o movimento do capital, na vinculação da taxa


de exploração local para o capitalismo mundial. Sendo assim, o capital
internacional foi atraído pela possibilidade de formação de alta taxa de
exploração no Brasil na década de 1950. Nessa reestruturação do capitalismo
mundial nas décadas de 1950 a 1980, num primeiro momento, o capital se
dirige para os países menos desenvolvidos porque há uma limitação na
entrada de importação, com as altas taxas de produção, com o incentivo da
produção para o mercado interno. Já na década de 1960, percebe-se que nos
países de capitalismo dependente o mercado interno é limitado e que é
necessário expandí-lo com reformas para redistribuição de renda, como
reforma agrária, aumento salarial, etc. E o grande capital internacional não está
interessado em redistribuição de renda, mas sim na possibilidade da grande
exploração. Na década de 1970, esse debate foi retomado pelo movimento
operário que obrigado a aceitar o rebaixamento salarial por conta do aumento
do exército de reserva de mão de obra. A massa de subempregados é
potencialmente esse exército para a manutenção da grande exploração. Por
isso, foi necessário fazer um trabalho político com os trabalhadores
subempregados como solidariedade à luta dos operários.
O crescimento do capital financeiro está relacionado com o aumento da
taxa de mais valia no seu conjunto, com o avanço da revolução científico-
técnica, que permite o aumento na taxa de exploração. De acordo com Paul
Baran, o excedente seria tudo o que supera o custo da produção, e, sendo
assim, a realização do produto vai permitir a existência de um grande
excedente. Dessa forma, é possível compreender o Socialismo, mesmo em
países de origem do capitalismo dependente como a luta para se apropriar
desse excedente em função dos interesses da população. O excedente gerado
é reciclado de acordo com a cultura, posição política, relações econômicas
internacionais. E a tendência da classe dominante do tipo tradicional, como a
latifundiária, é a de utilizar esse excedente mais no consumo de elite. A ideia
de um excedente permite que ao reclicar se introduza o elemento financeiro
como representação do valor desse excedente. Na lógica do circuito financeiro,
permite a acumulação por meio do ganho excedente.
Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos recebem Ruy no aeroporto com
um visto provisório, com apoio político do então senador Salvador Allende,
entre outros, e o levam para o Centro de Estudos Socioeconômicos (Ceso) da
Universidade do Chile, onde trabalhavam. Além dos amigos, compartilharia a
efervescência política de Santiago com os exilados brasileiros e também de
estudantes chilenos, por meio de Nelson Gutiérrez, presidente da Federação
dos Estudantes, em Concepción, com quem manteve contato desde o México:
"Meu ingresso no território chileno fez-se com alguma dificuldade, contornada pela pressão dos
amigos que ali me esperavam – em particular Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra –
juntamente com a intervenção de políticos – como o então senador Salvador Allende – e da
Universidade de Concepción e sua Federação de Estudantes. Efetivamente, ainda no México,
eu fora contatado pelo presidente desta, Nelson Gutiérrez – que me conhecia por meus
trabalhos e pelas informações de amigos brasileiros, entre os quais Evelyn Singer, que
lecionava naquela universidade e militara comigo no Brasil -, que me comunicara a existência
de uma vaga de professor titular no Instituto Central de Sociologia e me consultara sobre meu
interesse em ocupá-la. Como já então eu via o Chile como possível alternativa à Argélia,
respondi afirmativamente, sendo meu currículo incluído no concurso aberto para essa vaga e
aprovado. Eu chegava, pois, ao país com um contrato na mão. (...) além do que Santiago
apresentava para mim mais atrativos. Ali estavam grandes amigos meus, como Vânia e
Theotônio, junto a uma vasta colônia de exilados brasileiros, que, enquanto estive no Chile,
contou, em momentos diversos, com Darcy Ribeiro, Almino Afonso, Guy de Almeida, José
27

Maria Rabelo, Maria da Conceição Tavares (...)reencontrando também Andre Gunder Frank,
que lecionava na Universidade do Chile, e sua esposa, Marta Fuentes. Por outra parte,
Santiago vivia um momento de intensa mobilização política, que resultaria, nas semanas
imediatas à minha chegada, na constituição da Unidade Popular, frente política que reunia
forças de esquerda – à exceção do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR)- e na
designação de Allende para seu candidato às eleições presidenciais do ano seguinte.”
(Memória acadêmica)

Concepción: o "mestre" do MIR na aliança estudantil, operária e


camponesa
“Son los pobres con la clase obrera
los que cumplen la clara misión
de decirle al conjunto del pueblo
que han tomado ya su decisión.
Trabajadores al poder,
trabajadores al poder,
trabajadores al poder.
En la lucha contamos las horas,
ya a los ricos les llega su fin,
porque estamos seguros de triunfar
con el pueblo, conciencia y fusil.
MIR, MIR, MIR”
(Hino do MIR-trecho)2

Ruy parte para Concepción, em março, com forte relação com a


Federação de Estudantes, ligado ao Movimento de Esquerda Revolucionária. O
MIR (do Chile) foi criado nessa região, em 1965, com a união da membros da
Federação Juvenil Socialista (FJS) que se constituíram na Vanguarda
Revolucionária Marxista (VRM), ex-militantes da Juventude Comunista (JC)
que formaram a Esquerda Comunista, de tendência trotskista. Uma reação de
rejeição à política de alianças do Partido Comunista com setores da burguesia
chilena e de aproximação dos nascentes grupos da nova esquerda na América
Latina. Ruy inicia em Concepción um rápido processo de amadurecimento
político, pois encontrava ali a estreita ligação que tanto reclamara, no México,
da relação entre o movimento estudantil, o operário e o camponês: "Se o nível de
politização era alto em Santiago, adquiria ali conotações explosivas. Uma das principais
cidades do país, de antiga tradição industrial e intimamente ligada aos centros mineiros de Lota
e Coronel, berço do Partido Comunista, Concepción dera origem, em 1965, a uma nova força
de esquerda, o MIR – desprendimento da Juventude Socialista, com a participação destacada
de uma corrente intelectual trotskista –liderado por uma plêiade de jovens brilhantes,
principalmente Miguel Enríquez, Luciano Cruz e Bautista Van Schowen. Com Luciano como
presidente, a Federação dos Estudantes dera início, de maneira espetacular, à reforma
universitária, que agitava ainda o país quando da minha chegada, a que se seguira o
catapultamento do MIR ao plano nacional, em 1969, pela adoção – após a ruptura com os
trotskistas – de uma ativa política de luta armada. Um pouco mais jovem, Nelson Gutiérrez,
agora ex-presidente da FEC, acabaria por se integrar ao grupo dirigente, onde se destacou por
sua inteligência, sua inteireza revolucionária, sua inesgotável sede de saber e sua notável
capacidade de oratória.” (Memória acadêmica)
Em 1969, Ruy adere ao Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR),
pela proximidade às concepções políticas da Polop e da VAR- Palmares, com
quem mantém vínculos no Brasil, com um projeto político já mais definido para
o socialismo e com uma visão de classe voltada mais para o operariado,
embora também fizessem trabalho político com o subproletariado nas
chamadas poblaciones, as favelas, onde a esquerda tradicional (PC e PS)
estava ausente.

2
https://www.youtube.com/watch?v=srVRloOsxZg Hino do MIR
28

Conhecido como “Mestre”, Ruy tinha intensa militância pedagógica e


política, tanto nas aulas quanto nas “reuniões com militantes e dirigentes
operários das minas de carvão de Lota, Coronel e Arauco, das tecelagens de
Tomé, da indústria do couro e calçado de Concepción e com dirigentes
estudantis do ensino médio e universitários do sul do país.”Num ambiente dessa
natureza, é difícil distinguir o que foi atividade acadêmica e o que foi atividade política. Minha
vida pessoal foi, de certo modo, anulada, em benefício de uma prática pedagógica incessante,
nas salas de aula, nas reuniões com militantes, durante as refeições, nas tertúlias em minha
casa, nas visitas a dirigentes e bases operárias de Tomé, Lota, Coronel. (...)ministrei vários
3
cursos por motivação política e acadêmica.” (Memória acadêmica)
Ruy consegue organizar, junto ao MIR, cerca de 500 militantes em
Concepción, como tarefa de formação política de quadros. Na vida interna,
criou a escola de quadros, com a seleção de textos e edições mimeografadas e
impressas. Marini também auxiliou a militância para técnicas de agitação e
propaganda, como o domínio da exposição oral e escrita, desde a
proclamação, o panfleto, a propaganda, o discurso, o informe, o artigo breve, o
ensaio, etc.
Requisitado pelo movimento estudantil, Ruy criou estudos sobre o
movimento estudantil na América Latina, México e Brasil, bem como auxílio
para a elaboração do documento “Bases para uma política universitária” que
orientou o movimento estudantil de Concepción para a luta política da Reforma
Universitária (1966-1970).
Ruy auxiliou no avanço da luta estudantil com a socialização das
experiências das lutas de massas nas lutas de barricadas e de rua do século
19 e primeira metade do século 20, manifestações populares e dos
movimentos estudantis do Brasil, México, Coreia, Japão, França.

A nova esquerda e a luta armada


A questão da luta armada surgiu em decorrência da escalada repressiva
do governo de Eduardo Frei (1964-70), com a militarização das forças policiais.
Em Concepción surge a proposta de organizar a massa armada nas frentes
estudantis, camponesas e operárias. Como explica Nelson Gutiérrez, para o
MIR, "a massa armada era o correspondente organizativo para as lutas que
anunciavam a ação direta das massas excluídas do sistema, nas áreas
urbanas e rurais.
Preocupado com o isolamento da vanguarda, Ruy discute a luta armada
como parte de uma luta das massas: “Vanguarda e classe fora escrito em 1969, quando
a luta armada apenas começava e a intelectualidade de esquerda, por seguidismo ou por
medo, a aplaudia ou, na melhor das hipóteses, se calava; eu me sentia, portanto, não só em
liberdade, mas inclusive no dever de criticar as concepções e a prática da esquerda armada,
alertando-a para o que poderia daí advir.” (Memória acadêmica)
Em 1971, Marini publica em uma coletânea, Diez años de insurrección
em América Latina (os autores assinaram com pseudônimo com receio de
perseguição) organizada por Vânia Bambirra, publicado pela Prensa
Latinoamericana um ensaio de análise sobre a luta armada brasileira, em
continuidade ao artigo de 1969: “La izquierda revolucionaria brasileña y las nuevas
condiciones de la lucha de clases retoma a análise da atuação da esquerda, que eu iniciara no
último capítulo de Subdesarrollo y revolución. (...)Em 1971, porém, quando escrevo o segundo

3
Cantos Revolucionaires- Soledad Bravo https://www.youtube.com/watch?v=_18mNNHasZg- Quilapayun
https://www.youtube.com/watch?v=yOdfU7ChKNI- La Poblacion- Victor Jara-
https://www.youtube.com/watch?v=ZYTJYowMxco- El Derecho de Vivir en Paz- Victor Jara-
https://www.youtube.com/watch?v=-zMvRkwcnaA Cantata Santa Maria de Iquique-
https://www.youtube.com/watch?v=wd62_8xAHf4
29

ensaio, era já evidente o fracasso da empreitada e, de todos os lados, choviam as críticas à


esquerda armada, o que me levou a reivindicá-la – embora sem renunciar à análise do seu
desempenho.” (Memória acadêmica)
Nesse período em Concepción, Ruy avalia que havia avançado na
formação política de quadros, mas não conseguia avançar na produção teórica
sobre a Teoria Marxista da Dependência. “Minha produção escrita viu-se bastante
prejudicada. No curso daquele ano, escreve apenas dois textos para publicação." (Memória
acadêmica)
Ruy é convidado a lecionar na Universidade de Santiago, já organizado
com o MIR e encontra Theotônio participando do Partido Socialista, enquanto
Vânia realiza a análise crítica da teoria do foco guerrilheiro, diante do
desmantelamento da PO. Em contato com a Vanguarda Armada
Revolucionária (VAR-Palmares), organização criada em 1969 com a união do
Comando de Libertação Nacional (Colina) e a Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), liderada por Lamarca, são convidados a retornar para o
Brasil, na clandestinidade, mas o plano é frustrado com a prisão dos militantes
que fariam a segurança.
.
Vitória da Unidade Popular4: elaboração de Dialética da Dependência
Hino da Unidade Popular
Venceremos, venceremos,
Mil cadenas habrá que romper,
Venceremos, venceremos,
La miseria sabremos vencer.
Campesinos, soldados, mineros
La mujer de la patria también,
Estudiantes, empleados y obreros,
Cumpliremos con nuestro deber.

Sembraremos las tierras de gloria,


Socialista será el porvenir,
Todos juntos haremos la historia,
5
A cumplir, a cumplir, a cumplir
(…)

Com a vitória da Unidade Popular, Ruy participa do debate sobre os


rumos da esquerda chilena na revista Chile Hoy, uma vez que o MIR não fazia
parte da Frente Ampla da Esquerda (Unidade Popular), que contava também
com setores da burguesia, que elegeu Salvador Allende:”Uma das questões
candentes que se colocavam no Chile de então era a unidade da esquerda, em virtude dos
problemas suscitados pela oposição UP X MIR. Juntamente com companheiros socialistas e
comunistas – entre os quais, Marta Harnecker, alma da iniciativa, Theothônio, Alberto Martínez
e Pío García-, participei da criação e direção da revista Chile Hoy, cujo objetivo era construir
um espaço adequado para o diálogo entre as correntes de esquerda, na qual colaborei
regularmente até o golpe militar.” (Memória acadêmica)
Parte de Concepción e instala-se em Santiago para assumir o trabalho
de pesquisador no Centro de Estudos Socioeconômicos (Ceso) no lugar de
quadros universitários que passaram a ocupar o governo popular. " O ambiente,

4
Hino da Unidade Popular- Inti Ilimani (Chile)- https://www.youtube.com/watch?v=vXoecWX_T60
5
(Trecho da música “Venceremos”, hino da Unidade Popular, última canção entoada por Victor Jara, no
limite de suas forças, após dias de tortura no Estádio do Chile em 1973.)
30

ao mesmo tempo exaltado e sufocante, de Concepción, seu provincianismo e a eleição de


Allende para a presidência, que abria no país um processo político de grandes perspectivas,
levaram-me a – aceitando convite do Ceso – trasladar-me para Santiago, em fins de 1970.(...)
em me subtrair à maré alta de politização que caracterizava então o Chile, vivi ali uma das
fases mais produtivas da minha vida intelectual.” (Memória acadêmica)
De acordo com Marini, o Ceso foi uma experiência fundamental para que
intelectuais de diferentes linhas teóricas de esquerda discutissem a realidade
latino-americana e as estratégias da revolução, com o desenvolvimento da
prática interna do diálogo: “O Ceso foi, em seu momento, um dos principais centros
intelectuais da América Latina. A maioria da intelectualidade latino-americana, europeia e
estadunidense, principalmente de esquerda, passou por ali, dele participando mediante
palestras, conferências,mesas-redondas e seminários. Contudo, o segredo da intensa vida
intelectual que o caracterizou e se constituiu na fonte real do seu prestígio foi a permanente
prática interna de diálogo e discussão, institucionalizada nos seminários de área – as áreas
temáticas eram as células da instituição – e no seminário geral e continuada nas relações
pessoais, que tinham por base o companheirismo e o respeito mútuo.” (Memória acadêmica)
Vânia explica que a aceleração da luta de classes no Chile aprofundou o
caráter coletivo do trabalho de pesquisa entre os intelectuais marxistas,
dissipando as práticas de competição das chamadas "igreijinhas" da academia
burguesa e fortalecendo as relações de colaboração, sem os chamados
"papas" e "bispos" que disputam as pontuações na carreira.
Theotonio explica que o artigo de Ruy Mauro sobre o Brasil , publicado
no livro Dez Anos de Insurreição na América Latina, organizada por Vânia
Bambirra, também é uma referência importante sobre as questões táticas para
a luta revolucionária na região.
No Ceso, ligado à Faculdade de Economia, Ruy criou cursos de
formação política para estudantes e militantes: “Teoria del Cambio sobre a teoria da
revolução –depois de uma seção dedicada às revoluções burguesas, eu estudava quatro
revoluções socialistas (soviética, chinesa, vietnamita e cubana), concluindo com algumas
generalizações.(...) Entre 1971 e 1973, centrou-se na análise da transição socialista na União
Soviética, com ênfase em Lenin, tendo Marta Harnecker como coordenadora. Meus interesses
de pesquisa levaram-me a propor em minha área, que o aprovou, o tema “Teoria marxista e
realidade latino-americana”; iniciando-se com O capital de Marx, o seminário deveria incluir
depois as obras políticas deste, mas, pelas circunstâncias históricas, não passou da primeira
parte. Não se tratava de uma simples leitura do livro, mas (...) pelas circunstâncias históricas
não passou da primeira parte." (Memória acadêmica)
Nos anos 1972 e 1973, o Ceso transformou-se no principal centro de
pesquisas da intelectualidade chilena e referência para intelectuais da América
Latina, África,Europa e Estados Unidos. Uma série de análises de conjuntura
foi produzida sobre o processo chileno com base na metodologia da
descolonização do pensamento latino-americano. Quando Ruy chega ao Ceso
já funcionava uma equipe de pesquisa para a elaboração da Teoria da
Dependência: os brasileiros Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, os
economistas chilenos, Roberto Pizarro e Orlando Caputo. A equipe
estabelece uma divisão de trabalho para uma visão mais profunda e global o
capitalismo dependente. Theotônio estudou o centro hegemônico do capital;
Vânia dedicou-se a compreender o capitalismo dependente na América Latina;
Roberto Pizarro e Orlando Caputo estudavam as relações entre os países
desenvolvidos e dependentes.

"Livro Vermelho": a dialética da criação da Teoria Marxista da


Dependência
Ruy cria uma metodologia de trabalho que pudesse ser facilmente
reproduzida. Com base num texto-base, construía os conceitos principais do
31

marxismo e o caráter dependente do capitalismo latino-americano.


Rapidamente o texto-base ficou conhecido como "livro vermelho", a pasta onde
o material didático estava reunido: "Para centrar a discussão, comecei a trabalhar em
um texto-base. Este tomava, como ponto de partida, o que ficou conhecido no Ceso como meu
“livro vermelho” – uma pasta vermelha que reunia materiais desde 1966, incluindo esquemas
de aula, anotações de leitura, reflexões à margem e informação histórica e estatística sobre a
América Latina em geral e país por país, com ênfase na integração ao mercado mundial e no
desenvolvimento capitalista daí resultante." (Memória acadêmica)
O "livro vermelho" de Ruy era a síntese das principais análises marxistas
sobre a realidade latino-americana. Com base nessas análises, Ruy escreverá
o segundo mais importante livro sobre a teoria da dependência, Dialética da
Dependência6: "A própria natureza desses materiais intuiu-me a escrever um ensaio de
caráter histórico, que não me satisfez: o que eu procurava era o estabelecimento de uma teoria
intermédia, que, informada pela construção teórica de Marx, conduzisse à compreensão do
caráter subdesenvolvido e dependente da economia latino-americana e sua legalidade
específica. Voltando a trabalhar o texto (...), procurei situar a análise num nível mais alto de
abstração, relegando a notas de pé de página as raras referências históricas e estatísticas que
conservei. Esta segunda versão publicou-se, ainda incompleta em Sociedad y Desarrollo, com
o título “Dialéctica de la dependência: la economia exportadora”. (Memória acadêmica)
Em 1972, os exilados brasileiros de esquerda se organizam no Chile
para discutir a realidade brasileira. Ruy escreve o ensaio Subimperialismo
Brasileiro (Brazilian subimperialism), para o seminário político da esquerda
brasileira em Santiago, publicado na revista de esquerda estadunidense
Monthly Review,e também incluído na 5ª edição de Subdesenvolvimento e
revolução, para analisar a realidade brasileira pós-golpe. “Nele, eu examinava a
política econômica da ditadura e precisava o que, a meu ver, se constituía para ela em
limitações objetivas: a estreiteza do mercado interno, a superexploração do trabalho e as
possibilidades do Estado enquanto promotor de investimento e de demanda. Num plano mais
geral, eu mostrava as dificuldades que os Estados Unidos criavam para a implementação da
política subimperialista e indicava a conveniência de distinguir, na evolução desta, dois
períodos, que tinham 1968 com marco divisório; por outro lado, o ensaio punha em evidência,
pela primeira vez, o papel das transferências de renda à classe média, a partir daquele ano,
com o fim de paliar a estreiteza do mercado interno; essas duas proposições serviram de
insumo explícito ou implícito à elaborações de outros autores sobre a economia e a política
externa brasileira.” (Memória acadêmica)

Dialética da dependência: a história do pensamento latino-americano


sobre o subdesenvolvimento
Ruy se afasta duas semanas no México para escrever uma síntese das
análises marxistas sobre o capitalismo dependente latino-americano. De
acordo com Emir Sader, também exilado no Chile, essa elaboração foi feita no
período de ofensivas da direita e contraofensivas do movimento de esquerda:
"De repente, Ruy Mauro reapareceu, trazendo consigo um manuscrito, que era simplesmente o
texto da Dialética da dependência. Isto é, em meio ao furacão da luta de classes, Ruy Mauro
encontrou o tempo e a forma de se concentrar para escrever uma das obras-primas do
pensamento marxista contemporâneo, revelando como é sempre possível produzir
teoricamente e dedicar-se à militância política.” (Memória acadêmica)
Da crítica à explicação dominante sobre o subdesenvolvimento,
produzida pelos países desenvolvidos e àquela produzida pela Cepal, Ruy cria
uma explicação original que contribui para o avanço do debate: o capitalismo
dependente na América Latina. “Tal como ficou, Dialética de la dependência era um texto
inegavelmente original, tendo contribuído para abrir novo caminho aos estudos marxistas na
região e colocar sobre outras bases o estudo da realidade latino-americana. A démarche

6
Publicado em 1973, em 2013 Dialética da Dependência completa 40 anos.
32

teórica que ali realizei consistiu, essencialmente, em rejeitar a linha tradicional de análise do
subdesenvolvimento, mediante a qual este se captava através de um conjunto de indicadores,
os quais, a seu turno, serviam para defini-lo; o resultado não era simplesmente descritivo, mas
tautológico. Assim, um país seria subdesenvolvido porque seus indicadores relativos à renda
per capita, à escolaridade, à nutrição etc. correspondiam a certo nível de uma escala dada, e
esses indicadores se situariam nesse nível porque o país era subdesenvolvido. Tentando ir
além dessa colocação enganosa, a Cepal avançara um pouco, ficando, como elemento válido
de sua elaboração, a crítica à teoria clássica do comércio internacional e a constatação das
transferências de valor que a divisão internacional do trabalho propicia, em detrimento da
economia latino-americana. Em vez de seguir esse raciocínio e fiel a meu princípio de que o
subdesenvolvimento é a outra cara do desenvolvimento, eu analisava em que condições a
América Latina havia se integrado ao mercado mundial e como essa integração:a)funcionara
para a economia capitalista mundial e b)alterara a economia latino-americana. A economia
exportadora, que surge em meados do século 19 nos países pioneiros (Chile e Brasil),
generalizando-se depois, aparecia, nessa perspectiva, como o processo e o resultado de uma
transição ao capitalismo e como a forma que assume esse capitalismo, no marco de uma
determinada divisão internacional do trabalho. Aceito isso, as transferências de valor que daí
advinham não podiam ser vistas como uma anomalia ou um estorvo, mas, antes como
consequência da legalidade própria do mercado mundial e como um acicate ao
desenvolvimento da produção capitalista latino-americana, sobre a base dessas premissas.
Resolvida assim, no meu entender, a questão fundamental, isto é, o modo como o capitalismo
afetava o cerne da economia latino-americana – a formação da mais-valia -, eu passava a me
preocupar com a transformação desta em lucro e com as especificidades que essa
metamorfose encerrava. Algumas indicações referentes ao ponto a que chegou minha
pesquisa estão contidas no texto e em outros trabalhos escritos nessa época, mas eu só
solucionaria realmente o problema alguns anos depois, no México.” (Memória acadêmica)
Vânia Bambirra descreve Dialética da Dependência como uma obra
importante, mas de difícil entendimento, porque Ruy Mauro cria conceitos
novos na teoria do valor de Marx. "O conceito de superexploração, por
exemplo, não é um conceito de Marx, é de Marini", explica Vânia. A
superexploração é uma categoria analítica explicativa essencial para entender
determinados processos que não são esgotados por Marx. Nesse sentido,
Vânia destaca que "o aporte de Marini é mais relevante que todos nós, porque
ele faz avançar o marxismo, é uma contribuição imprescindível." Vânia destaca
que para entender a categoria de superexploração é preciso entender a teoria
do valor de Marx, porque a superexploração é uma categoria da teoria do valor
criada por Marini para explicar o funcionamento do capitalismo dependente. Os
países de capitalismo dependente, na divisão internacional do trabalho,
transfere valor para o capitalismo desenvolvido pela superexploração, uma
parte fica para a burguesia nacional e outra para a internacional. Esse tipo de
apropriação criativa da teoria do valor de Marx só ocorreu, segundo Vânia,
porque havia o objetivo político de transformar a realidade. Assim, Ruy
contribui para "deixar o rei nu", porque demonstrou que os países da América
Latina nunca conseguirão superar a pobreza, mesmo com o desenvolvimento
econômico, pois na sua relação com os demais países se dá com base na
superexploração do trabalho.
Dialética da dependência, principal obra de Ruy, tornou-se uma
reinterpretação da história do capitalismo do ponto de vista dos países latino-
americanos, com base na dialética marxista, expressa por Trotski no
desenvolvimento de um “sistema desigual e combinado". Tomando a América
Latina como centro de suas preocupações, Ruy revê criticamente as análises
que colocavam os países da periferia como “subdesenvolvidos”, “atrasados”,
“estorvo dos países desenvolvidos”. Sua principal contribuição foi caracterizar
os países periféricos como parte integrante de um processo global. Marcou a
33

tendência da “descolonização do pensamento" da esquerda latino-americana


para a superação do subdesenvolvimento.

A reação imediata do pensamento colonizado à Dialética da Dependência


Antes mesmo que fosse publicado pela Siglo XX, no México, Dialética da
Dependência é publicada em várias revistas. A primeira reação do
pensamento colonizado partiu de Fernando Henrique Cardoso, em 1972. Para
disputar a hegemonia sobre a explicação do subdesenvolvimento, pelo
pensamento colonizado, Cardoso lança mão de práticas não usuais no debate
da esquerda, como a deturpação de conceitos. “Lançado à circulação, meu ensaio
provocou reações imediatas. A primeira crítica veio de Fernando Henrique Cardoso, em
comunicação feita ao Congresso Latino-Americano de Sociologia (onde eu recém-apresentava
o meu texto completo), que se realizou em Santiago, em 1972, e publicada na Revista
Latinoamericana de Ciencias Sociales.Defendendo com zelo a posição que conquistara nas
ciências sociais latino-americanas, e que ele acreditava, ao parecer, ameaçada pela divulgação
do meu texto e referindo-se ainda ao artigo que saíra em Sociedad y Desarrollo, que não
incluía a análise do processo de industrialização, a crítica de Cardoso inaugurou a série de
deturpações e mal-entendidos que se desenvolveu em torno do meu ensaio, confundindo
superexploração do trabalho com mais-valia absoluta e me atribuindo a falsa tese de que o
desenvolvimento capitalista latino-americano exclui o aumento da produtividade. Respondi a
esses equívocos no post-scriptum que – com o título de Em torno a Dialéctica de la
Dependencia – escrevi para a edição mexicana de 1973.” (Memória acadêmica)
Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Francisco Weffort, como
grupo, depois do golpe de 1964, vai consolidar a sua influência intelectual e
política no Brasil, controlando os principais centros de Ciências Sociais no país,
enquanto o grupo da Teoria Marxista da Dependência estava no exílio. De
vertente weberiana, as leituras que Cardoso realizou sobre O Capital estava
marcado pelo elitismo dos intelectuais da Universidade de São Paulo, como é o
caso também de Francisco Weffort. Diferente da leitura do marxismo realizada
por Ruy Mauro, Theotônio e Vânia, como práxis revolucionária. No entanto,
esse movimento de leitura de O Capital tinha sido uma tendência internacional,
com iniciativas também na França, com Louis Althusser, e depois com Che
Guevara, orientado pela retomada do marxismo. Esses grupos todos se
reunirão, em 1966, no Chile, onde foi criada uma frente de esquerda que
permaneceu até o golpe, em 1973.
Segundo Theotonio dos Santos, com quem compartilhou a criação da
teoria da dependência e a militância na ORM-PO, Ruy “como cientista social
assume com rigor a tarefa de explicar as relações econômicas desiguais entre os produtores
apoiados na alta tecnologia e as economias especializadas em atividades secundárias. Ele vai
encontrar na superexploração do trabalho o fundamento das relações desiguais na economia
mundial.”
Ruy não teve como objetivo a publicação de Dialética da Dependência
e mesmo assim tornou-se uma referência que rapidamente circulou entre a
esquerda mundial: “Minha relutância em publicar Dialética de la dependência devia-se à
consciência que eu tinha de que o texto era insuficiente para dar conta do estado de minhas
investigações e ao meu desejo de desenvolvê-lo. Essa relutância foi vencida, em parte, como
indiquei, pela dificuldade que tive para impedir sua difusão e, em parte, porque o avanço do
processo chileno me convocava de modo crescente a uma participação mais ativa,
obstaculizando minha concentração nas questões teóricas gerais que me preocupavam.”
(Memória acadêmica)
34

Uma leitura de Dialética da Dependência7


1.Capitalismo Dependente: Ruy explica que subdesenvolvimento é a
expressão do capitalismo dependente. Não é uma deformação, nem uma
insuficiência, muito menos pré-capitalismo. O capitalismo desenvolvido
apresenta um tipo de produção capitalista que poderíamos chamar de puro,
enquanto o capitalismo dependente é o mesmo capitalismo só que com
peculiaridades. Embora diferente do capitalismo avançado, o capitalismo
dependente funciona na estrutura global para o desenvolvimento do capital.
Capitalismo dependente:“Esses desvios nascem de uma dificuldade real: frente ao
parâmetro do modo de produção capitalista puro, a economia latino-americana
apresenta peculiaridades, que às vezes se apresentam como insuficiências e outras –
nem sempre distinguíveis facilmente das primeiras -, como deformações. Não é
acidental portanto a recorrência nos estudos sobre a América Latina a noção de “pré-
capitalismo”. O que deveria ser dito é que, ainda quando se trate realmente de um
desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas, essa noção se refere a
aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e seu funcionamento, não
poderá se desenvolver jamais da mesma forma como se desenvolvem as economias
capitalistas chamadas de avançadas. É por isso que, mas do que um pré-capitalismo,
o que se tem é um capitalismo sui generis, que só adquire sentido se o contemplamos
na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e
principalmente, em nível internacional.”
2.Integração ao mercado mundial. Ruy parte da história da América
Latina do século 16 para mostrar que se trata da história do capitalismo
dependente no continente integrado ao capitalismo global. O desenvolvimento
econômico do capitalismo dependente, baseado na superexploração do
trabalhador, só poderá gerar mais dependência e maior desigualdade social. A
sua superação, portanto, só poderá acontecer com a abolição das relações de
produção capitalistas.
A integração ao mercado mundial – a história da América Latina como
capitalismo dependente: “Forjada no calor da expansão comercial promovida no
século 16 pelo capitalismo nascente, a América Latina se desenvolve em estreita
consonância com a dinâmica do capitalismo internacional. Colônia produtora de metais
preciosos e gêneros exóticos, a América Latina contribuiu em um primeiro momento
com o aumento do fluxo de mercadorias e a expansão dos meios de pagamento, que,
ao mesmo tempo em que permitiam o desenvolvimento do capital comercial e
bancário na Europa, sustentaram o sistema manufatureiro europeu e propiciaram o
caminho para a criação da grande indústria. A revolução industrial, que dará início a
ela, corresponde na América Latina à independência política que, conquistada nas
primeiras décadas do século 19, fará surgir, com base na estrutura demográfica e
administrativa construída durante a colônia, um conjunto de países que passam a girar
em torno da Inglaterra. Os fluxos de mercadorias e, posteriormente, de capitais têm
nesta seu ponto de entroncamento: ignorando uns aos outros, os novos países se
articularão diretamente com a metrópole inglesa e, em função dos requerimentos
desta, começarão a produzir e a exportar bens primários, em troca de manufaturas de
consumo e – quando a exportação supera as importações – de dívidas.
É a partir desse momento que as relações da América Latina com os centros
capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a divisão internacional do
trabalho, que determinará o sentido do desenvolvimento posterior da região. Em
outros termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como
uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo
marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou
7
Trechos de Dialética da Dependência- Ruy Mauro Marini. In: Ruy Marini: Vida e Obra. Org. Roberta
Traspadini e João Pedro Stedile. Editora Expressão Popular.
35

recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. A consequência da


dependência não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua
superação supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela
envolvida. (...) A criação da grande indústria moderna seria fortemente obstaculizada
se não houvesse contado com os países dependentes e tido que se realizar sobre
uma base estritamente nacional. (...)O forte incremento da classe operária industrial e,
em geral, da população urbana ocupada na indústria e nos serviços, que se verifica
nos países industriais do século passado, não poderia ter acontecido se estes não
contassem com os meios de subsistência de origem agropecuária, proporcionados de
forma considerável pelos países latino-americanos. (...)
Mas não se reduziu a isso a função cumprida pela América Latina no
desenvolvimento do capitalismo: à sua capacidade para criar uma oferta mundial de
alimentos, que aparece como condição necessária de sua inserção na economia
internacional capitalista, prontamente será agregada a contribuição para a formação
de um mercado de matérias-primas industriais, cuja importância cresce em função do
mesmo desenvolvimento industrial.(...)
Mas além de facilitar o crescimento quantitativo destes, a participação da
América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na
economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta para a de mais-
valia relativa, ou seja, que a acumulação passe a depender mais do aumento da
capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador.
No entanto, o desenvolvimento da produção latino-americana, que permite à região
coadjuvar com essa mudança qualitativa nos países centrais, dar-se-á
fundamentalmente com base em uma maior exploração do trabalhador.(...)”

3. O segredo da troca desigual- “A inserção da América Latina na economia


capitalista responde às exigências da passagem para a produção de mais-valia
relativa nos países industriais. (...)Isso se deve ao fato de que a determinação da taxa
de mais-valia não passa pela produtividade do trabalho em si, mas pelo grau de
exploração da força de trabalho, ou seja, a relação entre o tempo de trabalho
excedente (em que o operário produz mais-valia) e o tempo de trabalho necessário
(em que o operário reproduz o valor de sua força de trabalho, isto é, o equivalente a
seu salário). Só a alteração dessa proporção, em um sentido favorável ao capitalista,
ou seja, mediante o aumento do trabalho excedente sobre o necessário, pode
modificar a taxa de mais-valia.Para isso, a redução do valor social das mercadorias
deve incidir nos bens necessários à reprodução da força de trabalho, os bens-salário.
A mais-valia relativa está ligada indissoluvelmente, portanto, à desvalorização dos
bens-salário, para o que contribui, em geral, mas não necessariamente, a
produtividade do trabalho. (...) O que aparece claramente, portanto, é que as nações
desfavorecidas pela troca desigual não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os
preços e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço
redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas procuram
compensar a perda de renda gerada pelo comércio internacional por meio do recurso
de uma maior exploração do trabalhador. Chegamos assim a um ponto em que já não
nos basta continuar trabalhando simplesmente a noção de troca entre nações, mas
devemos encarar o fato de que, no marco dessa troca, a apropriação de valor
realizado encobre a apropriação de uma mais-valia que é gerada mediante a
exploração do trabalho no interior de cada nação. Sob esse ângulo, a transferência de
valor é uma transferência de mais-valia, que se apresenta desde o ponto de vista do
capitalista que opera na nação desfavorecida, como uma queda da taxa de mais-valia
e por isso da taxa de lucro. Assim, a contrapartida do processo mediante o qual a
América Latina contribuiu para incrementar a taxa de mais-valia e a taxa de lucro nos
países industriais implicou para ela efeitos rigorosamente opostos. E o que aparecia
como um mecanismo de compensação no nível de mercado é de fato um mecanismo
36

que opera em nível da produção interna. É para essa esfera que se deve deslocar,
portanto, o enfoque de nossa análise.”

4. A superexploração do trabalho- “Vimos que o problema colocado pela troca


desigual para a América Latina não é precisamente o de se contrapor à transferência
de valor que implica, mas compensar a perda de mais-valia, e que, incapaz de impedi-
la no nível das relações de mercado, a reação da economia dependente é compensá-
la no plano da produção interna. O aumento da intensidade do trabalho aparece,
nessa perspectiva, como um aumento da mais-valia, obtido através de uma maior
exploração do trabalhador e não do incremento de sua capacidade produtiva. O
mesmo se poderia dizer da prolongação da jornada de trabalho, isto é, do aumento da
mais-valia absoluta na sua forma clássica; diferentemente do primeiro, trata-se aqui de
aumentar simplesmente o tempo de trabalho excedente, que é aquele em que o
operário continua produzindo depois de criar um valor equivalente ao dos meios de
subsistência para o seu próprio consumo. Deve-se assinalar, finalmente, um terceiro
procedimento, que consiste em reduzir o consumo do operário mais além do seu limite
normal, pelo qual “o fundo necessário de consumo do operário se converte de fato,
dentro de certos limites, em um fundo de acumulação de capital”, implicando assim em
um modo específico de aumentar o tempo de trabalho excedente.
(...)o simples fato da vinculação ao mercado mundial, e a conversão
conseguinte da produção de valores de uso em produção de valores de troca que isso
acarreta, tem como resultado imediato desatar um afã por lucro que se torna tanto
mais desenfreado quanto mais atrasado é o modo de produção existente.(...)
O efeito da troca desigual é – à medida que coloca obstáculos a sua plena
satisfação – o de exacerbar esse afã por lucro e aguçar portanto os métodos de
extração de trabalho excedente.
Pois bem, os três mecanismos identificados – a intensificação do trabalho, a
prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário
ao operário para repor sua força de trabalho – configuram um modo de produção
fundado exclusivamente na maior exploração do trabalhador, e não no
desenvolvimento de sua capacidade produtiva. (...) Em termos capitalistas, esses
mecanismos (...)significam que o trabalho é remunerado abaixo de seu valor e
correspondem, portanto, a uma superexploração do trabalho.(...)
O sistema misto de servidão e de trabalho assalariado que se estabelece no
Brasil, ao desenvolver a economia da exportação para o mercado mundial, é uma das
vias pelas quais a América Latina chega ao capitalismo. (...)
Uma vez convertida em centro produtor de capital, a América Latina deverá
criar, portanto, seu próprio modo de circulação, que não poderá ser o mesmo que
aquele engendrado pelo capitalismo industrial e que deu lugar à dependência. (...)”

5.O ciclo do capital na economia dependente- “(...)chamada para contribuir com a


acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países
centrais, a América Latina teve de fazê-lo mediante uma acumulação baseada na
superexploração do trabalhador. É nessa contradição que radica a essência da
dependência latino-americana.(...)
É assim como o sacrifício do consumo individual dos trabalhadores em favor da
exportação para o mercado mundial deprime os níveis de demanda interna e erige o
mercado mundial como única saída para a produção. (...)
A harmonia que se estabelece, no nível do mercado mundial, entre a
exportação de matérias-primas e alimentos, por parte da América Latina, e a
importação de bens de consumo manufaturados europeus, encobre a dilaceração da
economia latino-americana, expressa pela cisão do consumo individual total em duas
esferas contrapostas. (...)”
6.O processo de industrialização – “(...)É apenas quando a crise da economia
capitalista internacional, correspondente ao período compreendido entre a Primeira e a
37

Segunda Guerras Mundiais, limita a acumulação baseada na produção para o


mercado externo que o eixo da acumulação se desloca para a indústria, dando origem
à moderna economia industrial que prevalece na região.
Deste ponto de vista que nos interessa, isso significa que a esfera alta da
circulação, que se articulava com a oferta externa de bens manufaturados de
consumo, desloca seu centro de gravidade para a produção interna, passando sua
parábola a coincidir, grosso modo, com a que descreve a esfera baixa, própria das
massas trabalhadoras. Parecia assim que o movimento excêntrico que apresentava a
economia exportadora começava a se corrigir, e que o capitalismo dependente
orientava-se no sentido de uma configuração similar à dos países industriais clássicos.
Foi sobre essa base que prosperaram, na década de 1950, as diferentes correntes
chamadas desenvolvimentistas, que supunham que os problemas econômicos e
sociais que afetavam a formação social latino-americana tivessem origem na
insuficiência do desenvolvimento capitalista e que a aceleração deste bastaria para
fazê-los desaparecer. (...)
(...) A industrialização latino-americana não cria, portanto, como nas economias
clássicas, sua própria demanda, mas nasce para atender a uma demanda
preexistente, e se estruturará em função das exigências de mercado procedentes dos
países avançados.
No início da industrialização, a participação dos trabalhadores na criação da
demanda não joga portanto um papel significativo na América Latina. (...)
(...)Surge então a necessidade de generalizar o consumo de manufaturas, o
que corresponde àquele momento em que, na economia clássica, os bens supérfluos
tiveram de se converter em bens de consumo popular.Isso leva a dois tipos de
adaptações na economia industrial dependente: a ampliação do consumo das
camadas médias, que é criado a partir da mais-valia acumulada, e o esforço para
aumentar a produtividade do trabalho, condição sine qua non para baratear as
mercadorias.
(...)A transição de um modo de acumulação para outro se torna, portanto, difícil
e é realizada com extrema lentidão, mas é suficiente para desencadear um
mecanismo que atuará, no longo prazo, no sentido de obstruir a transição, desviando
para um novo meio a busca de soluções para os problemas de realização encarados
pela economia industrial.
Esse mecanismo é o recurso à tecnologia estrangeira, destinado a elevar a
capacidade produtiva do trabalho.

7.O novo anel da espiral- “É um fato conhecido que, na medida em que abarca a
industrialização latino-americana, altera-se a composição de suas importações, por
meio da redução do item relativo a bens de consumo e a sua substituição por
matérias-primas, produtos semielaborados e maquinário destinados para a indústria.
Entretanto, a crise permanente do setor externo dos países da região não havia
permitido que as necessidades crescentes de elementos materiais do capital
constante pudessem ser satisfeitas exclusivamente pela força comercial. É por isso
que adquire singular importância a importação de capital estrangeiro, sob a forma de
financiamento de investimentos diretos na indústria.
As facilidades que a América Latina encontra no exterior para recorrer à
importação de capital não são acidentais. Devem-se à nova configuração que assume
a economia internacional capitalista no período pós-guerra. Por volta de 1950, ela
havia superado a crise que a afetara, a partir da década de 1910, e se encontrava já
reorganizada sob a égide estadunidense. O traço significativo desse período é que
esse fluxo de capital para a periferia se orienta de forma preferencial para o setor
industrial. (...)
Seja como for, no momento em que as economias industriais dependentes vão
buscar no exterior o instrumental tecnológico que lhes permita acelerar seu
crescimento, elevando a produtividade do trabalho, é aquele também em que, a partir
38

dos países centrais, têm origem importantes fluxos de capital que se direcionam para
elas, fluxos que lhes trazem a tecnologia requerida. (...)
Pois bem, ao se concentrar de maneira significativa nos setores produtores de
bens supérfluos, o desenvolvimento tecnológico acabaria por colocar graves
problemas de realização. O recurso utilizado para solucioná-los tem sido o de fazer a
intervenção do Estado (por meio da ampliação do aparato burocrático, das
subvenções aos produtores e do financiamento ao consumo supérfluo), assim como
fazer intervir na inflação, com o propósito de transferir poder de compra da esfera
baixa para a esfera alta da circulação; isso implicou rebaixar ainda mais os salários
reais, com o objetivo de contar co excedentes suficientes para efetuar a transferência
de renda. (...)Desde os projetos de integração econômica regional e sub-regional até o
desenho de políticas agressivas de competição internacional, assiste-se em toda a
América Latina à ressurreição do modelo da velha economia exportadora.
Nos últimos anos, a expressão acentuada dessas tendências no Brasil nos
levou a falar de um subimperialismo."
"(...)o subimperialismo não é um fenômeno especificamente brasileiro nem
corresponde a uma anomalia na evolução do capitalismo dependente. É certo que são
as condições próprias da economia brasileira que lhe permitiram levar bem adiante a
sua industrialização e criar inclusive uma indústria pesada, assim como as condições
que caracterizam a sua sociedade política, cujas contradições têm dado origem a um
Estado militarista de tipo prussiano, as que levaram o Brasil ao subimperialismo, mas
não é menos certo que esse não é nada mais do que uma forma particular que
assume a economia industrial (...) no marco do capitalismo dependente. Na Argentina
ou em El Salvador, no México, Chile, Peru, a dialética do desenvolvimento capitalista
dependente não é essencialmente distinta da que procuramos analisar aqui, em seus
traços mais gerais."

8.O desafio teórico. "Utilizar essa linha de análise para estudar as formações sociais
concretas da América Latina, orientar esse estudo no sentido de definir as
determinações que se encontram na base da luta de classes que ali se desenvolve e
abrir assim perspectivas mais claras para as forças sociais empenhadas em destruir
essa formação monstruosa que é o capitalismo dependente: este é o desafio teórico
que se coloca hoje em dia par os marxistas latino-americanos. A resposta que lhe
dermos influirá sem dúvida de maneira não desprezível no resultado a que chegarão
finalmente os processos políticos que estamos vivendo.”

Da teoria à prática: a militância no MIR para a superação da desigualdade


Pela intensa militância, Ruy rapidamente tornou-se um dos mais
importantes dirigentes do MIR chileno, já considerado o segundo homem do
Comitê Exterior no Comitê Central e faria parte também, em 1972, da Junta
Coordinadora Revolucionaria (JCR) onde se articulavam além do MIR (Chile) o
Ejército Popular Revolucionario (EPR- Argentina), o Movimento Tupamaro
(Uruguai) e o Ejército de Liberación Nacional (ELN-Bolívia).
Em outubro de 1972, Marini reúne-se com os líderes do MIR, ERP e
Tupamaros, no Chile, para a formação de uma aliança estratégica.Em junho de
1973, na Argentina, o ELN une-se ao MIR, ERP e Tupamaros e forma-se a
Junta Coordinadora Revolucionaria (JCR).
Segundo Nelson Gutiérrez, Ruy dividia com ele as tarefas de
organização do MIR, orientando também a intelectualidade e os artistas de
esquerda, bem como o debate sobre a formação das frentes amplas na
América Latina (Unidade Popular no Chile), auxiliando na fundação de uma
pequena editora, a revista Marxismo e Revolução, o jornal O Rebelde,
trabalhando do final da tarde até a madrugada para a construção da pauta,
39

revisão, editorial e artigo de fundo, junto com jornalistas Batista Von Showen,
Gladis Días, Maria Eugenia Camus, Augusto Carmona,Ernesto
Carmona,Faride Zerán, José Carrasco, entre outros intelectuais.

11 de setembro de 1973: Golpe no Chile


"El pueblo unido jamás será vencido"8
Segundo Vânia Bambirra, “a eclosão do golpe militar-burguês no Chile não nos
surpreendeu, mas nos equivocamos ao esperar uma resistência de massas, o que não
aconteceu. Fomos todos para o Ceso e, capitaneados por Ruy e Theotônio, esperamos em
vão, pela resistência. Ficamos quase três dias na instituição até que, pelo rádio, vimos esvair-
9
se a possibilidade de uma oposição."
Theotônio relata que depois do golpe foi levado pelo PS para um
aparelho, onde ficou 15 dias, sem contato nenhum, enquanto que Ruy e Vânia
e os filhos foram para a casa de um amigo, aguardando a organização da
resistência ao golpe. Em seguida, foi retirado de lá com a orientação de se
dirigir para a embaixada do México onde encontraria Vânia e Ruy, quando
soube que não havia sido organizada a resistência popular. Ao encontrar com
José Serra, Theotônio ficou sabendo que a embaixada do México já estava
lotada e seriam enviados para a do Panamá. Lá, Theotônio encontra-se com
Vânia e Ruy, onde ficam com mais de 300 asilados em apenas 100 m² por
cerca de cinco dias. Ruy, Vânia e os filhos vão para o Panamá e Theotônio vai
mais tarde para o México.
Nelson Gutiérrez10 explica a visão de Ruy sobre a crise da UP e o golpe:
“Durante o período da UP, Ruy investiu muito na elaboração da estratégia do MIR, apoiando-se
basicamente na ideia de que a estabilidade e a continuidade do processo e do governo da UP
somente poderia se sustentar na força que as massas liberam em sua ação mobilizadora,
dando origem inclusive a órgãos de poder popular e à decisão, já em andamento, de elas se
armarem moral e materialmente pelo menos até outubro de 1972. A estratégia da maioria da
UP e do governo buscava sustentação em uma defesa para se proteger nas trincheiras do
Estado burguês,na suposta constitucionalidade e profissionalismo das Forças Armadas e no
espírito republicano e democrático da classe dominante. Essa política terminaria por levar o
processo ao ponto que finalmente chegou, dando origem ao golpe, ao genocídio e à matança.”
Nelson conta que no dia do golpe Marini estava no apartamento onde se
abrigavam exilados e onde aconteciam as reuniões da Comissão Política do
MIR. No dia 13 de setembro, quando foi suspenso o toque de recolher, um
enviado da Comissão Política do MIR avisou que Marini deveria se exilar e
organizar a resistência no exterior. Como balanço do segundo exílio, Marini
conclui: “Meu exílio chileno correspondeu, assim, à minha chegada à maturidade, no plano
intelectual e político. Os acontecimentos que marcaram o seu fim – o golpe militar de 11 de
setembro, a experiência do terrorismo estatal em seu mais alto grau, os dias passados na
embaixada do Panamá, onde cerca de 200 pessoas faziam um esforço disciplinado e solidário
para coexistir em um pequeno apartamento, sob o ruído de bombas e tiroteios – foram vividos
com naturalidade, como contingências de um processo cujo significado histórico estava
perfeitamente claro para mim. Em meados de outubro de 1973, mais uma vez desprovido de
qualquer documentação, viajei para o Panamá.” (Memória acadêmica)

8
El pueblo unido jamás será vencido- Quilapayun - https://www.youtube.com/watch?v=Krk3lgpuC7w-
Inti Ilimani- https://www.youtube.com/watch?v=7F_9FEx7ymg- Quilapayun- manifestação popular do
século XXI- https://www.youtube.com/watch?v=K6lvvMAqMsI
9
Entrevista cedida a Roberta Traspadini e João Pedro Stedile, publicada em Ruy Mauro Marini: Vida e
Obra. Editora Expressão Popular.
10
Idem.
40

5- Europa, México, Terceiro Exílio (1973- 1978) e o amargo


regresso ao Brasil (1979- 1997)

O Terceiro exílio: a luta de resistência no Panamá, Alemanha e México

Marini se refugia na Embaixada do Panamá com Vânia e Theotonio até


meados de outubro e fica no Panamá até final de janeiro de 1974. Marini se
recorda dessa fase de tensão de saída do Chile, o asilo no Panamá , como
passagem para a Alemanha e, finalmente, o México: “Depois de uma recepção
formal e um pouco tensa, no aeroporto da cidade do Panamá, (...) os asilados fomos
transferidos para duas pequenas cidades do interior, Chitré e Las Tablas, cabendo ao meu
grupo esta última. Eu estivera praticamente desaparecido, desde 11 de setembro, dando
margem, inclusive , a que se espalhassem rumores sobre meu fuzilamento no Estádio
Nacional. (...) me transferi para a cidade do Panamá, onde amigos de diversas partes,
principalmente do México, me fizeram chegar algum dinheiro. Eu havia deixado o que tinha
com os companheiros chilenos e viajara com cerca de 40 dólares que Carmen, que havia sido
minha empregada doméstica, me havia passado, depois de converter no câmbio negro todas
as suas economias. Essa foi uma das manifestações mais comoventes de solidariedade que
recebi, então, da parte de chilenos humildes, mas conscientes e combativos. O Panamá não
poderia ser mais do que um ponto de passagem. Minhas prioridades, quanto à destinação
futura, eram, nesta ordem, a Argentina, pela proximidade com o Chile, e o México por razões
sentimentais.Mas, naturalmente, não me encontrava em posição de fechar porta alguma, razão
pela qual não freei as iniciativas que, em vários países, começaram a tomar amigos,
companheiros e colegas. Como as gestões para entrar na Argentina se prolongaram, até gorar,
e as relativas ao México foram também demoradas, acabei por ficar no Panamá até janeiro de
1974, sendo um dos últimos a deixar o país. Esses três meses permitiram-me sentir a
impressionante solidariedade dos meus amigos, particularmente mexicanos, venezuelanos e
italianos e, ao mesmo temo, constatar – não sem surpresa – o prestígio de que eu desfrutava
na América Latina e Europa.(...)Nas gestões junto a Gobernación, para obtenção do visto, foi
Flores Olea quem demonstrou mais força e, por isso, ao dirigir-me mais tarde ao México, meu
destino acabou sendo a Faculdade de Ciências Políticas e Sociais.(...)"
Em novembro de 1973, Marini observa a ação da Fundação Ebert, da
Alemanha, na Costa Rica, para atrair com investimento estrangeiro na América
Central, por meio da CLACSO, os intelectuais de esquerda da América Latina
para formar uma frente de esquerda social-democrata, sem a participação do
MIR e do PC, estratégia que ficaria mais clara em 1975. Marini comenta a
estratégia da social-democracia para criar a hegemonia burguesa no processo
de redemocratização da América Latina: "Essa ação viria dar frutos significativos, na
segunda metade da década.” (Memória acadêmica)

Resistência à contrarrevolução: o apoio da esquerda europeia (1974/1976)


Do Panamá, Ruy segue para a Alemanha, onde trabalhará no Instituto
Max Planck, com facilidades para a sua entrada legal na Europa e com
recursos financeiros, por ter um governo socialdemocrata que se opunha ao
golpe militar chileno: "Entretanto, a oferta mais insistente e interessante, quanto aos
aspectos financeiros e de documentação migratória, partiu espontaneamente de Otto Dreye, do
Instituto Max Planck, de Starnberg, perto de Munique (...). Foi para lá que segui, ao deixar o
Panamá, por razões que não cabe explicitar aqui.” (Memória acadêmica)
As razões que Ruy não pode explicitar em sua memória acadêmica são
as tarefas políticas colocadas pelo MIR: o apoio da esquerda europeia e a
organização da resistência à contrarrevolução. Constata-se logo a seguir um
grande apoio ao MIR na Itália e Alemanha.
41

No Instituto Max Planck Marini trabalha com ex-colegas como Gunder


Frank, que havia saído do Chile quinze dias antes do golpe, e mora no
apartamento da pesquisadora Dorothea Mezger. Embora queixe-se da
dificuldade da produção intelectual devido à intensa participação no movimento
de solidariedade à resistência chilena, Ruy organiza grupos de pesquisa sobre
os centros industriais exportadores, para a compreensão do delineamento da
nova divisão internacional do trabalho, que levou vários países exportadores
para o centro europeu e estadunidense, aproveitando a mão de obra barata e
auxílio dos governos locais para a instalação de indústrias. As teses de Ruy e
de Gunder Frank foram utilizadas nos grupos de estudo do instituto: “Integrando
uma ótima equipe e contando com uma infraestrutura de trabalho sem paralelo com as que tive
antes e vim a ter depois, devo reconhecer que meu rendimento intelectual foi baixo, no período
seguinte. Afora a participação em seminários, (...) foi pouco o que produzi ali.(...) minha
produção se limitou a colaborações menores – em geral relacionadas com o Chile – para
revistas e jornais, assim como entrevistas (...). Concorreu muito para isso, o amplo movimento
de solidariedade à resistência chilena, que constituiu fato marcante na vida política europeia,
naquela metade da década, e que me convocou, sem admitir reservas.” (Memória acadêmica)
Marini fala em nome da esquerda chilena na Europa e é ouvido por
centenas de milhares de pessoas, monitorado pela repressão chilena: “Movendo-
me sempre por toda a Europa e entre esta e a América Latina, fui forçado a enfrentar situações
inesperadas e, às vezes, verdadeiros desafios – como a de ser o principal orador no comício
que reuniu, em Frankfurt, por ocasião do primeiro aniversário do golpe chileno [11 de setembro
de 1974], cerca de 300 mil pessoas, provenientes de toda a Alemanha.” (Memória acadêmica)

A retomada da Teoria Marxista da Dependência com a geração de 1968,


no México
Em setembro de 1974, Ruy recebe convite para atuar como pesquisador
do Centro de Estudos Latino-Americanos (Cela) da UNAM, no México, onde
permanecerá até 1976. Aceita o convite, mantendo suas atividades de
pesquisa também no Instituto Max Planck, na Alemanha, até 1976. No Cela,
organiza grupos de estudo de Marx e Lênin com a juventude forjada nos
movimentos de 1968. Outra iniciativa de importância para a formação política
latino-americana é a fundação e edição, coletiva, da revista Cuadernos
Políticos de grande influência na intelectualidade mexicana até 1990. Sobre a
revista, Ruy explica: “Surgida graças ao impulso de Neus Spresate, que a ela dedicou o
melhor de seu entusiasmo, inteligência e notável sensibilidade, a revista reuniu um grupo
brilhante de intelectuais, formados no calor do movimento de 1968 (...); escaldado pela
experiência que eu vivera anteriormente no país, só alguns anos depois permiti que meu nome
fosse incluído no comitê editorial.(...)à diferença do que ocorre nesse tipo de publicação, ele
funcionava como uma verdadeira equipe de trabalho, com reuniões semanais que se
adentravam pela noite, fazendo da revista um produto realmente coletivo. Partindo de uma
aparente unidade ideológica, não tardariam a se apresentar tendências diferentes, que
chegaram, às vezes, ao ponto de ruptura, mas encontraram sempre a fórmula adequada para
assegurar o funcionamento do grupo. Mérito especial cabe nisso a Neus, cuja firmeza de
princípios aliava-se a uma excepcional delicadeza no trato. Essa dinâmica prenhe de
contradições, ademais de se constituir num exercício de convivência democrática, deu um
resultado positivo: longe de ostentar o monolitismo sufocante da maioria das revistas marxistas
Cuadernos soube ser um órgão estimulante e flexível, que abriu espaço a novas ideias e a
novos autores, arejando o clima intelectual da esquerda mexicana.” (Memória acadêmica)
Ruy retoma o projeto de descolonização política e cultural da esquerda e
reconhece ter sido a sua melhor experiência da vida docente, formando uma
geração de pesquisadores e professores universitários marxistas, com enfoque
na América Latina: “Acompanhar estudantes do começo ao fim do seu curso; assim,
ministrei-lhes História Mundial I e II, iniciando-os na teoria e metodologia do materialismo
histórico; um seminário de dois semestres sobre O capital e outro sobre a América Latina,
42

concluindo com dois semestres de laboratório ou oficina, de que saíram interessantes relatórios
de pesquisa, muitos deles servindo de base para suas teses de graduação, realizadas em sua
maioria sob minha orientação. (...) Suas teses se constituíram no aprofundamento
enriquecedor de questões levantadas em Dialética da dependência, em particular uma
metodologia para a determinação do valor da força de trabalho e sua aplicação ao México
(...)”.(Memória acadêmica)
Ruy havia conseguido mobilizar os estudantes para a formação marxista
em sala de aula. Com o tempo, a disciplina de marxismo era a mais popular da
universidade. Como educador, Ruy lembra dessa experiência da educação de
massa na universidade: “Na FCPyS, além de acompanhar a formação de um grupo de
estudantes, eu ministrava regularmente a disciplina História Mundial Contemporânea,que,
ampliada para três semestres, convocou um número crescente de alunos, rompendo – ao
reunir até 300 – o esquema de divisão de turmas vigente. Em vez de optar pela limitação da
matrícula, que frustraria, a meu modo de ver, os estudantes, preferi recorrer ao sistema que
utilizava em Brasília, baseado em aulas maiores e menores, valendo-me de uma equipe de
ajudantes e monitores que, em seus melhores momentos, somou sete pessoas. Os resultados
foram amplamente satisfatórios, influenciando a reorganização pedagógica da faculdade. Na
Divisão de Pós-Graduação, eu dirigia, regularmente, um seminário para alunos de mestrado e
doutorado, na Área de Estudos Latino-Americanos, que tinha como finalidade ajudar os
estudantes a definir seus temas de pesquisa e assessorá-los em seu desenvolvimento,
independemente de que fosse ou não orientandos meus.” (Memória acadêmica)
Em 1975, Bruno Marini, sobrinho de Ruy, filho de Ophélia, a irmã mais
velha, vai para o México estudar sociologia na UNAM, como aluno de Ruy.
Nesse período, Ruy está sendo fortemente vigiado por informantes da
repressão do México e do Chile, disfarçados de estudantes. Bruno percebe que
muitos "alunos" procuram se aproximar dele, ficar amigo, frequentar a casa
para saber mais de Ruy. No entanto, Ruy havia preparado Bruno para não se
identificar como sobrinho, mantendo-se distanciado. Ruy alerta o sobrinho de
que é militante do MIR, e que Pinochet havia mandado caçar e assassinar os
militantes do MIR fora do Chile. Quando as suspeitas ficaram mais tênues, Ruy
se aproximou mais do sobrinho, no México. Bruno foi aluno de Ruy Mauro, de
introdução ao marxismo. Essa disciplina era dada em auditório lotado. A aula
era dada na forma de palestra, em 2 horas, e abertura dos 20 minutos finais
para perguntas. Ruy sentava na ponta da mesa, tirava os óculos, colocava o
relógio na mesa e falava direto. Mas, a sua exposição era didática e muito
dinâmica. Ele tratava dos conceitos marxistas na história do conceito e na
história da humanidade. Mostrava que aquele conceito trabalhado por Marx, já
tinha sido iniciado em Hegel, etc. Para entender o trabalho, voltava lá para a
pré-história, mostrava o desenvolvimento da humanidade, a relação em
sociedade, natureza, etc. Sempre tratava da questão da ética humana,
relacionando história e filosofia. Tudo isso, segundo Bruno, falado com um
espanhol muito ruim, o espanhol de Barbacena, sem a entonação dos erres (r).
Então, os estudantes demoravam mais para entender o espanhol do que a
exposição sobre o marxismo. Mas, depois todos iam pegando o jeito,
entendendo espanhol mineiro de Ruy e gostavam muito de suas aulas.Mas, ele
nem imaginava que era um espanhol ruim, pelo contrário acreditava que falava
um espanhol impecável. Para os estudantes que buscavam um
aprofundamento, Ruy organizava os grupos de estudo e pesquisa, mas era
muito rigoroso, pois esses grupos estavam destinados para a formação
intelectual de quadros. Não poderia continuar aqueles quem não tivessem
disciplina e não se esforçassem nos estudos.
O MIR, organizado com sua base em Cuba, indica Marini como
responsável pelo trabalho externo da organização e nesse período estabelece
43

contatos em vários países da América Latina, Estados Unidos e Europa. Em


1975, Ruy percebe a interceptação, pela repressão argentina, de um correio do
MIR sobre uma entrevista com Edgardo Enríquez, irmão de Miguel Enríquez,
líder do MIR: “O trágico desaparecimento de Edgardo, um ano depois, em Buenos Aires, fala
eloquentemente do que teria significado para mim cair em mãos do serviço secreto do Chile.”
Nos anos de 1975 e 1976, Ruy retoma o debate na imprensa latino-
americana, nos jornais Excelsior e El Sol de México, mas logo se afasta por
problemas com censura e passa a colaborar em El Universal, até 1980, com
total liberdade. Marini destaca os artigos sobre a política dos Estados Unidos
para a América Latina, com o então presidente James Carter: “Neles, eu indicava o
deslizamento da ênfase estadunidense da doutrina clássica da contrainsurgência, que
incentivara os golpes militares na região, para formas de democracia limitada, que Samuel
Huntington chamava de ‘democracias governáveis’ e o Departamento de Estado de
‘democracias viáveis’. Combinando isso com a análise das tendências que, embora
tenuemente, se delineavam no Brasil e em outros países latino-americanos, eu previa a
substituição das ditaduras militares e os processos de redemocratização. Estes, apesar de
começarem com cartas marcadas, buscando a construção de um Estado de quatro poderes
(com um poder tutelar, exercido pelas Forças Armadas, superposto aos três poderes da
democracia burguesa representativa), abriam, a meu ver, amplo espaço à mobilização das
forças populares e exigiam da esquerda uma readequação política radical.”(Memória
acadêmica)
Em 1976, Ruy publica os três ensaios escritos no Chile sobre as causas
e atuação do governo da Unidade Popular, além de outros artigos publicados
no Chile Hoy, de 1974, sobre a crise e a queda do governo da UP. Marini
chama atenção para o erro conceitual na caracterização do golpe chileno como
“fascismo militar”: “(...)a caracterização da contrarrevolução chilena (e latino-americana em
geral) como fascista mistificava a natureza real do processo e visava justificar a formação de
frentes amplas, em que a burguesia tendia a assumir papel hegemônico. Naquele momento,
parecia ainda possível lutar por uma política de alianças que não implicasse a subordinação
das forças populares à burguesia, uma vez que a esquerda detinha ainda, localizadamente,
capacidade de ação na América Latina e estava em ascensão na Europa ocidental, na África e
na Ásia. As derrotas que ela sofreu, depois, na Europa e nos países latino-americanos,
levaram ao triunfo da fórmula da frente ampla sob hegemonia burguesa, que presidiu à
redemocratização latino-americana dos anos 1980, salvo na América Central, onde prevaleceu
o esquema de alianças pelo qual eu me batia. (...)Me parecia que, independentemente dos
traços fascistas que apresentava a mobilização da direita, não existiam condições para um
verdadeiro regime fascista. Essa discussão continuou, de resto, ao longo da década de 1970,
levando-me a elaborar o conceito de Estado de contrainsurgência e, quando se podia já
vislumbrar o processo de redemocratização, o de Estado do “quarto poder”. (Memória
acadêmica)
A universidade colhia os frutos do processo de latino-americanização da
universidade com a presença de intelectuais de esquerda exilados. Os
diferentes olhares da comunidade latino-americana reunidos na comunidade
acadêmica mexicana11 procuravam entender, segundo Ana Esther Ceceña12,
aluna de Marini na graduação e pós-graduação, o “quebra-cabeças” da
dominação na periferia e as possibilidades de “mudança social”. Essa
comunidade intelectual do México dos anos 1970 formou a primeira geração do
pensamento crítico latino-americano. Marini organizou grupos de pesquisa e
estudo sobre o movimento operário e o movimento revolucionário, com um
centro de documentação para divulgação entre todas as organizações latino-
americanas.

11
Sérgio Bagú, Theotonio dos Santos, René Zavaleta, Pedro Vaz, Vânia Bambirra, Pedro Vuskovic, Agustín Cueva,
Ruy Mauro Marini, José Luis Ceceña, Bolívar Echeverría, Pablo Gonzáles Casanova, Carlos Pereyra.
12
Entrevista a João Pedro Stedile e Roberta Traspadini publicada em Ruy Mauro Marini - vida e obra.
44

Marini retorna com o desafio colocado pela JCR de agregar


revolucionários para uma ação organizada contra o sistema de dominação na
América Latina. Gutiérrez explica que Marini conseguiu fazer, de 1974 a 1976,
um excelente trabalho de organização de uma frente de apoio à resistência no
Chile. Com o codinome de “Luís” é identificado pela CIA, na Operação Condor,
como um dos principais dirigentes a ser capturado, mas no seu banco de
dados não tinham fotos que identificassem esse dirigente do MIR.
A social-democracia organiza, em 1975, com o apoio da Fundação Ebert
um encontro das organizações de esquerda, na Venezuela, para a chamada
“renovação socialista”, com a exclusão do MIR e do PC. A criação da
“esquerda renovada” pela social-democracia na Europa e América Latina levou
à ruptura da aliança política do PC e PS.
A transição da ditadura para a democracia: a hegemonia em disputa
Em 1976, o MIR estabelece para Marini, segundo Gutiérrez, a tarefa
teórica de explicar o golpe no Chile para desmontar a tese conservadora
dominante no exterior que responsabilizava o MIR pelo golpe e pela queda de
Allende. O artigo El reformismo y la contrarrevolución: estudios sobre Chile é
um dos artigos produzidos para este objetivo. Outro artigo é Duas estratégias
no processo chileno, explicado por Marini: “A finalidade do artigo era a de – em
contraposição à falsa tese que a maioria da esquerda chilena difundira no exterior,
descarregando sobre o MIR a responsabilidade do golpe – analisarar duas estratégias da
esquerda, durante o governo da Unidade Popular, e mostrar de que modo a tensão entre a
mobilização popular que este induzira – dando, inclusive, origem aos órgãos de poder popular
– e a dinâmica própria do Estado burguês, respaldada pela maioria da UP, acabara por
conduzir o processo ao ponto de ruptura. Nesse contexto, MIR e PC, embora constituíssem os
centros de elaboração teórica e de condução política mais influentes em seus respectivos
campos, polarizando ao seu redor as demais forças da esquerda, não havia atuado
isoladamente, além de que só se poderia explicar sua atuação em função do desenvolvimento
da luta de classes; a responsabilidade do golpe caía, porém, ao imperialismo estadunidense e
à burguesia chilena, podendo se criticar o MIR e o PC apenas pelas falhas que haviam tido na
implementação de suas respectivas estratégias.” (Memória acadêmica)
Gutiérrez, com quem Marini militava no MIR, explica a importância do
artigo Duas estratégias no processo chileno: “Ele esclarecia que a linha do MIR,
durante o governo da UP, baseada na mobilização popular e na criação de órgãos de poder
alternativos, se chocou com a própria dinâmica do Estado burguês, respaldada pelo PC e pela
maioria da UP, em cuja defesa, sustentariam eles, tentou estabilizar o processo e o Governo,
mas que, ao final, terminou por conduzir o processo a um ponto de ruptura, uma vez que a
burguesia se reunificou politicamente.” (Memória acadêmica)
Em julho de 1976, Marini encontra com Nelson Gutiérrez, extraditado
com a família, para reunião anual do Comitê Exterior do MIR em Cuba, que
rejeita a proposta de se incorporar à direção do MIR, fragilizada com o
assassinato de muitos de seus líderes, então se estabelece a tarefa de manter
a edição regular de Correio da Resistência, revista política de organização da
esquerda no exterior com entrada clandestina no Chile e a tarefa de conseguir
fundos para criar, com apoio de Claudio Colombani, o Cidamo (Centro de
Informação, Documentação e Análise do Movimento Operário na América
Latina) para a urgente continuidade da criação da teoria marxista e
revolucionária. Marini explica que o Cidamo, além da pesquisa econômica,
contribuiu para a compreensão das mudanças estruturais do capitalismo dos
anos 1970 a 1980: “Em Cidamo, num marco de trabalho coletivo, desenvolvi, ainda, outras
linhas complementares de pesquisa. Uma delas, referida à situação internacional, centrou-se
nas condições e consequências da passagem do sistema mundial de poder da bipolaridade à
multipolaridade; o resultado dessa reflexão verteu-se, principalmente, nas análises de Cidamo
Internacional.Outra, tinha como objeto as características da crise econômica mundial e suas
45

implicações para a América Latina, preocupando-se particularmente com os efeitos das novas
tecnologias nas condições de trabalho.(...)Uma terceira linha de reflexão girou em torno dos
rumos do socialismo mundial, tendo em vista a crise da esquerda europeia, na segunda
metade dos anos 1970, e a questão polonesa, em 1980 (...), uma reinterpretação do processo
histórico do stalinismo, que retomava, de certo modo, o tratamento que eu lhe dera, no Chile,
no curso sobre a teoria das revoluções, apontando para a necessidade de situar o socialismo
na perspectiva histórica das lutas de classes nacionais e internacionais, incluindo as que
correspondiam à América Latina.” (Memória acadêmica)
Em fevereiro de 1977, Ruy apresenta uma tese, no seminário de
intelectuais da esquerda latino-americana em Paris, sobre a transição da
ditadura à democracia na América Latina sob hegemonia da burguesia com a
formação do Estado do quarto poder, das Forças Armadas, e a necessidade da
mobilização popular sob direção de uma readequação política radical da
esquerda, publicada como La cuestión del Estado em las luchas de clases em
América Latina por Cuadernos Políticos. Essa tese foi rechaçada com
indignação e Frank fez a crítica com as palavras: “Fazer a defesa de Ruy
Mauro Marini contra Ruy Mauro Marini”.
Em 1977, Ruy participa da Fundação do Centro de Informação,
Documentação e Análise do Movimento Operário na América Latina (Cidamo),
com apoio de Claudio Colombani e destaque para a participação de Jaime
Osorio, até 1982. De acordo com Marini, o Centro era mantido por trabalho
quase sempre não remunerado e com equipes dedicadas à análise de
conjuntura. Segundo Gutiérrez, o Cidamo transformou-se em um centro de
investigação e produção teórica para a elaboração política do MIR e do
movimento revolucionário latino-americano. De acordo com Theotonio dos
Santos, ao dirigir o Cidamo, “aprofundou essas análises [superexploração no
capitalismo dependente] com especial ênfase na reestruturação da indústria
automobilística mundial e, particularmente, latino-americana (Análisis de los
mecanismos de protección al salário em la esfera de la producción, Secretaria
do Trabalho, México.)
Em 1977, realiza a prova para Professor Titular (título até 1984) da
UNAM-La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo ;Pós-
graduação em Economia – UNAM. Marini chama a atenção para as confusões
existentes em torno do conceito de subimperalismo, tratado erroneamente
como “potência média”, “satélite privilegiado” e até mesmo como “novos países
imperialistas”. Em outra avaliação para o cargo de professor titular C, Marini
apresentou o trabalho Plusvalía extraordinária y acumulación de capital,
baseado nos esquemas de reprodução do Livro II de O Capital, dividido em três
partes: “Na primeira, exponho os esquemas e, entrando na polêmica que eles suscitaram em
diferentes momentos da história do marxismo, busco mostrar a finalidade específica que
cumprem na construção teórica de Marx – a demonstração da necessária compatibilização das
magnitudes de valor produzidas nos distintos departamentos de economia – e analiso as três
premissas que tanta discussão causaram: a) a exclusão do mercado mundial;b) a existência de
apenas duas classes e c) a consideração do grau de exploração do trabalho como fator
constante. Na segunda, parto da variação desse último fator, examinando os efeitos de
mudanças na jornada, na intensidade e na produtividade sobre a relação de valor de uso-valor
e sobre a distribuição. Na terceira seção, verificar o uso dos esquemas por três autores: Maria
da Conceição Tavares,s/d, Francisco de Oliveira e Mazzuchelli, 1977, e Gilberto Mathias, 1977,
mostrando que a primeira, além de não romper de fato com o esquema tradicional Cepalino
(agricultura-indústria-Estado), confunde valor de uso e valor; os segundos, captando com
agudeza a contradição moeda nacional/dinheiro mundial, acabam por se fixar apenas no
movimento da circulação; e o terceiro, que nos brinda com uma brilhante análise sobre o papel
do Estado na determinação da taxa de lucro, se esquece de considerar a relação lucro/mais-
valia (retomamos essa discussão no México, naquele ano, ocasião em que Mathias admitiu ter-
46

se equivocado na crítica que me fazia, em seu trabalho, a respeito da superexploração do


trabalho). Esse ensaio (...) é um complemento indispensável a Dialética de la dependência
(...)sobre o efeito da superexploração do trabalho na fixação da mais-valia extraordinária.”
Entre 1977 e 1978, a direção do MIR, segundo Gutiérrez, formulou a
política de retorno como eixo fundamental da sua atividade imediata,
reorganizando a introdução da militância nas frentes de luta, antes estacionada
na retaguarda exterior: “Em princípio, o programa de retorno se viu fortemente influenciado
pelas concepções militaristas e propostas que pretendiam reduzir a luta política para derrubar a
ditadura à pura e explícita ação militar. Logo, isso foi corrigido para se voltar a uma política
global, não reducionista,que tentava apoiar as forças partidárias que permaneciam no Chile, no
reforço de sua capacidade de direção e recuperação de territórios.Tratava-se de reinstalar no
Chile quadros com experiência acumulada, com conhecimentos direto e indireto, com domínio
da arte de formação e acumulação de forças.” (Memória Acadêmica)
Ruy é incorporado ao Comitê Central do MIR para o programa de
retorno, entusiasmados pela retomada do ascenso das lutas revolucionárias na
América Central, especialmente pelo movimento sandinista. O MIR tinha como
desafio, segundo Gutiérrez, enfrentar a ação da social-democracia que destruiu
a unidade da esquerda chilena, atraindo a maior parte e excluindo o PC e o
MIR, para a retomada da hegemonia burguesa no processo de
redemocratização.
Em seguida, Ruy assume a tarefa de educação política e formação de
quadros, no exterior, dirigindo as escolas de formação, como já havia feito no
Chile, para o envio de militantes. Gutiérrez explica o resultado do trabalho
dirigido por Ruy: “Reunimos um grupo de excelentes quadros, com boa formação, ampla
experiência, responsabilidade política, espírito crítico e libertário, domínio da teoria e dos
materiais de organização coletiva. Entre eles, destacam-se Aníbal Matamala, Martín
Hernández, Lily Rivas, Ricardo Fröden, Pedro Landsberguer. Os homens e mulheres que
passaram pela escola ganharam capacidade de reflexão, organização e resolução de
problemas, mas, sobretudo, uma autonomia, ultrapassando o nível de simples executores de
políticas.”
Em 1978, Ruy parte para o Chile, com a possibilidade do retorno ao
Brasil, e enfrenta a campanha de distorção das teses da Teoria Marxista da
Dependência para impedir o debate sobre as contribuições de Marini para a
transição da ditadura para a democracia sob hegemonia da classe
trabalhadora.
Theotonio dos Santos explica que o retorno de Marini ao Brasil é
precedido pela publicação de um artigo de crítica à Dialética da dependência
elaborado por Fernando Henrique Cardoso e por José Serra como
“estancacionista”. Vânia Bambirra afirma que "esse artigo era sinistro e
anunciava no final que o objetivo era trancar com cadeados bem fechados a
influência dessa corrente teórica de Ruy Mauro na América Latina." Para Vânia,
não havia seriedade na argumentação de Fernando Henrique, uma vez que
confunde conceitos de mais valia e lucro, com o objetivo político de
desqualificação da teoria de Ruy Mauro, ainda desconhecido no Brasil, e, por
isso, não publicou o artigo de resposta de Marini na revista Cebrap, financiada
pela Fundação Ford. A avaliação desqualificada de Fernando Henrique
considera que Ruy Mauro não havia criado uma nova categoria, a
superexploração, porque ela seria a mais valia absoluta. Vânia percebe que
Fernando Henrique não concebe inclusive a ideia de mais valia como o
trabalho não pago ao trabalhador, como roubo: trabalha, mas não leva, fica
para o burguês. Ele confunde mais valia com lucro, porque a ideia de lucro
acoberta a realidade terrena da exploração.
47

Ruy percebe que há uma forte preocupação com seu retorno ao Brasil:
"O artigo tinha duas motivações. A primeira era o antigo desentendimento com Cardoso, que
ele expusera em vários trabalhos, e que eu respondera parcialmente no posfácio à Dialéctica
de la dependência e no refácio de 1974 a Subdesarrollo y revolución. A segunda era a clara
preocupação dos autores com a anistia política que se aproximava e que poderia me abrir
espaço no Brasil. É, sem dúvida, a coisa mais grossseira que já se escreveu contra mim, que
me forçou – deixando de lado certa indiferença que sempre senti pela sorte dos meus escritos
– a fazer uma réplica em forma. Tarefa, de resto, não muito difícil: pretendendo situar-se no
terreno do marxismo, o ataque não consegue ir além do instrumental teórico ricardiano (autor
que Serra certamente estudara, em seu curso de doutoramento recém-concluído),
confundindo, portanto, valor de uso e valor, assim como lucro e mais-valia, ao mesmo tempo
em que – preocupado em combater teses estagnacionistas que eu, supostamente, teria
defendido – incorre em grotesca apologia do capitalismo brasileiro. A polêmica teve grande
difusão no exterior, não parecendo ter sido ali alcançada a desqualificação visada pelos
autores do ataque, à diferença do Brasil, onde a minha resposta sequer foi publicada.”
Theotônio lembra que a resposta de Marini não é publicada no Brasil,
apenas na Revista Mexicana de Sociologia: Las razones del neo-desarrollismo.
Marini, Vânia Bambirra, Andre Gunder Frank e Theotonio haviam identificado
que a partir de 1964 a dinâmica do capitalismo mundial e brasileiro, com a
entrada em uma nova fase caracterizada pela hegemonia do capital financeiro
com tendência expansionista e o aumento do papel do Estado junto ao capital
privado nacional e internacional. Mas, não poderiam ser chamados de
“estancacionistas”, pois haviam identificado o caráter dinâmico do capitalismo
dependente. Theotônio destaca que, para além da polêmica Marini/Cardoso, há
o resultado da política implantada por FHC com enorme desequilíbrio cambial e
fiscal, a crescente ação do Estado a favor do grande capital financeiro nacional
e internacional e a crescente superexploração da mão de obra assalariada e o
grande autoritarismo tecnocrático marcado pelas “medidas provisórias”.

1979: O amargo regresso


Ao chegar no aeroporto do Rio de Janeiro, aguardado por familiares e
amigos, Ruy é preso, para desespero de todos, sendo libertado só depois de
três dias. Mantém até 1984 uma relação de trabalho na UNAM. “Com a
decretação da anistia política, em 1979, pude vir, em dezembro, ao Brasil, depois de quatorze
anos. Continuei, entretanto, ligado ao México, com breves visitas ao país em 1982 (quando fui
tomado novamente preso, por quase três dias) e, em licença sabática, em fins de 1983 e
princípios de 1984. No segundo semestre desse ano, decidi voltar de vez, embora só em
dezembro renunciasse ao meu cargo na Unam. Chegava ao fim o meu exílio, que durara quase
vinte anos. (...)E vinte anos – sobretudo se correspondem à nossa fase de afirmação e
desenvolvimento profissional – contam muito. Contam ainda mais se o país a que
regressamos, apesar de ter tido o seu movimento geral determinado pelas mesmas
gtendências que regeram o da América Latina, participando, pois, do mesmo processo de
hipertrofia das desigualdades de classe, da dependência externa e do terrorismo de Estado
que a caracterizou, nesse período, o fez acentuando seu isolamento cultural em relação a ela e
lançando-se a um consumo compulsivo das ideias em moda nos Estados Unidos e Europa.”
(Memória acadêmica)
Marini caracteriza esse período, no Brasil, como o de fechamento da
intelectualidade no meio acadêmico: “Trata-se da substituição de atividades mais
abertas, que buscam comunicação com um público mais amplo, visando incidir no processo de
formação de opinião, e que se expressam em livros, ensaios e artigos de alcance geral, por
atividades e caráter mais especializado, circunscritas a grupos fechados (...).” (Memória
acadêmica)
Segundo Ana Esther Ceceña, Marini é um intelectual esquecido no
Brasil. Vânia Bambirra explica que ela e Theothonio dos Santos retornam ao
Brasil, mas Marini permanece no México, porque “as instituições acadêmicas
48

brasileiras estavam fechadas para nós, mas proibidas para Ruy depois dos ataques de
Fernando Henrique Cardoso e José Serra. Ambos haviam escrito uma pretensa crítica a Ruy
Mauro que aos olhos da revista mexicana em que seria impressa, tamanha agressão apenas
poderia ser publicada com a merecida resposta, tanto que os mexicanos esperaram –
atrasando pela primeira vez um número na história da revista – até a resposta de Marini. FHC e
Serra – mesmo antes de obterem qualquer mandato – mostraram-se fascistas ao proporem,
naquele artigo, a censura de um intelectual latino-americano.” Vânia argumenta que Fernando
Henrique já havia planejado o isolamento de Marini no Brasil quando nota que sua forte
influência no meio acadêmico e político da América Latina.
O MIR mobiliza os intelectuais junto com Ruy para realizarem um estudo
sobre o padrão de acumulação do capital no Chile, com redação concluída em
Cuba. Ruy mostra que o período de expansão do capitalismo contou com as
ditaduras para o aprofundamento da acumulação do capital, tarefa da América
Latina, na divisão internacional do trabalho.Com a crise de 1981, a burguesia
se divide, fragilizando as ditaduras.
Ruy propõe realizar uma revisão do pensamento latino-americano do
século XX, desde Ramiro Guerra e Mariátegui. Segundo Gutiérrez, Marini
estuda as transformações do Estado no chamado processo de
redemocratização com os conceitos de “Estado da contrainsurgência” e
“Estado do quarto poder”, que ao lado dos poderes tradicionais como
Executivo, Legislativo e Judiciário, surgia o poder militar, autônomo, que
“subordinava, sobredeterminava e protegia os outros poderes do Estado. Isso colocava um
limite à transformação da luta política em confrontração armada e/ou militar. O conceito procura
dar conta do fato de que enfrentávamos um Estado burguês, um Estado do poder, mais
poderoso e militarizado, que aumentava as dificuldades de uma estratégia baseada no simples
assalto ao poder do Estado, ou de uma estratégia baseada numa guerrilha clássica como a dos
meados dos anos 1950.”
De 1980 a 1983, Marini explica que continua o estudo do capitalismo na
América Latina e o pensamento latino-americano: “Contudo, o centro, por excelência,
de minhas pesquisas continuou sendo o desenvolvimento capitalista latino-americano e o modo
como era percebido e influído pelo processo teórico. Recorrendo ao conceito de padrão de
reprodução do capital, que eu trabalhava no Cidamo, vazei em novo molde a exposição desse
desenvolvimento nos cursos que realizei (...)Paralelamente, submeti outra vez à crítica a teoria
desenvolvimentista da Cepal e, passando pela teoria da dependência, as correntes
endogenista e neodesenvolvimentista (que se completavam, no plano político, com o
neogramscianismo então em voga).Isso correspondia à minha preocupação em desentranhar a
matriz teórica das políticas econômicas mais ou menos liberais que começavam a ser
aplicadas na região e que haviam tido o Chile como laboratório (...).”
Diante da análise da crise capitalista, Marini defendeu a corrente
minoritária na direção do MIR da estratégia de amplas alianças, mas sem a
subordinação à burguesia, contra a ditadura, ao invés da organização da luta
armada para derrubar a ditadura. Na sua organização para o retorno, Marini
estuda os processos de redemocratização sob hegemonia burguesa e analisa
os limites das assembleias constituintes e das novas constituições.
Em 1982, é preso por três dias; não se filia a nenhum partido, mas se
aproxima do PT e do PDT e chega a retomar o diálogo com Luiz Carlos Prestes
– que havia rompido com o PCB.

O difícil retorno à universidade: uma crítica necessária (1984-1997)


Em meados dos anos 1980, Marini participa de uma mesa redonda com
economistas do MDB, no Rio: “(...) eu havia sido, não sem surpresa, o único a constatar
a tese de que o Brasil, sob a ditadura militar, ampliara as bases de sua autonomia no plano
internacional e dispunha de condições invejáveis para enfrentar os desafios da década de
1980.” Marini observa que a intelectualidade brasileira tinha sido isolada dos
debates da América Latina pela ditadura, mas também fora cooptada pelo
49

corporativismo acadêmico: “Para que esta se tornasse o que hoje é concorreu


decisivamente, além do exílio sofrido pela intelectualidade rebelde dos aos 1960, uma política
coerente, baseada num conjunto de instrumentos: a censura, quer erigiu uma barreira à rica
produção sociológica, econômica e política latino-americana desse período; a criação de novos
meios de comunicação, em particular a televisão, funcionais ao sistema; a intervenção nas
universidades, que expulsou professores e alunos, mutilou os planos de estudo e, por meio da
privatização, degradou até o limite a qualidade do ensino; e a destinação de gordas verbas
para a pesquisa e a pós-graduação, implicando novos critérios para a seleção de temas e
o direcionamento das bolsas de estudo para os Estados Unidos e alguns centros europeus.
A análise da política cultural da ditadura, iniciada com os acordos MEC-Usaid, e de suas
consequências ainda está por ser feita, representando um ajuste de contas indispensável para
que o Brasil possa descobrir sua verdadeira identidade.(...) Essa política teria resultado, porém,
menos exitosa se mais e mais intelectuais não houvessem sido cooptados pelo sistema,
inclusive aqueles que se situavam em oposição ao regime. Ocorreu no país um fenômeno
curioso: intelectuais de esquerda, que chegavam a ocupar posições em centros acadêmicos,
ou que os criavam com o fim precípuo de ocupar posições, estabeleciam à sua volta uma rede
de proteção contra o assédio da ditadura e utilizavam sua influência sobre a destinação de
verbas e de bolsas para consolidar o que haviam conquista, atuando com base em critérios
sumamente grupais. Entretanto, o que aparecia, orignalmente, como autodefesa e
solidariedade tornou-se, com o correr do tempo – principalmente ao ter início a desagregação
do regime, em fins dos anos 1970, uma vocação irresistível ao corporativismo, a cumplicidade
e o desejo de exclusão de todo aquele – qualquer que fosse sua conotação política – que
ameaçasse o poder das pessoas e dos grupos beneficiários desse processo. Por outra parte, o
ambiente fechado que sufocava o país resultava proveitoso para os que nele podiam entrar e
sair livremente, monopolizar e personalizar as ideias que floresciam na vida intelectual da
região, adequando-as previamente aos limites estabelecidos pela ditadura. Nessse contexto, a
maioria da intelectualidade brasileira de esquerda colaborou, de maneira mais ou menos
consciente, com a política oficial, fechando o caminho à difusão dos temas que agitaram a
esquerda latino-americana na década de 1970, marcada por processos políticos de grande
transcendência e concluída com uma revolução popular vitoriosa.” (Memória acadêmica)
Ruy descreve a difícil adaptação à realidade brasileira e a aproximação
de antigos amigos para a transformação da atrasada mentalidade da
intelectualidade brasileira: “Como quer que fosse, esse era o país ao qual eu devia me
reintegrar. É natural que, chegando, me aproximasse de antigos companheiros de lutas e de
exílio, aos quais as eleições de 1982 haviam proporcionado novo campo de ação, em especial
Darcy Ribeiro, Neiva Moreira e Theotônio dos Santos. Darcy, então preocupado em introduzir
uma cunha na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com o fim de promover a recuperação
desse autêntico “elefante branco”, solicitou-me projeto de um centro de estudos nacionais, a
ser criado ali. Feito isso, participei, com ele, das negociações com a reitoria da Uerj e da
convocatória a destacados intelectuais de esquerda. A resistência oposta pela universidade
levou, porém, o projeto ao fracasso, tendo ela conseguido se manter intocável durante toda a
gestão de Brizola.” (Memória acadêmica)

Entre 1984 e 1986, Ruy foi convidado a ser professor da Fundação


Escola de Serviço Público do Rio de Janeiro (FESP) por Theotonio dos Santos,
trabalhando junto com Vânia Bambirra, e desenvolvem projetos de pesquisa
por intermédio de um instituto que criaram para captar recursos internacionais.
“Foi com Theotônio, que ocupava um cargo de direção da Fundação Escola de Serviço Público
(Fesp) do Rio de Janeiro, que encontrei condições de trabalho mais favoráveis.” (Memória
acadêmica)
Trabalha com Neiva Moreira, em 1984, na redação do Jornal do País,
quinzenal, com a edição de oito números do suplemento especial sobre
relações Brasil/Estados Unidos, a indústria da informática, a crise da
universidade, as seitas religosas, a imprensa alternativa, a represa de Tucurí,
mas afasta-se diante de diferenças de opinião e da crise do jornal.
Ruy relata como a mídia, em sintonia com a campanha de FHC e Serra,
procuram anular as contribuições teóricas para a universidade brasileira,
50

durante o Congresso Internacional de Economistas, em 1984, em que se


discutia “Crise e reordenamento da economia capitalista mundial”: “Durante o congresso, fui
apanhado de surpresa por jornalistas da revista IstoÉ, daí resultando uma reportagem
sensacionalista em que eu apareci, uma vez mais, como grande responsável pela luta armada
no Brasil.” (Memória acadêmica)
Vânia, Marini e Theotônio apresentam para Neiva Moreira, que já
publicava Cadernos do Terceiro Mundo, o projeto de uma revista trimestral de
caráter acadêmico, político e cultural, Terra Firme,com Moreira como jornalista
responsável. O primeiro número da revista foi ilustrada por Wilma Martins, com
artigos de Emir Sader, Theotonio, Miroslav Pecujlic, Andre Gunder Frank,
entrevistas com Leon Hirszman, Eduardo Coutinho e Sílvio Tendler, Flávio
Pinto Vieira, e debate com Tetê Morais, Joel Birman, Cháin Samuel Katz. Mas,
o número seguinte, sob direção de Neiva desvirtuou a linha original, segundo
Vânia. Marini explica que a revista foi fechada por pressão da campanha
eleitoral de 1986.
Com Emir Sader e José Aníbal Peres de Pontes, Marini tenta criar uma
revista teórica, mas não tem sucesso. Publica na coletânea Constituinte e
democracia no Brasil hoje, organizada por Emir Sader o ensaio Possibilidades
e limites da Assembleia Constituinte.
Ruy procura sua reintegração na UnB. Desenvolve com Vânia o projeto
de curso de Ciências Políticas da universidade do “Terceiro Milênio”, a pedido
de Darcy Ribeiro, mas que foi abandonado com a morte de Darcy. Mantém as
mesmas preocupações com relação ao estudo sobre o padrão de reprodução
do capital na América Latina e as teorias e linhas políticas refletidas na luta de
classes, como desenvolvimentismo x teoria da dependência: “De resto, esse
trabalho, assim como o que se refere à crise do socialismo, continuou a me ocupar, depois do
meu regresso ao Brasil, em 1984.”
Segundo Marini, 1985 representou o marco da pesquisa sobre
movimentos sociais no Brasil. Ruy apresenta artigo sobre o movimento
operário no Brasil no seminário sobre movimentos sociais e democracia no
Brasil. Viaja ao México, Cuba e Porto Rico e apresenta artigo A luta pela
democracia na América Latina. Nesse período também, Theotônio destaca as
contribuições de Ruy Mauro com a análise da inserção do Brasil na nova
divisão internacional do trabalho, introduzindo o método dos ciclos longos de
Kondratiev, sobre o desenvolvimento do capitalismo, compreendendo as fases
de desenvolvimento do capitalismo dependente relacionadas às fases do
capitalismo mundial, destacando a função da superexploração na América
Latina.
Ruy apresenta o estudo “Desenvolvimento econômico, distribuição da
renda e movimentos sociais no Brasil”, contribuindo para compreender o
conceito de distribuição de renda: “Além de atualizar-me em relação à polêmica sobre a
distribuição de renda, que teve lugar no Brasil na década de 1970, essa pesquisa levou-me à
interessante constatação de que a aceleração da concentração da renda, iniciada nos anos de
1960, perde força a fins dos anos 1970 e princípios dos 1980, por obra, a meu ver, do ascenso
dos movimentos sociais que se registra, então, no país. O fortalecimento do bloco burguês, na
chamada Nova República, a retração de investimentos produtivos em proveito da especulação
financeira e as ofensivas lançadas contra os trabalhadores – com destaque para os planos
econômicos que se iniciam em 1986 – reverteram, ao que tudo indica, essa
tendência.”(Memória acadêmica)
Em 1986, Cristovão Buarque regulariza o regresso de Marini para UnB e
se reencontra com Vânia Bambirra no Departamento de Ciências Políticas e
Relações Internacionais, com a ideia de se aposentar no prazo legal e retornar
51

ao Rio de Janeiro. Em 1987, finalmente há a reintegração de Marini à UnB.


Marini é reintegrado num processo político de reconhecimento dos ex-
professores cassados pela ditadura: “Graças Ao empenho do novo reitor e ao esforço e
dedicação da professora Geralda Dias, do Departamento de História, assim como do professor
José Geraldo Júnior, que responderam pelo levantamento e análise dos fatos, fui um dos
primeiros de uma numerosa lista de professores e funcionários reitegrados, o que veio a
reparar uma das muitas arbitrariedades cometidas pela ditadura. Em março de 1987, já
demitido da Fesp pela nova administração nomeada pelo governador Moreira Franco, transferi-
me para Brasília. Adscrito ao Departamento de Ciência Política e Relações Inernacionais, eu
iria reencontrar na UnB velhos amigos como Vânia Bambirra, Theotônio dos Santos, Geralda
Dias, Luiz Fernando Victor, entre outros (...) Entre 1987 e 1989, isso implicou, no primeiro caso,
ministrar os cursos de Mudança Política no Brasil e Teoria e Metodologia Marxista I e II (estes
últimos, criados por sugestão minha) e, no segundo caso, os de Teoria Política do Estado,
(...)Elites e Sociedade.(...) No plano internacional, participei, em 1987, de seminário em
Manágua sobre “Crise e alternativas da América Latina”, patrocinado pela Frente Sandinista de
Libertação Nacional (...)”Democracia y socialismo” (...) com trabalhos de Martha Harnecer (...)".
(Memória acadêmica)
Entre 1986 e 1989, Ruy desenvolve na UnB três projetos de pesquisa:
uma sobre a distribuição de renda, a segunda coletiva sobre o déficit público
brasileiro junto com Eduardo Suplicy, Paulo Sandroni, Maria Sílvia Bastos, e a
terceira individual sobre a indústria automobilística até 1989. Sobre o déficit
público, Marini analisou “A política de promoção às exportações e o déficit
público no Brasil: “(...)analisei em detalhe as políticas governamentais que deram origem à
substituição de importações, na década de 1950, e a tentativa pós-1964 de suprimi-las em
favor da promoção às exportações e, enfim à combinação de ambas, principalmente após o
choque do petróleo de 1973, o que resultou no protecionismo exarcebado e na sangria em
grande escala de recursos públicos em favor dos grupos empresariais privados .” (Memória
acadêmica)
Diante da crise final e racha do MIR, Marini integra-se à corrente do MIR
Político, apoiando a luta pelo "NÃO à Pinochet até a vitória final" contra a
burguesia.
Em 1989, Marini percebe que embora tivesse se dedicado a manter a
sua produção intelectual, não conseguia ver grandes resultados na formação
de uma nova geração de intelectuais: “A carga de trabalho que essas pesquisas
acarretaram, e que se somava a minhas atividades acadêmicas normais, foi sendo, aos
poucos, percebida como um mecanismo de drenagem de minha vida intelectual, em favor de
minha refuncionalização ao sistema científico-cultural vigente no país. De fato, ela implicava
que as inquietações e objetivos de pesquisa, derivados de minha própria trajetória de trabalho,
assim como a seleção de temas de estudo a que ela tende, fossem deslocados do centro de
minha ocupação principal, passando a receber um tratamento marginal, lento e penoso,
quando recebiam algum.” (Memória acadêmica)
Vânia Bambirra lembra que nesse período Ruy Mauro também se
preocupa com a posição política de Luís Inácio Lula da Silva, líder do PT, como
um operário que teria sido cooptado pela social-democracia contra os
interesses da classe trabalhadora.
Em 1990, Ruy retorna ao Chile, depois de 17 anos, e observa o
fortalecimento da burguesia e a marginalização das esquerdas históricas, com
o domínio da direita (pinochetismo e direita liberal) e o centro (social-
democracia e cristão) e a anulação do pensamento crítico latino-americano dos
anos 1960 a 1980, com hegemonia do pensamento social-democrata e
neoliberal influenciado por intelectuais dos EUA e Europa. Marini explica como
o sistema capitalista enfrentou a esquerda nesse processo, citando estudo de
Agustín Cueva e de James Petras: “O fenômeno não era exclusivamente brasileiro ou,
com o passar do tempo, foi deixando de sê-lo. Após os movimentos de 1968, a Europa e os
Estados Unidos viram aguçar-se as lutas de classes e tiveram de enfrentar iniciativas
52

populares e de esquerda, que desafiavam o sistema dominante. Já mencionamos que, em


meados dos anos 1970, o resultado dessas lutas passou a se favorável às forças do
establishment. Mencionamos, também, que, desde o golpe chileno de 1973, a social-
democracia europeia passou a atuar no cenário intelectual latino-americano, no que fora
precedida pelas fundações de pesquisa estadunidense e acompanhada pelas instituições
culturais financiadas pelas igrejas e pela democracia cristã. No Brasil e no restante da América
Latina, a disputa pela obtenção de recursos daí advindos reconstitui a elite intelectual sobre
bases totalmente novas, sem qualquer relação com as que – fundadas na radicalização política
e na ascensão dos movimentos de massas – a haviam sustentado na década de 1960."
Em agosto de 1990, Marini faz um balanço sobre a apropriação de seus
trabalhos teóricos pela comunidade acadêmica: “Ao considerar a repercussão do meu
trabalho intelectual nos meios científicos e acadêmicos, distingo três momentos. O primeiro,
que se inicia com a publicação dos artigos que escrevi no México e vai até 1973,
corresponde à livre utilização por outros de conceitos por mim elaborados, sem o cuidado de
identificação da fonte, possivelmente por se tratar de autor pouco conhecido. A essa regra
geral escaparam, a rigor, Frank, 1967, e Martins, 1972. Essa é, também, a fase em que
começam a surgir trabalhos – em sua maioria, teses de graduação – inspirados e, às vezes,
orientados por mim. Ao final dela, registra-se a primeira manifestação explícita de
divergência comigo – Cardoso, 1972 – e uma observação premonitória: ‘La originalidad del
ensayo de sistematización del problema (da dependência) hecho por Marini... da AL texto um
gran valor, si bien no ló exime de contener partes muy contyrovertibles’ (De Los Ríos, 1973,
referindo-se ao artigo de Sociedad y Desarollo, que contém a primeira versão de Dialéctica
de la dependência. Eu veria logo esse duplo aspecto do meu trabalho, ao deixar o Chile. Com
a publicação de Dialéctica de la dependência, começa a segunda fase do processo que estou
examinando: junto à utilização ampla –e, agora, reconhecida – do meu trabalho, como base
teórica e metodológica, por parte de muitos estudiosos (em geral, jovens), ele passa a ser
discutido, questionado e- quase sempre, com paixão e, até, com má intenção – atacado.
Assinalei, a seu tempo, que não vivi isoladamente essa experiência, que se verificava no
contexto da crítica à teoria da dependência, que se inicia em 1974.(...)Cueva afirma que
‘nunca pensamos que nuestras críticas de mediados de lós años 70 a la teoria de la
dependência, que pretendían ser de izquierda, podrían sumarse involuntariamente al aluvión
derechista que después se precipito sobre aquella teoría’ (...). No que me diz respeito, o ponto
culminante da ofensiva situa-se em 1978, com os trabalhos Serra/Cardoso e Castañeda/Hert.
Mas é, também, quando me encontro com a primeira tentativa séria para, sobrepondo-se ao
calor da polêmica, recuperar em outro nível algumas das questões suscitadas na discussão:
Leal, 1978 (...). Cabe concluir insistindo num traço peculiar da teoria da dependência, qualquer
que seja o juízo que dela se faça: sua contribuição decisiva para alentar o estudo da América
Latina pelos próprios latino-americanos e sua capacidade para, invertendo pela primeira vez o
sentido das relações entre a região e os grandes centros capitalistas, fazer com que em vez de
receptor, o pensamento latino-americano passasse a influir sobre as correntes progressistas da
Europa e dos Estados Unidos;(..)A pobreza teórica da América Latina, nos anos de 1980, é,
numa ampla medida, resultado da ofensiva desfechada contra a teoria da dependência, fato
que preparou o terreno para a reintegração da região ao novo sistema mundial que
começava a se gestar e que se caracteriza pela afirmação hegemônica, em todos os planos,
dos grandes centros capitalistas." (Memória acadêmica)
Segundo Theotonio dos Santos, durante os anos 1990, Marini analisa a
reestruturação da economia internacional e a inserção da América Latina,
como continuidade das análises iniciadas nos anos 1960, bem como um
levantamento do pensamento social latino-americano durante os anos 1920-
1990. Em 1992, tem o primeiro livro publicado no Brasil: América Latina:
dependência e integração.
Regresso ao México: pensamento social latino-americano
Em 1994, volta ao México por mais um ano, onde organiza uma ampla
coletânea, a Teoria social latino-americana- organização de Margara Millán (4
volumes). De acordo com Ana Esther Ceceña, Marini sempre acompanhou os
ex-alunos e no retorno procurou reorganizá-los: “Ruy seguia de perto o que fazíamos
e se envolvia tanto na discussão de nossas investigações quanto em nossas visões políticas e
intelectuais. Isso o levou a se reincorporar, quase imediatamente, a tudo o que havia deixado
53

para trás alguns anos antes, como se o tempo não houvesse passado.”
Ceceña observa
uma mudança no comportamento de Marini após retorno do Brasil: “Ruy era um
homem calado, reflexivo, que não pronunciava palavras a mais. Isto lhe dava um perfil um
pouco rígido de dirigente implacável ou de mestre exigente.(...)Quando regressou do Brasil era
outro. Nossa relação se fez mais intensa, mais calorosa, mais amiga. A partir desse momento,
cresceu, mais do que respeito, um carinho muito grande que se mantém até hoje. Nessa
ocasião, Ruy se incorporou de imediato a um grupo de pesquisa que eu coordenava. E,
enquanto esteve no México, participou de todas as sessões de trabalho.Sua atitude era a de
quem escuta, de quem tem dúvidas e está buscando respostas que, evidentemente, não viriam
de nós mesmos, isoladamente, mas sim do pensar coletivo.Neste espaço Ruy contribuiu muito
no delineamento dos caminhos e, sobretudo, no cuidado de não adiantar afirmações sem
suficiente sustentação, sem um processamento bem maduro, posto que estávamos propondo
interpretações que marchavam na contracorrente do pensamento dominante, não só da direita
mas também da esquerda. Era o momento em que ele estava procurando novamente fazer
uma interpretação latino-americana do capitalismo do final do século 20. (...)Com essa ideia,
Ruy organizou um seminário em que se revisou o pensamento latino-americanista que havia
surgido no final do século 19 até chegar aos mais novos argumentos desenvolvidos no final do
século 20.”
A luta contra o câncer e a fidelidade à revolução socialista
Em 1997, em parceria com Theotônio dos Santos, realiza uma antologia
do pensamento social latino-americano do século 20 para a Organização para
Unesco, como forma de superar as teorias provenientes dos centros
capitalistas e dos modelos de um pensamento dominante do centro do
capitalismo.
Enfrenta o câncer no pulmão, é internado várias vezes, e, segundo o
sobrinho Bruno, gasta todos os seus recursos com o tratamento. Até o final da
vida manteve sua organização política com o MIR e a luta pela revolução
socialista mesmo com a derrocada dos países socialistas do Leste europeu.
Theotônio se recorda de uma visita a Ruy, quando estava na UTI,
impossibilitado de falar, sua expressão é de desespero e muito ódio. E
conversou com Felipe, o filho, que o Ruy não gostaria de ser mantido naquela
situação na UTI, porque ele não conseguia fazer o que gostava, ler, escrever,
falar, seguindo a orientação dos médicos. É uma situação como a de Darcy
Ribeiro que ficou internado durante quatro meses e fugiu do hospital para viver
o restante da vida como queria, comendo pastel e tomando caldo de cana.
Falece em 5 de julho no Rio de Janeiro de 1997.

Vânia Bambirra lembra que depois que Ruy ficou doente conversavam
por telefone, ela em Brasília e ele no Rio: “Um dia recebi a notícia de que ele estava
hospitalizado. Tomei um avião e vim, junto com meu filho, para vê-lo, por uns breves minutos,
em uma UTI. Logo depois, Ruy morreu. Não tive coragem de vir ao seu enterro. Chorei sozinha
em Brasília. Preferi guardar sua recordação bem viva, irônica, brilhante. Sinceramente? Foi o
maior amigo que tive.”

Segundo Nelson Gutiérrez, Marini foi um homem dividido entre teórico e


político: “Isso ele trazia da época da sua conscientização da realidade brasileira, do momento
em que seu próprio pensamento, que acompanhava o desenvolvimento das contradições e
conflitos do capitalismo local, se transforma num incentivo permanente que o obriga à busca e
à criação.”
Theotonio dos Santos explica que Ruy Mauro Marini deve ser conhecido
pela juventude brasileira como um militante político que entregou a sua vida na
luta pela libertação dos povos. Em artigo sobre Marini, Theotonio afirma: “Ele,
que foi militante clandestino, prisioneiro torturado pelo Cenimar, exilado em tantas terras,
militante latino-americano e internacional da luta revolucionária de nossos povos, por sua
intransigência revolucionária, só podia ser uma incômoda presença em nosso país. Nele, a
54

maior parte da intelectualidade colocou-se a serviço do establishment oligárquico e entreguista,


tornando-se os arautos disfarçados da pior distribuição de renda do planeta, dos assassinos de
índios, crianças de rua e sem-terras, além de se converterem nos campeões do analfabetismo
e da evasão escolar, da maior taxa de acidentes do trabalho de todo mundo etc. Se queriam
intelectuais para ajudar a enfeitar esse quadro miserável com um palavreado pretensamente
científico, não podiam definitivamente contar com Ruy Mauro Marini.”
De acordo com Theotônio, a atualidade da Teoria Marxista da
Dependência nos auxiliam a pensar o papel do Brasil na América Latina, hoje:
"O Brasil, na liderança da América Latina, pode criar uma grande unidade econômica latino-
americana; pelo menos sul-americana, tranquilamente. A Unasul está trabalhando nesta
direção e tem 12 conselhos (segurança, saúde, educação, etc), com muitas respostas há sete
anos. A Unasul tem a postura de romper com a dependência, embora hoje o Brasil esteja com
uma posição muito inferior ao seu potencial histórico. Nós não temos tido a capacidade de
assumir, realmente, a perspectiva de transformação regional. O grande problema é que os
bancos centrais continuam atuando dentro de uma perspectiva neoliberal. Há uma grande
regressão, avaliando-se que talvez o neoliberalismo esteja correto. Mas, há uma retomada por
parte de jovens pesquisadores da Teoria Marxista da Dependência contra a linha da Teoria da
Dependência que aderiu ao sistema neoliberal que está contribuindo para o esclarecimento e a
ampliação da informação sobre as teses da superação do capitalismo dependente."
Vânia Bambirra explica que a Teoria Marxista da Dependência, criada há
40 anos empolgou marxistas não apenas da América Latina, mas também nos
centros hegemônicos, nos Estados Unidos, Europa e até na União Soviética.
No Brasil, depois apenas de quatro décadas, a TMD passa a ser conhecida,
quer dizer, que o estudante brasileiro não conhece porque a elite conseguiu
esconder. A retomada da TMD está vindo como uma avalanche entre os jovens
que perceberam que essa teoria somente será superada com a superação do
capitalismo, ou seja, só quando se conquistar o socialismo.
Segundo Ana Esther Ceceña, Marini preocupou-se em estudar as
mudanças nos processos de trabalho dos anos 1990, com a informatização, a
precarização, a terceirização, com a migração de trabalhadores, mas foi
interrompido pela doença: “Mas, dado que a realidade está em movimento permanente,
temos de seguir investigando. Para isso, é interessante recuperar as metodologias de trabalho
de Ruy e aprender com seu exigente estilo argumentativo. Os trabalhos de Marini seguem
sendo um referente necessário na compreensão do desenvolvimento do capitalismo na região
e no mundo, desde uma perspectiva claramente anticapitalista. Ruy buscava os eixos do
processo para poder desenhar estratégias de luta que tivessem sentido e pertinência. Cabe
esclarecer que ele sempre confiou na força e sabedoria dos movimentos. Um movimento como
o dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil era uma grande inspiração para ele.”
De acordo com Emir Sader, a atualidade da obra de Marini é o conceito
de superexploração do trabalho, o que explica a tese de “flexibilização do
trabalho” do consenso de Washington, com a desregulação das relações de
trabalho, com uma maioria da classe trabalhadora latino-americana
precarizada, sem os direitos trabalhistas.
55

II Obra: principais conceitos

III: Para Saber Mais

IV: Referências
56

V: Cronologia

1932- Nasce em Barbacena (MG)


1939- 1950- Estuda no Colégio Estadual de Barbacena
1953-1957- Inicia os estudos na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil
(RJ), com ênfase na formação humanística e política.
1954- Estudante bolsista na Escola Brasileira de Administração Pública (Ebap)
da Fundação Getúlio Vargas, com grande influência do professor de sociologia
Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982).Professor assistente de Sociologia no
Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp). Influência do professor
Alberto Guerreiro Ramos, estudo sobre a teoria nacional-desenvolvimentista da
Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal).
1958-1960- França: estudante bolsista no Instituto de Estudos Políticos da
Universidade de Paris (SciencePo). Inicia os estudos em Marx e Lênin, entra
em contato com intelectuais marxistas e militantes dos movimentos de
libertação nacional, como argelinos, cambojanos, vietnamitas e das colônias
africanas. Participa de discussões do grupo brasileiro que publica a revista
Movimento Socialista, com Erich Sachs.
1960- Retorno ao Brasil, trabalho no Iapi e na imprensa de esquerda:
corresponde da Prensa Latina, agência de notícias de Cuba, e jornalista de O
Metropolitano, encarte dominical de O Diário de Notícias.
1961- Fundação e participação da Organização Revolucionária Marxista
Política Operária (ORM-P.O.).
1962-1964- UnB- docência, doutorado sobre, estudos de O Capital, debate
com as teses do nacional-desenvolvimentismo da Cepal. Tese sobre o
“bonapartismo”, que se perdeu após a invasão da ditadura militar à UnB.
1964-1969- México (1° exílio)- Colmex - Estudos sobre Brasil e América Latina
1967- Subdesenvolvimento e Revolução
1968- UNAM- Leopoldo Zea (dir. Faculdade de Filosofia e Letras)- Programa
de Estudos Latino-americanos. Massacre dos estudantes em Tlalelolco, crítica
em periódicos mexicanos. Exilados emigram para outros países.
1969-1973- Chile (2° exílio). Filiação ao MIR (Movimento de Esquerda
Revolucionária). Ceso (Centro de Estudos Socioeconômicos)
1972/73- Dialética da dependência- Referência da Teoria Marxista da
Dependência na América Latina
11 de setembro de 1973- Golpe contra o governo Allende
1973-1978- Panamá, Alemanha, México (3° exílio)
1974- Munique- Centro de Estudos
1974- México- UNAM- Centro de Estudos Latino-americanos- Estudos de Marx
e Lênin com juventude mexicana
1977- Centro de Informação, Documentação e Análise do Movimento Operário
da América Latina (CIDAMO) até 1982. Prova para Professor Titular da UNAM-
A acumulação capitalista mundial e o subimperialismo
1978-1983- Transição entre saída da UNAM e retorno para o Brasil
1973- Anistia - regresso ao Brasil, sem cortar vínculos com UNAM.
1984-1997- UnB- processo de reintegração de professores afastados durante a
ditadura, a pedido de Ruy Mauro, encaminhado pela Profa. Geralda.
1986- Cristovão Buarque regulariza o regresso de Marini na UnB.
57

1993/94- Regresso ao México- Teoria Social Latino-americana (4


volumes)organizada com Márgara Millán.
1997- Morre em 5 de julho no Rio de Janeiro.

Você também pode gostar