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EMILE DURKHEIM

A CIÊNCIA
SOCIAL E A ACÇÃO

TRADUÇÃO
DE
INÍ-S DUARTE FERREIRA

DIFEL — Difusão Editorial, s. a.


sao PAULO

76377
MA

Título do original francês: LA SCIENCE SOCIALE ET L’ACTION

Capa de JOSÉ CÂNDIDO (E) 1970, Presses Universitaires de Franco

Todos os direitos reservados para publicação desta obra em língua portuguesa


pela LIVRARIA BERTRAND, S. A. R. L. — Lisboa

Composto c impresso nas Oficinas Gráfic as da Livraria Bcrtrand


(Imprensa Portugal-Brasil). Rua João de Deus — Venda Nova — Amadora

Acabou de imprimir-se cm Junho dc 1975


INTRODUÇÃO

O modelo teórico dos sistemas sociais que Emile Durkheim


tentou construir interessa-nos hoje muito mais pelas suas ambigui­
dades e pelas dificuldades encontradas no decurso da sua elabora­
ção do que pela originalidade que pode ter constituído nessa
época: a consciência colectiva, a irredutibilidade do social. Prosse­
guindo, influenciado por Comte e pelo estruturo-funcionalismo
spenceriano, o seu esforço para fundar uma sociologia da integra­
ção e da ordem, Durkheim teve também de tomar em consideração
os dados alternativos à interiorização dos valores societais comuns,
à harmonia no consensus, que são as oposições entre os grupos e
entre os valores, as relações de poder e a dialéctica da transforma­
ção espontânea e voluntária. Não apenas a necessidade de conjugar
a teoria e a concisão dos factos provocando o observador social,
mas também a constância dos interesses políticos (no sentido lato
do termo) que o motivaram à partida, comprometem o autor: que
solução dar à «questão social», como se dizia então, como realizar
a democracia, será o socialismo desejável e qual? Ora, os conceitos
dominantes da teoria da integração social não lhe permitiam o
acordo total com os factos e esta fidelidade aos interesses origi­
nários. Daí, o apelo ambivalente aos conceitos alternativos da classe
e de exploração, as premissas de uma sistematização da tese do ca-
rácter positivo do conflito, a justificação da anomia, inseparável
de todo o progresso. É possível, evidentemente, minimizar a impor­
tância destes temas, de modo a demonstrar, em Durkheim, um
modelo coerente e unívoco da sociedade moderna: é o que faz

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Talcott Parsons considerando-os, em suma, como tantas outras
aventuras esquecidas. Mas evita-se, deste modo, por um lado, valo­
rizar a maneira como Durkheim tentou resolver os tipos de pro­
blemas que hoje mais nos preocupam e, por outro lado, apreender
o mecanismo de certas contradições do modelo na medida em que
os próprios termos em presença — o tema da harmonização espon­
tânea dos interesses dos grupos rivais na participação dos valores
e símbolos colectivos e o tema da necessidade de estruturas desi­
guais — exprimem, por si mesmo, o modo contraditório como
Durkheim pretendeu, através de uma sociologia da coesão, respon­
der a um projecto de transformação e de acção. Por outro lado,
parece-nos pertinente considerar as tomadas de posição no domí­
nio do «político» e do «social» como subprodutos do modelo e,
pelas mesmas razões: a problemática do socialismo democrático
interessa-nos tal como interessava a Durkheim; e as tomadas de
posição convidam-nos a não esquecer que ele se tornou politica­
mente sociólogo, maneira, provavelmente ainda paradoxal, de que­
rer fazer da sociologia a contrapartida do socialismo, isto é, uma
resposta à idêntica questão da superação da perda do homem 2.
Se é verdade que o projecto de uma ciência social a fazer resul-
tava de uma profunda preocupação em agir (é conhecida a fórmula:
«Desejaríamos que as nossas investigações não merecessem uma
hora de esforço se elas não tivessem mais que um interesse espe­
culativo», DTS, XXXIX) 3, a frequência dos incitamentos à acção
na obra de Durkheim, o caracter apressado ou audacioso de certas
soluções, apresentadas em contradição com os imperativos de pru­
dência largamente afirmados, a insistência em temas de diferencia­
ção e de oposição são outros tantos indícios de que a obsessão
integracionista, hiperespiritualista na fase final, encontra a sua

*' Talcott Parsons


arsons , The Structure of Social Action, 2.“ Parte; «Durkheim’s
Contribution to the Theory of Integration of Social Systems», in Wolf (K. H.),
Emile Durkheim, 1858, 1917, pp. 118-154.
2 Raymond Aron insistiu especialmente neste ponto aquando da comemoração
do centenário de Durkheim: «Ele concebeu a sociologia como a contrapartida
científica do socialismo..., a ambição de reforma social orientou Emilc Durkheim
para a sociologia.» (Annales de ITJniversité de Paris, 1960.)
3 Ver na bibliografia que se segue a esta introdução o significado das siglas uti­
lizadas para designar as obras de Durkheim, assim como a lista dos artigos citados
a que aqui nos referimos, indicando o ano de publicação ou, caso estejam repetidos
na presente edição, o seu número de ordem precedido de SSA.

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energia numa vontade de mudança, mesmo que esta obsessão seja,
em certos aspectos, um obstáculo a uma teoria aceitável da trans­
formação social. O problema consiste, então, em compreender
como foi possível que Durkheim tenha optado pela construção
de um modelo cuja dominante, o consensus a qualquer preço,
torna difíceis a aceitação do conflito e os momentos de anomia exi­
gidos pela acção.
Estas breves considerações pretendem apenas sublinhar o peso
específico que se pode atribuir, no contexto que elas evocam, aos
textos que, na obra de Durkheim, tratam dos temas menos explo­
rados da opressão das classes e da realização política dos valores
societais, ou ainda dos textos que se referem às posições por vezes
circunstanciais do sociólogo, relativamente às transformações neces­
sárias à luta política, à Internacional Socialista. Alguns destes tex­
tos fazem parte integrante das importantes obras existentes, outros
são todavia menos conhecidos e dificilmente acessíveis. Reunimos
aqui alguns destes últimos.
Artigos de fundo, resumos de obras, conferências, e até frag­
mentos de diálogos colhidos ao vivo demarcam o itinerário durkhei-
miano, dado que vão de 1885 — ano dos primeiros escritos — até
1914. Todos abordam, por uma ou outra via, a relação da socio­
logia com a prática social: que significa a sociologia, e porquê
sociólogos? Que papel podem desempenhar os intelectuais no pro­
cesso da transformação? Como conceber o socialismo? Para onde
caminha a nossa civilização? Aí se encontrarão tomadas de posição
sobre Marx, sobre o caso Dreyfus e sobre a superação das pátrias
que respondem a tipos de interrogações que ainda hoje levantamos.
Evidentemente, só ganham todo o seu sentido quando ligados
ao sistema teórico; mas, na medida em que o sistema não deixa
de ser equívoco e comparticipa das ambiguidades do projecto duma
sociologia útil, eles são, por si próprios, esclarecedores para quem
deseje empenhar-se, com espírito de investigação, na leitura de um
Durkheim cujo pensamento tem as suas raízes em preocupações
originárias e de certo modo constantes. Antes, portanto, de apre­
sentar alguns reparos sobre a maneira como Durkheim toma em
linha de conta a vocação personalista das sociedades, a problemá­
tica da democracia e do socialismo, a dialéctica da transformação
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e a inquietação do homem, não é inútil interrogarmo-nos sobre
qual o sentido da vontade daquele que quis não apenas ser soció-
logo, mas o primeiro dos sociólogos.

1. O PROJECTO DE UMA CIÊNCIA SOCIAL PRÁTICA

Os testemunhos estão de acordo: é entre 1879, data da sua


entrada para a Escola Normal Superior, aos 21 anos, e 1883,
primeiro ano em que ensinou filosofia em Sens, que Durkheim
foi levado a levantar, em determinados termos, um problema cuja
solução era a constituição duma sociologia com estatuto de ciên­
cia. Decidiu então consagrar-se à «ciência social». Ora, a maneira
como ele equacionou o problema teve como consequência a orien­
tação, desde o início, do conteúdo e da vocação desta sociologia
em construção. Qual era o problema? E como foi ele levado a
pô-lo?
A este respeito, parece que podemos equacionar mais do que
simples hipóteses Tipo de personalidade, motivações dum período
histórico, encontros com idéias c homens, representação duma
sociedade que é a sua sociedade, através da dialéctica desses encon­
tros, dessas motivações e dessa maneira de ser, são simultaneamente
impulsionadoras. Esquematicamente, é isto que encontramos.
Uma infância e uma adolescência num meio familiar austero
e unido, onde a observância da lei é preceito e exemplo. Pai rabino,
filho de rabino, no seio de uma comunidade religiosa importante,
integrada na região de Epinal, atento ao destino nacional e fre­
quentemente objecto de solicitações políticas, o jovem Durkheim
estuda o hebreu, a doutrina talmúdica e hebraica, mas renuncia ao
judaísmo: pretende-se agnóstico. É profundamente marcado, ao
terminar o ensino secundário, pela crise nascida da derrota de 70
e da Comuna, pela perturbação dos espíritos, durante o parto difí­
cil da República, pelo eco, repercutido na sua família, das grandes
opções políticas. Escolheu o ensino e preparou em Paris a sua

1 Referimo-nos aqui, por um lado, aos textos de G. Davy, H. Bourgin,


A. Lalandc, R. Lacroze, M. Mauss (introdução ao curso sobre Le socialisnie) cita­
dos na bibliografia e, por outro, às entrevistas que tivemos com Henri Lévy-Bruhl,
e também com M. Henri Durkheim, sobrinho de Durkheim, que muito nos infor­
mou sobre a personalidade e a vida de seu tio.

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entrada para a Escola Normal Superior, porque a educação faz
parte duma tarefa social, duma missão que é a alternativa duma
vocação religiosa: revivificar o espírito público abatido pela der­
rota, participar na reconstrução duma sociedade que tentou auto-
governar-se — numa e por uma acção sobre as jovens gerações.
Assim, Durkheim, sensibilizado por uma época que se inter­
roga, pela divisão ideológica e política duma sociedade em mutação,
viverá com uma consciência inquieta, de 1876 a 1879 — durante
o curso preparatório para a Escola Normal Superior —, os esforços
do regime republicano para encontrar a sua estabilidade face a um
conservantismo dissimulado, à atitude reaccionária do catolicismo,
aos conflitos ligados à dupla questão que agita a época: a escolar
e a social. Recusou, muito cedo, o rabinato, após um curto período
místico. Mas tudo parece indicar que, se já não tem a fé ancestral,
transferiu as energias religiosas para a tarefa de educador. Este
antagônico mundo social, em transformação, em pesquisa, enfren­
ta-o o jovem Durkheim, projectando nele, em negativo, as pró­
prias necessidades que então o impelem a desempenhar um papel
de pedagogo: um mundo sem harmonia, desunido, no qual os con­
flitos ideológicos, as lutas sociais estão prenhes de potencialidades
se, e apenas se, os homens aprenderem simultaneamente a viver
a força dos laços afectivos de grupo e a aceitar a necessidade
de uma regulamentação comum. Ser educador — e, de certa ma­
neira, Durkheim sempre pretendeu sê-lo —, não será nestas con­
dições ensinar aos homens a encontrar uma unidade de sentimentos
c de espírito? E se esta vocação não é religiosa, não terá ela qual­
quer coisa de religioso? Uma leitura do discurso durkheimiano
atenta ao seu substracto psicológico, somada a certos testemunhos,
poderia aqui permitir-nos isolar, de imediato, em Durkheim, uma
dupla necessidade a que se poderia chamar um dado de persona­
lidade: primeiro, uma exigência de comunhão ligada ao sentimento
de que o homem só existe em função de outro, pelo calor do grupo,
pela participação comunal; em seguida, uma necessidade de lei
relacionada com esta impressão de que o homem não pode viver
fora de um enquadramento. Pode levantar-se a hipótese de que
esta dupla necessidade se enraiza no tipo dc vida familiar que ele
viveu, e, particularmente, no modo como, através das suas relações
com um pai rabino e com a doutrina rabínica, se constituiu, em
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termos psicanalíticos, o seu superego — mesmo tendo abandonado
a fé religiosa. Amor e Lei.
Quando, em 1879, entra para a Escola Normal Superior, é, por­
tanto, a título de uma espécie de compromisso social, que não
é ainda o do sociólogo, mas que lhe dará logo de início o seu signi­
ficado. Durkheim compreende quanto as provações dos homens na
sua sociedade estão ligadas a tomadas de posição fundamentais
como ultrapassar os conflitos destruidores e fazer triunfar os valo­
res para os quais tende confusamente a sociedade nascida da revo­
lução e da indústria. É durante esses três anos de escola que têm
lugar a consolidação, com Gambetta, do regime republicano, o
início da revolução escolar e das reformas de Jules Ferry e, sobre­
tudo — e Durkheim estará bem atento a isso —, o reavivar do
movimento operário e do socialismo, muito enfraquecidos depois
de 1870: sabe-se que Jules Guesde introduziu então o mar­
xismo em França sob o nome de «colectivismo», e que funda,
em 1879, em Marselha, a Federação dos Trabalhadores Socialistas
de França, a qual se transforma no Partido Operário Francês,
num clima de oposições entre blanquistas, proudhonianos, anar­
quistas e marxistas.
A escola é um verdadeiro seminário de reflexão política e so­
cial. Durkheim reencontra Jaurès, que conhecera durante o curso
preparatório para a Escola Normal Superior. O helenista Holleaux,
seu amigo, descreve-o como participante numa intensa vida de
grupo2. Votado de início à filosofia, frequenta com interesse os
cursos de Emile Boutroux, realiza no primeiro ano um trabalho
— facultativo — sobre os Judeus no Império Romano e, a par­
tir do segundo ano, lê Renouvier a fundo, ao mesmo tempo que
um novo director, Fustel de Coulanges, o apaixona subitamente.
Durkheim dirá mais tarde quanto ficou a dever aos dois filósofos
e a este historiador. Na nossa opinião, o contacto com Renouvier,
neokantiano, filósofo social e político, autor de um Manuel répu-
blicain, futuro teórico do «personalismo», é fundamental e deci-

1 Estes termos — épreuves, enjeux — são do sociólogo americano Wright Mills.


Havería muito a dizer sobre o contacto de Mills (L‘imagination sociologique, 1967,
Maspero) com certos temas durkheimianos: encontrar-se-á mais adiante um exem­
plo deste contacto.
= Cf. G. Davy, 1960.

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sivo. A verdade é que, através da filosofia, é a «questão social»
que desde então o preocupa e à qual lhe é preciso dar resposta.
Influência aqui de um «meio animado de vontade política e mo­
ral», como o pensa Marcei Mauss? Provavelmente porque o tema
do socialismo, em ressonância com os interesses durkheimianos de
reconstrução social, está no centro das discussões. O debate, na
época, põe em confrontação política anarquistas e colectivistas.
Filosoficamente, coloca-se no plano mais geral da antítese indiví-
duo-sociedade. Ao individualismo dos libertários, como ao dos mi­
litaristas e ao dos economistas liberais, opõe-se o centralismo orga­
nizador dos blanquistas, lassalianos e guesdistas. Durkheim vê
nessas oposições filosóficas e políticas o nó dos sofrimentos e das
opções da sua sociedade. Individualismo e socialismo serão inelu-
tavelmcnte antagonistas? A tarefa dos homens não será procurar
conciliar concretamente na prática social, isto é, na reconstrução
da sociedade, interesses individuais e sociais? Dado que, integrado
na carreira universitária, um trabalho pessoal figura habitualmente
como tese, Durkheim decidiu explorar o tema: «As relações entre
o individualismo e o socialismo» (1881-1882).
Ele debruça-se, então, sobre aqueles que, mais que quaisquer
outros, se dedicaram ao estudo das sociedades. Parece que não leu
Marx na escola, mas teria começado por Espinas, depois Spencer,
antes de, em seguida, abordar Comte. Animado pelas motivações
profundas que alimentam a sua percepção de uma sociedade em
que o jogo das lutas sociais e dos conflitos de valores, contrário
da unidade, mais não é que a própria unidade, procura neles res-
posta para o problema que esta percepção pré-judicial alimenta:
como «se mantém» uma sociedade, que coisa é esta coesão especí­
fica que se chama sociedade? Durkheim explicou mais tarde as
razões que o levaram a considerar a sua resposta decepcionante.
Embora influenciado desde o início por Espinas, Spencer e Comte,
no entanto ele não lhes encontra aquele tipo de certeza de que tem
necessidade para sair do dilema individualismo-socialismo, expres­
são do dilema indivíduo-sociedade. A única certeza é «científica»:
mas os primeiros sociólogos não têm o sentido, nem da solidez
duma argumentação suficientemente apoiada em factos, nem do mé­
todo rigoroso que fará da sociologia uma ciência digna de credi­
bilidade. Na verdade, a ciência social é-o apenas de nome, insegura
como está quanto ao seu objectivo e ao seu método. Por volta dos

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anos 1882-1883, Durkheim encontra o seu objectivo, que é o do
compromisso que ele pressentia: a sua tese tem por título «Rela­
ções do indivíduo e da sociedade» -— trabalhará na construção da
sociologia como ciência social, será sociólogo.
Poder-se-ia, no quadro de uma biografia intelectual de Dur­
kheim, perguntar aqui qual foi, nesta decisão, o peso de um pré-
-conceito racionalista e de uma certa concepção da ciência; poder-
-se-ia igualmente procurar aqui as razões que o orientam, depois
de sair da Escola Normal Superior e durante os dois anos de ensino
em Sens, para o estudo dos economistas alemães, e especialmente
de Schaeffle (o que provoca que alguns ' considerem que Durkheim
encontrou a sua inspiração no pensamento alemão). Entre 1883
e 1887 — data da sua nomeação como «encarregado de um curso
de ciência social» em Bordéus, e da sua famosa Leçon d’ouver-
ture (SSA, 1)—- efectua uma análise progressiva do seu pensa­
mento e dos factos, o que o leva a definir, em 1884, um primeiro
plano do que virá a ser De la division du travail social, e a iniciar
em seguida, em 1886, uma primeira redacção que formula o essen­
cial da teoria da solidariedade e da evolução social. Boutroux, seu
professor na Normale, aceitou ser relator: o próprio Durkheim
confessa o que ficou a dever ao autor da Contingence des lois
de la nature, que mostrava a irredutibilidade de cada ciência,
à medida que se passa de um nível de realidade para outro '.
Parece-nos mais importante sublinhar aqui as implicações da
problemática a que a decisão de ser sociólogo é a primeira resposta.
Esta problemática põe originalmente em jogo a acção: a «ques
tão social» está presente à partida. E Durkheim empenha-se em
facilitar uma transformação cujo objectivo é um estado de socie­
dade definido a priori, cm função de imagens simultaneamente
comunais e individualistas, como integração e como coesão. A socio­
logia é o instrumento desta facilitação: deve permitir a conciliação,
ao mesmo tempo teórica e prática, das ideologias individualistas
e socialistas. Orientado assim para a sociologia por ambição de

1 Particularmente, S. Deploige, Le con/lit de la rnorale el de la sociologic, 1927.


2 1907, a. «M. Boutroux, na Normale, repetia-nos frequentemente que toda
a ciência se deve explicar por “princípios próprios”, como diz Aristóteles, a psicolo­
gia por princípios psicológicos, a biologia por princípios biológicos. Impregnado
por esta ideia, apliquei-a à sociologia. Confirmei este método pela leitura de Comte.»

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reforma social, espera não só as reconciliações como também quer,
segundo Raymond Aron, denunciar a sua profunda harmonia, atra­
vés do estudo da sociedade moderna.
O objecto da sociologia é, deste modo, definido no próprio
movimento que a sua vocação designa. Se a coesão, contrária à
desunião que divide e entrega o homem à angústia da solidão,
é o fim imanente, a essência de qualquer sociedade, torna-se um
valor. A sociologia refere-se assim a um objecto, a coesão, que é ao
mesmo tempo um valor: tudo o que provoca a solidariedade social
é moral e é necessário ambicioná-lo. Assim a comunhão é exigência
das próprias normas que a tornam possível e Durkheim é levado
a compreender o fundamento da unidade social numa espécie de
comunhão normativa, de comunhão dentro e através das regras,
onde ele projecta a sua dupla necessidade originária Na sociedade
moderna a ciência tem por função dizer-nos a verdadeira natureza
desta comunhão normativa. É por isso que Durkheim, quando
aborda a «questão social», a quer compreender primeiramente no
contexto da constituição de uma sociologia da integração, prática
em si mesma. Dizendo-nos as condições da coesão (ou seja, da
«existência social») de uma determinada sociedade, identificam-nos
o sentido da nossa acção.
Uma outra consequência refere-se ao que podemos chamar a
«natureza do social». Influenciado por Boutroux, Durkheim consi­
dera que a sociologia não pode ser ciência se não encontrar um
domínio específico, e, ao contrário de Spencer, se não se destacar
cm especial da psicologia. Mas, se a sociedade se baseia numa
comunhão normativa, isso não implicará que a sociologia se refira,
cm última análise, a fenômenos de ordem psicológica, ainda que eles
dependam — tal como os primeiros textos o indicarão — de uma
psicologia social, de uma psicologia «à escala da colectividade»?
Diriamos hoje que ela se refere iminentemente a factos de cultura.

1 O termo communier aparece frequentemente nos escritos de Durkheim. Sc os


homens se associam, lê-se nas Leçons de Sociologie, não é apenas para proteger
interesses comuns, «é igualmente para se associarem, pelo prazer de não consti­
tuírem senão um entre vários, de deixarem de se sentir perdidos entre adversários,
pelo prazer de comungarem, ou seja, definitivamente, para poderem levar em con­
junto uma mesma vida moral» (LS, p. 63). Relacionar-se-á este texto com as últi­
mas linhas da Leçon d'ouverlure (SSA, p. 1), onde Durkheim pretende «que
o indivíduo sinta esta massa social que o envolve e o penetra, que a sinta sempre
presente c actuante, e que este sentimento domine sempre o seu comportamento».

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O tema da consciência colectiva, que ele encontra primeiro em
Espinas, depois em Schaeffle, está assim virtualmente presente no
projecto fundamental. Pode-se mesmo pensar que se deve à natu­
reza religiosa do compromisso de Durkheim neste projecto, dados
os subsequentes desenvolvimentos hiperespiritualistas que já aí
encontramos.
Decidindo ser sociólogo, ou seja, fazer existir uma ciência da
coesão-valor prática por si mesma, Durkheim lança-se, portanto,
em caminhos que ele próprio vai tornar espinhosos. A visão que
ele tem dos conflitos sociais e das lutas de poder, como antítese
de coesão, constitui já uma resposta ao problema da função exacta
dos conflitos e das lutas na dinâmica das sociedades; esta visão não
se coaduna necessariamente com outros factos que ele virá a des­
cobrir no caminho, e nem sempre satisfaz os seus interesses polí-
ticos.
Efectivamente, não se tem a certeza que uma sociologia cul-
turalista esteja apta a tratar pertinentemente as estruturas econô­
micas e políticas, a ter em conta as questões respeitantes ao Estado,
à democracia e ao socialismo — salvo de um modo lateral, nem
sempre congruente com o sistema. Durkheim terá necessariamente
tendência para, simultaneamente, centrar a sua análise nas crises
e para as ignorar, para identificar questões de poder com questões
de socialização ou de anomia, só com o inconveniente de poder ter
de admitir que a própria anomia pode constituir condição de pro­
gresso. O reaparecimento dos temas alternativos, que já citámos,
fica portanto contido nas ambiguidades da partida, ao mesmo
tempo que continua a ser significativo da fidelidade aos interesses
originais. O próprio facto de considerar a construção de uma ciên­
cia como introdução à transformação voluntária tornava difícil um
comportamento de transformação: seria preciso esperar que a ciên­
cia estivesse constituída para propor modelos de acção? Como iria
o sociólogo conciliar a necessidade de uma atitude «desinteressada»,
no decurso do trabalho metódico de elaboração da nova ciência,
e o carácter «prático» desta ciência, a não ser pelo seu próprio
compromisso? E, sobretudo, por que vias se iria a sociologia intro­
duzir nas decisões dos homens? Era difícil pretender, ao mesmo
tempo, uma racionalidade científica e a solução prática (ou seja
uma solução que entrasse no quadro de uma praxisj do problema
que o socialismo levanta. Aqui, Durkheim entra novamente na

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dialéctica das infidelidades formais e das fidelidades profundas.
Talvez uma análise psicológica nos pudesse esclarecer até que ponto
esta dialéctica exprimia os seus próprios problemas, em que é que
a obsessão da unidade era a projecção dos seus próprios receios
perante os seus próprios conflitos.
Seja como for, os artigos que ele publica, entre 1885 e 1887,
na Revue pbilosophique são testemunho da rapidez com que, ao
mesmo tempo que redigia a tese, ele construiu o seu próprio sis­
tema. Os temas da independência da sociologia, da importância
da lei, da insuficiência da economia clássica e das necessárias refor­
mas estão aí desenvolvidos. Aparecem igualmente os conceitos-
-chave de consciência colectiva, de representações colectivas e de
anomia. Dois destes artigos são consagrados, em 1887, a «A ciên­
cia da moral na Alemanha», e a «A filosofia nas universidades ale­
mãs» (1887, a, c). Eram fruto das observações e das conclusões
tiradas de uma viagem a Berlim e Leipzig, cujas razões são signi­
ficativas.
Efectivamente, Durkheim tinha solicitado uma licença para o
ano universitário 1885-1886, a fim de concluir a redacção da sua
tese e as necessárias leituras nas bibliotecas parisienses. É certo
que ele já então se interessava, como se viu, não só pelos esfor­
ços de um certo número dc economistas alemães, entre os quais
Schaeffle e os «socialistas da cátedra» ', em equacionar a relação
entre economia e moral, como também pelo trabalho de Wundt,
psicólogo e moralista, que procurava elaborar uma ciência da mo­
ral: cie pretendia, provavelmente, investigar as fontes. Sabe-se que
foi em seguimento dc um importante contacto com Louis Liard
que ele seguiu em missão. Louis Liard, filósofo da escola de Renou-
vicr e director do ensino superior, estava profundamente compro­
metido na revolução escolar; trabalhava em estreita colaboração
com Ferdinand Buisson, director do ensino primário (que veio a
ser professor de ciência da educação na Sorbona, antes de ceder
■—precisamente — a sua cátedra a Durkheim, em 1902). Um dos

' Chamava-se «socialismo da cátedra» (Katedhersocialisnius) à perspectiva


comum dos economistas alemães G. Schmoller, A. Wagner e A. Schaeffle, que,
opondo-se a alguns marginalistas, pretendiam que o raciocínio lógico não podia ser
um instrumento válido para estudar as acções humanas e procuravam relacionar
economia política c moral partindo da hipótese que a organização econômica pode
ser transformada.

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problemas que estes dois homens discutiam era o de tornar possí­
vel a aplicação das leis sobre a escolaridade gratuita e obrigatória,
através da formação de professores laicos, no ensino de uma moral
de «cidadão». Para eles, como para muitos dessa época, a organiza­
ção do ensino filosófico nas universidades alemãs, tal como os pro­
cessos pedagógicos empregados, eram muito mais avançados que
as práticas francesas; Liard devia igualmente apreciar a preocupa­
ção expressa por Durkheim, nos seus artigos de 1885, em estudar
a sociedade de uma maneira científica e pensar que um tal estudo
poderia dar origem a um estilo de abordagem dos problemas de
moral, útil aos professores. Durkheim fica portanto incumbido
de investigar quanto aos métodos e ao conteúdo do ensino filosó­
fico e quanto ao progresso das ciências sociais na Alemanha. É aí
que permanece durante vários meses em 1886 e daí que regressa
não só com os dois artigos precedentemente citados mas com a
confirmação da urgência em constituir uma sociologia positiva.
Segundo Marcei Mauss, é em Leipzig que um amigo finlandês
o inicia no estudo de Marx (SO, p. VIII).
Ao aceitar e realizar esta missão, Durkheim ultrapassava, sem
o saber, um certo Rubicão: por isto mesmo inseria o seu trabalho
e o seu projecto num processus social e político de facto, e des­
cobria o meio de relacionar estreitamente a sua vocação inicial
e permanente de educador com a profissão de sociólogo. Assisti­
mos, por esta altura, à introdução do ensino da sociologia nas
escolas normais.
Quando regressa, Liard, anteriormente professor na Universi-
dade de Bordéus, cria para ele um «curso de ciência social», nesta
universidade, ficando decidido que ele consagraria uma parte do
seu ensino à ciência da educação. Resta-lhe, depois de pronunciar
a lição inaugural no início do ano universitário dc 1887-1888
(SSA, 1), terminar De la division du Iravail social, antes de, em
1893, defender tese. Com este primeiro livro começa a consoli-
dar-se o destino de um projecto originário. A divisão social do tra­
balho é revelada como criadora de solidariedade orgânica, visto
que as regras necessárias nascem da relação das partes em presença
e que existe um consensus suficiente relativamente aos valores últi­
mos. Estes valores, ao contrário dos valores característicos dos gru­
pos diferenciados, dizem respeito às condições da própria existência
do todo e às normas sem as quais o sistema resultante da divisão

18

á,
do trabalho e da industrialização crescente se desmantelaria. As
tradicionais crenças religiosas desempenharam este papel durante
um certo tempo mas, face ao desenvolvimento da ciência e do racio-
nalismo, deixam de o poder fazer. Quais os valores societais que,
doravante, fundamentam o consensus social? Durkheim depressa
acaba por concluir que se trata principalmente de valores indivi­
dualistas, ou seja, do respeito da humanidade no homem; e encon­
trará, numa inspiração kantiana e renouvierista que determina, em
matéria de razão, a ciência social, a via de um novo individualismo,
suficientemente afastado do utilitarismo e da anarquia para consti­
tuir factor de integração, susceptível ao mesmo tempo de ser a ima­
gem desse novo socialismo que, de certo modo (enquanto soció­
logo), ele procura.

2. OS VALORES INDIVIDUALISTAS E O PERSONALISMO

O esforço de Durkheim para determinar o fundamento da coe-


são das sociedades industriais, caracterizadas, em primeiro lugar,
pelo aumento da diferenciação das funções sociais e pela especia-
lização dessas funções, vai efectivamente conduzi-lo ao desenvolvi-
mento dc duas espécies de convicções. Por um lado, a solidariedade
dos indivíduos e dos grupos reside na unidade de fidelidade a um
corpo comum de regras e de valores («modelos culturais norma­
tivos», segundo a expressão de Parsons) interiorizados na persona­
lidade dos membros da sociedade global, embora analiticamente
independentes dos indivíduos e institucionalizados no sistema so­
cial: as atitudes morais individuais e os modelos específicos dos
subgrupos funcionais poderíam ser desintegradores, se esta unidade
de fidelidade não existisse. Por outro lado, as regras e os valores
societais últimos referem-se, em definitivo, à legitimização dos
direitos, responsabilidades e vocações do indivíduo: a própria so­
brevivência das sociedades modernas depende do seu reconheci­
mento dos valores individualistas, cuja primeira expressão foi a
que o século das luzes e da revolução traduzirá. A ligação destas
duas espécies de convicções deve ser procurada não só numa dedu­
ção cujos primeiros elementos aparecem na Division au travail
social e que prossegue no Le suicide, mas também nos desenvolvi-

19
mentos que conduzem Durkheim a conferir um papel sempre mais
importante às crenças e aos ritos religiosos no funcionamento das
sociedades. Efectivamente, já em 1895 ele considera o sagrado
como a representação simbólica da sociedade, e as idéias religiosas,
em cujo carácter regulador ele anteriormente tinha insistido (1886,
SSA, 4), tornam-se expressão significativa da sociedade enquanto
sistema comum de valores. Nesta óptica, o irespeito do homem,
valor societal último, acaba por participar no> caracter sagrado de
tudo o que simboliza a existência social, e o individualismo aparece
como uma nova religião.
É neste contexto que surge um importante artigo que Dur­
kheim escreveu em Julho de 1898, em pleno caso Dreyfus, e alguns
meses depois do processo Zola (SSA, 10). Importante não só por­
que Durkheim toma uma posição política, justificando-a a partir
de dados da ciência social, mas sobretudo em função do apaixonado
discurso pró-individualismo que lhe serve de fundo. «Se a vida
individual não valer alguma coisa, por pouco que seja, o resto nada
vale e o mal não tem remédio», escrevia em 1887 (1887 c, p. 140).
Eis assim o indivíduo humano necessário objecto de um culto
e o individualismo do século xvm e de Renouvier assentes numa
base sociológica. Ao mesmo tempo, o objectivo de qualquer prá­
tica social torna-se claramente no empenhar-se em fundamentar,
de facto, a sociedade sobre valores individualistas que a justificam
em direito: criar as condições políticas, sociais e morais que per­
mitem a uma sociedade com vocação individualista (ou persona­
lista') realizar essa mesma vocação.
Acabamos de falar numa dedução dos valores individualistas.
Trata-se, efectivamente, de um raciocínio, destinado simultanea­
mente a demonstrar o conteúdo personalista dos valores primor­
diais e a libertar-se das ideologias economistas e libertárias que,
a seu ver, conferem um sentido errado ao individualismo que as
condições da existência social efectivamente exigem. O essencial
deste raciocínio é o que se segue.
Nas sociedades arcaicas, onde a solidariedade é mecânica e a
diferenciação das funções e das obrigações quase inexistentes,
o sistema social «aguenta-se» devido à própria homogeneidade
das regras e dos valores que constituem a consciência colectiva.
Na verdade, esta cobre todos os aspectos da consciência individual

20
e coincide com ela. Excepto no que eventualmente diz respeito
aos chefes, cuja função implica uma relativa personalização, a per
per-­
sonalidade individual não existe; neste aspecto, a individualidade
é nula.
Quando, com o aumento do volume das sociedades, com o
acréscimo dos contactos entre grupos e entre indivíduos, se desen­
volve uma diferenciação das funções, que resolve pacificamente,
sobre um fundo de consciência comum, o problema da luta pela
vida, a diferença complementar das funções substitui a semelhança
enquanto factor de solidariedade. O requisito funcional de uma
sociedade de solidariedade orgânica reside no facto de a actividade
de cada um se dever tornar cada vez mais específica, mais pessoal,
que haja promoção das capacidades e realização das aptidões e das
vocações. Assiste-se assim simultaneamente à regressão do corpo
de sentimentos c de crenças comuns e ao desenvolvimento da per­
sonalidade individual. Aos anteriores valores comuns, através dos
quais a sociedade surgia directamente como objecto de fé social,
tendem a substituir-se valores próprios aos grupos profissionais
e regras que organizam os contactos entre os grupos e que contro­
lam as rivalidades: mas, ao mesmo tempo, exige-se que cada um
se comporte cada vez mais como pessoa autônoma, preocupada em
viver plenamente a vocação que lhe permite realizar, da melhor
maneira, a sua tarefa diferenciada de «funcionário» social. Pro­
cesso de personalização e norma de personalização acompanham-se
assim mutuamente: surgem valores individualizantes que constran­
gem e a pessoa é intimidada a realizar-se. Os sentimentos comuns
apresentam um novo conteúdo, concentram-se na promoção do
indivíduo, respeitam-no — e progressivamente vai-se constituindo
o cullo da pessoa, onde se projecta o caracter religioso das crenças
ancestrais.
No entanto, Durkheim não distingue imediatamente neste
culto o elemento susceptível de criar entre os homens um «verda­
deiro elo social». Em Diuision du travail social, ele pretende expri­
mir simbolicamente a necessidade funcional da personalização. Mas
em Le suicide o tom modifica-se. Mais preocupado com a questão
da interiorização individual dos modelos normativos do que com
as relações entre grupos sociais, persuadido da necessidade de pôr
em causa a primeira tese referente ao desaparecimento progressivo

21
da consciência colectiva, convencido, enfim, desde 1895, que o
sentimento do sagrado exprime a comunidade no seu primado
ontológico, Durkheim considera o culto da pessoa como o germe
de uma nova religião. Afirmar o caracter sagrado da pessoa, fazer
do homem um deus para o homem, não será honrar simbolica­
mente a sociedade relativamente aos valores integrantes que a fun­
damentam? O culto da pessoa toma, a partir de então, o estatuto
de elo social por excelência. Religião da humanidade, cujo dogma
é a autonomia da razão, e o primeiro rito a análise livre.
O individualismo que a natureza das sociedades modernas re­
quer, não implica de maneira alguma um primado epistemológico,
ético ou psicológico do indivíduo. Não se trata nem de definir a
constituição da relação social a partir de finalidades individuais
— à maneira de Kant ou dos anarquistas —, nem, enfim, de con­
fundir personalização e egoísmo. Produto do ser-em-grupo, o indi­
vidualismo orienta os indivíduos para a sua própria realização, mas
exige neste mesmo movimento a aprendizagem da relação com os
outros: simultaneamente respeitá-los (reconhecê-los como símbolos
do grupo que nos dá origem), e amá-los (sentir neles o que nos
faz ser nós próprios). E Durkheim crê-se assim justificado por afir­
mar ao mesmo tempo que, por um lado, o objecto do culto da pes­
soa não é o indivíduo concreto e empírico que cada um de nós
constitui como tal, mas o homem «em geral», a pessoa humana
in abstracto, seja qual for a forma em que se encarna, e, por outro
lado, que esse culto é e deve ser vivido pelos homens sob forma
de simpatia, de calor, de ternura, em suma, sob uma forma afcc-
tiva. É através desta intencionalidade paradoxal que viveremos não
só a injustiça, os sofrimentos imerecidos infligidos a outrem, como
também tantos outros desafios à exigência personalista.
É evidente que esta demonstração do individualismo levanta
numerosas dificuldades teóricas: o recurso à noção de sagrado e
aos símbolos religiosos, a contradição entre a afirmação da univer­
salidade dos valores individualistas e a sua dedução a partir das
condições de funcionamento de uma determinada sociedade (seria
o respeito pelo indivíduo mais uma relação colectiva noutro tipo
social? Qual seria a posição do sociólogo se ele descobrisse que
a sociedade evolui para um tipo social em contradição com estes
valores?), a concepção da natureza humana que o raciocínio suben-

22
tende (será que a realização pessoal passa sempre pela especializa­
ção numa determinada função?). É, no entanto, a partir desta
ideia de um personalismo inscrito nos ideais sociais que Durkheim
aborda, não só na Division du travail social mas também nas Leçons
de sociologie, a problemática das sociedades modernas e responde
aos casos de consciência que, como no caso Dreyfus, podem mobi-
lizar a opinião. O problema é saber como é que ela se consegue
articular com os dados resultantes da observação da sociedade
de facto para esclarecer a natureza das «imperfeições» que a carac­
terizam.
Uma primeira tentativa de responder a esta pergunta situa-se
no quadro dos desenvolvimentos relativos às idéias igualitárias
e às aspirações de justiça social. Durkheim toma em linha de conta
as «imperfeições» sociais, a luta de classes, os privilégios que per­
mitem ao patrão «abusar da sua situação para obter o trabalho
do operário em condições evidentemente desvantajosas para este
último, ou seja, demasiado inferiores ao seu verdadeiro valor»
(LS, p. 235)... Qualquer «contrato leonino» entre partes constitui
uma «exploração do homem», diz ele em termos «saint-simonia-
nos», lesa exactamente o sentimento de simpatia humana que está
agora na base da moralidade, e contradiz a exigência crescente
de um excesso de justiça. Mas, em que condições podem os valores
individualistas, que pressupõem este sentimento e esta exigência,
ser realizados, ou seja, traduzirem-se em comportamentos e práticas
sociais efectivas?
Nas sociedades com divisão dc trabalho, desenvolve Durkheim,
o indivíduo, conduzido a desempenhar uma função social em que
deve aperfeiçoar a sua personalidade, deve encontrar-se numa situa­
ção tal que possa escolher um papel que lhe permita, precisamente,
realizar em si próprio esta personalização. Por outro lado, na me­
dida em que ele obtém bons resultados no trabalho que a sua
função exige, deve receber gratificações que reconheçam o seu
«mérito social». Isto quer dizer que é conveniente que o indivíduo
tanto possa escolher a sua vocação, como existam critérios perti­
nentes que permitam determinar o valor do trabalho efectuado.
Trata-se aqui de dois requisitos fundamentais que, se pudessem
ser traduzidos em regras e assim serem satisfeitos, dariam à socie-

23
dade que lhe responde uma face em acordo com os seus valores
primordiais.
O primeiro refere-se à relação entre as aptidões e as possíveis
escolhas. As aptidões são diversas, naturalmente desiguais. O pro­
blema é, assim, o de conseguir que haja igualdade nas posições
de acesso às funções sociais, ou seja, que, na competição pelas fun­
ções, cada um se encontre em igualdade à partida: aquilo a que
Durkheim chama, na Division du travail social, a «igualdade nas
condições exteriores da luta».
O segundo requisito refere-se à existência de uma escala de ava­
liação, determinando uma hierarquia dos serviços sociais, especi­
ficando a que tem direito, no quadro da distribuição dos rendimen­
tos sociais, o indivíduo que realizou com êxito uma determinada
tarefa. Quando a remuneração é congruente com a situação hierár­
quica do serviço, podemos considerá-la equitativa.
Estes dois requisitos estão ligados: efectivamente, se à partida
a igualdade de escolha não existe, é evidente que a gratificação,
mesmo quando equitativa, é injusta — teria sido outra se o indi­
víduo tivesse podido escolher um serviço de mais elevado nível.
Os êxitos resultantes de desigualdades nas ocasiões de escolha não
têm aceitação moral, como diz A. Pizzorno ', relativamente aos
valores individualistas. Por outro lado, a escala necessária das desi­
gualdades de serviços (das desigualdades sociais) deve ser igual­
mente conforme aos valores individualistas. É a opinião que, se­
gundo Durkheim, fixa esta escala, simultaneamente em função
da qualidade e da quantidade de trabalho; e, fixando-a, determina
as «necessidades normais» que um indivíduo pode facilmente satis­
fazer. Assim, torna-se importante que a hierarquia dos méritos
sociais não só se aplique aos indivíduos com iguais oportunidades
como também que ela esteja fundamentada.
Ora, quando ele procura definir mais precisamente como é pos­
sível que «se consiga que cada um seja chamado a exercer a função
que melhor pode desempenhar e receba o justo preço pelos seus

1 Referimo-nos aqui a um judicioso artigo de Alessandro Pizzorno, Lecture


actuelle de Durkheim, que põe em evidência as dificuldades que Durkheim encon­
trou no tratamento da problemática da igualdade e o paralelismo entre estas difi­
culdades e os valores contraditórios das sociedades modernas (Archives de Socio-
logie européenne, 1963).

24
esforços» (DTS, p. 404), Durkheim encontra-se perante incertezas
que se esforça por resolver o melhor possível, no âmbito do seu
sistema, mas que, se ele tivesse aprofundado as suas reflexões,
o teriam certamente conduzido a uma posição mais radical.
Primeiro, poder-se-á falar de aptidões naturais em «si mes­
mas»? Não estarão estas aptidões que intervém no momento da
escolha tão ligadas ao meio e à educação e tão socializadas que
o problema se situe de facto ao nível da estrutura social que, por
exemplo, na sua organização de classes, privilegie o desenvolvi­
mento de «talentos» nuns, em detrimento dos outros? Pode pen­
sar-se que os temas relativos à universalidade e à igualdade na
educação ganham, em Durkheim, pleno sentido em função deste
problema. E o mesmo em relação à proposta, que ele retoma várias
vezes, de uma abolição da herança de que uma das consequências
seria evitar que os dados fossem lançados logo à partida. Mas ele
não a desenvolve. Quando muito indica, num texto muito impor­
tante sobre a natureza e a função da educação, que as aptidões
profissionais devem ser desenvolvidas de modo a encontrarem fun­
ções à disposição, ou seja, que a distribuição das profissões corres­
ponda à distribuição destas aptidões, não na medida em que elas
são socialmente criadas *.
No entanto, invocando o problema dos critérios que induzem
a opinião a decidir que o exercício de tal função implica mais «mé­
rito social» que a realização de uma outra, ele é levado a pôr em
evidência a importância dos preconceitos de classe e a impossibi­
lidade de uma definição estática das necessidades. «Existem na
sociedade duas grandes classes..., uma que é obrigada, para poder
viver, a fazer aceitar à outra os seus serviços seja a que preço for,
a outra que pode passar sem os seus serviços, graças aos recursos

1 Efcctivamcnte, Durkheim encontra a mesma dificuldade ao nível da sua


concepção da educação. A «socialização das jovens gerações» tem, de facto, a dupla
finalidade de ensinar os valores comuns e de preparar para uma determinada fun­
ção (ES, p. 41). Mas a distribuição das profissões está determinada pelo sistema
social existente e a escola acaba por ser o instrumento da «divisão do trabalho-
-opressão», contrariamente aos valores individualistas reconhecidos c ensinados.
A pedagogia, como Renc Lourau o mostrou, está no centro desta contradição,
mencionada, mas não suficientemente analisada por Durkheim, entre procura social
(aprendizagem dos valores socictais) c encomenda social (condicionamento a fun­
ções especializadas, manipulação das «aptidões») (René Lourau, «La societé insti-
tutrice», Temps modernes, 1969).

25
de que dispõe e, embora, os seus recursos não correspondam a ser­
viços prestados pelos próprios que deles usufruem» (LS, p. 237).
Ora, a opinião tem tendência a não considerar, sob o mesmo ponto
de vista, os homens das diferentes classes e a conferir, a priori,
mais méritos aos homens das classes superiores. Ela é portanto
susceptível, diriamos, de estar alienada pelo próprio sistema. As
aspirações igualitárias deveriam precisamente modificar, em certos
casos, a escala dos méritos em nome dessas mesmas aspirações.
Mas como será isto possível se a opinião fundamenta verdadeira­
mente a legitimidade das desigualdades sociais? Efectivamente, a
opinião contém as suas contradições e Durkheim sugere, como vere­
mos, que a transformação social passe pela tomada dc consciência
que pode tomar a opinião das suas contradições, ou do desnivela-
mento entre as suas aspirações e as instituições.
Por outro lado, Durkheim, depois de ter identificado méritos
e necessidades (temos as necessidades que merecemos), acabava por
perguntar a si próprio se a formação das necessidades não implica
precisamente um processo que torne difícil a conciliação da igual
dade e de uma organização — digamos — meritocrática. Efectiva­
mente, as novas necessidades (bem-estar, luxo) constituem-se espe­
cialmente por via das comparações que as pessoas que ocupam
estatutos inferiores fazem entre a definição dos seus próprios «mé­
ritos» e a definição do «mérito» das pessoas que ocupam estatutos
superiores. Ao nascer, eles dão um sentido às aspirações igualitá
rias, contribuem para pôr em causa a própria ideia de desigualdades
sociais «equitáveis» e iniciam um eventual processo de transforma­
ção. Não é portanto suficiente definir a igualdade simplesmente
pela possibilidade de satisfazer talentos originais ou adquiridos,
visto que ela também se define pelo nível da própria noção de mé­
rito. A característica de uma meritocracia é de ser constantemente
posta em questão '. E tudo se processa como se os valores indivi­
dualistas, requerendo ao mesmo tempo igualdade à partida e reali­
zação pessoal, exigissem uma conciliação impossível dos méritos
e das aspirações igualitárias.
Insistimos nestes pontos, porque eles mostram que Durkheim.

1 Referimo-nos aqui a Michael Young, The Rise of tbc lAcrilocracy, an Essay


on Educalion and Egalily, Penguin Books, 1958 (trad. franc. com o título La méri-
tocralie, mai 2033. S. E. D. E. 1. S., 1969).

26
embora tendo desenvolvido o tema da integração dentro e através
dos valores personalistas, não lhes compreendeu os problemas-
-chave que as nossas sociedades ainda não resolveram. Ele aproxi-
ma-se de temas mais radicais porque tem a intuição de que, em
suma, a igualdade é um falso problema (tema marxista) e que uma
sociedade enfrenta perpetuamente a questão da resolução do pro­
cesso de «nivelamento» em função da criação de novas necessi­
dades, resultantes do progresso e da comparação das gratificações.
Do mesmo modo, ele pensa que, se as classes não aceitam a con­
dição que lhes é imposta, a solução reside na abolição desse excesso
de poder que é a obrigação ao contrato de trabalho — ou seja na
abolição da violência. Infelizmente não desenvolveu este ponto
quando, mais tarde, se interroga sobre a natureza profunda do
poder econômico. Parece-lhe que a instauração de regras que regu­
lamentassem as relações entre grupos ou classes antagônicas facili­
taria o controle da violência (em termos de enfraquecimento ou de
moderação) e está convencido que os valores personalistas conse­
guem, por si, traduzir-se nestas regras, nestas instituições e nestas
estruturas que são as suas condições de realização. No entanto, ele
parece igualmente pensar que esta tradução está facilitada no âm­
bito de novas relações políticas, susceptíveis de exercer uma acção
sobre as relações econômicas. Uma segunda tentativa dc responder
à questão precedente — como pode o ideal individualista fazer-nos
encarar a ultrapassagem das imperfeições da sociedade de facto? —
situa-se então no âmbito de uma reflexão sobre o Estado, a sua
relação com a sociedade política, a sua natureza e as suas funções.

3. DO PODER E DAS COMUNICAÇÕES: A DEMOCRACIA

A realização pessoal que os valores individualistas exigem não


levanta, na verdade, apenas o problema da equivalência das opor­
tunidades e do reconhecimento dos méritos, mas, ao mesmo tempo,
o clássico problema das liberdades individuais no plano da acção
colectiva e das decisões relativas aos objectivos sociais, aos meios
de os atingir — em suma, ao plano da gestão da sociedade. Dur-
kheim encontra aqui inevitavelmente o facto do poder político,
em termos das relações entre o poder do Estado e as «forças so­
ciais» que as pessoas individuais constituem. Embora não preten-

27
desse a elaboração de uma sociologia política no sentido restrito,
foi conduzido pela lógica da sua reflexão a indicar em que condi­
ções o Estado é congruente com as exigências das sociedades mo­
dernas. Mas esta lógica implicava mais um maior interesse quanto
à evolução do Estado, ao que ele tende a ser, ou ao que ele deve
ser no quadro desta congruência, do que uma análise bem aprofun­
dada de certas realidades da sua natureza. Daí o carácter por vezes
curiosamente normativo — e contraditório com as suas próprias
exigências metodológicas — do seu estudo e os respectivos impas­
ses. Ele levanta, no entanto, sob certos aspectos e de um modo
muito actual, a problemática da democracia.
Numa sociedade em que as tarefas são ao mesmo tempo soli­
dárias e diferenciadas, que é constituída por grupos cujos valores
e interesses são muitas vezes antagônicos ', Durkheim não concebe
que um «órgão eminente» não exerça uma função privilegiada de
direcção. Mas ele não poderia ser outra coisa, na óptica estruturo-
-funcionalista de Durkheim, senão um grupo particular, cumprindo
uma determinada tarefa, composto por funcionários sociais cujo
comportamento se inscreve em funções, um «grupo de funcionários
sui generis» (LS, p. 86). É verdade que este grupo, ao contrário
dos outros grupos profissionais, tem o poder de orientar a conduta
social no seu conjunto e de influenciar os grupos particulares: é por
isto que ele é poder político. Mas Durkheim insiste no facto dc que
ele não tem, em última análise, senão um poder de empréstimo 2.
Unicamente a sociedade é, antes de mais, poder, e o grupo especial
de funcionários que constituem o Estado não faz senão representar
o poder social.
Sendo assim, a missão específica do Estado não pode consistir
senão em exprimir, nas decisões que toma e que comprometem
a colectividade, os requisitos e do sistema social como tal, nas suas
exigências integrativas, e do sistema social, enquanto actuante his­
toricamente, enquanto conduta colectiva. O Estado tem portanto
dois tipos de funções estreitamente ligadas: tornar possível a inser-

1 «Existem tantas morais quantas as profissões diferentes... As diferenças


morais aplicam-se a grupos de indivíduos absolutamente diferentes... Não são ape­
nas distintas umas das outras como existe entre algumas uma verdadeira oposição»
(LS, p. 44). ,, . .
1 Certas análises de Durkheim aproximam-se, neste aspecto, de Proudhon.

28
ção dos valores individualistas na prática social, facilitar a acção
colectiva histórica esclarecendo os problemas que se lhe põem
quanto à determinação dos objectivos de acção e à elaboração dos
meios de os realizar. Seja como for, o Estado está no centro da pro­
blemática das decisões e das comunicações, tal como ela é vivida
na acção colectiva: ele «pensa» mais claramente do que o pensa­
mento colectivo, recebendo e tratando as informações provenientes
de grupos constituintes da colectividade e decidindo por ela e em
seu nome; põe esta comunidade em comunicação consigo própria,
devolvendo este pensamento mais claro e informando-a dos moti­
vos da sua decisão. Durkheim imagina assim o grupo que constitui
o Estado como um centro de lucidez e de decisão. Mas mostra
igualmente — e é aqui que reside a sua originalidade — que o
modo como as informações circulam entre o Estado e a colectivi­
dade c que o grau de participação dos grupos nas decisões afectam
a congruência da acção estatal nas condições de desenvolvimento
da sociedade, assim como as possibilidades de as liberdades indivi­
duais serem consequentes. Para que o Estado seja «normalmente
o que ele deve ser», há dois sistemas que têm de encontrar mútuo
apoio: o sistema de poder e o sistema de comunicações. E reflec-
tindo sobre a natureza de cada um destes sistemas e sobre as suas
relações que Durkhcim demonstra a pertinência da democracia
numa sociedade moderna e lhe descobre a verdadeira natureza.
Nas sociedades modernas, o indivíduo pertence não só à socie­
dade global, mas também a grupos elementares (Durkheim cha­
ma-lhes secundários) que constituem o seu meio social imediato.
Pressentindo os dados ulteriormente fornecidos pela dinâmica dos
grupos e pela sociologia das organizações, Durkheim mostra que
os grupos profissionais onde o indivíduo realiza as suas funções
sociais têm tendência, por natureza, a exercer sobre ele uma pres­
são repressiva e despótica '. Tendem a impor o seu poder interno,
abafando as iniciativas individualistas, em nome de um «particula-
rismo colectivo» que, ao mesmo tempo, perde os interesses sociais

1 Durkhcim tirou muitas conclusões da «dinâmica dos grupos»: emergência


das normas a partir das interacções nos grupos restritos, criatividade do grupo nas
condições de efervescência, pressões para a uniformização. Cf., relativamente ao
«poder de grupo», L. Festinger, S. Schachter e K. Back, Social Pressnres
in Informal Groups, Harper, 1950; relativamente aos valores característicos das orga­
nizações, J.-G. March e H.-A. Simon, Les orgaiiizations, Dunod, 1963.

29
de vista. Se é verdade, como dizia Montesquieu que só o poder
controla o poder, isto quer dizer que só um outro poder pode con­
ter este poder interno do grupo. O Estado, que vai buscar a força
ao poder social colectivo, é precisamente este contrapoder que tem
a capacidade, lembrando aos grupos os imperativos da autonomia
individual e participando na instituição das regras que subtraem
o indivíduo à potência dos grupos elementares, para fazer emergir
as liberdades individuais. Não foi o Estado que promulgou as leis
que moderam a pressão dos proprietários das fábricas sobre os tra­
balhadores, atenuando o caracter leonino do contrato que os liga,
e estabelecendo uma maior igualdade nas condições de competição
social? De uma maneira geral, os progressos do Estado libertaram
o homem primitivamente sujeito aos grupos familiares e à comu
nidade.
Mas os homens arriscar-se-iam ainda mais a perder as possi-
bilidades de liberdade e de autonomia se, por hipótese, o Estado,
substituindo-se aos grupos elementares, decidisse, unicamente por
si, as suas finalidades e os pormenores do seu funcionamento e
absorvesse a totalidade do poder de pensamento e de decisão. Se
o Estado tiver o privilégio do pensamento c da decisão, tem-lhes
o monopólio: se ele tivesse este monopólio, a tirania do Estado
substituir-se-ia à tirania dos grupos elementares. Por esta razão.
Durkheim pensa que grupos e Estado são forças sociais de que,
em definitivo, o conflito é a matriz, da qual resultam as liberdades
individuais (LS, p. 99). Se o sistema de poder não for uma espécie
de «mecânica de contrapeso» (segundo a expressão de G. Davy,
LS, Introdução, p. 34), o Estado, elemento do sistema, não conse­
gue realizar a sua missão individualista.
É precisamente o que se observa em casos de absolutismo. Sc,
na Division du travail social, Durkheim parecia considerar que
o caracter autoritário do Estado se relaciona com os tipos sociais
inferiores, em compensação, no seu artigo «Deux lois de l’évolu-
tion pénale», ele afirma claramente que este carácter se pode
encontrar nos mais diversos tipos sociais. Um estado é absoluto,
diz Durkheim, não quando concentra funções mais numerosas,

1 Na sua teoria política, Durkheim foi influenciado por Montesquieu e por


Tocquevillc. Sabe-se que a sua breve tese era consagrada a Montesquieu (MR,
2.‘ Parte).

30
o que é próprio das sociedades modernas, mas quando nada encon­
tra nas outras funções sociais que seja de natureza a limitá-lo efi­
cazmente e que resulte do normal funcionamento das instituições
(1901 a, p. 66).
Mas é para ele significativo que, num regime autoritário, acon­
teça que simultaneamente as relações do poder supremo com o
resto da nação tenham um caracter unilateral (Ibidem, p. 67).
É evidente que um tal regime não exclui que a função governa­
mental seja exercida com consciência e lucidez, assim como não
impossibilita a comunicação de informações referentes às decisões
que são tomadas, tal como observa Raymond Aron ’. Mas exclui
precisamente o sistema de comunicações bilaterais, através do qual
os membros da sociedade política, informados dos problemas que
se põem à colectividade e reflectindo sobre esses problemas, pas­
sam de um estado de consciência política difusa a um estado de
consciência mais nítido e influenciam por sua vez as deliberações
estatais (LS, p. 115).
Gostaríamos que Durkheim tivesse desenvolvido mais precisa­
mente este ponto e as razões do aparecimento do absolutismo nas
sociedades industriais e que se tivesse interrogado se, nestas socie­
dades, o Estado absoluto não governará cm benefício de classes
sociais privilegiadas. Ele põe apenas a hipótese de que o absolu­
tismo contradiz os valores correspondentes às «condições de exis­
tência da sociedade» de maneira que não pode deixar de ser efê­
mero. «Não há Estado que seja suficientemente poderoso», escreve
no seu opúsculo intitulado L’Allemagne au-dessus de tout (1916,
p. 45), «para poder governar eternamente contra os seus súbditos
e constrangê-los, por pura cocrção externa, a obedecer às suas von­
tades.»
Na verdade, a democracia está inscrita na evolução das socie­
dades. Ela generalizar-se-á. Optimização do sistema de contrapode-
res, ela define-se ao mesmo tempo pela optimização da rede de
comunicações através da qual o Estado, informador e informado,
mais se aproxima das necessidades sociais e pela qual o seu pensa­
mento é observado e controlado pelos mesmos que lhe fornecem
os elementos. É na forma democrática que «a sociedade atinge o
mais puro grau de consciência de si própria» (LS, p. 123).

' In Les élapcs de la pciisée sociologique, p. 385.

31
Estabelecendo deste modo a importância da circulação da infor­
mação num regime democrático, Durkheim insiste num ponto-
-chave que ainda hoje nos diz respeito. Lamentaremos simples­
mente que, no que se refere à natureza das instituições políticas
susceptíveis de realizar a concomitância do aumento das comuni­
cações entre sociedade política e Estado, assim como o equilíbrio
dos poderes, ele não tenha ultrapassado o nível das generalidades.
Repare-se que, no entanto, se encontra em Durkheim uma crítica
tanto da democracia directa como da democracia representativa
e parlamentar dos anos 1900. A democracia directa, de que ele
— com ou sem razão — faz de Rousseau o teórico, pretende que
o Estado seja a expressão simples das vontades gerais e contenta-se
em traduzi-las: é recusar ao pensamento estatal a sua função ino­
vadora, em relação às vontades particulares. Tratar-se-ia, efectiva-
mente, de uma sociedade sem Estado que Durkheim considera um
tanto à pressa como absurda. Quanto à democracia liberal ele con­
sidera-a «desviada» e «impura», combinando os defeitos do abso-
lutismo e da democracia directa. Por outro lado o Estado está
excessivamente submetido às correntes de opinião (devido especial­
mente aos interesses puramente eleitorais dos parlamentares); por
outro lado ainda, logo que é necessário compensar a excessiva
mobilidade da vida política, ele tende a constituir-se em burocra­
cia: esta burocracia, monstruosidade sociológica, torna-se responsá­
vel por um imobilismo rotineiro e por uma nova tirania. Durkheim
descreve, em termos próprios de Tocqueville, as consequências
deste estado de coisas — uma estranha combinação dc inércia e de
actividade, o abandono do indivíduo simultaneamente tiranizado
pela burocracia e entregue ao despotismo dos grupos particulares.
A democracia está portanto por fazer. Mas, diz Durkheim,
nesta tarefa o sociólogo apenas pode indicar os princípios: o seu
trabalho não é o do homem de Estado. Cabe ao político, e não ao
investigador, contribuir, por um lado, para a organização desta
relação triangular entre indivíduos, grupos e Estado, que faça emer­
gir as liberdades individuais do conflito entre poder político e
poder dos grupos, sem que estas liberdades ponham por sua vez
estes poderes em perigo — por outro lado, imaginar a estrutura
que permitirá ao Estado ser o órgão de uma consciência política
mais clara dentro da própria sociedade. No entanto, sabe-se que
Durkheim propôs, diversas vezes (SU, p. 448; DTS, 2.° Prefácio;

32
LS, pp. 136-139), uma maior intervenção dos grupos profissionais
na vida política. Esta proposta respondia essencialmente ao pro­
blema que se lhe punha com a situação das relações econômicas na
sociedade: situação ambígua, visto que elas não participam nem
em associações profissionais coerentes, possuindo as suas regras e
aptas a enquadrar suficientemente os indivíduos, nem numa acção
suficiente emanente do Estado, que deixa de ser parcelar ou des­
contínua. Se há grupos que actualmente podem ser opressores, não
é o caso de empresários e empregados em conjunto, visto não fun­
cionarem enquanto grupos coesos. E se alguma actividade social
fundamental está, em grande parte, fora da vida estatal, é sem
dúvida a actividade econômica, ainda pouco ligada ao Estado.
Nesta hipótese, encontramo-nos face à dupla necessidade de ligar
as funções econômicas aos centros directores e de criar corpos pro­
fissionais, reunindo, por exemplo, os agentes de uma mesma indús­
tria. Deste modo, constituir-se-á um sistema de poder equilibrado.
Durkheim vai portanto propor que as corporações reúnam «o corpo
industrial de tal ou tal especialidade», constituam uma organização
democrática própria, com uma assembléia eleita incluindo repre­
sentantes dos empresários e dos empregados. Estas associações
estabeleceríam as regras profissionais internas, organizariam o en­
sino dos adultos e poderíam ter representantes nas assembléias
políticas. Poderíam até herdar os bens dos seus membros.
Este projecto corporativista, de origem saint-simoniana, não
era em si original: encontramo-lo evocado em muitos filósofos
políticos da altura (Duguit, Benoist, Schaeffle). Mas a utilização,
que mais tarde foi feita, da ideia corporativista no âmbito do fas­
cismo mussoliniano, gerou uma desconfiança legítima em relação
a esta ideia e igualmente uma má interpretação retroactiva da pro­
posta específica de Durkheim. Seja como for, considerando o
aumento do peso dos grupos profissionais nas decisões estatais,
como um modo concreto de constituir uma democracia de poderes
equilibrados, ele não imaginava que as corporações pudessem ser
elementos de um sistema absolutista ’. No entanto, este avatar não
deixa de levantar problemas e gera necessariamente alguns reparos.

* Em particular, Durkheim não previa de maneira nenhuma um «estado corpo­


rativista» de estilo mussoliniano ou português. Para ele, as corporações são contra-
poderes, relativamente ao Estado, longe de participarem no poder estatal.

33
2 - A Ciência Social c a Acção
Quando Durkheim propõe a constituição dc grupos profissio­
nais, incluindo representantes dos empresários e dos empregados
e até dos sindicatos de uns e de outros, supõe, certamente dema­
siado à pressa, que do grupo nasceríam necessariamente regras que
harmonizariam estas relações. Limitando ao grupo econômico pro­
fissional a tarefa de regulamentar a «guerra de classes», ele mos­
tra que, na sua opinião, não se trata de um conflito afectando a
estrutura social no seu conjunto. É por esta razão que ele se não
põe a questão de saber qual a relação que existe entre poder
de Estado e poder econômico das classes possuidoras. E deste modo
minimiza a possibilidade de o Estado ser o instrumento do poder,
não de um grupo profissional, no sentido em que ele o entende,
mas de uma camada da sociedade e de, assim, participar num sis­
tema que pode ser caracterizado seja como uma pseudodemocracia,
seja como um absolutismo, consoante as peripécias históricas.
Equilíbrio dos poderes e comunicações não lateralizadas não
são provavelmente possíveis no esquema de Durkheim, senão na
medida em que o Estado consente em reconhecer o poder anta­
gonista de certos grupos ou camadas sociais, assim como a sua mis­
são de defensor das liberdades individuais. Ora, precisamente, será
ele capaz, uma vez que participa no poder dos interesses econô­
micos e está portanto pouco apto a reconhecer as aspirações das
classes que se encontram numa situação desfavorável? Está certa­
mente na linha de pensamento de Durkheim dizer que o Estado
deve desempenhar um papel de árbitro nos conflitos de classes:
o problema é saber se é possível desempenhar tal papel no actual
estado de forças.
Como já referimos, Durkheim elabora uma teoria menos cien­
tífica do que ideológica do Estado, conduzido provavelmente pela
urgência em abordar frontalmente a problemática da política. Por
outro lado, absorvido pelas suas investigações sobre as condições
da integração e sobre o papel da religião no sistema social, os seus
conceitos próprios tornavam difícil a apreensão do conceito de
poder em toda a sua extensão. Explica-se assim o uso que faz, por
exemplo, do conceito de consciência colectiva, logo que aborda o
tema do Estado, num sentido diferente do habitual nos seus escri­
tos visto tratar-se de uma consciência dos problemas da acção
comum, da organização dos objectivos, etc., enfim, de uma cons­
ciência política. Mas Durkheim não utiliza este último termo.

34
Parece-nos que se ele tivesse aprofundado as suas reflexões
sobre a democracia directa e posto em questão o carácter absurdo
que ele atribuía à ideia de uma sociedade sem Estado, teria podido,
senão retomar alguns temas anarquistas ou libertários, pelo menos
pôr noutros termos a problemática da gestão democrática de uma
sociedade por si própria. Ele não estava preparado para isso, mas,
desenvolvendo a noção prospectiva do «vai-e-vem» nas comunica­
ções entre sociedade política e Estado, talvez tivesse sido condu­
zido a diminuir, em maiores proporções do que fez, as prerrogativas
do grupo estatal ’.
Em compensação, parece-nos que, tendo abordado de um ponto
de vista teórico as condições da democracia política, ele foi levado
a atribuir uma importância crescente às relações econômicas na
sociedade. Ele era assim levado a situar-se vis-à-vis ao socialismo,
principal objecto das suas preocupações.

4. N/l PROCURA DE UM SOCIALISMO

Durkheim compreende a economia de um modo ambivalente.


A própria economia política é, logo nos primeiros textos, acusada
do individualismo utilitarista que a marca, de isolar as actividades
econômicas das outras funções sociais e de nos fornecer apenas um
conhecimento truncado; seria preciso que a «ideia sociológica»
descesse ao longo de si própria para que se pudesse tornar numa
ciência útil. Quanto aos factos econômicos, considera-os factores
de divisão c não de integração: iniciam os homens em relações que
os mantêm alheios uns aos outros, e é a este nível que o amor-
fismo e a anomia são mais graves. Ele não imagina que, nestas
condições, a economia possa ter algum primado na evolução social:
o artigo de 1897, consagrado ao livro de A. Labriola sobre a con­
cepção materialista da história (SSA, 9), indica claramente que,
na sua opinião, o factor religioso e não o factor econômico desem­
penha um papel primordial no desenvolvimento das sociedades.

1 A importância da circulação da informação c das trocas nas comunicações


é provavelmente ainda maior na era dos meios de comunicação de massas e das
sondagens de opinião. Durkheim teria sem dúvida insistido nos nossos dias sobre
o perigo da eventual monopolização dos mass media audiovisuais entre as mãos
do Estado.

35
Assim, se a anomia econômica levanta um grave problema às
sociedades industriais, isto indica claramente que a vida econô­
mica está profundamente ligada à vida social; se, tal como acaba­
mos de ver, as liberdades individuais apenas podem nascer do esta­
belecimento de um certo tipo de relações entre os grupos profissio­
nais relativos às actividades econômicas e o Estado, isto implica
que o sociólogo não pode evitar uma reflexão sobre estes «tipos
de relações». Apesar das suas reticências, Durkheim acaba por,
por um lado, insistir na necessidade de constituir uma sociologia
econômica, que estude objectivamente as instituições econômicas
(o que, segundo ele, alguns economistas alemães já começaram a
fazer) e, por outro lado, por pôr em causa, no fim da sua carreira,
a sua tese da marginalidade da economia. Em 1908, por ocasião
de uma discussão na Société d’Economie Politique, ele afirma que
«os factores econômicos afectam profundamente a maneira como
a população está distribuída, a sua densidade, a forma dos gru­
pos humanos, e, por isso, exercem uma influência muitas vezes
profunda sobre os diversos estados de opinião» e que assim
«a economia política não deixa de constituir um certo primado»
(1908 a, p. 67).
Pode levantar-se a hipótese de que uma das razões das reti­
cências de Durkheim relativamente à ciência econômica provém
das dificuldades que ele sentia em integrar as actividades de pro­
dução e de troca num sistema onde o social se pudesse exprimir
em termos de representações colectivas. Ora, é por os valores
econômicos serem coisas de opinião, diz em 1908, que uma ciên­
cia econômica é possível. É de resto em função desta teoria do va-
lor-opinião que ele analisava o contrato injusto, leonino, que se
institui entre patrão e empregados. Mas, tal como já insistimos,
Durkheim não consegue analisar de maneira satisfatória, com base
em tal hipótese, qual a contradição estrutural que possibilita o tal
contrato leonino, tipo de não congruência entre avaliação da opi­
nião e realidade das trocas. Por outro lado, é evidente que, demons­
trando a necessidade de ligar economia e política de maneira a rea­
lizar um equilíbrio de poder através de um conflito de forças, ele
fazia da economia uma «força social» independente da opinião.
Voltamos a encontrar aqui a sociologia de Durkheim pouco pre-

36
parada para abordar o que ele pressente ser uma chave do problema
social.
Seja como for, se ultrapassar o mal-estar próprio da socie­
dade industrial não é apenas questão de uma transformação na
organização econômica, mas também da instauração de regras éti­
cas no quadro, por exemplo, dos corpos profissionais, acontece
que não há democracia política que não tome em consideração
a economia. A importância do movimento socialista provém exacta-
mente, na sua opinião, do facto que ele se confronta com a proble­
mática da «ligação» entre economia e política e, por conseguinte,
com o corpo social no seu conjunto. Durkheim encontra nos socia­
listas uma problemática muito próxima da questão que levantam
a constituição da democracia e a promoção do individualismo, e
que ele até pensa poder exprimir nos termos do seu sistema. Dis­
semos que a sociologia devia permitir a Durkheim fundamentar
a harmonia entre individualismo e socialismo. Mas qual é o socia­
lismo que é congruente com o individualismo? E o que é que
a sociologia nos pode dizer nesta procura?
Encontramos na «Note sur la définition du socialisme», repro­
duzida na presente edição (1893, SSA, 7), duas afirmações. Uma
referc-se à natureza do socialismo, a outra ao seu destino. Segundo
a primeira, o socialismo é definido como «uma tendência para
fazer passar, brusca ou progressivamente, as funções econômicas
do estado difuso em que se encontram a um estado organizado»;
segundo a última, ele é apresentado e definido como «implicado
na própria natureza das sociedades superiores». Voltaremos à sig­
nificação desta segunda fórmula para primeiro fazermos alguns
reparos sobre a primeira.
Trata-se portanto de uma definição que de resto antecipa a
do curso de 1895-1896 sobre O Socialismo, em que o nome «socia­
lista» é atribuído a «qualquer doutrina que pretenda a ligação de
todas as funções econômicas, ou de algumas, entre elas as que
estão actualmente difusas, aos centros dircctores e conscientes
da sociedade» (SO, p. 25). Durkheim interessa-se menos pelo movi­
mento operário do que pelas teses socialistas referentes à trans­
formação social e à sociedade futura. Elas são, na sua opinião,
elementos do sistema pelo qual uma sociedade considera os seus
próprios problemas, desenvolve as suas próprias perspectivas e
aspirações, e, por isso, são susceptíveis de uma abordagem socio-

37
lógica e objectiva. Preocupa-se então em encontrar uma unidade
nos socialismos «sem excepção», e em lhes extrair um conceito
verdadeiro. Mas, ao mesmo tempo, ele deseja descobrir uma diver­
sidade suficiente para que se possa dar lugar às concepções que,
de hoje em diante, se possam deduzir do seu sistema, ou seja, para
que a sua teoria da acção possa ser considerada susceptível dc resul­
tar em concepções que entrem no quadro do socialismo, mesmo
que nenhum socialismo trabalhe em função dc uma teoria da acção
deste gênero.
Assim feito, ele não podia evitar as dificuldades que se esforça
por minimizar: os socialismos são redutíveis a um conceito comum,
exprimível por excesso em termos durkheimianos? Será possível
pretender recuperar o socialismo para, de certo modo, nele inscre­
ver as suas próprias teses? Ele pensa consegui-lo deixando para
segundo plano o que não são as características comuns aos socia­
lismos e ao seu sistema — como a luta de classes e a teoria mar­
xista do Estado —, para privilegiar os seus próprios temas princi­
pais, como a pertinência de comunicações bilaterais e a tomada
de consciência a nível do grupo estatal.
As referências explícitas do curso indicam que Durkheim se
inspirava essencialmente nas suas definições em Saint-Simon, Fou-
rier e Proudhon, mas também em Blanqui, Lassalle, Louis Blanc,
Benoit Malon, Guesde, nos «socialistas da cátedra» alemães e, evi­
dentemente, Marx, embora não lhe reserve um tratamento parti­
cular. Devíamos, entretanto, salientar que desde muito cedo se
encontram referências a Marx na obra de Durkheim. Em 1886
é citado por Schaeffle no seu livro sobre L<t qninlessence du socia-
lisme (SSA, 5). Em 1889 suspeita-se que Tõnnies defende, com
o nome de gesellschaft, «a sociedade capitalístico-socialista» e de se­
guir Marx nas «cores sombrias com que ele a pinta» (1889 a,
p. 420). Se as alusões a Marx são raras na Division du travail social,
encontramo-las, em contrapartida, no artigo consagrado a Gastou
Richard (1897, SSA, 8), naquele que trata do livro de Labriola
sobre o materialismo histórico (1897, SSA, 9), e no curso ante­
riormente citado. No entanto, é difícil dizer qual o conhecimento
directo que Durkheim tinha da obra de Marx. É verdade que
Mauss nos diz que, durante a sua estada em Leipzig, um amigo
finlandês o tinha introduzido ao estudo de Marx (SO, Introdu­
ção, p. VIII). Mas o desaparecimento da biblioteca de Durkheim

38

í
durante a guerra impede-nos de saber se, quando ele fala da «dou­
trina colectivista de Karl Marx», da «escola», ele vê Marx através
do guesdismo, Schaeffle, Labriola ou através de uma leitura atenta
do Capital ou de outras obras.
Preocupado portanto com uma sociologia dos socialismos, de
que vê no seu meio, entre 1883 e 1895, os conflitos e os avatares ',
ele procura saber, em primeiro lugar, qual o estado da sociedade
que determina o seu aparecimento no século xvm. Ele oscila, aliás,
entre duas explicações, uma segundo a qual a grande indústria cria
directamente a ideologia socialista, a outra segundo a qual grande
indústria e socialismo são em suma o produto de um mesmo estado
social caracterizado pelas novas condições de produção e de troca,
a conjunção do liberalismo e do maquinismo, a viabilidade de uma
sociedade onde o progresso técnico não é acompanhado pela insti­
tuição de um sistema regulador suficiente (SO, pp. 50-51).
O que lhe parece mais significativo no facto, é que o socia­
lismo nunca põe em causa a industrialização como tal, mas apenas
a maneira como ela se constitui em consequência do liberalismo
econômico. As doutrinas socialistas reflectem e exprimem aspira­
ções igualitárias, uma necessidade de justiça social que nasce nos
que dificilmente vivem, uma organização econômica que não se con­
cilia com as condições de existência da sociedade. Reclamando a
socialização mais ou menos completa das forças econômicas, elas
convergem portanto para os valores personalistas trazidos pela
doutrina individualista dos filósofos políticos do século das luzes,
sem no entanto as pôr directamente em evidência, preocupadas que

1 Depois do Congresso de Marselha (Durkheim rcferc-sc ao programa elabo­


rado, cm 1880, por Guesde, Lafargue e Marx, SO, p. 39), Guesde não consegue
unificar no seio do Parti Ouvrier Français as diferentes tendências «colectivistas».
Daí a cisão dos «possibilistas» cm volta de Brousse (1884), depois, dentro deste
grupo, a cisão dos partidários de Allemanc, antieleitoralistas c antiestatais (1890).
Por outro lado, os Blanquistas permanecem influentes e vários grupos de «socia­
listas independentes» somam-se à multiplicidade dos socialismos. Entre estes referi­
mos a doutrina exposta por Benoit Malon cm Le socialisme integral, em 1882.
Durkheim conhecia certamentc a fórmula de Malon: «O socialismo, esta religião
humana dos tempos modernos, deve ser encarado do ponto de vista filosófico, his­
tórico c moral, assim como do ponto de vista político c econômico.» Seja como
for, o livro de Malon conduz Durkheim a completar a sua primeira definição das
teorias socialistas com esta fórmula: «Secundariamente, chamam-se igualmente socia­
listas as teorias que, sem se referirem directamente à ordem econômica, estão, no
entanto, cm ligação com as precedentes.»

39
estão em primeiro lugar pela prática social. De onde, na opinião
de Durkheim, o risco que certos socialismos neguem estes valores
pelo próprio tipo de organização que preconizam e esqueçam o que
precisamente melhor os poderia promover numa sociedade com
divisão do trabalho social diferentemente organizada.
Os socialistas têm todos, nas definições de Durkheim, o objec-
tivo de reintroduzir a economia na esfera da política, de pôr em
comunicação funções econômicas e Estado, visto que é a partir
desta «ligação» que a melhoria das condições dos operários, a rea­
lização da igualização das possibilidades de promoção social, a ate­
nuação, senão a supressão dos conflitos de classe se poderão reali­
zar. Retoma-se aqui o tema da democracia: o contacto entre o
pensamento claro do Estado e os interesses industriais no seu
conjunto, um intercâmbio dc informações entre Estado e grupos
econômicos, um controle exercido pelo Estado, representante do
corpo social, sobre uma esfera social ainda marginal, são os elemen-
tos que suscitarão a viabilidade das instituições próprias a harmo-
nizar interesses colectivos e particulares.
Os socialismos diferem portanto pela maneira como é encarada
a ligação em análise. Primeiramente, Durkheim distingue o socia­
lismo democrático do socialismo autoritário, que ele identifica
formalmente com o colectivismo guesdista, assim como com o socia­
lismo lassaliano, «militarista e despótico». Provavelmente a dou­
trina marxista resulta, para ele, em muitos aspectos desse socialismo
autoritário de que ele analisa os perigos com uma certa perspicácia.
Para ele, é evidente que uma sociedade estatal, «em que a massa
dos cidadãos não seria mais que uma matéria maleável e dócil nas
mãos de um governo todo-poderoso» (1886, SSA, 5), é o risco
específico de um sistema social que daria ao Estado o monopólio
das decisões econômicas e absorvería a economia em vez de ser ape­
nas um «contacto» suficiente com ela. Perigos de burocratização
sempre que o Estado pretendesse controlar pormenorizadamente
e de um modo ao mesmo tempo planificado e centralizador a tota­
lidade das funções econômicas — burocratização que Durkheim
denuncia em nome da teoria política. Em compensação, um socia­
lismo «democrático», ou seja, congruente com a anterior descrição
da democracia, é conforme às exigências políticas e éticas da socie­
dade emergente. Em que consiste? Durkheim está novamente enta­
lado entre a sua preocupação de equilibrar o poder do Estado e a

40
realidade das idéias libertárias. Quando evoca os representantes
deste socialismo democrático, parece que ele evoca de bom grado
o mutualismo de Proudhon ou certos aspectos de Fourier — e até
a tese marxista do desaparecimento do Estado na segunda fase
do socialismo. Mas apenas de passagem (SO, p. 17). Pode-se ainda
pensar que Durkheim, muito próximo de um esquema autogestio-
nário da sociedade, lhe resiste não só por causa da dificuldade em
que se encontra para aprofundar a sua própria intuição de um
Estado como centro da comunicação das informações entre grupos
sociais, como também pela insuficiência da sua análise das classes.
É portanto a partir da sua crítica da democracia directa que, em
seguida, opõe, a um socialismo que ligaria as funções econômicas
aos centros superiores por uma ligação imediata, um socialismo
que ligaria apenas algumas destas funções por uma ligação me-
diata'. «através de intermediários, ou seja, de centros secundários,
dotados de uma certa autonomia: grupos profissionais, corpora­
ções, etc.» (SO, pp.24-25). Aqui, Durkheim pensa em Louis Blanc,
mas sobretudo no seu próprio projecto corporativista, recuperado
deste modo no quadro do socialismo.
Não se deve portanto interpretar strictu sensu a afirmação se­
gundo a qual o socialismo, definido como aspiração à socialização
das forças econômicas, está implícito na natureza das sociedades
modernas. Efectivamente, o único socialismo implicado nesta «na­
tureza» é o socialismo democrático, que formaria um todo com a
democracia política cujas lições deixaram marcas nesta época'.
Acrescente-se que Durkheim não precisa se a estrutura capitalista
faz ou não parte da natureza social. Parece que, para ele, «socie­
dade superior» significa apenas sociedade com divisão do trabalho
social. O capitalismo não foi a última palavra. Mas, tudo parece
indicar que ele não consegue pensar o problema em termos da pro­
blemática capitalismo de Estado versus gestão colectiva dos meios
de produção (ele diz: socialização das forças econômicas e não dos
meios ou instrumentos de produção), embora no Le socialisme ele

1 Quando Durkheim diz que o futuro das sociedades implica o socialismo,


está portanto a pensar, não no colectivismo, mas antes num socialismo democrático,
inspirado em Saint-Simon (a quem ele consagra numerosas páginas no seu livro
sobre Le socialisme), beneficiando de todos os contributos da sociologia: a um
socialismo durkheimiano (cf. J.-C. Filloux, Durkheimisme et socialisme, Elu­
des, 1963).

41
resuma bastante fielmente os temas colectivistas da época que
reclamam o desaparecimento da «classe dos capitalistas» (SO,
p. 33).
Aqui Durkheim não podia, sem se tornar demasiado infiel ao
seu projecto original, desenvolver mais profundamente. Mesmo
que o sociólogo possa, em determinada altura, traduzir-se em lin­
guagem de acção em propostas de tipo socialista, a finalidade das
ideologias socialistas existentes, por úteis e eficazes que sejam no
processo histórico, não é a do sociólogo. As insuficiências das dou­
trinas socialistas devem-se, segundo Durkheim, ao facto dc não
assentarem numa compreensão verdadeiramente científica do sis­
tema social. Assim, não têm suficientemente em conta a necessi­
dade do aparecimento das regras morais que, supondo realizada
uma justiça social ideal, deverão enquadrar os desejos dos homens
e convencê-los a não aspirarem a mais do que aquilo que podem
obter em função dos seus méritos sociais (SO, pp. 289-291). Liber­
dades individuais e promoção da pessoa são inseparáveis da mora­
lização das relações sociais: esquecendo-o, os socialistas entram cm
contradição com o próprio sentido da aspiração que querem expri­
mir na acção. Durkheim não está longe de denunciar na tecnocrati-
zação organizadora um grande risco de o homem se perder ou pelo
menos de um abandono do culto do homem.
Por outro lado, parece-lhe que os socialistas defendem concep­
ções discutíveis sobre a transformação da sociedade. Isto por duas
razões. A primeira refere-se às modalidades da passagem ao socia­
lismo, tal como os partidários de uma passagem «brusca» e revo­
lucionária as pretendem. Podemos evocar aqui a ansiedade de
Durkheim perante a violência, uma espécie de reformismo conge-
nital nele, mas igualmente este argumento que ele opõe a Hubcrt
Lagardelle quando de uma discussão referida nos Libres entretiens
(1906, SSA, 12): «Socialismo e revolução destrutiva não se impli­
cam necessariamente. Como é que é possível que amanhã o homem,
sabendo que se trata da vida do homem, deseje a destruição da
sociedade, ou seja, a barbárie?» A segunda, que se refere igual­
mente aos reformistas e aos revolucionários, explica os motivos
pelos quais Durkheim se iniciou nos caminhos da sociologia. Dur­
kheim lamenta muitas vezes que as doutrinas socialistas não façam
a ligação entre transformação e conhecimento científico. É verdade
que a sua função não é a de serem ciências mas de exprimir as

42
aspirações da consciência social. No entanto podemos perguntar­
mos até que ponto esta consciência é susceptível de determinar, na
sua própria expressão, os remédios pertinentes para os males que
sente e se, por isso, as aspirações que as teorias socialistas expri­
mem não se satisfazem com os fundamentos intelectuais mais
aptos a legitimá-las, mas não necessariamente os mais fundamenta­
dos. É neste contexto que convém ler as acusações feitas a Marx,
especialmente nos artigos de 1897 consagrados a Gaston Richard
e a Labriola (SSA, 8 e 9). Convergem com os do curso sobre
Le socialisme: «Vejam mesmo a obra mais forte, mais sistemática,
mais rica em idéias que a escola produziu: O Capital, de Marx.
Quantos dados estatísticos, quantas comparações históricas, quan­
tos estudos seriam indispensáveis para resolver qualquer uma das
incontáveis questões que aí são tratadas! Será preciso relembrar
que aí se estabelece toda uma teoria do valor apenas nalgumas
linhas?» (SO, p. 6). A transformação deve ser conduzida em fun­
ção de uma ciência mais sólida. Esta é a convicção de Durkheim.
Mas não terá ele igualmente pecado por vezes por imprudência?

5. O SOCIÓLOGO E A TRANSFORMAÇÃO

Existe uma espécie de volu/itarismo em Durkheim. Quanto


mais se avança na sua obra, mais as incitações à acção são fre­
quentes, sendo a forma geral mais ou menos idêntica, feita de fór­
mulas de objurgação e até de apelos, precedidos da expressão
é preciso. «É preciso que a nossa sociedade retome consciência
da sua unidade orgânica» (SSA, 1); o essencial «é meter resoluta­
mente mãos à obra» (SU, p. 451); «a hora do descanso não soou
para nós» (SSA, 11). Os sociólogos são convidados a fazer um
apelo aos homens de Estado, à opinião, para que se efectuem estas
transformações cuja necessidade é «vivamente sentida», mas cuja
natureza «é apenas vagamente entrevista» (1895 a, p. 135). O so­
ciólogo apresenta-se, tal como diriamos hoje, como um «agente
de transformação», e a sociologia de que ele é o porta-voz e ao
mesmo tempo o artesão pretende de futuro esclarecer a natureza
da transformação social indispensável, facilitar-lhe a realização e
gerar uma tomada de consciência da natureza particular à escala
colectiva. Tudo se processa como se, embora o sociólogo no traba-

43
Iho não obedeça a outros fins que não sejam ,os científicos, a inves-
tigação sociológica interviesse no plano da sua, função social, ou seja,
como se ela fosse acção.
Nestas condições, era difícil que Durkheim não tentasse esta­
belecer a definição de uma praxis sociológica com base numa teoria
da transformação social. A verdade é que ele nunca apresenta um
«modelo» suficientemente sofisticado para ser considerado como
uma teoria elaborada da transformação: a prova é que Parsons
pretende não ter descoberto nele nenhuma concepção esclarecedora
do assunto. Provavelmente, Parsons não o procurou, visto que
outros comentadores, como Bellah ou Nisbert, estão de acordo em
considerar que Durkheim, pelo contrário, lançou as grandes linhas
de um modelo que traduz a ordem social enquanto processo de
transformação e de desenvolvimento ’. Devíamos, talvez, distinguir
aqui entre «desenvolvimento» e «transformação», referindo-se o
primeiro a «esse processo contínuo através do qual a sociedade,
permanecendo embora fiel à sua natureza, se transforma constan­
temente em algo de novo» (MR, p. 107), e o segundo, ao que
decorre de uma vontade humana, particularmente em períodos de
crise e de mutação. Mas acontece que, pela função limitada que
em definitivo ele atribui à acção dos «homens importantes» e dos
indivíduos no desenvolvimento das sociedades, c também pelo
modo como ele concebe a função activa da ciência social, enquanto
agente da transformação social, a transformação é, na sua opinião,
apenas um momento do desenvolvimento. Resumindo, a transfor­
mação iniciada pela sociologia não passa, num certo ponto de vista,
de um caso particular dessa transformação «espontânea», digamos
natural, que forma um todo com o desenvolvimento, a dinâmica
de determinada sociedade.
O problema é portanto saber como é que um sistema social
passa de um estado para outro, o que é que torna possível o seu
devir. Durkheim responde implicitamente, quando, na Division
du travail social, ele mostra como o aumento demográfico suscita
novas relações de funções, os progressos técnicos exigem a institu­
cionalização de novas regras contratuais e a opinião influencia o

' Cf. R. A. Nisbet, Emile Durkheim. Esta obra tem em complemento um


artigo de R. N. Bellah, «Durkheim and History», publicado anteriormente no
American Sociological Review, XXIV, 1959.

44
valor atribuído ao trabalho e ao seu produto. Do mesmo modo,
um modelo implícito da transformação é subjacente a esta recons­
trução de L’évolution pédagogique en France, em que primeiro se
vê uma visão cristã do mundo suscitar determinadas instituições
escolares; depois, os factores econômicos implicados na unificação
política de Carlos Magno provocar uma modificação estrutural no
sistema escolar e introduzir a lógica ao longo dos estudos; final­
mente, a ruptura do sistema medieval conduzir às transformações
culturais do Renascimento ao mesmo tempo que a transformações
no sistema social global (EP, l.a Parte). No entanto, em nenhum
destes casos o modelo é explícito.
Um dos elementos deste modelo é incontestavelmente o tema
das virtudes do grupo, do aparecimento espontâneo de normas
informais e de regras formais, logo que os homens entram em con­
tacto e que se produzem efervescências: é assim que nascem em
particular novos valores. Mas, parece-nos que este tema só ganha
pleno sentido no quadro de uma tese mais geral relativa precisa­
mente à relação entre o informal e o formal, entre a criatividade
a nível das representações colectivas e a estabilidade das institui­
ções, entre o dinâmico e o fixo: em suma, entre instituinte e insti­
tuído. Aqui, Durkheim encontra metáforas tais como as da «conso­
lidação», da «cristalização» para exprimir a sua intuição de uma
interacção motriz entre o que se pode chamar os níveis de materia­
lização na realidade social. Coordenando um certo número de tex­
tos 1 pode-se reconstruir, com a ajuda do quadro que se segue, a con­
cepção durkheimiana dos «níveis» de consolidação da natureza
social, partindo dos factos mais evidentemente materiais até aos
fenômenos culturais e criadores 2.

I. Volume, densidade e distribuição da população. Organização


territorial. Objectos materiais incorporados na sociedade: edi­
fícios, vias de comunicação, monumentos, instrumentos tecno­
lógicos (máquinas, etc.).

1 As citações que se seguem referem-se a textos de RMS, l.° Cap.; de SP, «Re-
présentations indiviluelles et représentations collectives»; assim como à tradução de
A. Cuvii.lier do artigo publicado em 1900 numa revista italiana, «La Sociologia
cd il suo dominio scientifice» (in Ou va la Sociologie française?, Rivière, 1953).
1 G. Gurvitch apresentou uma reconstrução ligeiramente diferente destes
«nivelamentos» (Traité de Sociologie, I, p. 11).

45
II. Instituições:
II-A. Regras e normas formais — exprimindo-se nas fórmu-
las fixas do direito, nos preceitos da moral, nos dog-
mas religiosos, nas formas políticas e econômicas, nas
definições das funções profissionais —, ou determi-
nando as convenções da linguagem, os deveres das
categorias sociais;
II-B. Regras e normas informais aplicando-se aos campos
precedentes: modelos habituais, hábitos e crenças
colectivas.

III. Representações colectivas:


III-A. Valores societais, ideais colectivos; opiniões; represen
tações que a sociedade faz de si mesma; lendas e mitos;
representações religiosas;
III-B. Correntes livres, «efervescentes»; ideação colectiva
criadora; valores e representações emergentes.

O nível I corresponde ao que Durkheim chama por vezes «fac­


tos de estrutura» e os níveis II e III ao que ele chama «factos
de funcionamento», pretendendo assim opor o que é vida, acção,
ou substrato espacializado e material. Entre I e 1I-III existem
interacções com duplo sentido: a estrutura, diz Durkheim, «deter­
mina» a vida, «suporta-a», de tal modo que a vida «reside nela»,
«brota dela»; por outro lado, a estrutura «deriva» da vida, c a sua
«consolidação». Entre o que é imóvel e o que é móvel coexistem,
portanto, simultaneamente relação dc materialização e acção de um
sobre o outro.
Ora, este tipo de relação e de interacção encontra-se igualmente
entre II e III, mas também dentro do nível II (entre os subní-
veis II-A e II-B) e dentro do nível III (entre III-A c III-B). De tal
modo que, encarado sob esta perspectiva, o sistema social surge
como um sistema de interacções, não mais entre pessoas ou gru­
pos, mas entre graus de «consolidação», de objectivação dos ideais
e dos valores. È assim que os hábitos se transformam em regras
escritas, que as «livres correntes» criadoras se traduzem em novos
ideais; que, inversamente, a instituição de regras possibilita o apa­
recimento de novos valores, torna viáveis novos momentos cria-

46
dores e que os progressos das comunicações geram novos hábitos,
práticas e representações colectivas.
Encontramo-nos portanto em presença de um modelo interac-
cionista, em que o substrato, embora material e estável, não é está­
tico e «se encontra no futuro». Sob a pressão dos fenômenos cul­
turais, os factos da estrutura evoluem, transformam-se e inversa­
mente; do mesmo modo, sob pressão das representações colectivas,
as instituições evoluem, transformam-se e inversamente. É dentro
deste modelo que se situa o problema do primum movens, do fac-
tor preponderante (admitindo que haja evolução na solução que
Durkheim lhe dá). Ele refere-se igualmente na teoria que elabora
a períodos de crise, caracterizados pela anomia, a divisão do tra-
balho-obrigação e a desarmonia entre práticas e valores.
Efectivamcnte, é impossível que haja «correspondência» per­
feita entre os níveis, como entre os subníveis de cada nível. Aqui
depara-sc-nos o tempo, no seio do devir social. É necessário tempo
para que uma aspiração se traduza em norma formal ou para que
uma norma informal se traduza em instituição ou ainda para
que uma transformação tecnológica encontre as regras que tornarão
a sua utilização compatível com os valores societais. As instituições
têm, de um modo geral, uma inércia que as torna, a longo prazo,
não congruentes com valores ou regras emergentes, tal como se elas
participassem na própria materialidade do substrato. Assim a ins-
tituição das castas, latente na instituição das classes, entra em con­
flito com os valores individualistas. Conflitos entre instituições,
insuficicntcmcntc maleáveis para se adaptarem, e representações
colectivas com mais rápida evolução podem portanto produzir-se
com base na disparidade do ritmo de transformação de umas e de
outras.
Os períodos de crise são aqueles em que a disparidade na velo­
cidade de evolução em diferentes níveis é maior e em que, conse­
quentemente, os conflitos entre elementos de níveis diferentes e
dentro dos mesmos níveis são mais prováveis. Durkheim parece
pensar que, nesta base, não existe progresso que não implique mo­
mentos de anomia: ela toma lugar, por exemplo, logo que as regras
formais não concretizam os valores societais, isto quando de modi­
ficações econômicas e tecnológicas rápidas. Mas as crises favorecem
ao mesmo tempo os «momentos de efervescência», descritos nas
Formes élémentaires de la vie religieuse, onde Durkheim vê o nas-

47
cimento de novos valores, de novas crenças e de regras informais
que mais tarde se traduzirão nessas mesmas instituições novas que
se tornaram necessárias (FE, p. 301).
Trata-se, efectivamente, de um modelo que traduz as condições
motrizes do desenvolvimento, que se poderia facilmente aplicar,
por exemplo, à anterior descrição da evolução pedagógica em
França. É referindo-se a este modelo que ele concebe as condições
de uma transformação iniciada pela ciência social e critica a ligei­
reza dos socialistas, acusados de não terem suficientemente em
conta o estado das forças sociais (das interacções entre níveis) num
determinado momento, ou seja, as condições que tornam possíveis
as transformações institucionais. Mas Durkheim não aprofundou
sistematicamente as implicações do modelo geral, de que, antes
de continuar, será preciso indicar algumas dificuldades.
Algumas referem-se primeiramente à relação entre «móvel» e
«fixo». É difícil considerar a construção de fábricas e a elaboração
de regras de direito como resultantes do mesmo processo de «mate­
rialização»: a imobilidade de uma instituição será do mesmo tipo
que a mobilidade de um objecto tecnológico? Durkheim parece
querer dizer que os elementos do que ele chama a estrutura, o subs­
trato, resultam da evolução do todo e fazem por isso parte do devir.
Mas então, como podem estes objectos exercer directamente uma
influência sobre as representações colectivas sem que isso signi­
fique que, na realidade, se trata de uma influência das instituições
produtoras de objectos sobre as representações? Parece que foi em
função desta dificuldade que Durkheim acabou por atribuir uma
acção cada vez menos importante ao substrato, relativamcnte aos
outros níveis da realidade social.
É em função deste estatuto ambíguo da «estrutura» que con­
vém compreender igualmente as ambivalências de Durkheim cm
relação à economia. Situámos as «instituições econômicas» no nível
II-A. Mas Durkheim situa efectivamente a vida industrial quer no
nível da estrutura material, quer no nível institucional. Provavel­
mente porque está consciente do facto que se as instituições podem
reger a vida econômica, elas não a constituem (assim como as insti­
tuições políticas regem as relações do Poder sem serem relações
de poder). Ele é levado, nestas condições, a rejeitar aquilo que
«constitui» a economia, como produção material, no nível I, pouco
preparado para o receber.

48
Por outro lado, é evidente que Durkheim coloca simultanea­
mente no nível das representações colectivas «correntes eferves­
centes», supostas extremamente móveis, e valores societais últimos
que parecem, uma vez criados, possuir uma permanência que ultra­
passa a das instituições aparentemente mais estabelecidas. Parece-
-nos assim que a antítese móvel-fixo não é suficiente para traduzir
os principais temas do próprio sistema de Durkheim.
Estas dificuldades provêm, novamente aqui, dos problemas que
Durkheim encontrou quando procurou justapor as análises em ter­
mos psicossociológicos (integração por via de modelos culturais
normativos, conflitos entre valores e regras ou entre regras sobre­
viventes c regras emergentes, etc.), e das análises em termos de
conflitos entre grupos sociais, de relações de poder, mais propria­
mente sociológicas. O modelo de transformação que esquematizá-
mos pertence ao aspecto dominante, psicossociológico, do sistema
de Durkheim: os conflitos geradores de transformação são conflitos
entre regras, normas, momentos de institucionalização dos valo­
res, etc. Não são conflitos entre grupos ou classes. É portanto
necessário reintegrar, a nível de conflitos de modelos, o que resulta
do conflito entre estrutura social, no sentido global do termo (e não
no sentido de substrato), e exigência de valores. Isto já o conduziu
a tornar difícil a solução do encontro entre aspirações individualis­
tas e prática social. E vai agora conduzi-lo a subestimar, no seu
modelo, a importância dos factores econômicos e políticos, privi­
legiando, cm definitivo, as representações colectivas, que Durkheim
considera grandemente autônomas, móveis, mas, no entanto, com
uma permanência que as torna um factor fundamental da evolução.
Talvez isto o conduza igualmente a sobreestimar o impacte do
conhecimento sociológico no devir social.
Efectivamente, na opinião de Durkheim, os resultados das in­
vestigações sociológicas devem-se tornar num elemento fundamen­
tal da dinâmica social. Pode-se pensar que, se a sociologia se situa
no nível II-A, enquanto instituição científica, os seus produtos
situam-se no nível III-A, uma vez que consistem em representações
científicas que a sociedade faz de si mesma. Durkheim distingue,
por várias vezes, a «verdadeira natureza» da sociedade, ou seja,
«o estado da sociedade tal como ele nos é realmente dado», e
«o modo como a sociedade se concebe a si mesma». Ele faz assim,
e sem mais desenvolvimentos, o esboço de uma teoria da falsa

49
consciência e da alienação. A sociedade tende a compreender-se
de uma maneira errada, ou seja, simultaneamente parcial e infiel:
as próprias aspirações socialistas traduzem muito imperfeitamente
a verdade da sociedade, sem por isso serem puras alucinações.
A ciência social introduz no desenvolvimento da sociedade uma
«maior consciência de si», substituindo representações verdadeiras
a representações erradas (SP, pp. 91-94). Esta função de desalie-
nação corresponde a necessidades sociais que aumentaram com o
desenvolvimento das sociedades industriais e que Durkheim mos­
tra, em particular na Revue bleue (1900, SA, 2), suscitarem o apa­
recimento da sociologia como instituição.
Durkheim parece não se interrogar aqui sobre qual a relação
que pode existir entre a lucidez que a consciência social pode atin­
gir através da ciência e a lucidez que ela deve atingir pelo pensa­
mento político do Estado. Também não refere a maior objecção:
produto social, ligada a uma razão cujas categorias se prova deri­
varem elas mesmas da sociedade, como ter a garantia que a ciên­
cia social pode produzir «verdadeiras representações»? Para Dur­
kheim, o racionalismo científico — impessoal, universal — é em si
mesmo a sua própria garantia.
Basta que a sociologia exista, que, em determinado momento,
seja parte integrante do sistema no qual as interacções entre partes
são geradoras de transformação, para que o devir social seja dife-
rente do que seria sem ela. Durkheim poderia ter assinado este
texto do sociólogo americano Wright Mills: «O próprio empreen­
dimento da sociologia, na medida em que determina o facto, reves-
te-se de um alcance político. Num mundo em que os erros se pro­
pagam, qualquer enunciado de facto tem uma repercussão política
e moral. Todos os sociólogos, pela sua própria existência, ficam
comprometidos num combate que opõe o obscurantismo às luzes»
(Idimagination sociologique, p. 189). Na sociedade, a ciência social,
conhecimento racional e produto da sociedade, faz apelo à socie­
dade. Reconhece-se aqui a influência de Comte: parte de um todo,
ela é a parte através da qual tudo se compreende no que é.
Sabe-se que Durkheim considerava três tipos de diagnósticos
sobre o «estado da sociedade» susceptíveis de serem factores de
transformação voluntária. I — Diagnóstico do caracter patológico
ou normas de fenômenos sociais, em função da relação destes fenô­
menos com as «condições de existência social» e da sua congruên-

50
cia com estas condições: neste sentido, as desigualdades de opor­
tunidades, o «contrato leonino», a não regulamentação das forças
econômicas são patológicas, o desenvolvimento dos poderes do Es­
tado é normal. II—Diagnóstico do desaparecimento de tradições
e de regras que actualmente pudessem desempenhar uma função
útil. III — Diagnóstico que antecipa e previne um desnivelamento
entre níveis da realidade social (desnível, por exemplo, entre insti­
tuição da herança e socialização das forças produtoras, SP, pp. 87-
-88), prevendo ou dizendo as correntes prospectivas e os valores
emergentes que será necessário traduzir em instituições (tais como
as exigências individualistas). Estes diagnósticos são factores de
transformação voluntária porque indicam simultaneamente o que
é possível e o que é necessário querer. Na falta deste contributo
científico, os socialismos, sobretudo os socialismos revolucionários,
correm o risco de tentar impossíveis. «Um facto não se modifica
com facilidade, mesmo quando isso é desejável» (1906, SSA, 12).
Seria portanto ilusório pretender fazer surgir novas regras sem
estabelecer as estruturas que as farão aparecer. A ideologia difere
precisamente da «idéia prática» pelo facto de esta última se basear
numa análise do possível que a primeira quer ignorar. Fundamen­
tando-se nesta análise do possível, Durkheim pretende a renovação
dos grupos profissionais econômicos, centros de vida moral, social
e política, para dar um conteúdo simultaneamente à democracia e a
um socialismo realista.
Que Durkheim tenha proposto reformas e tomado posição mos­
tra que, se o sociólogo fala em nome da ciência e do racionalismo,
está longe de ser um turiferário da sociologia. Ele não só a faz
como lhe interpreta os dados e se dirige a todos, ou seja, a «nós».
Temos assim o manifesto «individualista» de 1898; e também este
modo de convidar os sociólogos à acção através do livro, da con­
ferência, das obras de educação popular (1904, SSA, 11); e por
fim a importância conferida ao ensino da sociologia no programa
dc filosofia e nas escolas normais. Curiosamente, Wright Mills vai
de novo ao encontro de Durkheim quando ele evoca o instrumento
dc poder que o sociólogo detém quando se dirige às colectividades,
criando uma «imaginação sociológica» nos actores sociais, fazen­
do-os compreender a relação entre as suas acções e as estruturas
sociais, de modo a transformá-las cm jogos colectivos — ou inter­
pelando os «reis» para lhes oferecer, senão conselheiros, pelo me-

51
nos inquietação. É verdade que Durkheim não especifica como é
que a «consciência» estatal pode participar na consciência «socio­
lógica», a nível epistemológico como a nível da prática das deci­
sões. É verdade que ele não explica o paradoxo do sociólogo, ao
mesmo tempo situado e distante, cidadão e cientista, desinteres­
sado quanto ao futuro por um princípio de método, mas compro­
metido com o futuro pelo próprio sentido do seu trabalho, vontade
e meio de uma transformação de que ele não é o senhor, de um
progresso para o qual ele apenas pretende facilitar o estabeleci­
mento das condições. Ele oscila entre a pretensão exorbitante do
sociólogo que diria à sociedade o que ela deve querer e a prudência
quase conservadora de um agente de transformação que aparece
porque o procuram. Em certos aspectos, o sociólogo durkheimiano
é uma espécie de terapeuta social: ele não pode pretender outra
que não seja o tipo social existente e a sua conservação — visto
não se tratar, evidentemente, do capitalismo, mas de uma sociedade
baseada na divisão social do trabalho e no culto da pessoa. Mas
o médico só intervém quando o doente o procura: que faz o soció-
logo-terapeuta se a sociedade não lhe pede para intervir? Será que,
na opinião da consciência pública alienada, a sociologia age sufi­
cientemente por si para que ela dispense esse pedido inicial? Dur­
kheim cuida portanto em não ver no sociólogo senão um socio-
terapeuta. A prudência e o espírito cautelosamente conservador
cedem de facto o lugar (e devem cedê-lo) ao sentido do risco.
Parece-nos, efectivamente, que um dos pontos sobre o qual um
comentador de Durkheim se deve interrogar é esta contradição
entre o tema da prudência (é preciso esperar que a ciência se cons­
titua para que possa gerar uma acção) e as imprudências que,
de facto, ele não deixou de cometer. O projecto corporativista é
uma delas. Talvez igualmente a pressa com que ele se meteu a dedu­
zir da ciência social implicações pedagógicas. Ele sentia no fundo
a vocação de um Sócrates, denunciando a má consciência, negando
na prática social os valores afirmados, agarrando-se a tradições
mortas ou a instituições contraditórias com as aspirações de jus­
tiça. No comunicado sobre Determination du fait moral, ele reivin­
dica o direito do sociólogo surgir como um rebelde, o direito, tam­
bém, de avançar à frente da ciência, mesmo pagando o preço dos
riscos de erros. «É evidente que é preciso viver e que temos mui­
tas vezes de andar à frente da ciência. Neste caso, fazemos como

52
podemos, utilizando os rudimentares conhecimentos científicos de
que dispomos, completando-os com as nossas impressões, as nossas
sensações, etc. Nessa altura não corremos riscos, é verdade, mas
é por vezes necessário arriscar» (SP, pp. 96-97).
Poderá acusar-se Durkheim de ter sido demasiado imprudente
(especialmente no que se refere à proposta de um reconhecimento
imediato das corporações). Ou ainda de ter sido demasiado pru­
dente (na sua recusa em explorar a fundo as relações de classe,
a violência no exercício do poder econômico). Mas, em certo sen­
tido, não se trata disto. As contradições entre o seu preconceito
reformista e as suas aspirações mais radicais de transformação
social reflectem as contradições do seu sistema, procurando bene­
ficiar o estudo da integração e da anomia, mas procurando igual­
mente denunciar as relações de poder e de exploração das classes
desfavorecidas; ou melhor, estas contradições reflectem naquelas
contradições. Durkheim indica-nos com isto que o paradoxo do
sociólogo é, em certos momentos, ter de responder, mesmo não es­
tando totalmente preparado, às esperanças dos homens — e mesmo
que os homens tenham medo da verdade que lhes pode lançar
à cara esta persona non grata em que, aos olhos de alguns, ele se
torna. Mensagem sempre actual.

6. O HOMEM E O SEU FUTURO

A esperança de uma sociedade consensual, cuja viabilidade a


sociologia ajudaria ou apressaria, era a força do projecto original.
Durkheim pensaria mesmo que uma tal sociedade está no hori­
zonte da civilização e que o homem encontrará nela a sua felici­
dade?
Ele supõe inegavelmente que as sociedades contêm em si for­
ças de progresso (este termo que ele censura a Montesquieu por
o ter ignorado, MR, p. 105). As religiões tradicionais, doravante
obsoletas, desaparecerão em benefício de novas formas religiosas;
a humanidade compreender-se-á progressivamente como um todo,
para além das pátrias; o homem tornar-se-á cada vez mais persona­
lizado.
Conhecemos as páginas significativas da Formes élémentaires
de la vie religieuse- um dia virá em que novas idéias surgirão,

53
em horas de efervescência criadora e de intensa presença colectiva,
que servirão de guia à humanidade (FE, p. 611). Em 1914, num
comunicado relativo à Conception sociale de la religion (SSA, 14),
Durkheim refere-se a essa «vida intensa» que se constrói nas pro­
fundezas da sociedade, «que procura caminhos de viabilidade e que
acabará por os encontrar». A metáfora do calor (núcleo afectivo
do projecto) é novamente utilizada aqui: as nossas sociedades tra­
zem consigo, sob o «frio moral» das superfícies, «fontes de calor»
que também são novas forças; sentimo-las a formarem-se nas clas­
ses populares. Ele precisa igualmente que as novas crenças, ima-
nentes ao devir, serão centros de ligação entre os homens e não
têm conteúdo previsível: este depende de contingências históricas
que não se podem determinar previamente. Tudo se processa por­
tanto como se Durkheim ligasse o futuro das sociedades com o
aparecimento — ou melhor, a criação — de novos centros comuni­
tários que, substituindo as religiões do passado, contraditórias com
a ciência e a razão, seriam o crisol de uma nova religião. Não teriam
todos os esforços de Durkheim consistido em mostrar que indivi­
dualismo e socialismo se conciliam no quadro de uma democracia
política em que os homens comunicam comungando no culto unâ­
nime da pessoa humana, numa «religião da humanidade» em que
Deus deixa de ser o símbolo transcendente da sociedade, mas em
que o homem se torna neste símbolo — homem em compreensão,
objecto sagrado de culto e de respeito? A sociedade em aval é por­
tanto ao mesmo tempo democrática, socialista no sentido durkhei-
miano, e religiosa: tendo ficado entendido que se os textos já cita­
dos relativos aos valores individualistas fazem da religião da pessoa
humana a única religião adaptada à época na qual a humanidade
entra, parece que no fim da sua carreira, embora afirmando mais
do que nunca que a religião, matriz a partir da qual a civilização
se desenvolveu, é indispensável a qualquer sociedade, Durkheim
acaba por pensar (como o depoimento acima referido o testemu­
nha) que nenhuma forma determinada, nem mesmo a religião do
indivíduo, pode ser considerada como a última criação religiosa
da humanidade. Será que assim (já evocámos as objecções) a socie­
dade poderia um dia encontrar o seu centro de ligação noutro ponto
que não nos valores individualistas e nos símbolos sociais do culto
da pessoa? Lamentamos que Durkheim tenha permanecido discreto
quanto a este assunto.

54

a
Uma outra dificuldade é relativa à função do sociólogo en­
quanto agente de transformação, nesta hipótese. Compreende-se
que o sociólogo possa aconselhar a formação de grupos de onde
«brotassem», devido a processos de ordem psicossociológica, as
regras necessárias à coesão social. Mas se em última análise as for­
ças de progresso inscritas nas sociedades humanas, e mais parti­
cularmente nas «classes populares», forem de natureza não política,
mas religiosa, será que isso significa que a acção, a praxis do soció­
logo deverá ser facilitar o aparecimento de novos símbolos religio­
sos — mais ainda do que ajudar a sociedade a descobrir relações
democráticas de poder c formas socialistas de propriedade e de pro­
dução? A função da sociologia passaria então a ser antes de mais
colaborar na constituição dessa religião sem Deus, laica, respon­
dendo a uma nova sociedade. Parece-nos que Durkheim se dirige
para uma concepção deste gênero, que corresponde tanto à sua
religiosidade fundamental (apesar dos seus protestos de ateu),
quanto ao sopro religioso que, segundo a sua expressão, anima
a concepção social da religião, tal como é apresentada nas Formes
élémentaires de la vie religieuse. Mostrando que a religião, longe
de ser uma ilusão, está no centro do processo social, o sociólogo
ficaria destinado a desempenhar um papel messiânico? Para res­
ponder a estas perguntas seria necessário relacionar a complexa
atitude de Durkheim em relação à religião com as suas próprias
ambivalências, que o conduziam simultaneamente ao ateísmo e ao
reconhecimento do sagrado e do divino (sempre pronto a divinizar
a sociedade ou o homem, assim como os seus símbolos), que o
orientavam ao mesmo tempo para um papel de cientista e para
o de profeta de uma nova fé
Não que Durkheim encare o futuro da civilização apenas sob
o ângulo religioso, visto que se trata para o homem, abandonado

1 As biografias são unânimes ao afirmarem que, mesmo antes da Ecole Nor-


male, Durkheim tinha o sentimento de uma missão. Neste sentimento, projecta-se
certamentc o investimento de emoções religiosas profundas que não encontravam
meio de satisfação no judaísmo. Durkheim estava portanto longe de ser anti-reli­
gioso, mesmo sendo ateu. No fundo do seu pensamento estava: a sociedade precisa
de uma religião. O progresso na sua reflexão vai assim conduzi-lo, primeiro a falar
de uma religião da pessoa humana c depois a intcrrogar-sc sobre se as novas for­
mas de religião não seriam imprevisíveis. Seja como for, ele não partilhava de
maneira nenhuma as idéias de Guyau sobre os benefícios da anomia religiosa
(Cf. a crítica do livro de Guyau L'irréligio>i de l'avenir, 1887 b).

55
unicamente às suas forças, de encontrar ao mesmo tempo a via para
a democracia, para o socialismo e para esta nova religião que, pro­
vavelmente, ultrapassaria, contendo-o, o culto da pessoa actual-
mente necessário, dadas as condições da sociedade moderna.
É nesta perspectiva que convém situar o tratamento que Dur­
kheim propõe para o problema do internacionalismo. Pode-se dizer
que, em certos aspectos, Durkheim ficou marcado pelo tema da
universalidade. O homem, como já vimos, objecto de culto é o
homem em «geral», que traz com ele o universal humano. Ora,
como poderia o universal humano acomodar-se, não só com os con­
flitos de valores a nível de rivalidades entre grupos e classes sem
que estes fossem de certo modo integrados e ultrapassados (como
por uma forma democrática), mas também com a divagem entre
nações opostas, invejosas da sua cultura, levadas por vezes a colo-
carem-se-—como no caso da ideologia presente no alemão Treit­
schke'— acima de todas as outras nações? 1 Uma resposta ao pro­
blema é precisamente o internacionalismo. Mas, que internaciona­
lismo?
Historicamente, são os socialistas — e em particular os colec-
tivistas — que, no momento em que Durkheim escreve, contestam
a nação considerada como quadro necessário da vida social. Ora,
Durkheim, em diversos textos (LS, pp. 106-109; SSA, 12, 13)
critica a estes socialistas as suas concepções do internacionalismo:
substituição da noção de classe pela de sociedade (uma classe não
é uma pátria), impossibilidade de nos agarrarmos a uma humani­
dade que não constitui um grupo real, perigo de querer o imediato
desaparecimento das sociedades nacionais, únicas sociedades exis­
tentes, em nome de uma sociedade que não passa de um sonho.
Mas, ao mesmo tempo, Durkheim considera a forma nacionalista
do patriotismo como contrária à evolução das coisas (é o que se
passa com o patriotismo agressivo e militar, onde o amor místico
do território serve de máscara ao mais puro egoísmo nacional);

1 L’Allemag»e au-dessus de tout, 1916. O opúsculo c esscncialmcnte uma rcíu-


tação da obra de H. Treitschke, Polilik, 1889, que colocava o Estado acima das
leis internacionais, da moral e da sociedade civil. Durkheim opõc-se a estas teses,
por um lado, em nome das relações que devem existir entre sociedade e Estado,
e, por outro lado, em nome da sociedade universal e da exigência de uma moral
universal, superior aos valores opostos, reafirmando os direitos do indivíduo.

56
ele está igualmente consciente do facto que o internacionalismo
operário responde a aspirações colectivas nada menos que ilusórias:
os valores individualistas tomam naturalmente a forma de ideais
de fraternidade humana que ultrapassam as fronteiras, se é verdade
que o «homem em geral» não poderia ser de nenhum país em par­
ticular. Acrescente-se este movimento espontâneo pelo qual os
povos europeus tendem a formar uma «sociedade europeia» (DTS,
pp. 265-266), e as nações do mundo a depender da «humanidade,
ela mesma organizada em sociedade» (LS, p. 108).
Tudo indica portanto que, se é impossível ao indivíduo sentir-
-se ligado a uma humanidade que ainda não é sociedade — por
falta de consensus —-, é desejável que ele se sinta ligado numa
determinada maneira. A solução da aporia encontra-se no reconhe­
cimento da exigência de universalidade. Trata-se, em suma, de pas­
sar de umi internacionalismo em extensão, que agruparia «pátrias»,
para um internacionalismo em compreensão, que coincidiría, no
quadro de cada «pátria» existente, com um patriotismo «aberto»,
trabalhando para realizar no seio de cada uma um ideal universal.
Este novo patriotismo, emergente, reveste-se para Durkheim de
duas características essenciais: por um lado, está estreitamente
ligado à democracia, o que permite a concretização dos valores
individualistas; e, por outro lado, consiste num amor intelectual
da pátria, ou seja, um amor da pátria in abstracto, pendente exacto
da pessoa humana in abstracto que define a religião da humani­
dade. É a partir de um tal patriotismo, que não implica de maneira
nenhuma que se valorize particularmente a cultura do seu próprio
país, que uma mais vasta organização das pátrias se pode criar por
si mesma, no sentido de um «advento de sociedades ainda mais
consideráveis do que as que hoje temos sob os olhos» (LS, p. 109).
Uma vez que a preocupação de cada nação passa portanto a ser
a de trabalhar por uma «humanização» dos cidadãos, Durkheim
considera que a generalização do respeito dos valores individualis­
tas e da promoção da pessoa, abolindo de certo modo as fronteiras,
seria o primeiro passo para uma religião ao mesmo tempo univer­
sal e universalista que ultrapassasse os particularismos societais.
Ao internacionalismo «proletário», que recusa qualquer patrio­
tismo e preconiza a violência nas relações sociais, Durkheim opõe

57
um internacionalismo baseado na transformação das atitudes dos
homens em relação à sua própria pátria, em nome da exigência
de universalidade. Esta evolução, e até esta reconversão dos com­
portamentos, deveria ser facilitada por uma sociologia que fizesse
apelo aos valores universalistas, para além dos valores próprios a
cada nação. A guerra desaparecería ou, pelo menos, tomaria novas
formas.
Durkheim consideraria realmente esta evolução possível? Efec-
tivamente, neste caso, o seu optimismo é muito moderado. Curio­
samente, a sua ansiedade perante qualquer violência vai conduzi-lo
a recusar a tese marxista da luta de classes e os aspectos revolucio­
nários da passagem ao socialismo, sem pensar que talvez se trate
de uma solução ao problema das guerras entre nações, caso estas
sejam efectivamente geradas por motivos econômicos e políticos.
Mas, ao mesmo tempo que recusa a violência revolucionária, parece
aceitar facilmente as guerras. Em resposta a ura inquérito sobre
«A guerra e o militarismo» (1899 b), ele escreve: «Qualquer que
seja o progresso do sentimento de fraternidade humana, ele con­
tinua sujeito a muitos desfalecimentos», pelo que considera que
«a guerra subsistirá sempre, mas ocupará cada vez menos lugar na
vida das sociedades»; seria sem dúvida insensato fazer a apologia
da guerra, mas «convém resignar-se a ela como a uma necessidade
histórica», embora «ela esteja evidentemente destinada a perder
cada vez mais terreno» (pp. 50-51). Isto leva-nos novamente à per­
gunta: poderá o homem encontrar a sua felicidade numa sociedade
que se imagine no auge da civilização? A inquietação da felicidade
é inegavelmente uma subdominante perpetuamente presente no
discurso durkheimiano e tudo se processa como se Durkheim afir­
masse ao longo da sua obra que o homem tem efectivamente razão
em procurar a felicidade. Mas, sublinhando a dificuldade de esperar
um mundo unido, comunal, que recusasse definitivamente a guerra
e denunciando — tal como em Le suicide — o perigo do progresso
dos valores individualistas para o equilíbrio pessoal, Durkheim
mostra que, na sua opinião, o futuro não trará felicidade. Se, devido
à sua confiança na função positiva que uma nova religião seria
susceptível de desempenhar, ele não vai ao encontro de Freud em
L’avenir d’une illusion, parece-nos que, em muitos aspectos, ele

58
encontra em Malaise dans la civilisation ' um Freud desiludido e
com dúvidas...
Seja como for, ele teria certamente subscrito a fórmula de
Freud: a felicidade não é um valor cultural. Há demasiadas razões
para duvidar, a partir do seu próprio sistema, que a civilização
jor acção de uma
possa trazer a felicidade individual, mesmo que, pc
varinha mágica, a sociedade encontrasse o seu c~ ’
equilíbrio na justiça
social e na reconciliação das classes.
Entre as causas desta dúvida, há nele esta forte convicção de
que o processo de personalização, qualquer que seja a sociedade,
é uma promoção dialéctica inseparável de uma relativa mutilação
do indivíduo humano. Lamentamos por vezes que as voltas da his­
tória não tenham permitido a Durkheim beneficiar, na altura em
que elaborava o seu sistema, do contributo de Freud à psicologia 2
e que as muito fortes intuições psicológicas, próximas do tema
freudiano, tivessem, infelizmente, sido expressas na linguagem da
pré-psicologia da época. Não impede que ele, tal como Freud,
afirme que para o próprio desenvolvimento do indivíduo é neces­
sário que se efectue uma repressão ao que ele chama os «apetites»,
ou seja, que se interiorizem as regras que reprimem ou recalcam
desejos potencialmente ilimitados. Evidentemente, para Freud, o
desejo contém já em si e por essência a sua própria negação, en­
quanto para Durkheim esta repressão seria apenas de origem exó-
gena, o que explica que verdadeiramente a sociedade faça o homem.
Mas a intuição fundamental de um conflito irrefragável dentro do
próprio destino da pessoa continua a ser a mesma.

1 S. Freud, L'avenir d’une illusion, Denoêl, 1932; Malaise dans la civilisation,


Dcnoêl, 1934. Enquanto, para Durkheim, a religião, longe de ser uma «ilusão»,
se enraiza nas próprias condições da existência social, Freud vê nela uma com­
pensação, um pensamento consolador semelhante àqueles que inspiram à criança
o sentimento da sua infinita fraqueza, e por isso arcaico e retrógrado. Malaise dans
la civilisation pergunta para onde vai esta civilização que impõe enormes sacri­
fícios ao homem, na sua procura de felicidade, e que se caminha para uma repressão
cada vez mais dura dos instintos; se a abolição socialista da propriedade confere
aos impulsos agressivos, de que resulta a propriedade, menos ocasiões de se exer­
cerem, o problema do futuro da espécie humana continua ligado à solução do con­
flito entre Eros, força de síntese, e Tânato, força de destruição.
2 Dizemos: na altura em que elaborava o seu sistema. Efectivamente, tendo
cm conta que o livro Science des rêves data de 1900, Psychopatbologie de la vie
quotidienne de 1901, Trois essais sur la théorie de la sexualité de 1905, Durkheim
tinha a possibilidade teórica de utilizar as hipóteses de Freud, uma vez estabeleci­
das as principais linhas de força do seu próprio sistema.

59
Durkheim, ao mesmo tempo que desenvolve as suas reflexões
sobre este ponto, coloca-se em dois níveis para descrever a inevi­
tável frustração e a angústia do homem; dos dois, apenas o se­
gundo tem ressonâncias freudianas.
Na maior parte dos textos consagrados à «ilimitação» dos dese­
jos e à necessidade de os limitar (SÜ, pp. 272-288, SO, pp. 287-
-292, EM, pp. 34-37), Durkheim refere-se essencialmente aos dese­
jos criados pelos progressos da civilização (e, acrescentaríamos,
pela sociedade de consumo: desejos de bem-estar, conforto, luxo):
já vimos por que processos os homens têm sempre novas necessi­
dades criadas simultaneamente pelo aumento da produção e pela
comparação que fazem entre a sua própria posição e a posição dos
outros na escala social. A ilimitação destas necessidades é fonte
de sofrimento (o mesmo do homem anómico de Le suicide que
estabelece necessidades estruturalmente inacessíveis) e é por esta
razão que a educação deve ensinar a criança a moderar os seus
desejos, sob pena de nunca ser feliz (EM, p. 43). Mas, ao mesmo
tempo, tal «moderação» dos desejos, por ser inibidora, é sempre
acompanhada por sentimentos de frustração que vão precisamente
impedir que seja «alguma vez feliz», por uma espécie de dialéctica
à qual o homem moderno não se escapa.
Estas considerações sobre as «desilusões do progresso», utili­
zando uma expressão de Raymond Aron ', devem ser relacionadas
em particular com o modo como Durkheim pôs a problemática
da conciliação dos méritos e das aspirações igualitárias. Durkheim
supõe, como vimos, que o homem encontra a sua realização pes­
soal, não no desenvolvimento de todas as suas capacidades, in­
cluindo as que podem surgir no decurso do processo de socializa­
ção, mas na concretização, através de actividades ligadas a uma
função social adequada, das aptidões presentes à partida c que
constituem a vocação predominante. Isto já significa que a divisão
do trabalho social, longe de ser alienante, como para Marx (ou
Fourier), é o factor de desenvolvimento pessoal: estamos nos anti-
podas do «homem total» de Marx. Isto significa igualmente que
a ordem dos méritos, ligada às funções, e pelo menos potencial­
mente congruente com as necessidades normais que o indivíduo,

1 Raymond Aron, Les dêsillusions du pro&rès, Calmann-Lévy, 1969.

60
no que lhe diz respeito, considera lícitas. No entanto, Durkheim
chega a posições inversas quanto a estes dois pontos. É impossível
existir, num dado momento, uma perfeita correspondência da dis­
tribuição das funções e da distribuição das vocações pessoais, por­
que, não só estas vocações escapam em larga medida a qualquer
planificação social, como também porque as aptidões, que neste
caso se inscrevem nas funções adequadas, nunca se apresentam
à partida na sua especificidade, mas aparecem, geralmente como
em negativo, no decurso do processo de desempenho de uma fun­
ção. Durkheim descreveu a insatisfação dos operários da grande
indústria, em termos que não contradizem Friemann ’. Ou seja,
a realização pessoal na função desempenhada é perfeitamente alea­
tória: nada garante que a função correspondente às aptidões ini­
ciais seja acessível e, se o for, que outras aptidões se não venham
a revelar durante o desempenho da função. É então que o indiví­
duo se encontra perante a necessidade de procurar outras vias de
realização pessoal que, se forem estruturalmente impossíveis, con­
duzem à frustração. A esta fonte de frustração acrescenta-se final­
mente a que resulta da impossibilidade em impedir que as gratifica­
ções relativas a determinadas funções não sejam postas em causa
e consideradas lícitas, de tal maneira que fica provavelmente posta
de parte a hipótese que Durkheim muitas vezes deseja aos homens,
que é a de se contentarem com o seu destino. A regulamentação
total dos desejos é portanto quase impossível, o que justifica que
Durkheim considere que a anomia, no sentido utilizado em Le sui­
cide, seja endêmica nas sociedades modernas.
Mas Durkheim não põe o problema unicamente a nível do des­
tino das necessidades e das aspirações directamente constituídas
pela sociedade. Atribuindo à palavra «apetite» um sentido desta
vez mais estritamente biológico, quase sinônimo de «impulso», ele

1 DTS, pp. 363-365. Durkheim refere-se aqui à «degradação da natureza


humana» ligada à divisão do trabalho técnico c pensa que as funções muito especia­
lizadas poderíam ser transformadas se tomassem um determinado sentido no âmbito
de uma maior participação na vida da organização emprcsãrios-cmpregados, sen­
tindo o operário que «as suas acções têm um fim exterior a elas mesmas». G. Fried-
mann, reconhecendo embora que, neste ponto, Durkheim «foca um problema muito
actual», observa que «se Durkheim tivesse vivido, teria sido obrigado a considerar
anormais a maior parte das formas que o trabalho tomou nas nossas sociedades,
tanto na indústria como na administração» (La thèse de Durkheim et les formes
contemporaines de la division du travail, 1955, citado na bibliografia).

61
reduz explicitamente no artigo «Le dualisme de la nature humaine
et ses conditions sociales» (SSA, 15) a noção de desejo à natureza
orgânica, biológica do homem. Retomando o desenvolvimento esbo­
çado em Le suicide, nos textos «Education et sociologie» e em
«Formes élémentaires de la vie religieuse», Durkheim vê no con­
flito entre os «apetites sensíveis», os «instintos enraizados no
corpo» e as «regras de conduta» interiorizadas, constituindo a parte
socializável do indivíduo, um antagonismo que não pode ser ultra­
passado *. A comunhão com as normas e com o outro efectua-se
sempre através de uma repressão dos instintos que fazem do homem
um ser atormentado e sofredor. Segue-se um mal-estar universal
que uma das funções da religião é precisamente (Durkheim insiste,
de passagem, neste papel consolador) apagar na tmedida do possí-
vel. Seja como for, «estamos condenados a viver: no sofrimento»,
porque a «sociedade não se pode constituir sem reclamar de nós
sacrifícios perpétuos que nos custam».
Com Freud, Durkheim pensa portanto que o desenvolvimento
da civilização é inseparável da repressão das tendências biológicas.
O homem escapa ao sofrimento, nascido da frustração dos desejos
construídos pela própria civilização, para cair no sofrimento nas­
cido da repressão interna dos instintos. Se o primeiro pode ser
atenuado por uma organização social que tende para a igualização
das oportunidades, para o socialismo democrático, parece que o
segundo, pelo contrário, cresce com a civilização. Mas esta repres­
são necessária não significa de maneira alguma que os impulsos
«enraizados» no corpo sejam intrinsecamente anti-sociais e nefas­
tos. Se Durkheim dificilmente concebe a função construtiva da
agressão, vendo nela antes de mais uma força que contradiz este
ideal de comunhão e de síntese, de reconciliação, que é o seu, ele,
em compensação, está longe de recusar aos impulsos sexuais um
valor socializante. Assim, durante uma conferência da Société Fran-
çaise de Philosophie consagrada à educação sexual, ele afirma que
a sexualidade, desde que seja suficientemente regulamentada, tem
uma incomparável «virtude associativa» e por conseguinte «mora-
lizadora». Já não nos podemos ater, diz, às «pretensões hipócritas
da antiga moral»: convém apenas que uma moderação respondendo

1 Em termos freudianos, o antagonismo entre o isso e o superego.

62
ao sentimento de respeito que é a base da moral fundamente as
bases do proveito que a sociedade tira da «força unificadora da
fusão sexual» (1911, p. 33). É que não se pode de maneira ne­
nhuma separar a dialéctica de Eros e de Nomos no plano indivi­
dual, desta mesma dialéctica a nível social, caso seja efectivamente
verdade que, tal como tentamos mostrar à partida, é na reciproci­
dade do amor e da lei que Durkheim fundamentou a sua represen­
tação da relação do homem com o social.

Era necessário referir este cepticismo quanto às probabilidades


de felicidade do homem para esclarecer as mais profundas ambi­
guidades de Durkheim relativamente às consequências humanas
de transformações políticas e sociais. Este conflito é o centro do
destino humano. O sociólogo, ou o político que ele por vezes é,
não podem ajudar os homens senão a orientarem-se para um sis­
tema regulador, nómico ’, que reprima o menos possível as neces­
sidades humanas de realização e de expressão que têm origem nos
progressos sociais. Explica-se assim a junção da razão c da religião:
na verdade, a religião do futuro será a que permitir ao homem
justificar pela razão os sofrimentos da sua dualidade fundamental.
Durkheim quis trabalhar na construção de uma sociedade onde o
homem fosse ao mesmo tempo mais integrado, mais «social» e mais
personalizado, menos alienado. Mas estas duas exigências são, em
parte, provavelmente contraditórias. Durkheim sentia-o, embora o
seu sistema queira estabelecer o contrário. Se ele não é revolucio­
nário, é provavelmente porque sentiu a impossibilidade de uma
«revolução» que transformasse profundamente, digamos definitiva­
mente, um destino humano onde não há lugar para um paraíso
terrestre. Novamente aqui, ele aproxima-se mais de Freud que do
messianismo marxista ou de Marcuse 2.
Durkheim pensava que, colaborando na construção de uma
ciência social que daria às sociedades uma consciência racional de
si próprias, poderia participar, melhor que os socialistas da sua
época, na instauração de uma sociedade que tomasse lucidamente

1 O vocábulo reveste no contexto a ideia de legalidade. (N. da T.)


2 II. Marcuse, Eros e Civilização, Zahar Editores, 1969.

63
a responsabilidade do seu próprio problema de transformação, Se
pretendia evitar sonhos abusivos, teve ou não razão? Não era nosso
propósito responder a tal pergunta. Pretendíamos apenas indicar,
como introdução a certos textos, evidentemente marcados pelo
tempo, que eles não deixam de levantar problemas que o soció­
logo, tal como as sociedades, têm sempre de enfrentar.

Jean-Claude Filloux
BIBLIOGRAFIA

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PS Pragmatismo et sociologie, prefácio de A. Cuvillier, Vrin, 1955.
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II — Artigos ou comunicações citadas de E. Durkheim


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1887 a «La philosophie dans les universités allemandes», Revue Internationale
de 1’enseignement, XII, pp. 313-338, 423-440.

65
3 - A Ciência Social c a Acção
b Guyau (M.) «L’irréligion de 1’avenir», Rev. phil., XXIII, pp. 299-311.
w \_xvx.),
c «La Science
í positive de la morale en Allemagne», Rev. phil., XXIV,
pp. 33-58, 113-142, 275-284.
1889 a Tonnies (F.), «Gemeinschaft und Gesellschaft», Rev. phil., XXVII,
pp. 416-422.
1895 a «L’enseignement philosophique et 1’agrégation de philosophie», Rev. phil.,
XXXIX, pp. 121-147.
1899 a L’Année sociologique, 2.° vol.: «De la définition des phénomènes religieux»,
pp. 1-28 (retomado em JS, pp. 140-165).
b «Contribution à: Enquête sur la guerre et le militarisme», L’Humamté
nouvelle, Maio de 1899, pp. 50-52.
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ano IV (traduzido em francês em A. Cuvillier, Ou va la sociologie fran­
çaise?, Rivière, 1953, pp. 117-208).
1901 a «Deux lois de 1’évolution pénale», IdAnnêe sociologique, 4.° vol., pp. 65-95
(retomado em JS, pp. _ 245-273)
* ’
1903 a «Sociologie et Sciences sociales» (com P. Fauconnet), Rev. phil., LV,
pp. 465-497.
1907 ~
a Cartas ao director da Revue néo-scolastique, R. N. S., XIV, pp. 606-607,
613-614 (retomadas na obra de Simon Deploige Lc conflit de la morale
et de la sociologie}.
1908 a «De la position de 1’économie politique dans 1’ensemble des Sciences socia­
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III — Obras e artigos utilizados relativos a E. Durkheim


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66
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Wolf (K.H.), Emile Durkheim 1858-1917, a Collection of Essays. The Ohio
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Social System, pp. 118-153.
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— Coser (L.), Durkheim’s Conservantism, pp. 211-233.

È
B

i
I
PRIMEIRA PARTE

DA CIÊNCIA SOCIAL OU SOCIOLOGIA

I
i
1. Curso de ciência social
(1888) Curso de ciência social, lição de abertura, Revue Inter­
nationale de 1’enseignement, XV, pp. 23-48.
2. A sociologia em França no século XIX
(1900) A sociologia em França no século xix, Revue bleue,
4.“ série, XIII, n.° 20, pp. 609-613, e 21, pp. 647-652.
3. Sociologia e ciências sociais
(1909) Sociologia e ciências sociais, in De la méthode dans les
Sciences, Alcan, pp. 259-285.

No início da sua carreira, Durkheim utilizava o termo ciência


social, em vez de sociologia, inventado por Auguste Comte, para
designar o estudo científico das sociedades ao qual ele tinha deci­
dido dedicar-se. Provavelmente, o primeiro apresentava a vantagem
de sublinhar o caracter puramente científico deste estudo. Talvez
ele quisesse igualmente diferenciar-se dos excessos da ideologia de
Comte que tinham contribuído para despertar nos meios universi­
tários um certo cepticismo em relação à sociologia, considerada
scientia non grata: Alfredo Espinas não tinha já provocado a indig­
nação de vários membros do júri, quando, em 1877, defendeu a sua
tese sobre as sociedades animais, tendo pretendido insistir sobre
a importância c a dignidade da ciência das sociedades? Lembremos
também que a nomeação de Durkheim para Bordéus, devida à ini­
ciativa de Louis Liard e aconselhada por Espinas, professor na

71
universidade desta cidade, encarregava-o de «um curso de ciência
social».
Progressivamente, o termo «sociologia» torna-se predominante
nos seus escritos, em particular logo que a ciência social lhe pare­
ceu poder integrar um conjunto de «ciências sociais» particulares,
tais como a morfologia social, a sociologia religiosa, a sociologia
econômica e que, assim, a sociologia podia ser considerada como
o corpus de ciências sociais particulares.
Os três textos reproduzidos nesta primeira parte referem-se
todos à história, ao objecto e ao método da ciência social ou socio­
logia. O primeiro é a «Leçon d’ouverture», que Durkheim pro­
nuncia no início do ano universitário 1887-1888, inaugurando as
suas funções em Bordéus. No segundo, publicado em 1900 numa
revista política e literária de grande difusão, procura especialmente
determinar quais foram as causas sociológicas do aparecimento da
sociologia em França, interessantes premissas de uma sociologia
do conhecimento sociológico. O terceiro, escrito em 1909, para
uma colectânea intitulada De la méthode dans les Sciences, retoma,
com o mesmo título, «Sociologie et Sciences sociales», o tema da
unidade da sociologia e das ciências sociais particulares já abordado
num artigo assinado em conjunto com Paul Fauconnet (1903 a).
Embora separados uns dos outros por um decênio, apresentam
algumas inevitáveis repetições — dada a identidade do tema —,
mas mais significativamente convergências que não escaparão: ne­
cessidade de uma abordagem funcional dos sistemas sociais, rea­
lidades sui generis; importância de um estudo privilegiado do que
hoje chamamos factos culturais; recusa de subordinar a investigação
sociológica a objectivos sociais previamente definidos. Lembremos
que no entanto, em 1900, Durkheim atribui a Saint-Simon um
lugar de escolha entre os precursores da sociologia, lugar que lhe
não conferia em 1887: provavelmente resultante do seu trabalho
de 1895-1896 sobre o socialismo.
Seria interessante fazer o paralelo entre o tratamento do indivi­
dualismo nestes textos, de orientação metodológica e epistemoló-
gica, e as posições individualistas de Durkheim nos textos «com­
prometidos», tal como o artigo de 1898, «L’individualisme et les
intellectuels» (texto 10). A contradição é apenas aparente: o indi­
vidualismo que Durkheim aqui contesta teria impossibilitado a

72

I
constituição do objecto específico da ciência social; melhor, impos­
sibilitando um estudo suficiente sobre as condições do consensus
social, ele obstaria à urgência em fundamentar valores individua­
listas em bases incontestáveis, assim como defini-los de modo perti­
nente.
No plano das relações da sociologia com a acção, verificamos
que Durkheim defende tenazmente a tese de um trabalho socioló­
gico que ele próprio prossegue: é que só de tal trabalho poderá
nascer uma ciência susceptível de exercer uma acção de transfor­
mação numa prática fundamentada. Longe de se opor à acção, esta
ascese metódica é sua condição.
A própria orientação destes três textos implicava uma maior
insistência sobre um dos termos da dialéctica do conhecimento
e da acção. Seja como for, as últimas páginas da Leçon d’ouver-
ture, alguns desenvolvimentos sobre a identidade da extensão
do campo de acção e do campo da ciência em Sociologie et Scien­
ces sociales, tal como a confiança afirmada na Revue bleue quanto
ao triunfo final do racionalismo, permitem formular mais do que
hipóteses sobre a significação que Durkheim atribuía à sociologia
relativamente à problemática da transformação.
1

CURSO DE CIÊNCIA SOCIAL

LIÇÃO DE ABERTURA

Meus senhores:

1 1 ncarregado de ensinar uma ciência nova e que ainda só conta


ri com um pequeno número de princípios definitivamente esta-
belecidos, seria temeridade da minha parte não sentir receio
pelas dificuldades da minha tarefa. Aliás, faço esta confissão sem
dificuldade e sem timidez. Creio, com efeito, que nas nossas uni­
versidades, ao lado destas cátedras, do alto das quais se ensina a
ciência feita e as verdades adquiridas, há lugar para outros cursos
em que o professor vai fazendo a ciência à medida que a ensina;
em que encontra ouvintes que são não só alunos como também
colaboradores; em que com eles investiga, tacteia e por vezes tam­
bém se engana. Não venho, portanto, revelar-vos uma doutrina
de que uma pequena escola de sociologistas teria o segredo e o pri­
vilégio, nem sobretudo propor-vos panaceias para curar as nossas
sociedades modernas dos males de que podem sofrer. A ciência vai
mais devagar; precisa de tempo, muito tempo, sobretudo para se
tornar praticamente utilizável. Também o inventário do que vos
trago é mais modesto e mais fácil de realizar. Creio poder levantar
com alguma precisão um certo número de questões especiais que
se interligam, de maneira a constituir uma ciência no meio das
outras ciências positivas. Para resolver estes problemas, propor-

75
-vos-ei o método que experimentaremos juntos. Enfim, dos meus
estudos sobre estas matérias retirei algumas directrizes, uns quan­
tos pontos de vista de ordem geral, um pouco de experiência, se
o quiserdes, que servirá, espero-o, para nos guiar nas nossas inves­
tigações futuras.
Que esta reserva, todavia, não tenha por efeito fazer nascer,
ou renascer, em alguns de vós, o cepticismo de que os estudos de
sociologia têm por vezes sido objecto. Uma ciência jovem não deve
ser muito ambiciosa, e terá tanto mais crédito junto dos espíritos
científicos, quanto maior for a modéstia com que se apresente.
Entretanto, não posso esquecer que há ainda alguns pensadores,
embora pouco numerosos, que duvidam da nossa ciência e do seu
futuro. Não nos podemos, evidentemente, abstrair disso. Mas para
os convencer, o melhor método não é, creio, dissertar duma ma-
neira abstracta sobre a questão de saber se a sociologia é ou não
viável. Uma dissertação, mesmo excelente, nunca converteu um
único incrédulo. O único meio de provar o movimento é andar.
O único meio de demonstrar que a sociologia é possível consiste
em fazer ver que ela existe e que vive. É por isso que vou consa­
grar esta primeira lição a expor-vos a série de transformações por
que passou a ciência social desde o início deste século; mostrar-
-vos-ei os progressos que têm sido feitos e os que estão por fazer;
no que ela se tornou e aquilo que virá a ser. Desta exposição, con­
cluireis vós mesmos os serviços que este ensino pode prestar e a
que público deve dirigir-se.

Depois de Platão e da sua República, não faltaram pensadores


que tenham filosofado sobre a natureza das sociedades. Mas até ao
começo deste século, a maior parte destes trabalhos estavam domi­
nados por uma concepção que impedia radicalmente que a ciência
social se constituísse. Com efeito, quase todos esses teóricos da

76
política viam na sociedade uma obra humana, um fruto da arte
e da reflexão. Segundo eles, os homens começaram a viver em con­
junto porque acharam que era útil e bom; foi um artifício que
imaginaram para melhorarem um pouco a sua situação. Portanto,
uma nação não seria um produto natural, como um organismo ou
uma planta que nasce, cresce e se desenvolve em virtude duma
necessidade interna; mas assemelhar-se-ia mais àquelas máquinas
que os homens constroem e cujas partes são todas reunidas se­
gundo um plano preconcebido. Se as células de que é feito o corpo
dum animal adulto se tornaram no que são, é porque estava na
sua natureza essa transformação. Se assim se agregaram é porque,
dado o meio ambiente, lhes era impossível agregarem-se de uma
outra maneira. Pelo contrário, os fragmentos de metal de que é
feito um relógio não têm afinidade especial, nem pela forma nem
pelo modo de combinação. Se estão assim dispostos e não de outra
maneira qualquer, foi porque o artista o quis. As alterações que
sofreram explicam-se, não pela sua natureza, mas pela vontade
do artista; foi ele quem as dispôs consoante os seus desígnios. Pois
bem! Aconteceria com a sociedade o que acontece com este reló­
gio. Não haveria nada na natureza do homem que o predestinasse
necessariamente para a vida colectiva; mas tê-la-ia ele mesmo inven­
tado e instituído inteiramente. Quer seja obra de todos, como pre­
tende Rousseau, ou de um só, como pensa Hobbes, ela teria saído
inteiramente do nosso cérebro e da nossa imaginação. Não seria
nas nossas mãos mais que um instrumento cômodo, que poderia­
mos dispensar, e que nos é sempre possível modificar à nossa von­
tade; porque podemos livremente desfazer o que livremente fize­
mos. Se somos os autores da sociedade, podemos destruí-la ou
transformá-la. Bastaria querê-lo.
Tal foi, meus senhores, a concepção que reinou até estes últi­
mos tempos. Sem dúvida, de vez em quando, vê-se surgir a ideia
contrária, mas apenas por alguns instantes, e sem deixar atrás de si
rastos perduráveis. O célebre exemplo de Aristóteles, que foi o
primeiro a ver na sociedade um acto natural, quase não teve imita­
dores. No século xvill assiste-se ao renascimento da mesma ideia
com Montesquieu e Condorcet. Mas o próprio Montesquieu, que
todavia declarara tão firmemente que a sociedade, como tudo o
mais, está submetida a leis necessárias provenientes da natureza

77
das coisas, deixou escapar as consequências do seu princípio, mal
o havia colocado. Ora, nestas condições, não há lugar para uma
ciência positiva das sociedades, mas apenas para uma arte política.
Efectivamente, a ciência estuda o que é, ao passo que a arte com­
bina os meios com vista àquilo que deve ser. Portanto, se somos
nós que fazemos as sociedades, não temos de nos perguntar o que
elas são, mas o que devemos fazer delas. Como não se tem de con­
tar com a sua natureza, não é necessário conhecê-la: basta fixar o
fim que elas devem satisfazer e encontrar a melhor maneira de
organizar as coisas para que este fim seja bem atingido. Argumen-
tar-se-á, por exemplo, que a finalidade da sociedade consiste em
assegurar a cada indivíduo o livre exercício dos seus direitos, e daí
se deduzirá toda a sociologia.

Os economistas foram os primeiros a proclamar que as leis


sociais são tão necessárias como as leis físicas e a fazer deste axioma
a base duma ciência. Para eles, é tão impossível que a concorrência,
pouco a pouco, não nivele os preços e o valor das mercadorias não
aumente quando a população cresce, como os corpos não caírem
segundo a vertical, os raios luminosos não se refractarem quando
atravessam meios de densidade desigual. Quanto às leis civis, que
os soberanos estabelecem ou que as assembléias votam, devem ape­
nas exprimir, sob uma forma sensível e clara, essas leis naturais;
mas não as podem nem criar, nem modificar. Não se pode, por
decreto, atribuir valor a um produto que o não tem, que não satis­
faz qualquer necessidade e, além disso, todos os esforços dos gover­
nos para modificar a seu bel-prazer as sociedades são inúteis quando
não são negativos; assim, é preferível que se abstenham. A sua
intervenção só pode ser prejudicial; a natureza não tem necessi­
dade deles. Ela segue sozinha o seu curso, sem que seja necessário
ajudá-la ou forçá-la, supondo, de resto, que isso seja possível.
Generalizai este princípio a todos os factos sociais e a socio­
logia está fundada. Efectivamente, toda a ordem especial de fenô­
menos naturais, submetidos a leis regulares, pode ser objecto de
um estudo metódico, isto é, duma ciência positiva. Todos os argu­
mentos dubitativos fracassam face a esta verdade muito simples.
Mas, dizem os historiadores, nós estudámos as sociedades e nunca
descobrimos nelas a menor lei. A história não e mais que uma

78
sucessão de acidentes que, sem dúvida, se encadeiam uns nos
outros, segundo as leis da causalidade, mas sem nunca se repetirem.
Essencialmente locais e individuais, acontecem uma única vez e são,
por consequência, refractários a qualquer generalização, isto é, a
qualquer estudo científico, uma vez que não há ciência do parti­
cular. As instituições econômicas, políticas, jurídicas dependem
da raça, do clima, de todas as circunstâncias em que se desenvol­
vem: são outras tantas quantidades heterogêneas que se não pres­
tam à comparação. Têm em cada povo a sua fisionomia própria,
que se pode estudar e descrever com minúcia; mas tudo fica dito,
logo que dela se apresenta uma monografia bem feita.
A melhor forma de responder a esta objecção e de provar que
as sociedades estão, como tudo o mais, submetidas a leis, seria
seguramente encontrar essas leis. Mas, mesmo sem esperar que tal
aconteça, podemos legitimamente concluir que elas existem. Se
existe hoje alguma questão fora de dúvida, essa é a de que todos
os bens da natureza, do mineral ao homem, competem à ciência
positiva, isto é, tudo aí se passa segundo leis necessárias. Esta afir­
mação já não tem agora nada de conjectural: é uma verdade que
a experiência demonstrou, porque as leis são descobertas ou pelo
menos nós descobrimo-las pouco a pouco. Sucessivamente, consti­
tuíram-se a física e a química, depois a biologia e finalmente a
psicologia. Pode mesmo dizer-se que, de todas as leis, a melhor,
estabelecida experimentalmente — porque se lhe não conhece uma
única excepção depois de ter sido verificada uma infinidade de
vezes —, é a que proclama que todos os fenômenos naturais evo­
luem segundo leis. Portanto, se as sociedades estão na natureza,
devem obedecer, também elas, a esta lei geral que resulta da ciên­
cia e ao mesmo tempo a domina. Evidentemente, os factos sociais
são mais complexos que os factos psíquicos, mas estes, por sua
vez, são infinitamente mais complexos que os factos biológicos e
físico-químicos, e, no entanto, hoje já está fora de questão desligar
a vida consciente do mundo e da ciência. Quando os fenômenos
são menos simples, o seu estudo é menos fácil; mas é uma questão
de vias e de meios, não de princípios. Por outro lado, porque são
complexos, têm qualquer coisa de mais flexível e são mais facil­
mente marcados pelas circunstâncias que os rodeiam, por menores
que sejam. É por isso que têm um cunho mais pessoal e se distin­
guem mais uns dos outros. Mas é necessário que as diferenças não

79
nos façam ignorar as analogias. Há, sem dúvida, uma enorme dis­
tância entre a consciência do selvagem e a de um homem civilizado;
e, no entanto, um e outro são consciências humanas entre as quais
há semelhanças e podem ser comparadas: sabe-o bem o psicólogo
que delas tira tão úteis informações. Acontece o mesmo com a
fauna e a flora em que o homem evolui. Portanto, por diferentes
que possam ser uns dos outros, os fenômenos produzidos pelas
acções e reacções que se estabelecem entre indivíduos semelhantes
colocados em meios análogos devem necessariamente ter pontos
de semelhança e prestar-se a úteis comparações. Para escapar a esta
consequência, poderá alegar-se que a liberdade humana exclui toda
a ideia de lei e torna impossível toda a previsão científica? A objec-
ção, meus senhores, deve deixar-nos indiferentes e podemos negli­
genciá-la não por desdém, mas por método. A questão de saber se
o homem é ou não livre tem, sem dúvida, o seu interesse, mas é
em metafísica que ela tem o seu lugar e as ciências positivas podem
e devem desinteressar-se disso. Há filósofos que encontraram nos
organismos, e até nas coisas inanimadas, uma espécie de livre arbí­
trio e de contingência. Mas nem por isso o físico c o biologista
mudaram o seu método: continuaram placidamente o seu caminho,
sem se preocuparem com estas subtis discussões. Do mesmo modo,
a psicologia e a sociologia, para se constituírem, não têm de espe­
rar que esta questão do livre arbítrio do homem, pendente há sé­
culos, tenha enfim alcançado uma solução, que, de resto, como
todos reconhecerão, não parece muito próxima. Tanto a metafísica
como a ciência têm interesse em continuar independentes uma
da outra. Portanto, podemos concluir dizendo: é preciso escolher
entre estes dois termos, ou reconhecer que os fenômenos sociais
são acessíveis à investigação científica, ou então admitir sem razão,
e contrariamente a todas as induções da ciência, que existem dois
mundos no mundo: um em que reina a lei da causalidade, outro
em que reina o arbitrário e a eventualidade.
Tal é, meus senhores, o grande
u serviço que os economistas
prestaram aos estudos sociais. Eles foram os primeiros a distinguir
tudo quanto há de vivo e de espontâneo nas sociedades. Compreen-
deram que: a vida colectiva não podia ser bruscamente instituída
por um hábil
1 artifício; que não resultava dum impulso exterior
e imecânico, mas que era no próprio seio da sociedade que ela len-

80
tamente se elaborava. Foi assim que eles puderam estabelecer uma
teoria da liberdade numa base mais sólida do que uma hipótese
metafísica. Na verdade, é evidente que se a vida colectiva é espon­
tânea, necessário é que se lhe deixe a sua espontaneidade. Qualquer
entrave seria absurdo.
Todavia, não exageremos o mérito dos economistas. Ao afir­
marem que as leis econômicas são naturais, eles tomavam a pala­
vra num sentido que lhe diminuía o alcance. Segundo eles, com
efeito, na sociedade, só o indivíduo é real; é dele que tudo emana
e é em sua direcção que tudo retorna. Uma nação é apenas um ser
nominal; é uma palavra que serve para designar um agregado mecâ­
nico de indivíduos justapostos. Mas nada tem de específico que
a distinga do resto das coisas; as suas propriedades são as dos ele­
mentos que a compõem, aumentadas e amplificadas. O indivíduo
é, portanto, a única realidade tangível que o observador pode atin­
gir, e o único problema que a ciência pode levantar consiste em
procurar como deve o indivíduo, dada a sua natureza, conduzir-se
nas principais circunstâncias da vida econômica. As leis econômi­
cas, e mais geralmente as leis sociais, não seriam, portanto, fac­
tos muito gerais que o sábio induz da observação das sociedades,
mas consequências lógicas que deduz da definição do indivíduo.
O economista não diz: as coisas passam-se assim porque a experiên­
cia o estabeleceu; mas elas devem passar-se assim porque seria
absurdo passarem-se de outro modo. A palavra natural deveria,
portanto, ser substituída pela palavra racional, o que não é a mesma
coisa. Se pelo menos este conceito de indivíduo, que é suposto con­
ter em si toda a ciência, fosse adequado à realidade?!... Mas, para
simplificar as coisas, os economistas empobreceram-no artificial­
mente. Não somente fizeram abstracção de todas as circunstâncias
de tempo, de lugar, de país, para imaginar o tipo abstracto do
homem em geral, como, neste mesmo tipo ideal, negligenciaram
tudo o que se não relacionava com a vida estritamente individual,
embora, de abstracção em abstracção, nada mais lhes tenha restado
que o próprio triste retrato do egoísta.
A economia política perdeu assim todas as vantagens do início.
Permanece uma ciência abstracta e dedutiva, ocupada não em obser­
var a realidade, mas em construir um ideal mais ou menos dese­
jável; porque este homem em geral, este egoísta sistemático de que
ela nos fala mais não é do que um ser de razão. O homem real,

81
que conhecemos e que somos, é bem mais complexo: pertence a
um tempo e a um país, tem uma família, uma cidade, uma pátria,
uma fé religiosa e política, e todos estes factores, e muitos outros
ainda, se misturam, se combinam de mil maneiras, cruzam e entre-
cruzam a sua influência sem que seja possível dizer, à primeira
vista, onde começa um e acaba o outro. Só ao cabo de longas e
laboriosas análises, que apenas agora se iniciam, será possível um
dia estabelecer, mais ou menos, a parte de cada um. Os economis­
tas não tinham ainda, portanto, uma ideia suficientemente justa
das sociedades, ideia essa que servisse verdadeiramente de base
à ciência social. Porque esta, tomando por ponto de partida uma
construção abstracta do espírito, podia quando muito conduzir
à demonstração lógica das possibilidades metafísicas, mas nunca
ao estabelecimento de leis. Faltava-lhe sempre uma natureza para
observar.

II

Assim, se os economistas se detiveram a meio caminho, foi por­


que estavam mal preparados para este tipo de estudos. Juristas,
homens de negócios ou homens de Estado eram, na sua maior parte,
alheios à biologia e à psicologia. Ora, para poder integrar a ciência
social no sistema geral das ciências naturais, é preciso ter pelo
menos praticado uma delas e não basta possuir uma inteligência
geral e experiência. Para descobrir as leis da consciência colectiva
é preciso conhecer as da consciência individual. E foi por Auguste
Comte estar ao corrente de todas as ciências positivas, do seu mé­
todo e dos seus resultados, que ele encontrou condições para fun­
dar, desta vez em bases definitivas, a sociologia.
Auguste Comte retoma a proposta dos economistas: declara,
com eles, que as leis sociais são naturais, mas dá à palavra a sua
plena acepção científica. Atribui à ciência social uma realidade con­
creta a conhecer: as sociedades. Para ele a sociedade é tão real
quanto um organismo vivo. É evidente que ela não pode existir
fora dos indivíduos que lhe servem de substrato; no entanto, é
outra coisa. Um todo não é idêntico à soma das suas partes, embora

82
sem elas não seja nada. Do mesmo modo, agrupando-se sob uma
forma definida e por laços perduráveis, os homens formam um ser
novo que tem a sua natureza e as suas leis próprias. É o ser social.
Os fenômenos que nele se passam têm evidentemente as suas últi­
mas raízes na consciência do indivíduo. Contudo, a vida colectiva
não é uma simples imagem ampliada da vida individual. Ela apre­
senta caracteres sui generis que as induções da psicologia, só por
si, não permitiam prever. Assim, os costumes, as prescrições do
direito e da moral seriam impossíveis se o homem não fosse capaz
de contrair hábitos: no entanto, são mais do que hábitos indivi­
duais. É a razão por que Comte atribui ao ser social um lugar
determinado na série dos seres. Coloca-o no cimo da hierarquia
devido à sua maior complexidade e porque a ordem social implica
e engloba nele os outros reinos da natureza. Visto que este ser
não é redutível a nenhum outro, não o podemos deduzir e para
o conhecer é preciso observá-lo. Desta vez, a sociologia encontra­
va-se na posse de um objecto que só a ela pertencia e dum método
positivo para o estudar.
Simultaneamente, Auguste Comte assinalava nas sociedades
urna característica que é a sua marca distintiva e que, entre-
tanto, os economistas haviam ignorado. Refiro-me ao «consensus
universal que caracterizava os mais insignificantes fenômenos dos
corpos vivos e que a vida social manifesta necessariamente no
mais alto grau» (Cours de philosopbie positive, IV, 234). Para os
economistas, os fenômenos morais, jurídicos, econômicos, políticos
proccssam-se paralelamente uns aos outros sem, digamos assim, se
tocarem; do mesmo modo, as ciências correspondentes podem
desenvolver-se sem se conhecerem. Efectivamente, sabe-se com que
cioso cuidado a economia política sempre defendeu a sua indepen­
dência. Para Comte, pelo contrário, os factos sociais são demasiado
solidários para que se possam estudar separadamente. Como conse­
quência desta aproximação cada uma das ciências sociais perde
autonomia, mas ganha em seiva e vigor. Os factos que estudava,
porque a análise os destacara do seu meio natural, pareciam inde­
pendentes e a flutuar no vazio. Tinham qualquer coisa de abstracto
e de morto. Agora que os percebemos na sua interdependência,
segundo as suas afinidades naturais, mostram-se aquilo que são,
faces diferentes duma mesma realidade viva: a sociedade. Em vez
de termos de lidar com fenômenos alinhados, a bem dizer, em

83
séries lineares, alheios uns aos outros e que só acidentalmente se
encontram, vemo-nos perante um enorme sistema de acções e reac-
ções, neste equilíbrio sempre mutável que caracteriza a vida. Ao
mesmo tempo, porque sentia mais a complexidade das coisas so­
ciais, Auguste Comte estava precavido contra as soluções absolutas
que, pelo contrário, agradavam aos economistas e, com eles, aos
políticos ideólogos do século xvm. Quando na sociedade não se
vê mais que o indivíduo e se reduziu a noção a não ser mais do
que uma ideia clara, é certo, mas seca e vazia, da qual se retirou
tudo quanto tinha de vivo e de complicado, é natural que se não
possa deduzir nada de realmente complexo e que se caia em teorias
simplistas e radicais. Se, pelo contrário, cada fenômeno estudado
está dependente de uma infinidade de outros, se cada ponto de
vista depende de vários outros pontos de vista, então já não é pos­
sível decidir as questões em termos categóricos. Torna-se indispen­
sável um eclectismo de determinado gênero, cujo método não tenho
de delinear. Há tantas coisas diferentes na vida! Deve-se saber
atribuir a cada uma delas o lugar que lhe compete. Assim c que
Auguste Comte ao admitir, com os economistas, que o indivíduo
tinha direito a uma larga margem de liberdade, não a queria, con­
tudo, ilimitada e declarava a necessidade duma disciplina colcctiva.
Do mesmo modo, embora reconhecendo que os factos sociais não
podiam ser criados nem alterados arbitrariamente, considerava que,
em consequência da sua maior complexidade, eles eram mais facil­
mente modificáveis e, por conseguinte, podiam ser, em certa me­
dida, proveitosamente dirigidos pela inteligência humana.
Eis, meus senhores, grandes e sérias conquistas e não é sem
razão que a tradição data a sociologia a partir de Auguste Comte.
Contudo, não se julgue que os trabalhos preliminares estejam dora­
vante terminados e que a sociologia mais não tenha que seguir
tranquilamente o seu curso. Ela tem agora um objecto, mas quão
indeterminado continua! Deve estudar, dizem-nos, a Sociedade-,
mas a Sociedade não existe. Há sociedades que se classificam em
gêneros e em espécies, como os vegetais e como os animais. De que
espécie se trata, portanto? De todas ao mesmo tempo ou duma só
em particular? Para Comte, meus senhores, nem sequer se põe,
porque ele considera haver uma só espécie social. Adversário de
Lamarck, não admite que o simples facto da evolução possa dife­
renciar os seres a ponto de dar origem a especies novas. Segundo

84
cie, os factos sociais são sempre e na generalidade os mesmos, com
diferenças de intensidade; o desenvolvimento social sempre e nâ
generalidade o mesmo com diferenças de velocidade. As nações
mais primitivas e os povos mais civilizados são apenas estados dife­
rentes duma só e mesma evolução; e são as leis desta evolução
única que ele procura determinar. Toda a humanidade se desen­
volve em linha recta e as diferentes sociedades não são mais que
as etapas sucessivas desta marcha rectilínea. Assim, as palavras
sociedade e humanidade são, uma ou outra, indiferentemente em­
pregadas por Comte. Porque, de facto, a sua sociologia é muito
menos um estudo especial dos seres sociais do que uma meditação
filosófica sobre a sociabilidade humana em geral. Esta mesma razão
explica-nos uma outra particularidade do seu método. Se o pro­
gresso humano segue por toda a parte a mesma lei, o melhor meio
de o reconhecer consiste naturalmente em o observar ali onde se
apresenta sob a forma mais nítida e mais acabada, isto é, nas socie­
dades civilizadas. Eis porque, para verificar esta célebre lei dos
três estados, que é considerada como resumindo toda a vida da
humanidade, Auguste Comte se contentou em passar sumariamente
em revista os principais acontecimentos da história dos povos ger-
mano-latinos, sem ver quanto há de estranho em assentar numa
base tão estreita uma lei de tal amplitude.
Comte era encorajado a encarar as coisas desta maneira devido
ao estado de imperfeição em que se encontravam as ciências etno­
lógicas no seu tempo e também pelo pouco interesse que lhe ins­
piravam estes tipos de estudos. Mas, hoje em dia, é manifestamente
impossível sustentar que há uma evolução humana, por toda a
parte idêntica a si própria, e que todas as sociedades não são mais
que variedades diversas dum só e mesmo tipo. Já em zoologia se
renunciou à classificação seriaria, que outrora seduzira os sábios,
graças à sua extrema simplicidade. Admite-se cada vez mais que
a árvore genealógica dos seres organizados, em vez de ter a forma
duma linha geométrica, se assemelha mais a uma árvore muito
frondosa, cujos ramos saídos ao acaso de todos os pontos do tronco
se lançam caprichosamente em todas as direcções. O mesmo se
passa com as sociedades. A despeito do que disse Pascal, cuja céle­
bre fórmula Comte volta erradamente a utilizar, a humanidade não
pode ser comparada a um só homem, o qual, depois de ter vivido
todos os séculos passados, ainda subsistiría. Mas mais se parece

85
a uma imensa família cujos diferentes ramos, cada vez mais diver­
gentes uns dos outros, se teriam, pouco a pouco, desligado da cepa
comum para viver uma vida própria. Quem nos garante até que
essa cepa comum tenha alguma vez existido? Não haverá na ver­
dade, entre um clã ou uma tribo e as nossas grandes nações euro­
péias, pelo menos uma distância tão grande como a que existe
entre a espécie humana e as espécies animais imediatamente infe­
riores? Para falar apenas duma só função social, que relação há
entre os costumes bárbaros duma miserável tribo de Fueguinos
e a ética requintada das sociedades modernas? É evidentemente
possível que pela comparação de todos estes tipos sociais se obte­
nham leis muito gerais que convenham a todos; mas não é a obser­
vação, mesmo atenta, dum só dentre eles que as revelará.
Este mesmo erro teve uma outra consequência. Disse-vos que,
para Comte, a sociedade era um ser sui generis-, mas como ele rejei­
tava a filosofia da descendência, admitia, entre cada espécie de
seres como entre cada espécie de ciências, uma solução de conti­
nuidade. Encontrava-se, assim, bastante embaraçado para definir
e para imaginar este ser novo que ele acrescentava ao resto da
natureza. Donde provinha e a que se assemelhava? Chama-lhe fre­
quentemente um organismo, mas não vê nesta expressão mais que
uma metáfora de medíocre valor. Dado que a sua filosofia o impe­
dia de ver na sociedade a continuação e o prolongamento dos seres
inferiores, não podia defini-la em função destes últimos. Então
onde ir procurar os elementos para uma definição? Para permane­
cer consequente com os seus princípios era obrigado a admitir que
este novo reino não se assemelha aos precedentes; e, de facto, apro­
ximando a ciência social da biologia, reclamava para a primeira um
método especial, diferente dos que eram seguidos nas outras ciên­
cias positivas. A sociologia encontrava-se, portanto, mais anexada
às restantes ciências do que propriamente integrada nelas.

86
III

Foi só com Spencer que esta integração se realizou definitiva­


mente. Spencer não se contenta em assinalar algumas analogias
aparentemente verdadeiras entre as sociedades e os seres vivos:
declara categoricamente que a sociedade é uma espécie de orga­
nismo. Como todo o organismo, ela nasce dum germe, evolui
durante um tempo para chegar em seguida à dissolução final. Ela
resulta também de um concurso de elementos diferenciados, cada
um com a sua função especial, os quais, completando-se uns aos
outros, concorrem para um mesmo fim. E mais: em virtude dos
princípios gerais da sua filosofia, estas semelhanças essenciais de­
viam ser para Spencer o indício duma verdadeira relação de filia­
ção. Se a vida social evoca os traços gerais da vida individual, é
porque dela resulta; se a sociedade tem traços comuns com os orga­
nismos, é porque ela própria é um organismo transformado e aper­
feiçoado. As células ao agregarem-se formam os seres vivos, como
os seres vivos ao agregarem-se entre si formam as sociedades. Mas
a segunda evolução é uma consequência da primeira, consistindo
toda a diferença em que, aperfeiçoando cada vez mais os seus pro­
cessos, ela chega, pouco a pouco, a tornar mais flexível e mais livre
o agregado orgânico, sem comprometer a sua unidade.
Esta verdade muito simples deu no entanto origem a uma
polêmica bastante viva. É verdade que ela perde algum valor se a
tomarmos excessivamente à letra e exagerarmos a sua importância.
Se, como o fez Lilienfeld em Gedanken iiber die Socialwissenschaft
der Zukunft («Pensamentos sobre a Ciência Social do Futuro»),
se imaginar que a simples aproximação vai dissipar num instante
todos os mistérios que ainda rodeiam as origens e a natureza das
sociedades e que, para isso, bastará transpor para a sociologia, pla-
giando-as, as leis mais conhecidas da biologia, contentamo-nos com
ilusões. Sc a sociologia existe, tem o seu método e as suas leis
próprias. Os factos sociais só podem ser verdadeiramente explica­
dos por outros factos sociais e não foi por se verificar a sua seme­
lhança com factos biológicos, cuja ciência já está feita, que eles se
explicaram. A explicação que convém a uns não se pode adaptar
exactamente aos outros. A evolução não é uma repetição monó­
tona: cada reino da natureza manifesta algo de novo que a ciência

87
deve compreender e reproduzir, em vez de o ignorar. Para que
a sociologia tenha direito de existência é preciso que haja no reino
social qualquer coisa que escapa à investigação biológica.
Mas, por outro lado, não podemos esquecer que a analogia é
um precioso instrumento para o conhecimento e até mesmo para
a investigação científica. O espírito não pode criar uma ideia abso­
luta. Suponham que se descobre um ser completamente novo, sem
analogia com qualquer outro: seria impossível que o espírito o ima­
ginasse; só em função de outro qualquer já conhecido o poderá
conceber. O que nós chamamos uma ideia nova, mais não é, na reali­
dade, que uma ideia antiga que retocámos para a ajustar tão exacta-
mente quanto possível ao objecto especial que deve exprimir. Inte­
ressava, pois, verificar entre o organismo individual e a sociedade
uma analogia real; porque não só a imaginação sabia doravante
a que se agarrar e tinha com que conceber o ser novo em ques­
tão, mas também a biologia se tornava para o sociólogo um verda­
deiro tesouro de pontos de vista e de hipóteses de que não tinha,
evidentemente, o direito de se apoderar, mas que podia pelo menos
explorar prudentemente. Nada há até à própria concepção da ciên­
cia que, em certa medida, se não encontre determinado por isso.
Com efeito, se os factos sociais e os factos biológicos mais não são
do que momentos diversos duma mesma evolução, outro tanto se
deve passar com as ciências que os explicam. Por outras palavras,
o quadro e os processos da sociologia, sem serem modelados pelos
da biologia, não devem, no entanto, ignorá-los.
A teoria de Spencer, se a soubermos utilizar, é, portanto, muito
fértil em aplicações. Ao mesmo tempo, Spencer determinava o
objecto da ciência social com muito maior precisão do que o fizera
Comte. Já não fala da sociedade de uma maneira geral e abstracta,
mas distingue tipos sociais diferentes que classifica em grupos e
em subgrupos divergentes; e, para encontrar as leis que procura,
não opta por um destes tipos de preferência a outros, mas consi­
dera que, para o sábio, todos têm um interesse igual. Se se pre­
tende obter as leis da evolução social, não se pode negligenciar
nenhum. Assim, encontraremos em Príncipes de sociologie uma
soberba abundância de documentos colhidos de variadtssimos acon­
tecimentos que atestam a rara erudição do filosofo. Por outro lado,
deixa de se colocar o problema sociológico com aquela generali­
dade vaga que caracterizara Auguste Comte; mas distingue ques-

88
tões especiais que examina umas após outras. É assim que estuda
sucessivamente a família, o cerimonial do Governo, o governo polí­
tico, as funções eclesiásticas, e que se propõe, na parte ainda iné­
dita da sua obra, passar em seguida aos fenômenos econômicos,
à linguagem e à moral.
Infelizmente, a execução deste vasto e belo programa não
corresponde completamente às promessas que deixava entender.
E isto porque Spencer, tal como Auguste Comte, foi menos socio-
logista que filósofo. Não se interessa pelos factos sociais em si;
não os estuda com o único objectivo de os conhecer, mas para veri­
ficar, quando c caso disso, a grande hipótese que concebera e que
deveria explicar tudo. Todos os documentos que acumula, todas as
verdades particulares com que depara na realização dos seus traba­
lhos, são destinados a demonstrar que, como tudo o mais, as socie­
dades se desenvolvem em conformidade com a lei da evolução uni­
versal. Numa palavra, não é uma sociologia que devemos procurar
no seu livro, mas antes uma filosofia das ciências sociais. Não tenho
de me interrogar sobre se pode haver uma filosofia das ciências
e qual o seu interesse. Em todo o caso, ela só é possível para as
ciências constituídas; ora, a sociologia acaba de nascer. Antes de
abordar estas questões transcendentes, seria preciso primeiro ter
resolvido uma multiplicidade de outras, especiais e particulares,
que mal acabam de ser colocadas. Como é possível encontrar a fór­
mula suprema da vida social, quando se ignora ainda quais são as
diferentes espécies de sociedade, as principais funções de cada uma
delas e quais as suas leis. Spencer acreditava, é verdade, que podia
abordar simultaneamente estas duas ordens de problemas; encarar
frontalmente a análise e a síntese; fundamentar a ciência e ao
mesmo tempo fazer a filosofia desta mesma ciência. Mas não haverá
uma certa temeridade em tentar semelhante tarefa? Assim, que
acontece? Ele observa os factos, mas com certa precipitação, na
ânsia de atingir o objectivo que o atraía. Ele atravessa por nume­
rosos problemas mas mal se detém em cada um deles, embora
nem um só houvesse que não estivesse carregado de dificuldades.
A Sociologie é como que uma panorâmica apressada das socieda­
des. Nela os seres já não apresentam aquele relevo, aquele desenho
nítido que têm na realidade. Antes se confundem todos no seio
duma mesma tinta uniforme que apenas deixa transparecer esbo­
ços imprecisos.
89
Adivinha-se a que soluções pode conduzir um exame tão preci­
pitado e o que pode ser a fórmula única que engloba e resume
todas estas soluções particulares. Flutuante e vaga, só exprime das
coisas a sua forma exterior e a mais geral. Quer se trate da família
ou dos governos, da religião ou do comércio, em toda a parte crê
Spencer encontrar a mesma lei. Em toda a parte crê ver as socie­
dades passarem mais ou menos lentamente do tipo militar ao tipo
industrial, dum estado onde a disciplina social é extremamente
forte a um outro estado onde cada um se impõe a sua própria disci­
ma. Na verdade, não haverá nada mais na história, e todas as
plina.
infelicidades por que a humanidade tem passado desde há séculos
não terão tido outro efeito além do de suprimir uns tantos direitos
aduaneiros e de proclamar a liberdade da especulação? Seria bem
modesto resultado para tão colossal esforço. Será assim a solidarie­
dade que nos une aos outros homens tão pesada que todo o objec-
tivo de progresso consista em torná-la um pouco mais leve? Por
outras palavras, seria o ideal das sociedades esse individualismo
feroz, ponto de partida de Rousseau, e a política positiva não seria
mais que a do retorno ao Contrat social. Levado pelo seu ardor
de generalização e talvez também pelos seus preconceitos de inglês,
Spencer tomou a forma pelo conteúdo. É certo que o indivíduo
é hoje mais livre que outrora, e é bom que assim seja. Mas se a
liberdade é tão cara, não o é como um valor em si, por uma espé­
cie de virtude interna que os metafísicos habitualmente lhe atri­
buem, mas que um filósofo positivo lhe não pode reconhecer. Não
é um bem absoluto de que se possa abusar em demasia. O seu valor
advem-lhe das vantagens que traz, e encontra-se, por isso mesmo,
estreitamente limitado. Necessária para permitir que o indivíduo
organize a sua vida pessoal segundo as suas necessidades, a isto
praticamente se circunscreve. Ora, para além desta primeira esfera,
há uma outra bem mais vasta em que o indivíduo também se move
para fins que o ultrapassam, que até, as mais das vezes, lhe esca­
pam. Aqui, é evidente que já não pode ter a iniciativa dos seus
movimentos, mas sim e apenas aceitá-los ou sofrê-los. A liberdade
individual encontra-se, pois, sempre e em toda a parte, limitada
pela coacção social, tome esta a forma de tradição, costumes, leis
ou regulamentos. E como, à medida que as sociedades ganham vo­
lume, a esfera de acção da sociedade cresce simultaneamente com

90
a do indivíduo, temos o direito de censurar Spencer por ter visto
apenas um aspecto da realidade e talvez até o menor; por ter des­
prezado nas sociedades o que nelas se encontra de propriamente
social.

IV

O fracasso desta tentativa de síntese demonstrava aos sociolo-


gistas a necessidade de levar a cabo estudos precisos e pormenori­
zados. Foi o que compreendeu Alfred Espinas e foi o método que
seguiu no seu livro Sociétés animales. Foi o primeiro a estudar os
factos sociais para fazer deles uma ciência e não para garantir a
simetria dum grande sistema filosófico. Em vez de se ater a visões
de conjunto sobre a sociedade em geral, cinge-se ao estudo dum
tipo social em particular; distinguiu em seguida, no seio desse
mesmo tipo, classes e espécies, descrevendo-as cuidadosamente, e
foi dessa observação atenta dos factos que induziu algumas leis
cuja generalidade, aliás, teve o cuidado de restringir à ordem espe­
cial dos fenômenos que acabava de estudar. O seu livro constitui
o primeiro capítulo da sociologia.
O que Espinas fez em relação às sociedades animais, tentou um
sábio alemão fazê-lo em relação à sociedade humana, ou melhor,
em relação aos povos mais avançados da Europa contemporânea.
Albert Schaeffle consagrou os quatro grossos volumes do seu Bau
und Leben des Socialen Kôrpers a uma análise minuciosa das nos­
sas grandes sociedades modernas. Aqui, poucas ou nenhumas teo­
rias. Schaeffle começa, é certo, por afirmar que a sociedade não
é uma simples colecção de indivíduos, mas um ser que tem a sua
vida, a sua consciência, os seus interesses e a sua história. Aliás,
esta ideia, sem a qual não há ciência social, sempre esteve muito
viva na Alemanha, não sofrendo eclipses senão durante o curto
período em que o individualismo kantiano reinou praticamente
sozinho. O Alemão tem o sentimento demasiado profundo da com­
plexidade das coisas para que possa contentar-se facilmente com
uma solução tão simplista. A teoria que aproxima a sociedade dos
seres vivos tinha, portanto, de ser bem acolhida na Alemanha, por-

91
que lhe permitia tornar mais sensível a si própria uma ideia que
lhe era cara desde há muito. Assim, Schaeffle aceita-a sem hesita­
ção, mas não faz dela o princípio do seu método. Retira da biolo­
gia algumas expressões técnicas de propriedade por vezes contes­
tável; mas a sua preocupação dominante consiste em colocar-se tão
perto quanto possível dos factos sociais, em observá-los em si mes­
mos, em vê-los tal como são e em reproduzi-los tal como os vê.
Desmonta, peça por peça, o enorme mecanismo das nossas socie­
dades modernas, descobre as suas engrenagens e explica-lhes o fun­
cionamento. É aí que se verá, distintos e classificados, a multiplici­
dade de laços de toda a espécie que, invisíveis, nos ligam uns aos
outros; como as unidades sociais se coordenam entre si de molde
a constituírem grupos sempre mais complexos; como, enfim, das
acções e reacções, que se produzem no seio desses grupos, se liberta,
pouco a pouco, um certo número de idéias comuns, que são como
que a consciência da sociedade. Ao ler-se este livro, como nos
parece exígua a construção de Spencer, ao lado das riquezas da rea­
lidade, e como a elegante simplicidade da sua doutrina perde valor,
comparada com esta paciente e laboriosa análise! Sem dúvida,
poder-se-ia objectar a Schaeffle o electismo um pouco vacilante da
sua doutrina. Poder-se-ia reprovar-lhe, sobretudo, o acreditar exces­
sivamente na influência das idéias claras na conduta do homem,
o fazer desempenhar à inteligência reflectida um tão excessivo
papel na evolução da humanidade, e, por consequência, conceder
demasiado espaço no seu método ao raciocínio e às explicações
lógicas. Enfim, pode-se ainda achar que o campo de estudos que
se impôs é muito vasto, demasiado vasto talvez para que a obser-
vação pudesse ser conduzida em toda a obra com igual rigor. Não
deixa de ser verdade, contudo, que todo o seu livro é inteiramente
orientado por um método propriamente científico e constitui um
verdadeiro tratado de sociologia positiva.
Este método foi aplicado por outros sábios, também alemães,
no estudo de duas funções sociais em particular, o direito e a
economia política. Em lugar de partir da natureza do homem para
deduzir a ciência, como faziam os economistas ortodoxos, a escola
alemã esforça-se por observar os factos econômicos tal como se
apresentam na realidade. Tal é o princípio desta doutrina que se
tem chamado indiferentemente socialismo de cátedra ou socialismo
de Estado. Se ela se inclina abertamente para um certo socialismo,

92
é porque, quando se procura ver as coisas como elas são, efectiva-
mente se verifica que, em todas as sociedades conhecidas, os fenô­
menos econômicos ultrapassam a esfera de acção do indivíduo e
constituem uma função, não doméstica e privada, mas social. A so­
ciedade, representada pelo Estado, não pode, portanto, desinteres­
sar-se dela e abandoná-la completamente, sem reserva e sem con­
trole, à livre iniciativa dos particulares. Eis como o método de
Wagner e Schmoller, para citar apenas os chefes de escola, os con­
duzia necessariamente a fazer da economia política um ramo da
ciência social e a adoptar como doutrina um socialismo atenuado.
Pela mesma altura, os juristas descobriram no direito a maté­
ria de uma ciência nova. Até aqui, o direito só dera origem a duas
espécies de trabalhos. Por um lado, havia os juristas de profissão
que se ocupavam unicamente em comentar as formas jurídicas para
lhes estabelecer o sentido e o alcance. Pelo outro, havia os filóso­
fos que, atribuindo apenas uma medíocre importância a estas leis
humanas, manifestação contingente da lei moral universal, procura­
vam encontrar unicamente pela força da intuição e da razão os
princípios eternos do direito e da moral. Ora, a interpretação de
textos constitui uma arte, não uma ciência, visto que não conduz
à descoberta de leis, e quanto às grandes especulações não podiam
ter mais do que um valor e interesse metafísicos. Acontecia, por­
tanto e sem razão, que os fenômenos jurídicos não eram objecto
de nenhuma ciência propriamente dita. Foi esta lacuna que Ihering
e Post tentaram preencher. Um e outro, pertencendo embora a es­
colas filosóficas muito diferentes, tentaram deduzir as leis gerais
do direito a partir da comparação dos textos de leis e de costumes.
Não posso, aqui, nem expor nem, sobretudo, apreciar os resultados
das suas análises. Mas, quaisquer que sejam, é certo que este duplo
movimento, econômico e jurídico, realiza um importante progresso.
Doravante, a sociologia já não aparece como uma espécie de ciên­
cia de conjunto, geral e confusa, compreendendo quase a universa­
lidade das coisas, mas vemo-la dividir-se num certo número de ciên­
cias especiais que se ligam a problemas cada vez mais determinados.
Seguidamente, tal como a economia política, embora em declínio,
há muito que está fundada, tal como o direito, apesar de mais
recente, não é, em definitivo, senão uma transformação da velha
filosofia do direito, a sociologia, graças às suas relações com estas
duas ciências, perde aquele ar de improvisação apressada que tinha

93
até aqui e que, por vezes, fizera duvidar do seu futuro. Já não nos
surge como tendo saído um belo dia, como por milagre, do nada;
mas tem doravante os seus antecedentes históricos, liga-se ao pas­
sado e é possível mostrar que, a exemplo das outras ciências, foi
dele que pouco a pouco ela nasceu através de um desenvolvimento
regular.

Eis, meus senhores, no que, nos nossos dias, se tornou a socio­


logia, e tais são as principais fases da sua evolução. Vimo-la nascer
com os economistas, constituir-se com Comte, consolidar-se com
Spencer, determinar-se com Schaeffle, especializar-se com os juris­
tas e economistas alemães; e deste breve resumo da sua história,
podeis concluir, por vós próprios, os progressos que ainda lhe fal­
tam fazer. A sociologia tem um objecto nitidamente definido e um
método para o estudar. O objecto são os factos sociais; o método
é a observação e a experimentação indirecta, ou, por outras pala­
vras, o método comparativo. O que agora é preciso é traçar os
quadros gerais da ciência e delimitar as suas divisões essenciais.
Este trabalho não é somente útil para a boa ordenação dos estu­
dos, como também tem um alcance mais elevado. Uma ciência só
está verdadeiramente constituída quando se dividiu e subdividiu,
quando engloba um certo número de problemas diferentes e depen­
dentes uns dos outros. É preciso que passe desse estado de homo­
geneidade confusa, por onde começa, a uma heterogeneidade dis­
tinta e ordenada. Enquanto se reduz a uma ou várias questões
muito gerais, apenas tenta espíritos muito sintéticos: estes apode-
ram-se dela, imprimem-lhe de tal modo o seu cunho que se torna
como que uma coisa sua, parecendo confundir-se com eles. Obra
pessoal que não comporta colaboração. Bem se podem aceitar ou
rejeitar essas grandes teorias, modificá-las no pormenor, aplicá-las
a certos casos particulares, mas nada se lhes pode acrescentar, por­
que abrangem tudo, abarcam tudo. Pelo contrário, ao tornar-se mais
especializada, a ciência aproxima-se mais das coisas que, elas tam­
bém, são especiais; torna-se, assim, mais objectiva, mais impessoal

94
e, por conseguinte, acessível aos diversos talentos, a todos os tra-
balhadores de boa vontade.
Podia ser tentador proceder logicamente a esta operação e
decompor a ciência segundo as suas articulações naturais, como
dizia Platão. Mas seria, evidentemente, falhar o nosso objectivo:
porque temos de analisar uma coisa, uma realidade, e não anali­
saríamos senão um conceito. Uma ciência é, ela também, uma espé­
cie de organismo. Podemos observar como é formada e fazer a sua
anatomia, mas não impor-lhe tal ou tal plano de composição, por­
que melhor satisfaz a lógica. Divide-se por si própria, à medida que
se constitui, e mais não podemos fazer do que reproduzir as divi­
sões que, assim, se produziram naturalmente, e torná-las mais cla­
ras ao tomar consciência delas. Sobretudo, é necessário proceder
com essa precaução quando se trata duma ciência que mal se tor­
nou adulta e cujas formas ainda têm qualquer coisa de frágil e de
inconsistente.
Portanto, se aplicarmos este método à ciência social, obteremos
os seguintes resultados:

1Há em toda a sociedade um certo número de idéias e de sen­


timentos comuns que as gerações transmitem umas às outras e que
asseguram, ao mesmo tempo, a unidade e a continuidade da vida
colectiva. Tais são as lendas populares, as tradições religiosas, as
crenças políticas, a linguagem, etc. Todos estes fenômenos são de
ordem psicológica, mas não competem à psicologia individual, visto
que ultrapassam infinitamente o indivíduo. Devem, pois, ser o
objecto de uma ciência especial incumbida de os descrever e de lhes
procurar as condições: poder-se-ia chamar-lhe psicologia social. Ê a
Volkerpsychologie dos Alemães. Se, ainda há pouco, nada dissemos
dos interessantes trabalhos de Lazarus e de Stanthal, foi porque até
agora não resultaram. A Vòlkerpsychologie, tal como eles a enten-
diam, é apenas uma palavra nova para designar a linguística geral
e a filologia comparada;

2.° Alguns dos juízos, que a generalidade dos cidadãos assim


admite, apresentam, além disso, esse duplo carácter de visar a prá­
tica e serem obrigatórios. Exercem uma espécie de ascendente sobre
as vontades, que se sentem como que coagidas a conformar-se-lhes.
Por esta característica se reconhecem estes princípios cujo conjunto

95
constitui a moral. Regra geral, não se vê na moral senão a arte
de traçar um plano de conduta ideal para os homens. Mas a ciên­
cia da moral deve preceder a arte. Esta ciência tem por objecto
estudar as máximas e as crenças morais como fenômenos naturais
de que procura as causas e as leis;

3.° Algumas destas máximas têm uma força de tal modo impe­
rativa que a sociedade impede, com medidas concretas, a sua infrac-
ção. Não deixa a garantia do seu respeito ao cuidado da opinião
pública, mas encarrega disso representantes especialmente autoriza­
dos. Quando essas máximas tomam este carácter particularmente
imperioso, os juízos morais tornam-se fórmulas jurídicas. Como já
dissemos, há uma ciência do direito como há uma ciência da moral
e relações contínuas entre estas duas ciências. Se quiséssemos levar
a divisão mais longe, até poderiamos admitir, na ciência do direito,
duas ciências particulares, pois há dois direitos, um que é penal e
outro que o não é. Utilizo propositadamente expressões muito
gerais que não formulam juízos apriorísticos da importante questão
que encontraremos futuramente. Portanto, distinguir-se-ia, dum
lado, a ciência do direito propriamente dito e, do outro, a crimi-
nologia;

4.° Temos finalmente aquilo a que se convencionou chamar


fenômenos econômicos. A ciência que os estuda já não está por
criar, mas para que se torne uma ciência positiva e concreta é pre­
ciso que renuncie a essa autonomia de que tanto se orgulhava para
se tornar uma ciência social. Não se trata de uma simples reforma
de catalogação, tirando a economia política do seu isolamento para
fazer dela um ramo da sociologia. O método e a doutrina ficarão
simultaneamente modificados.
ipletado. Mas uma
É necessário que este inventário seja completado.
classificação que, no estado actual da sociologia, se apresentasse
como definitiva, não podia deixar de ser arbitrária. Os quadros
duma ciência que ainda está por definir não podem ser rígidos:
até é importante que continuem abertos a aquisições ulteriores.
Foi por isso que não falámos nem no exército nem na diplomacia,
que, no entanto, são fenômenos sociais dos quais se deve tornar
possível fazer ciências. Só que essa ciência ainda não existe, nem
mesmo em estado embrionário. Ora, creio que é preferível privar-

96
mo-nos do prazer sempre fácil de esboçar a traços largos o plano
duma ciência inteiramente por construir, operação estéril se não
for feita por mão de gênio. Faremos um trabalho mais útil ocupan­
do-nos apenas com fenômenos que já serviram de matéria a ciências
constituídas. Aqui, pelo menos, não temos senão de continuar
uma obra iniciada na qual, em certa medida, o passado garante o
futuro.
Mas cada um dos grupos de fenômenos que acabamos de dis­
tinguir poderia ser sucessivamente examinado sob dois pontos de
vista diferentes e criar assim duas ciências. Cada um deles consiste
num certo número de acções coordenadas visando um objectivo e
poderemos estudá-las como tal; ou então estudar-se-á, de preferên­
cia, o ser encarregado de cumprir essas acções. Por outras palavras,
ora se procurará saber qual é o seu papel e como se cumpre, ora
como é ele próprio constituído. Deste modo, encontraríamos as
duas grandes divisões que dominam toda a biologia, as funções
dum lado, as estruturas do outro; aqui a fisiologia, além a morfo-
logia. O economista, por exemplo, colocar-se-ia do ponto de vista
fisiológico? Procuraria saber quais são as leis da produção dos valo­
res, da sua troca, da sua circulação, do seu consumo. Do ponto
de vista morfológico, pelo contrário, investigaria o modo como se
agrupam os produtores, os trabalhadores, os comerciantes, os con­
sumidores; compararia as corporações de outrora com os sindicatos
de hoje, a fábrica com a oficina, e determinaria as leis destes diver­
sos modos de associação. O mesmo quanto ao direito: ou se estu­
daria como funciona, ou então descrever-se-iam os órgãos encarre­
gados do funcionamento. Esta divisão é sem dúvida muito natural;
no entanto, no decurso das nossas investigações, manter-nos-emos
quase exclusivamente no ponto de vista fisiológico, e são estas as
razões desta preferência.
Nos seres inferiores há entre o órgão e a função uma relação
estreita, rígida. Ê impossível uma modificação na função se não se
produzir uma correspondente no órgão. Este está como que con-
gelado no seu papel porque está fixo na sua estrutura. Mas já não
se passa o mesmo com as funções superiores dos seres superiores.
Aqui a estrutura é de tal modo flexível que já não constitui obstá­
culo às alterações: acontece que um órgão ou parte de um órgão
cumpre sucessivamente funções diferentes. Entre os seres vivos, já
sabemos que diferentes lóbulos do cérebro podem substituir-se uns

97
4 - A Ciência Social c a Acção
aos outros com grande facilidade; mas é sobretudo nas sociedades
que este fenômeno se manifesta com evidencia. Não vemos nós a
cada passo instituições sociais, uma vez criadas, servirem para fins
que ninguém havia previsto e para os quais, por conseguinte, elas
não se tinham organizado? Não sabemos nós que uma constituição
doutamente preparada para servir o despotismo se pode tornar, por
vezes, um refúgio para a liberdade, ou inversamente? Não vemos
nós a igreja católica, nos gloriosos tempos da sua história, adaptar-
-se às circunstâncias mais diversas do tempo e do lugar, conti­
nuando sempre e em toda a parte a mesma? Quantos costumes,
quantas práticas são ainda hoje o que eram outrora, embora o fim
e a razão de ser tenham mudado? O que estes exemplos atestam
é uma certa maleabilidade de estrutura nos órgãos da sociedade.
Naturalmente, porque são muito flexíveis, as formas de vida social
têm algo de inconstante e de indeterminado; oferecem menos possi­
bilidades à observação científica e são mais dificilmente acessíveis.
Não é, pois, por elas que convém começar. De resto, têm menos
importância e interesse, porque são apenas um fenômeno secun­
dário e derivado. É sobretudo a propósito das sociedades que é
correcto dizer-se que a estrutura supõe a função e dela resulta. As
instituições não se estabelecem por decreto, mas resultam da vida
social e mais não fazem do que manifestá-la exteriormente por
símbolos aparentes. A estrutura é a função consolidada, é a acção
que se tornou hábito e que se cristalizou. Portanto, se não quere­
mos ver as coisas no seu aspecto mais superficial, se desejarmos
atingi-las nas suas raízes, deveremos aplicar-nos sobretudo ao es­
tudo das funções.

VI

Estão a ver, meus senhores, que a minha preocupação domi­


nante é limitar e circunscrever o mais possível a vastidão das nos­
sas investigações, uma vez que estou convencido que, para a socio­
logia, é necessário encerrar finalmente a era das generalidades. Mas
embora limitados, ou melhor, porque sendo mais limitados serão

98
mais precisos, estes estudos poderão, creio eu, ser úteis para cate­
gorias bastante diferentes de ouvintes.
Temos, primeiro, os estudantes de filosofia. Se percorrerem os
seus programas, não encontrarão mencionada a ciência social; mas
se, em vez de se contentarem com as rubricas tradicionais, forem
ao fundo das coisas, verificarão que os fenômenos estudados pela
filosofia são de duas espécies; uns relativos à consciência dos indi­
víduos, outros à consciência da sociedade: é destes últimos que
aqui nos ocuparemos. A filosofia está a dissociar-se em dois grupos
de ciências positivas: por um lado, a psicologia, por outro, a socio­
logia. É da ciência social que dependem particularmente os pro­
blemas que até aqui pertenciam exclusivamente à ética filosófica.
Voltaremos a eles na devida altura. A moral é mesmo de todas as
partes da sociologia a que de preferência nos atrai e sobre a qual,
cm primeiro lugar, nos vamos debruçar. Simplesmente tentaremos
tratá-la cientificamente. Em vez de a construirmos segundo a nossa
ideia pessoal, observá-la-emos como um sistema de fenômenos na­
turais que submeteremos à análise e cujas causas buscaremos: a
experiência ensinar-nos-á que são de ordem social. É evidente que
não nos dispensaremos de toda a especulação sobre o futuro, mas
não será evidente que antes de procurar o que devem ser a famí­
lia, a propriedade, a sociedade, se tem de saber o que são, a que
necessidades correspondem e com que condições devem conformar-
-se para viver? É por aí que começaremos e por aí se resolverá,
por si mesma, uma antinomia que não deixou de perturbar doloro­
samente as consciências. Há um século que se discute para saber
se a moral deve ter a primazia sobre a ciência, ou a ciência sobre
a moral: o único meio de pôr termo a esta situação de antago­
nismo é fazer da própria moral uma ciência, ao lado das outras
e em relação com elas. Diz-se que hoje a moral está em crise, e,
com efeito, há entre o ideal moral concebido por certos espíritos
e a realidade dos factos uma tal solução de continuidade que, se­
gundo as circunstâncias e os temperamentos, a moral oscila entre
estes dois pólos, sem saber onde pousar definitivamente. O único
meio de fazer cessar esta situação de instabilidade e de inquietude
é encarar a própria moral como um facto cuja natureza se deve
perscrutar atentamente, eu diria mesmo respeitosamente, antes de
ousar modificá-lo.
Mas os filósofos não são os únicos estudantes a quem este

99
ensino se destina. Descrevi de passagem a contribuição que o his­
toriador podia prestar ao sociólogo e tenho dificuldade em acre­
ditar que, em troca, os historiadores não tenham nada a aprender
com a sociologia. Duma maneira geral, sempre considerei que havia
uma espécie de contradição em considerar a história como uma
ciência e em não exigir, no entanto, nenhuma aprendizagem cientí-
fica aos futuros historiadores. A cultura geral que deles se exige
continua a ser a que era, filológica e literária. Basta, pois, meditar
nas obras-primas da literatura para se iniciar no espírito e na prá­
tica do método científico? Sei muito bem que o historiador não
é um generalizador; o seu papel muito especial é, não o de encon­
trar leis, mas o de dar a cada época, a cada povo, a sua individua­
lidade própria e a sua fisionomia particular. Ele permanece e deve
permanecer no âmbito particular. Mas, enfim, por muito parti­
culares que sejam os fenômenos que estuda, não se satisfaz em
descrevê-los, encadeia-os uns nos outros, procura-lhes as causas
e as condições. Para tanto estabelece induções e hipóteses. Como ^5
não estaria ele sujeito a desvios, se procede empiricamente, se tac-
teia ao acaso, se não é guiado por qualquer noção sobre a natureza
das sociedades, das suas funções e das relações destas funções?
Nesta massa enorme de factos cuja trama constitui a vida das gran­
des sociedades, como fará ele uma escolha? Há factos, tais como
os pequenos incidentes da vida quotidiana, que não têm qualquer
interesse científico. Se, portanto, ele os acolhe a todos indistinta-
mente cai na erudição fútil. Poderá, deste modo, interessar um
pequeno círculo de eruditos mas não fará obra útil e viva. Ora,
para fazer uma selecção, tem necessidade de uma ideia mestra,
de um critério que apenas pode solicitar à sociologia. É ela que
lhe ensinará quais são as funções vitais, os órgãos essenciais da
sociedade, e é ao estudo destas funções e destes órgãos que de pre­
ferência se aplicará. A sociologia levantar-lhe-á questões que demar­
carão e guiarão esssas pesquisas; em contrapartida, fornecer-lhe-á
os elementos da resposta e as duas ciências só poderão beneficiar,
uma e outra, com esta permuta vantajosa.
Finalmente, meus senhores, existe uma última categoria de
estudantes que eu gostaria de ver representados nesta sala. São
os estudantes de direito. Quando este curso foi criado, hesitámos
se o seu lugar não seria de preferência na Faculdade de Direito.
Creio que esta questão de local tem pouca importância. Os limites

100

Faculdade de Educação da USP


Biblioteca
1
que separam as diferentes secções da universidade não são tão ter-
minantes que alguns cursos não possam estar igualmente bem en­
quadrados numa ou noutra faculdade. Mas o que este escrúpulo
demonstra é que os melhores espíritos reconhecem hoje ser neces­
sário que o estudante de direito não se limite a estudos de pura
exegese. Com efeito, se despende todo o seu tempo a comentar os
textos e se, por consequência, a propósito de cada lei, a sua única
preocupação consistir em procurar adivinhar qual teria sido a inten­
ção do legislador, adquirirá o hábito de ver na vontade legisladora
a única fonte do direito. Ora, isso seria tomar a letra pelo espírito,
a aparência pela realidade. É nas próprias entranhas da sociedade
que o direito se elabora e o legislador não faz mais que consagrar
um trabalho que se produziu sem ele. Necessário é, portanto, ensi­
nar ao estudante como o direito se forma sob a pressão das neces­
sidades sociais, como se fixa pouco a pouco, por que graus de cris­
talização passa sucessivamente, como se transforma. Necessário é
mostrar-lhe ao vivo como nasceram as grandes instituições jurídi­
cas, como a família, a propriedade, o contrato, quais as suas cau­
sas, como variaram, como provavelmente variarão no futuro. Então
já não considerará mais as fórmulas jurídicas como sentenças, orá­
culos cujo sentido por vezes misterioso precisa de adivinhar; saberá
determinar o seu alcance, não segundo a intenção obscura e muitas
vezes inconsciente dum homem ou duma assembléia, mas segundo
a própria natureza da realidade.
Tais são, meus senhores, os serviços teóricos que a nossa ciên­
cia pode prestar. Mas pode, além disso, ter uma salutar influência
sobre a prática. Vivemos num país que apenas reconhece por mes­
tre a opinião. Para que este mestre se não torne num déspota pouco
inteligente, é necessário esclarecê-lo, e de que maneira a não ser
pela ciência? Sob influência de causas que seria demasiado longo
analisar aqui, o espírito de colectividade enfraqueceu entre nós.
Cada um de nós tem do seu eu um sentimento de tal maneira exor­
bitante que já não se apercebe dos limites que de todos os lados
o cercam. Iludindo-se sobre o seu próprio poder aspira à auto-sufi­
ciência. É por isso que empregamos todo o nosso mérito em nos
distinguirmos o mais possível uns dos outros, e em cada um seguir
o nosso movimento próprio. É preciso reagir, e com todas as nos­
sas forças, contra esta tendência dispersiva. É preciso que a nossa
sociedade retome consciência da sua unidade orgânica; que o indi-

101
víduo sinta esta massa social que o envolve e o penetra, que a sinta
sempre presente e activa, e que este sentimento regule sempre a sua
conduta, porque não basta que se inspire dela só de tempos a tem­
pos em circunstâncias particularmente críticas. Pois bem! Meus
senhores, creio que a sociologia está, mais que qualquer outra ciên­
cia, em estado de restaurar estas idéias. É ela que fará compreender
ao indivíduo o que é a sociedade, como a completa e quanto ele
é insignificante quando reduzido apenas às suas forças. Ela ensinar-
-Ihe-á que ele não é um império no seio de outro império, mas
o órgão dum organismo, e mostrar-lhe-á quanto há de belo em cum­
prir conscienciosamente o seu papel de órgão. Far-Ihe-á sentir que
se não fica diminuído por se estar solidário com outrem e depen­
dente dele por não se pertencer completamente a si próprio. Sem
dúvida que estas idéias só se tornarão verdadeiramente eficazes se
se propagarem profundamente nas camadas da população; mas para
tanto é preciso que nós as elaboremos cientificamente na universi­
dade. Contribuir, na medida das minhas forças, para atingir este
objectivo será a minha principal preocupação e sentir-me-ei muito
feliz se o conseguir por pouco que seja.
2

A SOCIOLOGIA EM FRANÇA
NO SÉCULO XIX

eterminar a parte que cabe à França nos progressos feitos


pela sociologia durante o século xix é fazer em grande
parte a história dessa ciência, porquanto foi neste país,
no decorrer desse século, que ela nasceu, permanecendo uma ciência
essencialmente francesa.
Também é verdade que, se designarmos por esse nome toda
a especulação sobre a vida dos povos, a sociologia aparece como
bastante anterior à palavra que hoje serve para a designar. Efecti-
vamente, sob este ponto de vista, as teorias de Platão e de Aristó­
teles acerca das formas diversas da organização política poderíam
ser consideradas como uma primeira tentativa de ciência social e
têm sido frequentemente apresentadas sob este aspecto. De facto,
é incontestável que elas constituíram uma importante novidade,
porque fazem parte do desenvolvimento histórico no decorrer do
qual a sociologia deveria um dia aparecer. Elas constituem uma
primeira aplicação da reflexão sobre os factos de ordem social. Sim­
plesmente, não basta aplicar a reflexão sobre uma série de factos
para que daí resulte uma ciência; é preciso, além do mais, que ela
seja aplicada duma certa maneira. Antes de ter surgido a ideia da
fisiologia, já a medicina existia há séculos; e, no entanto, quaisquer
que tenham sido os seus erros, não há dúvida que a medicina era
já uma obra de reflexão e que tinha por objecto, como a fisiologia
humana, os fenômenos que se passam no corpo do homem.
É que uma coisa é uma prática, mesmo metódica e reflectida,
outra é uma ciência. A ciência estuda os factos unicamente para os

103
conhecer, desinteressando-se das aplicações a que se podem prestar
as noções que elabora. Pelo contrário, uma prática só as considera
para saber o que deve fazer com elas, para que fins úteis podem
ser empregadas, quais os efeitos prejudiciais que é preciso impedir
e por que via este ou aquele resultado pode ser conseguido. Sem
dúvida, mesmo para resolver esses problemas c preciso, forçosa-
mente, fazer uma ideia dos objectos sobre os quais se pretende
agir. Para se saber para que finalidade pode servir uma coisa é pre­
ciso, em certa medida, conhecê-la. Não existe portanto prática que
não contenha em si teorias em estado imanente. Mas estas teorias
não são o fim imediato da prática; para o prático não passam dum
meio para atingir o seu fim, que é agir. Ora, para poder reflectir
metodicamente, isto é, de forma a diminuir os riscos de erro, é pre­
ciso tempo; pelo contrário, a acção é sempre mais ou menos urgente
e não pode esperar. As necessidades da vida obrigam-nos a resta­
belecer sem demora o equilíbrio vital, quando perturbado, e, por
conseguinte, a decidir com rapidez. Deste modo, as teorias que
estão subordinadas às exigências da prática são, consequentemente,
construídas apressada e sumariamente. Sem dúvida, na medida em
que a reflexão é estimulada esforçamo-nos por utilizá-la e, além
disso, ela própria se nos impõe. Mas, por outro lado, não pode
permitir-se-lhe que vá contra o objectivo que deve ser o seu e que
interrompa indefinidamente a acção que é urgente; há que reduzi-la
pois à dimensão mais ou menos exacta. Não podendo proceder com
a prudência que o método rigoroso exige, ela contenta-se então, no
que respeita a razões e provas, com o indispensável. Até mesmo
o mais frequente é serem as provas apresentadas apenas como argu­
mentos. São instintos, paixões, preconceitos dissimulados sob forma
dialéctica; enganam mais a nossa necessidade de perceber do que
a satisfazem.
A ciência só aparece quando o espírito, abstraindo toda a preo­
cupação prática, aborda as coisas com o único fim de ter represen­
tações delas. Então, não estando já atormentado pela necessidade
de subsistir, pode escolher a melhor ocasião, e rodear-se de todas
as precauções possíveis contra as sugestões impensadas. Mas esta
dissociação da teoria e da prática supõe sempre uma mentalidade
relativamente avançada. Porque, para se chegar a estudar os fac­
tos tendo unicamente em vista saber o que eles são, é preciso ter
chegado a compreender que eles o são duma maneira definida, e

104
não de qualquer outra, isto é, que têm uma maneira de ser cons­
tante, uma natureza donde derivam relações necessárias. Por outras
palavras, é preciso ter chegado à noção de leis; a sensação de que
há leis é o factor determinante do pensamento científico. Ora, sabe-
se com que lentidão a noção de lei natural se constituiu e se pro­
pagou progressivamente às diferentes esferas da natureza. Tempo
houve, não muito distante, onde ela era ainda inconsciente e con­
fusa, mesmo no que diz respeito ao reino mineral. Só muito recen­
temente se introduziu nas especulações relativas à vida; em psi­
cologia ainda não está mais do que imperfeitamente aclimatada.
Compreende-se, portanto, que só muito dificilmente tenha podido
penetrar no mundo dos factos sociais; e foi isto que fez com que
a sociologia só pudesse aparecer num momento tardio da evolução
científica.
Essa nova extensão vinha mesmo embater contra resistências
muito especiais. Em primeiro lugar, teria sido preciso que a noção
de lei tivesse alcançado, nas ciências propriamente naturais, um
grau suficiente de elaboração. Mas essa condição necessária não era
suficiente. Há séculos que o espírito está habituado a conceber um
tal abismo entre o mundo físico e aquilo a que se chama o mundo
humano que, durante muito tempo, se recusaria a admitir que
os princípios, mesmo fundamentais, de um fossem também os do
outro. Daí a tendência geral em colocar os homens e as sociedades
fora da natureza, a fazer das ciências da vida humana, quer indivi­
dual quer social, ciências à parte, sem semelhanças com as ciências
físicas, mesmo as mais avançadas. Quer isto dizer que não se viam
nelas ciências propriamente ditas, mas especulações indecisas, onde
o encadeamento dos factos encobria sempre contingências obscuras,
onde a descrição literária era preferida à análise metódica. Para
triunfar desse obstáculo, seria preciso perder o preconceito dua-
lista; e o único meio para isso consistia em adquirir e atribuir um
sentimento vivo da unidade do saber humano.
No fim do século passado, estas condições poderíam parecer
preenchidas. O desmoronamento do antigo sistema social, ao pro­
vocar a reflexão em busca dum remédio para os males de que a
sociedade padecia, incitava-o por isso mesmo a aplicar-se às coisas
colectivas. Por outro lado, a unidade da ciência já não estava por
descobrir, visto que o empreendimento dos enciclopedistas tinha
precisamente por objectivo proclamá-la. Assim, assistimos logo a

105
tentativas que, evidentemente, inspiravam o obscuro sentimento
da ciência que estava por criar. Foram Montesquieu e Condorcet
que pareceram ter tido mais claramente consciência da lacuna e que
fizeram o esforço mais notável para a preencher. Mas nem um nem
outro conseguiu abordar o problema em toda a sua extensão. Eles
bem sentiam que a sucessão dos fenômenos sociais apresentavam
uma certa ordem, mas não tinham desta ordem, da sua natureza,
dos processos mais aptos para a descobrir, uma concepção bem defi­
nida. Assim limitaram-se a formular, a propósito dos factos sociais,
opiniões engenhosas ou originais, não procurando criar uma disci­
plina inteiramente nova, pelo menos pelos seus princípios e pelo
seu método. Os seus ensaios ficaram brilhantes obras pessoais, mas
não podiam servir de ponto de partida para uma tradição científica.
Certamente que as preocupações práticas da época perturbavam
demasiadamente os espíritos para lhes permitir o sangue-frio e a
serenidade sem os quais não há sábios. A verdade é que, a partir
do momento em que a tempestade revolucionária passou, consti­
tuiu-se, como que por encanto, a noção de ciência social.

É a Saint-Simon que cabe a honra de ter sido o primeiro a apli-


car a sua fórmula.
Foi a fé que ele tinha na omnipotência da ciência que lhe ins­
pirou a sua concepção. Partindo da ideia de que a perturbação que
atingia as sociedades europeias resultava, antes de mais, do seu
estado de desorganização intelectual, entregou-se à tarefa de pôr
termo a isso, substituindo o sistema de idéias sobre que repousava
o antigo regime, e que a Revolução Francesa arruinara definitiva­
mente, por um sistema novo que estivesse em harmonia com a nova
ordem das coisas; e considerou como evidente que só às ciências,
fonte de toda a verdade, poderíam ser pedidos os elementos. Mas,
para um tal empreendimento, não eram as ciências da natureza que
poderíam fornecer a contribuição mais util. Para refazer uma cons­
ciência nas sociedades, são estas que importa, antes de tudo, conhe-

106
cer. Ora, esta ciência das sociedades, a mais indispensável de todas,
não existia; era necessário, portanto, num interesse prático, fun­
dá-la sem demora. Espírito criador e aventuroso, desejoso de em­
pregar as suas faculdades inventivas e os entusiasmos do seu gê­
nio a qualquer pedra filosofal, Saint-Simon foi, qual Cristóvão
Colombo, naturalmente seduzido pela ideia de descobrir um mundo
desconhecido e de o conquistar para a ciência.
A esta ciência nova ele dá um nome novo: fisiologia social.
Tem por objecto os organismos sociais considerados na sucessão
do seu futuro e, com isso, ela se distingue nitidamente da fisiologia
comum ou especial, conforme a expressão de que se serve, que ape­
nas respeita os organismos individuais. Porque, para Saint-Simon,
a sociedade não é «uma simples aglomeração de seres vivos cujas
acções não têm outra causa que o arbítrio das vontades indivi­
duais»; é «um verdadeiro ser cuja existência é mais ou menos vigo­
rosa ou vacilante conforme os seus órgãos desempenham mais ou
menos regularmente as funções que lhe são confiadas» '. Portanto,
a fisiologia social paira «por cima dos indivíduos, que, para ela,
mais não são que órgãos do corpo social cujas funções orgânicas
ela deve estudar, como a fisiologia especial estuda a dos indiví­
duos» 2.
Mas se, no entanto, as sociedades humanas constituem reali­
dades originais e sui generis, não deixam de estar submetidas ao
mesmo determinismo que o resto da natureza. Há particularmente
uma lei que domina o seu desenvolvimento com a mesma necessi­
dade que a lei da gravitação domina o mundo físico-químico: é a
lei do progresso. «Para ela os homens mais não são que instrumen­
tos. Não será mais fácil subtrairmo-nos à sua influência ou dominar
a sua acção do que mudar a nosso bel-prazer o impulso primitivo
que faz girar o nosso planeta à volta do Sol3.» Chegar a formular
esta lei, de modo a obedecer-lhe ao compreender a marcha que ela
nos prescreve, eis o grande objectivo da fisiologia social. Para o
conseguir ser-nos-á necessário proceder como para as ciências natu­
rais, isto é, observar. Dado que esta lei não é obra nossa, não é

1 Phisiologic Social, t. X das Obras Completas, p. 177.


2 Ibidem.
3 Organisateur, t. IV, p. 119.

107
interrogando-nos que poderemos alguma vez descobri-la, mas inter­
rogando os factos que a manifestam. A fisiologia social deverá
ter, portanto, um carácter rigorosamente positivo; as questões de
política devem vir a ser «tratadas pelo mesmo método e da mesma
maneira que se tratam hoje as relativas aos outros fenômenos» ’.
É uma ciência de observação. É elaborando séries de factos histó­
ricos, tão vastos quanto possível, que chegaremos a aperceber-nos
do sentido para que a humanidade evolui. O método da nova ciên­
cia será, portanto, essencialmente histórico. Somente a história,
para servir este fim, deverá transformar-se e tornar-se científica.
Ora, neste aspecto, ainda não deixou a infância; pura colecção de
factos que nenhuma teoria liga, «não dá aos homens o meio para
deduzir os acontecimentos futuros a partir do passado» 2. Deve
construir-se acima do ponto de vista nacional, que não é mais que
descritivo, e considerar não mais tal ou tal povo em particular, mas
o conjunto da humanidade na sua marcha progressiva e contínua.

Estamos, desta vez, em presença não já de considerações frag­


mentárias sobre este ou aquele aspecto dos fenômenos sociais, mas
duma tentativa com vista a abrir à investigação científica urna
carreira inteiramente nova. Até os dois aspectos essenciais que era
necessário criar e que a ciência passou a ter estavam, a partir daí,
expressamente afirmados. São eles: o seu positivismo e a sua espe­
cificidade. O reino social estava ligado aos outros reinos, conser­
vando embora a sua fisionomia própria. Porém, mais do que tentar
executar este vasto programa, Saint-Simon formulou-o. Nada há na
sua obra que possa ser encarado como um empreendimento metó­
dico para chegar à descoberta desta lei do progresso de que ele
fazia a pedra angular de todo o sistema social. Todos os pontos
de vista que expõe sobre o assunto estão extremamente disper­
sos; são intuições rápidas, muito imperfeitamente coordenadas, não
acompanhadas de qualquer prova regular. Só com Auguste Comte
é que o grande projecto concebido por Saint-Simon começa a tor­
nar-se realidade.

1 Science de Vhotnme, t. XI, p. 187.


2 Ibidem.

108
Num certo sentido pode dizer-:■se que todas as idéias fundamen-
tais da sociologia de Comte se encontravam já em Saint-Simon.
Mas Comte não se limitou a deixar entrever o modo como elas
podiam servir de base a toda uma ciência; ele quis construir essa
mesma ciência. Definiu-lhe o método e constituiu o seu enqua-
dramento. Enquanto, até então, apenas aparecia como uma nebu­
losa muito confusa no seio da qual não se distinguiam ainda as
diversas partes, ele introduziu-lhe divisões úteis que, em parte,
viriam a sobreviver-lhe. São constituídas desde logo duas grandes
secções que estando estreitamente ligadas exigem no entanto que
sejam tratadas separadamente: a estática e a dinâmica. A estática
social tem por objecto as relações de conexão que ligam os diversos
elementos dum só e mesmo elemento social uns aos outros, obser­
vada numa fase determinada da sua evolução; a dinâmica procura
segundo que lei a sucessão das sociedades humanas, que constitui
a humanidade, tem evoluído através dos tempos. Comte não se
satisfaz com traçar este plano da ciência; empreende a obra colos­
sal de a executar integralmente apenas com as suas forças. Sobre
a estática, não faz mais que indicar os problemas e esboçar as solu­
ções, mas cm relação à dinâmica, deixou-nos um tratado completo
e, na sua opinião, definitivo: são-lhe consagrados os dois últimos
volumes do Cours de pbilosophie social.
Que resta hoje desta doutrina? É verdade que lhe vislumbra­
mos bem poucos princípios que pudessem ser integralmente man­
tidos pela ciência actual; talvez seja no capítulo pouco conhecido,
sobre a estática, que se encontram as mais sugestivas. Mas, quanto
à famosa lei dos três estados, que domina todo o sistema, já não
é defensável presentemente. Comte não dispunha, aliás, de conhe­
cimentos suficientes para tratar um problema duma tal amplitude.
E mais: os termos nos quais Comte pôs o problema tornavam-
-no insolúvel. Efectivamente, Comte propõe-se determinar a lei
segundo a qual se processa o desenvolvimento, não das sociedades,
mas da sociedade humana em geral. Ele raciocina como se a huma­
nidade constituísse um todo realizado, como se o gênero humano,
na sua totalidade, fosse uma única e mesma sociedade que se desen­
volve sempre no mesmo sentido, segundo uma marcha rectilínea.
Mas, de facto, a humanidade não é mais que um ser racional, um
termo genérico que designa o conjunto das sociedades humanas.
São as tribos, as nações, os estados particulares, as únicas e verda-

109
deiras realidades históricas de que a ciência social deve e pode
ocupar-se. São estas diversas individualidades colectivas que nas­
cem e que morrem, que progridem e retrocedem, e a evolução
do gênero humano não é mais do que o sistema complexo destas
evoluções particulares. Ora, é preciso que elas se façam todas na
mesma direcção e que se reúnam exactamente como os segmentos
de uma mesma recta. A humanidade comprometeu-se simultanea­
mente em vias diferentes e, por consequência, uma doutrina que
apresenta como princípio procurar sempre, e por toda a parte, um
só e mesmo fim, repousa sobre um postulado radicalmente errado.
Mas, pelo facto de as conclusões positivas a que Comte chegou
só muito raramente poderem ser mantidas, a grandeza da sua obra
não é menos incontestável. Resta, na verdade, que ele foi o pri­
meiro a ter feito um esforço contínuo e metódico para constituir
a ciência positiva das sociedades. Saint-Simon tinha, sem dúvida,
entrevisto muito nitidamente que ela era possível e algumas das
características que devia apresentar. Mas uma coisa é afirmar a
possibilidade de uma ciência, outra coisa empreendê-la. O melhor
meio de fazer ceder as resistências que se opõem à constituição
duma ciência nova é tentá-lo resolutamente. Uma vez que ela é,
por muito imperfeita que seja, absolutamente necessária, tem já
um começo de vida; e esta demonstração pelo facto testemunha
mais a favor da sua vitalidade que todos os raciocínios dialécticos.
E isto é que é o difícil; porque o acto verdadeiramente criador con­
siste não em emitir belas idéias para deleite da inteligência, mas
em se apoderar delas para as fecundar, pondo-as em contacto com
as coisas, coordenando-as, baseando-as num princípio de demons­
tração, de forma a torná-las, ao mesmo tempo, logicamente assimi­
láveis e controláveis por outrem. Eis o que Comte fez pela ciência
social; foi graças a ele que esta se tornou um factor da vida cientí­
fica. Eis porque é justo que Comte seja considerado o pai e que
o nome de sociologia, que ele deu à ciência renascida, lhe esteja
definitivamente ligado. Acrescentai a isto que através de toda a sua
doutrina, no meio de muitos erros, perpassa um sentimento muito
vivo do que é a realidade social, daquilo que tem propriamente
de característico, do estado de espírito em que é preciso estar-se
para abordar o seu estudo; assim a leitura dos três últimos volu­
mes do Cours de philosophie positive constitui, a nosso ver, a

110
melhor das iniciações ao estudo da sociologia. Sem dúvida, para
compreender bem Comte, é necessário recuar até Saint-Simon; mas
o que quer que Comte deva a seu mestre ele mantém-se, para nós,
o mestre por excelência.

II

É um facto digno de nota que uma tal obra tenha ficado sem
continuação imediata. O movimento que começara com Saint-Simon
acabou, pelo menos provisoriamente, com Auguste Comte e o Cours
de pbilosophie positive. Nem mesmo Comte, nem os seus discí­
pulos lhe acrescentaram grande coisa. As preocupações práticas e
políticas entre eles tornaram-se predominantes, em detrimento das
preocupações científicas, e, aliás, a partir do momento em que o
mestre morreu, toda a actividade intelectual cessou. Assim, a socio­
logia, acabada de nascer, desapareceu do horizonte e o eclipse não
duraria menos de trinta anos.
Como a maior parte deste tempo corresponde ao Segundo Impé­
rio, poderiamos ser levados a crer que foi o despotismo imperial
que levantou obstáculos ao progresso da ciência. Mas não se com­
preende como procedimentos puramente administrativos pudessem
ter uma tal influência sobre o espírito dos sábios. Aliás, o abran­
damento da actividade propriamente sociológica é anterior ao impé­
rio, pois o último volume do Cours é de 1842. A origem desta
interrupção, que é, na realidade, um recuo, deve portanto ser pro­
curada noutro lado. É preciso admitir que as causas profundas, que
tinham dado origem à sociologia, e que só elas podiam manter viva,
tinham acabado por perder a sua força. Durante os primeiros anos
da Restauração verificou-se um verdadeiro ímpeto de entusiasmo
racionalista. Era só da razão, isto é da ciência, que se esperava os
meios de refazer a organização moral do país. Foi desta efervescên­
cia intelectualista que resultaram, simultaneamente, o saint-simo-
nismo, o fourierismo, o comtismo e a sociologia. Mas, desde os
começos da monarquia de Julho, toda esta agitação parece em vias
de se acalmar. Dir-se-ia que o prazer da reflexão, sobretudo apli­
cado às coisas sociais, tende cada vez mais a perder-se. Produziu-se

111
uma espécie de entorpecimento mental, que os acontecimentos
de 1848 mal interromperam. A Revolução de 1848 não é verda­
deiramente senão um último eco, necessariamente débil, do grande
movimento intelectual que ilustrara a primeira parte do século.
É isso que explica que tivéssemos tão depressa e tão facilmente
razão.
A verdade é que, durante este longo período de entorpeci­
mento, uma só obra aparece que pode ser considerada, sob certos
aspectos, como uma contribuição sociológica: é a de Cournot. Em
Essai sur le fondement de nos connaissances, Cournot trata, com
efeito, do método histórico e o que ele nos diz pode aplicar-se
à sociologia; por outro lado, todo o segundo volume de Enchaíne-
ment des idées fondamentales é dedicado ao estudo do meio social.
Mas o objectivo de Cournot não foi criar ou fazer progredir uma
nova ciência; propunha-se somente coordenar conjuntamente as
noções que as ciências existentes lhe forneciam. Ele pede à his­
tória, à linguística, à economia política os elementos duma filoso­
fia da história e não procura sobrepor a estas diferentes disciplinas
uma disciplina nova que as envolva, as domine e as transforme
conduzindo-as à unidade. Estas considerações filosóficas não podiam
evidentemente bastar para reatar a tradição sociológica. Todavia,
a curiosidade estava tão pouco desperta nessa direcção que não
despertaram a atenção e não tiveram sequer a influência sugestiva
que teriam podido e deveríam exercer.

III

Foi só depois da guerra que ocorreu esse despertar. O abalo


produzido pelos acontecimentos foi o estimulante que reanimou
os espíritos. O país encontrava-se face ao mesmo problema do
começo do século. A organização, aliás de fachada, que constituía
o sistema imperial, acabava de se desmoronar;
< tratava-se de refa-
zer uma outra, ou antes, de fazer: uma que pudesse subsistir doutra
forma, que não por artifícios administrativos, isto é, que fosse ver­
dadeiramente fundada na natureza das coisas. Por isto, foi neces-

112
sário saber o que se entendia por essa natureza das coisas; por
consequência, a urgência duma ciência das sociedades não tardou
a fazer-se sentir.
Enquanto o ímpeto da sociologia foi travado no país onde nas­
cera, veio a prosseguir, não sem brilho, na Inglaterra. Na base da
sociologia comtista, como na de toda a sociologia, encontrava-se
o princípio de que as sociedades são seres naturais, e não máqui­
nas criadas pelos homens segundo um plano preconcebido. Mas,
para Comte, foi um postulado da ciência que dispensava qualquer
demonstração. Ele afirmava que as sociedades fazem parte da natu­
reza, sem mostrar como elas se ligam às outras coisas naturais.
É esta ligação que Spencer acreditou fazer aproximando a organi­
zação social da organização viva e fazendo assim das sociedades
uma espécie do gênero organismo. Na verdade, é ponto assente
hoje que a comparação nada tem de rigoroso nem de específico;
entre o reino biológico e o reino social, as diferenças são tão mar­
cantes como as semelhanças. Entretanto, a aproximação tinha a
vantagem provisória de melhor fazer sentir tudo o que há de espon­
tâneo na vida social e que ela resulta de causas internas, como toda
a espécie de vida, e não de impulsos exteriores e mecânicos. Tão
contestada e tão pouco precisa que seja esta representação, podia
portanto utilmente servir de guia às investigações iniciais da ciên­
cia, e a desembaraçar-nos da concepção artificialista que assedia
ainda tão obstinadamente os espíritos.
Foi por intermédio de Espinas que a ideia foi introduzida em
França. O seu livro Sociétés animales tende, com efeito, antes de
tudo, a deixar-nos a impressão de que as sociedades nascem, vivem,
morrem, organizando-se à maneira dos animais, que a sociologia
é um ramo da biologia. Mas Espinas, aprofundando o pensamento
de Spencer, impulsionou-o e determinou-o num sentido psicológico.
Se as sociedades são organismos, elas distinguem-se dos organismos
puramente físicos por serem essencialmente consciências. Nada são
se não constituem sistemas de representações. Por conseguinte não
caracterizámos suficientemente as sociedades quando dissemos delas
que eram seres vivos; é preciso acrescentar que «são consciências
vivas, organismos de idéias». Na verdade, a sociologia mergulha
as suas raízes na biologia, mas diferencia-se desta a partir do mo­
mento em que é ela própria, na medida em que a representação
se diferencia do movimento mecânico. A consciência da sociedade

113
não é, aliás, duma outra natureza que não é a do indivíduo. Esta
é, também, produzida por uma coalescência de consciências elemen­
tares, de representações ou impressões que se concentram num eu
mais ou menos definido; é um «todo de coalisão» como a consciên-
cia social. Toda a diferença é que a distinção dos elementos inte-
grantes é mais aparente na sociedade do que no indivíduo; mas
é igualmente real nos dois casos. O eu individual é, de facto, um
nós-, o que permite compreender que o nós social possa ser consi­
derado como um eu. A sociologia e a psicologia aparecem assim
como dois ramos oriundos da mesma cepa, a biologia, divergindo
a partir dum certo ponto, mas conservando no seu desenvolvi­
mento uma espécie de paralelismo. São, por um e outro lado, repre­
sentações, emoções, impulsos que se agrupam e se organizam. Desta
forma, o objecto da sociologia encontrava-se mais bem determinado
do que pelas analogias biológicas com as quais se contentava Spen-
cer. Porque as sociedades não podem ser comparadas aos seres
vivos senão na medida em que são seres organizados; ora, a orga­
nização não é mais do que o quadro exterior da vida social. Impor­
tava portanto darmo-nos uma representação daquilo que consti­
tui o seu conteúdo. Ê esta representação que nos oferece Espinas
quando nos aponta na sociedade uma organização de idéias. Sem
dúvida, quando ele assimila esta organização à que observamos nos
indivíduos, limita justamente os reparos que lhe dirigia Fouillée,
de ignorar as diferenças que separam estas duas classes de factos.
Mas esta assimilação, se não a tomarmos à letra, servia pelo menos
para tornar sensível tudo o que tem de real a vida da sociedade,
de tal maneira ela lembra a vida do indivíduo, e a mostrar de que
natureza é essa realidade: ela é de ordem psíquica e o objecto essen­
cial da sociologia consiste em procurar como se formam e se com­
binam as representações colectivas.
A noção de sociologia ia-se assim confirmando e determinando
cada vez mais. Não obstante, é impossível não sentir quanto eram
ainda esquemáticas e muito gerais todas essas concepções da reali­
dade social. Todas as comparações possíveis entre os organismos
e as sociedades, entre as consciências individuais e as consciências
colectivas, não saberíam, por si só, propor-nos a mais pequena lei.
São procedimentos preparatórios que as ciências empregam util­
mente no seu período heróico, mas das quais devem, em seguida,
desembaraçar-se. Até então, os sociólogos reduziam a ciência a uma

114
só e única questão que foi considerada como englobando todas as
outras, questão do progresso, da evolução, questão de saber com
que seres mais se assemelhavam os seres sociais, etc. Era tempo
de entrar mais directamente em linha de conta com os factos, de
adquirir ao seu contacto o sentimento da sua diversidade e da sua
especificidade, a fim de diferenciar os próprios problemas, de os
determinar e de lhes aplicar um método que fosse imediatamente
apropriado à natureza especial das coisas colectivas.
Foi a esta tarefa que tivemos a ambição de nos dedicar. Em vez
de tratar a sociologia in genere, circunscrevemo-nos metodicamente
numa ordem de factos nitidamente delimitados: salvo as excursões
necessárias nos domínios limítrofes daquele que exploramos, ape­
nas nos ocupámos das regras jurídicas ou morais, estudadas quer
no seu devir ou na sua gênese 1 por intermédio da história e da
etnografia comparadas, quer no seu funcionamento por meio da
estatística 2. Mesmo neste círculo circunscrito dedicámo-nos a pro­
blemas cada vez mais restritos. Numa palavra, esforçámo-nos por
abrir, no que respeita à sociologia em França, aquilo a que Comte
chamaria a era da especialidade.
Esta especialização era tanto mais indispensável quanto, uma
vez o caminho aberto, se constituíram, fora do campo da sociologia,
disciplinas especiais, algumas das quais já anteriores, e que tinham
empreendido o conhecimento de diferentes ordens de fenômenos
sociais: a história comparada do direito, das religiões, a demogra-
fia, a economia política. Porque estas investigações se encontravam
assim subtraídas à influência sociológica, faltava-lhes em grande
parte o seu objecto. Porque, perdendo por isso mesmo de vista
o que faz a natureza própria dos fenômenos que elas tratavam,
isto é, o seu carácter social, estudavam-nos sem saber donde vinham
ou para onde iam, de que meios dependiam, e, deixando-os assim
suspensos no vazio, deixavam-nos também sem explicação. Isto
porque não podemos compreendê-los se os dissociarmos dos meios
colectivos no seio dos quais se elaboram e se exprimem. Aliás, a
própria noção de lei estava muitas vezes ausente destes trabalhos

1 Ver o nosso livro Divisioti du Iravail social; nos nossos cursos inéditos
estudamos, segundo o mesmo ponto de vista, o crime, a pena, a responsabilidade,
a família. Sobre este último assunto publicámos alguns estudos isolados. Ver nomea­
damente «La prohibition de 1’inceste», in Année Sociologique, t. I.
1 Ver o nosso Le suicide, Paris, 1897.

115
que competiam mais à literatura e à erudição do que à ciência.
O conjunto dos estudos relativos aos fenômenos sociais apresenta-
va-se-nos, deste modo, sob o seguinte aspecto: dum lado, uma
quantidade bastante incoerente de ciências ou de semiciências que,
tendo embora o mesmo objecto, ignoravam o seu parentesco, a uni­
dade profunda dos factos que estudavam e não reflectiam senão
vagamente o racionalismo; de outro, a sociologia que tinha cons­
ciência desta unidade, mas que vagueava demasiado acima dos fac­
tos para ter qualquer acção sobre o modo como eles eram estuda­
dos. Portanto, a reforma mais urgente era trazer a ideia sociológica
a estas técnicas especiais e, por isto mesmo, de as transformar
fazendo delas verdadeiramente ciências sociais. Era nesta condição
que ela podia deixar de ser uma metafísica abstracta, e os traba­
lhos dos especialistas monografias sem laços entre si e sem valor
explicativo ’.
Mas a estas investigações definidas era indispensável um me­
todo que estivesse em relação com a complexidade das coisas das
quais era preciso fazer a ciência. Os processos muito gerais a que
Comte se limitou para tratar o problema muito geral que se punha
não eram suficientes para resolver estas questões particulares; tra­
ziam, aliás, a marca dos erros que viciam a sua sociologia. Por todas
estas razões, o problema metodológico exigia que fosse examinado
de novo; era também o melhor meio de submeter à crítica um certo
número de preconceitos que se opõem ao progresso da nossa ciên­
cia. É neste espírito que redigimos Règles de la méthode sociolo-
gique. Na verdade, a lógica duma ciência não tem valor se o lógico
que a ela se dedica não praticou essa ciência; nada mais fútil que
as dissertações abstractas destes filósofos que legislam diariamente
sobre o método sociológico, sem jamais entrarem em linha de conta
com os factos sociais. Assim, foi somente depois de termos ensaiado
num certo número de estudos suficientemente variados que ousá­
mos traduzir em preceitos a técnica que utilizámos. O método que
expusemos mais não é que o resumo da nossa prática.
Quanto a este método, se abstrairmos as regras de pormenor,
resume-se em duas proposições:

1 Este ponto de vista encontra-se particularmente desenvolvido cm Année socio-


logique, t. I, II e III.

116
1. ° Os factos sociais são sui generis-, eles têm uma natureza
própria. Existe verdadeiramente um reino social, tão distinto do
reino físico quanto este do reino biológico, e este último, por sua
vez, do reino mineral. Sem dúvida que a vida colectiva não é feita
senão de representações, e as representações colectivas, por seu
lado, não são feitas senão de representações individuais, pois que
os indivíduos são a única matéria da sociedade. Mas as primeiras
apresentam caracteres específicos que as segundas não possuem. As
sínteses de que resultam são sínteses químicas que libertam pro­
priedades das quais jamais teríamos suspeitado a existência se os
elementos que as constituem tivessem permanecido isolados uns
dos outros. As consciências particulares, unindo-se, agindo e rea­
gindo umas sobre as outras, fundindo-se, dão origem a uma reali­
dade nova que é a consciência da sociedade. A mentalidade dos
grupos não é a dos seres particulares, precisamente porque a pri­
meira pressupõe uma pluralidade de espíritos particulares, combi­
nados entre si. Uma colectividade tem as suas formas específicas
de pensar e de sentir, às quais os seus membros se sujeitam, mas
que diferem daquelas que eles praticariam se fossem abandonados
a si mesmos. Jamais o indivíduo, por si só, poderia ter constituído
o que quer que fosse que se assemelhasse à ideia dos deuses, aos
mitos e aos dogmas das religiões, à ideia do dever e da disciplina
moral, etc. E o que nos mostra bem que todas estas crenças e estas
práticas não são o simples prolongamento de idéias individuais,
é que elas estão investidas dum ascendente em virtude do qual se
impõem ao indivíduo: prova que não derivam dele, mas vêm duma
fonte que lhe é exterior e superior. Eis porque fizemos deste ascen­
dente a característica dos fenômenos sociais. O método para os
estudar não deve, portanto, ser o decalque de qualquer outro mé­
todo científico. Deve ser estritamente sociológico-,
2. ° Mas, por isto mesmo, deve ser objectivo. Os factos sociais
devem ser estudados de fora, tal como os outros fenômenos da
natureza. O ponto de vista antropocêntrico não se fundamenta me­
lhor na sociologia do que nas outras ciências naturais. Quando se
acreditava que a evolução social era apenas a realização progressiva
de certas noções que cada homem traz em si (noção de humanidade,
como pensava Com te, noção da cooperação, como diz Spencer), para
fazer a ciência bastava debruçar-se sobre si mesmo, tomar cons­
ciência deste conceito fundamental e tirar dele por dedução tudo

117
o que continha. Deste ponto de vista a consideração dos factos não
tinha senão uma importância secundária; podiam servir para ilus­
trar o raciocínio, mas não constituíam o essencial da prova. Porém,
se os fenômenos sociais não são obra do indivíduo isolado, se resul­
tam de combinações em que ele sem dúvida participa, mas nas
quais entram muitos outros factores além dele, para saber em que
consistem estas sínteses e quais são os seus efeitos, é para fora
do indivíduo que o sábio deve olhar, pois é fora dele que as com­
binações têm lugar. Ele deve encarar esses acontecimentos com o
mesmo estado de espírito do físico ou do químico face aos fenô­
menos físico-químicos, isto é, ele deve considerá-los não a expres­
são de idéias ou de sentimentos individuais, mas como o produto
de forças desconhecidas, cuja natureza e modo de composição se
trata precisamente de determinar. Neste sentido, por conseguinte,
o método é naturalista, pois que prescreve ao sociólogo a atitude
mental que é de regra nas ciências naturais. Mas não é naturalista
no sentido vulgar da palavra, pois não tende a rcabsorver o reino
social nos outros reinos da natureza mas, e pelo contrário, exige
que se lhe deixe toda a sua originalidade. O naturalismo que ele
pratica é essencialmente sociológico.

IV

Todas as doutrinas precedentes são como momentos duma


mesma evolução. Com efeito, todas procedem de um mesmo pensa­
mento, todas se limitam a constatar que os fenômenos sociais são
naturais, quer dizer, racionais tal como os outros fenômenos do uni­
verso — pelo que é preciso simplesmente compreender que estão
ligados uns aos outros segundo relações definidas, chamadas leis
Ao mesmo tempo, todos os sábios de que acabamos de falar tinham
a sensação de que, para chegar à descoberta destas leis, era preciso
praticar um método positivo, isto é, substituir os procedimentos
sumários da dialéctica ideológica pela observação paciente dos fac­
tos. Resta-nos falar de uma obra que, pela sua orientação, contrasta

118
com todas as precedentes e que, num certo sentido, constitui uma
espécie de reacção científica. É a obra de Tarde.
Sem dúvida, em presença dos resultados aos quais a história
comparada das instituições chegou presentemente, já se não pode
negar pura e simplesmente a possibilidade de um estudo científico
das sociedades; Tarde entende, ele próprio, construir uma sociolo­
gia. Simplesmente, concebe-a de tal modo que deixa de ser uma
ciência propriamente dita para se tornar uma forma muito parti­
cular de especulação, onde a imaginação desempenha o papel pre­
ponderante, onde o pensamento não é considerado como subor­
dinado às obrigações regulares da prova nem ao controle dos factos.
Actualmente, já não se pode contestar que não haja uma certa
ordem nos fenômenos sociais; mas considera-se essa ordem de tal
forma contingente, dá-se uma importância tal ao acidente inin­
teligível, que o espírito mal tem ligação com uma realidade tão
indecisa, isto é, tão pouco real, e que os conceitos distintos não
parecem poder servir para exprimir uma matéria tão inconstante
e inconsistente.
Para Tarde, com efeito, todos os factos sociais são o produto
de invenções individuais, propagadas por imitação. Toda a crença
como toda a prática teriam por origem uma ideia original, saída
de qualquer cérebro individual. Produzir-se-iam diariamente milha­
res de invenções deste gênero. Somente, enquanto a maior parte
aborta, algumas há que têm êxito; elas são adoptadas pelos outros
membros da sociedade, quer seja porque lhes parecem úteis, quer
seja porque o seu autor está investido duma autoridade particular
que se comunica a tudo o que provém dele. Uma vez genera­
lizada, a invenção deixa de ser um fenômeno individual para se
transformar num fenômeno colectivo. Ora, não existe ciência das
invenções, tal como Tarde as concebe; pois elas só são possí­
veis graças aos inventores, e o inventor, o gênio, é o «acidente
supremo», puro produto do acaso. Enquanto os dois elementos
da fecundação «se encontrarem sem se terem adivinhado ou sina­
lizado à distância, enquanto se associarem sem se terem inteligen­
temente escolhido, e, enquanto, deste acasalamento cego e fortuito,
nascerem singularidades individuais de que algumas serão geniais,
fontes de descobertas e de invenções... enquanto assim for, poder-

119
-se-á dizer que a função do acidental em sociologia é considerável
e incomparável» *.
Evidentemente, uma vez conhecido o talento, podem-se pro­
curar quais são as causas que nele favorecem as combinações men­
tais de que resultam as idéias novas, e é certamente a isso que
Tarde chama as leis da invenção. Mas o factor essencial de qual­
quer novidade é o próprio gênio, a sua natureza criadora, e ela
é produto de causas fortuitas. Por um lado, visto ser nele que se
encontra a fonte misteriosa do «rio social», o acidente está por­
tanto na base dos fenômenos sociais. Não há necessidade absoluta
que tal crença ou tal instituição só apareçam em determinado mo­
mento da história e em determinado meio social; consoante o acaso
faz nascer o inovador mais tarde ou mais cedo, a mesma ideia leva
séculos a germinar ou rebenta de uma vez. Há assim toda uma
categoria de invenções que se podem suceder numa ordem qual­
quer, são as que não se contradizem, mas que, pelo contrário, se
entreajudam. Elas «bem podem aparecer muitas vezes numa ordem
mais ou menos idêntica em dois países diferentes e sem comunica­
ções, a sua sucessão numa ordem inversa continua a ser possível
e admissível» (p. 181). Seria sem dúvida «um erro pensar que cias
se sucedem sem nenhuma ordem»; mas é igualmente errado que
«elas fiquem sujeitas a uma ordem invariável, e até a uma única
ordem normal». Fiel ao seu princípio, Tarde consagrou inteira­
mente o seu livro Transformations du droit a demonstrar que
efectivamente a evolução jurídica tinha revelado os acontecimen­
tos mais imprevistos. Contrariamente aos ensinamentos da história
comparada do direito, ele tentou estabelecer que a família, por
exemplo, tanto poderia ter começado pela promiscuidade corno
pela monogamia, que a filiação uterina não era uma fase necessária
do desenvolvimento histórico, etc. Assim, a noção de lei, que
Comte tinha finalmente conseguido introduzir na esfera dos fenô­
menos sociais e que os seus sucessores se tinham esforçado por pre­
cisar e consolidar, aparece aqui como que obscurecida e velada;
e a imaginação, por ser projectada nas coisas, passa a ser admitida
ao pensamento.

1 Logique sociale, pp. 166-167.

120
V

Esta análise dos sistemas é necessariamente incompleta; limi-


tamo-nos àqueles que nos pareceram representar uma fase mais
ou menos importante do desenvolvimento sociológico. Ignoramos
obras que pelo menos são importantes pelas suas dimensões mate­
riais, como a de M. Létourneau. Os numerosos trabalhos que ele
publicou sobre a evolução da família, do direito, da propriedade,
da educação, da literatura, etc., atestam sem dúvida um traba­
lho assíduo, onde frequentemente se podem encontrar informações
úteis. Mas os factos são confusamente acumulados, sem método e,
mais ainda, sem crítica; servem concepções muito simplistas e deste
modo todo este trabalho não exerceu uma influência sensível sobre
O pensamento contemporâneo. Por outras razões, também não nos
debruçamos sobre Lapouge e a antropo-sociologia. Primeiramente
poder-nos-íamos interrogar se esta escola tem efectivamente lugar
numa história dos progressos da sociologia, uma vez que o seu
olbjectivo é integrar esta ciência na antropologia. Além disso, as
bases científicas em que este sistema se apoia são muito suspeitas,
como Manouvrier acaba dc demonstrar '.
Mas ainda que completado, o quadro das doutrinas daria ape­
nas uma ideia insuficiente daquilo em que, nestes últimos anos,
a actividade sociológica se tornou em França. Seja em volta destas
teorias, seja sobre questões conexas, realizaram-se os mais diversos
debates que suscitaram numerosos livros, artigos que não podemos
estudar aqui. Contentamo-nos em referir os trabalhos de MM. Du-
mont sobre o despovoamento-, Richard, sobre a origem da ideia
do direito-, Worms, sobre organismo e sociedade-, Coste, sobre a
sociologia objectiva-, Bouglé, sobre as idéias igualitárias-, Bernès,
sobre o método sociológico, etc. Aliás, presentemente a produção
é estimulada pela curiosidade geral que estas investigações susci­
tam. Enquanto, há menos de quinze anos, a palavra sociologia

1 Se quanto a Le Play e ao seu sistema nada dissemos foi porque as preocupa­


ções aí expressas são mais práticas do que teóricas e porque, de resto, o postulado
fundamental é um preconceito religioso. Uma doutrina cujo axioma é a superiori­
dade do Pentateuco nada tem de uma ciência. Sinalizemos no entanto uma recente
tendência da escola para a investigação mais propriamente científica. É esta ten­
dência que Science sociale, de Demolins, representa.

121
quase não era utilizada e o assunto era alvo de uma espécie de des­
crédito, hoje, a palavra está na boca de toda a gente, faz-se mesmo
uma utilização abusiva e a coisa tornou-se popular. Temos os olhos
fixos nesta nova ciência e dela esperamos muito. Produziu-se assim,
no final do século, um movimento intelectual, perfeitamente aná­
logo ao que constatamos no início, e que, de resto, depende das
mesmas causas. Podemos certamente concluir, não sem razão, que
a vida que entretanto se desenvolveu é muito agitada e não deixa
de ter lamentáveis desperdícios de forças. Mas, enfim, é a vida.
Que ela se discipline e se regulamente, que os ânimos assim des­
pertos, em vez de se consumirem sem método, se agrupem e se
organizem, que cada um meta mãos a uma tarefa definida, c é-nos
permitido esperar que este movimento figurará na história das
idéias em geral e da sociologia em particular.
De resto, tudo predestina a França a desempenhar um impor­
tante papel no futuro desenvolvimento desta ciência. Houve efec-
tivamente duas razões que determinaram o seu aparecimento e que
são, por conseguinte, de natureza a favorecer os seus progressos.
Estes são, primeiramente, um enfraquecimento suficientemente vin­
cado do tradicionalismo. Sempre que as tradições religiosas, políti­
cas e jurídicas guardaram a sua rigidez e a sua autoridade, mantêm
todas as veleidades de transformação e, por isso mesmo, previnem
o despertar da reflexão; quando se é ensinado a acreditar que as
coisas devem permanecer no estado em que estão, não há razão
para nos perguntarmos o que elas deveriam ser, nem, por conse­
guinte, o que elas são. O segundo factor é o que poderiamos cha­
mar o estado de espírito racionalista. É preciso ter fé na força
da razão para ousar submeter às suas leis esta esfera de factos
sociais onde os acontecimentos, pela sua complexidade, parecem
esbarrar nas fórmulas da ciência. Ora a França é a que melhor
preenche estas duas condições. Ela é, entre todos os países da Eu­
ropa, aquele onde a velha organização social foi mais completa­
mente desenraizada; fizemos tábua rasa e, sobre o solo assim posto
a nu, é necessário erguer todas as peças de um edifício inteiramente
novo, empreendimento de que sentimos a urgência há já um sé­
culo, mas que, permanentemente anunciado e adiado, não vai mais
adiantado hoje que nos tempos que se seguiram à Revolução. Por
outro lado, somos e permanecemos, faça-se o que se fizer, o pais
de Descartes: temos uma irresistível necessidade de reduzir as coi-

122
sas a noções definidas. O cartesianismo é sem dúvida uma forma
arcaica e estreita do racionalismo e não nos devemos limitar a ele.
Mas, se é importante ultrapassá-lo, é ainda mais importante conser­
var o princípio. Devemos utilizar maneiras de pensar mais com­
plexas, mas guardar este culto das idéias distintas, que é a própria
raiz do espírito francês, como a base de qualquer ciência.
No entanto, se a esperança é legítima, o perigo é grande. Atra­
vessamos um período particularmente crítico. Porque se espera
muito da nossa ciência, se ela falta às suas promessas perderá o
crédito. Se esta agitação continua estéril, a opinião pública não tar­
dará a aborrecer-se e refugiar-se-á no repouso; e veremos reprodu­
zir-se a calma intelectual que desonrou o meio do século e que seria
um desastre para a razão. É verdade que nunca se impõe à ciência
um longo silêncio; mais cedo ou mais tarde ela acaba por ter a
última palavra. Mas por mais passageiras que sejam as derrotas,
é necessário fazer tudo para as evitar; pois elas são pelo menos
inúteis percas de tempo. Uma reacção científica pode adiar proble­
mas; mas, como ela não os resolve, vem sempre um momento em
que eles novamente se levantam e é preciso recomeçar tudo.
I
3

SOCIOLOGIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

1. HISTÓRICO

uando se trata de uma ciência nova corno a sociologia, que,


nascida ontem, ainda se está a constituir, a melhor maneira
de explicar a sua natureza, objecto e método é descrever
sumariamente a sua gênese.
A palavra sociologia foi criada por Auguste Comte para desig­
nar a ciência das sociedades Se a palavra era nova é porque a
própria coisa era nova; era necessário um neologismo. Num sentido
muito lato, pode certamente dizer-se que a especulação sobre as
coisas políticas c sociais começou antes do século xix: A República,
de Platão, A Política, de Aristóteles, os incontáveis tratados de que
estas duas obras foram o modelo, os de Campanella, de Hobbes,
de Rousseau e de tantos outros já tratavam destes assuntos. Mas
estes diferentes estudos diferiam por um traço essencial daqueles
que a palavra sociologia designa. Pretendiam, efectivamente, não
descrever e explicar as sociedades tal como são ou tal como foram,
mas procurar o que as sociedades devem ser, como se devem orga­
nizar para serem tão perfeitas quanto possível. O objectivo do so­
ciólogo é totalmente diferente; ele estuda as sociedades simples­
mente para as conhecer e para as compreender, tal como o físico,
o químico, o biólogo fazem para os fenômenos físicos, químicos e

1 A palavra, formada de uma palavra latina e de uma grega associadas, tem


um carácter híbrido que os puristas muitas vezes denunciaram. Mas, apesar desta
formação viciosa, conquistou hoje lugar em todas as línguas europeias.

125

i
biológicos. A sua função é unicamente determinar correctamente
os factos que estuda, descobrir as leis segundo as quais eles se pro­
duzem, deixando aos outros a tarefa de encontrar, se for o caso,
as aplicações possíveis das propostas que ele estabelece.
Quer dizer que a sociologia não podia aparecer antes de se ter
adquirido o sentimento de que as sociedades, como o resto do
mundo, estão submetidas a leis que derivam necessariamente da sua
natureza e que a exprimem. Ora, esta concepção formou-se muito
lentamente. Durante séculos, os homens acreditaram que mesmo
os minerais não eram regidos por leis definidas, mas que podiam
tomar todas as formas e todas as propriedades possíveis desde que
a isso se aplicasse uma vontade suficientemente forte. Acreditava-
-se que certas fórmulas ou certos gestos tinham a virtude de trans­
formar um corpo bruto num ser vivo, um homem num animal ou
numa planta, e inversamente. Esta ilusão, para a qual temos uma
inclinação instintiva, devia naturalmente persistir mais tempo no
campo dos factos sociais.
Efectivamente, como eles são muito mais complexos, a ordem
que apresentam é muito mais difícil de apreender e, por conse­
guinte, é-se levado a acreditar que tudo se passa de uma maneira
contingente e mais ou menos desordenada. À primeira vista, que
contraste entre o seguimento simples e rigoroso em que decorrem
os fenômenos do universo físico e o aspecto caótico, caprichoso
e desconcertante dos acontecimentos que a história regista! Por
outro lado, o próprio facto de nós neles participarmos, inclinava-
-nos a pensar que, sendo através de nós, eles dependiam exclusiva­
mente de nós e podiam ser aquilo que nós quiséssemos que fossem.
Nestas condições, era impossível observá-los porque nada eram em
si mesmos e tudo o que tinham de real dependia unicamente da
nossa vontade. Nesta perspectiva, a única questão que se podia
levantar era saber, não o que eles eram e segundo que leis proce­
diam, mas o que nós podíamos e devíamos desejar que fossem.
É apenas no final do século xvin que se começa a antever que
o reino social tem as suas leis próprias tal como os outros reinos
da natureza. Montesquieu, afirmando que «as leis são as relações
necessárias que derivam da natureza das coisas», queria dizer que
esta excelente definição de lei natural se aplicava às coisas sociais

126
como às outras; e o seu livro Esprit des lois tinha precisamente
por objectivo mostrar como as instituições jurídicas são baseadas
na natureza dos homens e no seu meio. Pouco depois, Condorcet
pretendia encontrar a ordem segundo a qual os progressos da huma­
nidade se tinham realizado *; era a melhor maneira de explicar que
eles nada tinham de fortuito, de caprichoso, mas dependiam de cau­
sas determinadas. Ao mesmo tempo, os economistas mostravam
que os factos da vida industrial e comercial são governados por
leis que eles próprios pensavam ter descoberto.
No entanto, e apesar de estes diferentes pensadores terem pre­
parado o caminho à concepção cm que a sociologia se baseia, tinham
ainda apenas uma noção muito ambígua e incerta do que são as leis
da vida social. Efectivamente, eles não queriam dizer que os factos
sociais se ligam uns aos outros segundo relações de causa e efeito,
definidas e invariáveis, as quais o cientista procura observar atra­
vés de processos análogos aos que são utilizados nas ciências da
natureza. Eles apenas entendiam que, dada a natureza do homem,
havia uma única via traçada que era a única natural e que a huma­
nidade devia seguir se ela pretendia estar de acordo consigo mesma
e cumprir os setts destinos', mas ficava a possibilidade de ela se
afastar.
E de facto considerava-se que lhe estava sempre a acontecer
afastar-se devido a deploráveis aberrações que, de resto, ninguém
se preocupava muito em explicar. Para os economistas, por exem­
plo, a verdadeira organização econômica, a única que a ciência tem
de conhecer, nunca, a bem dizer, existiu; é mais ideal que real;
pois os homens, por influência dos seus governantes e devido a
uma verdadeira cegueira, ter-se-iam deixado desviar. Isto significa
que a construíam dedutivamente mais do que a observavam; vol-
ta-sc assim, embora de um modo indirecto, às concepções que esta­
vam na base das teorias políticas de Platão ou de Aristóteles.
Só no início do século xix, primeiro com Saint-Simon2 e sobre-

1 Em Tablcau des progrès de 1'esprit humain.


1 Principais obras de Saint-Simon relativamente à ciência social: Mémoirc sur
la Science de 1’bontme, 1813; L'induslrie, 1816-1817; L'organisateur, 1819; Dii sys-
tème industriei, 1821-1822; Catéchisme des industrieis, 1822-1824; De la physio-
logie appliquée aux antéliorations socialcs.

127
tudo com Auguste Comte, seu discípulo, nasce definitivamente uma
nova concepção.
Procedendo, no seu Cours de philosophie positive, à revisão
sintética de todas as ciências constituídas no seu tempo, ele cons­
tata que todas se baseavam neste axioma de que os factos de que
tratam estão ligados segundo relações necessárias, ou seja, no prin­
cípio determinista; donde conclui que este princípio, que tinha sido
verificado em todos os outros reinos da natureza, desde o reino
das grandezas matemáticas ao reino da vida, devia ser igualmente
verdadeiro para o reino social. As próprias resistências que hoje se
opõem a esta nova extensão da ideia determinista não devem para­
lisar o filósofo; pois elas produziram-se regularmente sempre que
foi questão de estender a um novo reino este postulado fundamen­
tal e saíram sempre vencidas. Houve um tempo em que até se
recusava admiti-lo no mundo dos corpos brutos onde acabou por
se instalar. Negaram-no em seguida aos seres vivos c pensantes;
a sua existência é hoje incontestada.
Podemos estar seguros que os mesmos preconceitos com que
ele esbarra, quando se trata de o aplicar ao mundo social, duram
pouco tempo. Aliás, uma vez que Comte afirmava como verdade
evidente — verdade que, de resto, é hoje incontestada — que a
vida mental do indivíduo está submetida a leis necessárias, porque
é que as acções e reacções que se trocam entre as consciências indi­
viduais, quando associadas, não estariam igualmente submetidas à
mesma necessidade?
Deste ponto de vista, as sociedades deixavam de ser uma espé­
cie de matéria indefinidamente maleável e plástica, que os homens
podem, a bem dizer, modelar à sua vontade; tornava-se então ne­
cessário compreender as realidades, cuja natureza se impõe e que
não podem ser modificadas, como todas as coisas naturais, con­
forme as leis que as regem. As instituições dos povos não podiam
mais ser consideradas como o produto da vontade, mais ou menos
bem esclarecida, dos príncipes, dos homens de Estado ou dos legis­
ladores, mas como resultantes necessárias de causas determinadas
que as implicavam fisicamente. Dada a maneira como um povo está
constituído em determinado momento da sua história e o estado
da sua civilização nessa mesma época, resulta uma organização

128
social, caracterizada de tal ou tal maneira, assim como as proprie­
dades de um corpo resultam da sua constituição molecular. Esta­
mos assim perante uma ordem de coisas estável, imutável e uma
ciência pura torna-se ao mesmo tempo possível e necessária para
a descrever e explicar, para dizer quais as suas características e as
causas de que dependem. Esta ciência, puramente especulativa, é a
sociologia. Para melhor mostrar as relações que ela mantém com
as outras ciências positivas, Comte chama-lhe física social.
Houve quem dissesse que esta maneira de ver implicava uma
espécie de fatalismo. Se a rede dos factos sociais é uma trama tão
sólida e tão resistente, isso não implica que os homens são inca­
pazes de a modificar e que, por conseguinte, não podem agir sobre
a sua própria história? Mas o exemplo do que se passou nos outros
reinos da natureza mostra como esta acusação é injustificada. Houve
tempo em que, como acima lembrámos, o espírito humano ignorava
que o universo físico tivesse as suas leis. Terá sido nessa altura que
o homem teve maior domínio sobre as coisas? O feiticeiro e o
mágico pensavam certamente poder, pela sua vontade, transmutar
os corpos de uns nos dos outros; mas o poder que eles assim se
atribuíam era, sabemo-lo hoje, puramente imaginário. Pelo contrá­
rio, desde que as ciências positivas da natureza se constituíram
(e, também elas, se constituíram tomando por base o postulado
determinista), quantas transformações não introduzimos já no uni­
verso! Com o reino social será a mesma coisa. Até ontem, acreditá-
vamos que tudo era arbitrário, contingente, que os legisladores ou
os reis podiam, tal como os alquimistas de outrora, modificar a seu
bel-prazer a face das sociedades, fazê-las passar de um tipo para
outro. Na verdade, estes pretensos milagres eram ilusórios; e quan­
tos graves equívocos esta ilusão, ainda tão espalhada, terá gerado?
Pelo contrário, é a sociologia que, descobrindo as leis da realidade
social, nos permitirá dirigir mais reflectidamente do que no pas­
sado a evolução histórica; pois nós não podemos modificar a natu­
reza, moral ou física, senão de acordo com as suas leis. Os pro-
gressos da arte política seguirão os da ciência social, tal como as
descobertas da fisiologia e da anatomia ajudaram ao aperfeiçoa-
mento da arte médica, tal como a força da indústria se centuplicou
desde que a mecânica e as ciências físico-químicas íse desenvol-
veram. As ciências, ao mesmo tempo que afirmam a necessidade

129
5 - A Ciência Social c a Acção
das coisas, £orneccm-nos os meios de a dominar Comte £az notar
insistentemente que, de todos os fenômenos naturais, os fenômenos
sociais são os mais maleáveis, os mais acessíveis às variações, às
transformações, porque são os mais complexos. A sociologia não
impõe portanto ao homem uma atitude passivamente conservadora;
pelo contrário, ela estende o campo da nossa acção pelo simples
facto de estender o campo da nossa ciência. Ela apenas nos desvia
das iniciativas irreflectidas e estéreis, inspiradas pela crença de que
nos é possível transformar, como quisermos, a ordem social, sem
ter em conta os hábitos, as tradições e a constituição mental do
homem e das sociedades.
Mas, por essencial que seja este princípio, não é suficiente para
fundamentar a sociologia. Para que houvesse matéria para uma
nova ciência, assim chamada, era ainda preciso que o objecto que
ela pretendia estudar não se confundisse com nenhum dos que tra­
tam as outras ciências. Ora, à primeira vista, pode parecer que a
sociologia é indistinta da psicologia; e houve efectivamente quem
defendesse esta tese, em particular Tarde2. A sociedade, diz-se, não
é mais do que os indivíduos que a compõem; eles são tudo o que
ela tem de real. Como poderia então distinguir-se a ciência das
sociedades da ciência dos indivíduos, ou seja, da psicologia?
A raciocinar assim poderiamos igualmente defender que a bio­
logia é apenas um capítulo da física e da química, pois a célula viva
é exclusivamente composta por átomos de carbono, de azoto, etc.,
de que se ocupam as ciências físico-químicas. Mas é esquecer que
um todo tem frequentemente propriedades muito diferentes daque­
las que possuem as partes que o constituem. Se na célula há apenas
elementos minerais, estes, combinando-se de determinada maneira,
mostram propriedades que não têm quando não assim combinados,
e que são característicos da vida (propriedades de se alimentar e
reproduzir); formam assim, devido à sua síntese, uma realidade

1 Objecta-se que o determinismo sociológico é inconciliável com o livre arbí­


trio. Mas se efectivamente a existência da liberdade implicasse a negação de qual­
quer lei determinada, ela seria um obstáculo insuperável, não só para as ciências
sociais, mas para todas as ciências; na verdade, como as vontades humanas estão
sempre ligadas a movimentos exteriores, ela torna o determinismo igualmente incom­
preensível dentro e fora de nós. No entanto, já ninguém contesta, mesmo entre
os partidários do livre arbítrio, a viabilidade das ciências físicas e naturais. Porque
é que havería de ser diferente com a sociologia?
• Ver em particular o seu livro sobre Uimitation.

130
de um gênero absolutamente novo que é a realidade viva e que
constitui o objecto da biologia. Do mesmo modo, as consciências
individuais, associando-se de uma maneira estável, geram, devido
às relações de troca entre elas, uma nova vida, muito diferente
daquela de que elas seriam o teatro se tivessem permanecido isola­
das umas das outras; é a vida social. As instituições e as crenças
religiosas, as instituições políticas, jurídicas, morais, econômicas,
numa palavra, tudo o que constitui a civilização, não existiriam se
não houvesse sociedade.
Efectivamente, a civilização supõe uma cooperação não só entre
todos os membros de uma mesma sociedade, mas ainda de todas
as sociedades que estão em relação umas com as outras. Além disso,
ela só é possível se os resultados obtidos por uma geração se trans­
mitem à geração seguinte de maneira a poder acumular-se com
aqueles que esta última obtiver. Mas para isso é preciso que as
gerações sucessivas, à medida que atingem a idade adulta, não se
separem umas das outras, mas guardem um contacto próximo, quer
dizer, que se associem de uma maneira permanente. Eis aqui um
vasto conjunto de coisas que só existem porque há associações
humanas e que variam segundo aquilo que estas associações são,
segundo a maneira como elas se organizam. Encontrando a sua
explicação imediata 1 na natureza, não dos indivíduos, mas das so­
ciedades, estas coisas constituem portanto matéria para uma ciên­
cia nova, distinta da psicologia individual, embora em relação com
esta última: é a sociologia.
Comte não se contenta em estabelecer estes dois princípios
teoricamente; procurou pô-los em prática e, pela primeira vez, ten­
tou fazer uma sociologia. É a isto que se dedicam os três últimos
volumes do Cours de philosophie positive. Do pormenor da sua
obra não resta hoje grande coisa. Os conhecimentos históricos e
sobretudo etnográficos eram ainda demasiado rudimentares na sua
altura para oferecerem às induções do sociólogo uma base sufi­
cientemente sólida. Para mais, como adiante veremos, Comte não
estava consciente da multiplicidade dos problemas que a nova ciên-

1 Sem dúvida, a natureza das sociedades é em grande parte devida à natureza


dos homens cm geral; mas a explicação directa, imediata dos factos sociais está na
natureza da sociedade, visto que, de outra maneira, a vida social não teria variado
mais do que os atributos constitutivos da humanidade.

131
cia levantava: ele pensava poder fazê-la de uma só vez, como se
faz um sistema de metafísica, enquanto a sociologia, como qual­
quer ciência, só se pode constituir progressivamente, abordando os
problemas uns a seguir aos outros. Mas a ideia era infinitamente
fecunda e sobreviveu para além do fundador do positivismo.
Foi primeiramente retomada por Herbert Spencer '. Depois,
nestes últimos trinta anos, despertou toda uma legião de trabalha­
dores, em quase todos os países, mas mais particularmente em
França, que se dedicaram a estes estudos. A sociologia acaba de
sair da idade heróica. Os princípios nos quais ela se baseia, e que
tinham primeiramente sido afirmados de um modo filosófico e dia-
léctico, recebem agora a confirmação dos factos. Ela supõe que os
fenômenos sociais nada têm de contingente ou de arbitrário. Ora
os sociólogos mostraram que, efectivamente, certas instituições mo­
rais, jurídicas, certas crenças religiosas eram idênticas sempre que
as condições da vida social apresentavam a mesma identidade. Pôde
mesmo verificar-se que os costumes se assemelhavam até nos por­
menores, e isto em países muito distantes uns dos outros e entre
os quais nunca existiu nenhuma espécie de comunicação. Esta notá­
vel uniformidade é a melhor prova que o reino social não escapa
à lei do determinismo universal.

2. AS DIVISÕES DA SOCIOLOGIA
AS CIÊNCIAS SOCIAIS PARTICULARES

Mas se, num certo sentido, a sociologia é uma ciência una, ela
não deixa de compreender uma pluralidade de questões e, por con­
seguinte, de ciências particulares. Vejamos então quais são essas
ciências de que ela é o corpus.
Comte tinha já sentido a necessidade de a dividir: ele distin-
guia duas partes, a estática e a dinâmica sociais. A estática estuda
as sociedades considerando-as fixas a um determinado momento
do seu devir e procura-lhes o equilíbrio. A todo o instante, os indi­
víduos e os grupos que a constituem estão ligados por um certo
tipo de laços que garantem a coesão social, e os diferentes estados
de uma mesma civilização mantêm uns com os outros relações defi-

1 Ver Príncipes dc sociologie, tradução francesa.

132
nidas: a tal estado da ciência, por exemplo, corresponde tal estado
da religião, da moral, da arte, da indústria, etc. A estática procura
determinar em que consistem estas relações de solidariedade e estas
conexões. A dinâmica, pelo contrário, considera as sociedades na
sua evolução e esforça-se por descobrir a lei do seu desenvolvi­
mento. Mas o objectivo da estática, tal como Comte o entendia
e como se deduz da definição que acaba de ser dada, é muito pouco
estudado: a definição ocupa apenas algumas páginas do Cours de
philosopbie. A dinâmica ocupa o restante espaço. Ora, o problema
que a dinâmica trata é único: segundo Comte, uma única e mesma
lei domina o processo de evolução; é a famosa lei dos três esta­
dos *. Procurar esta lei, eis o único objectivo da dinâmica social.
Sendo assim, a sociologia reduzir-se-ia portanto a uma única ques­
tão, de maneira que, no dia em que esta questão única fosse resol­
vida — e Comte pensava ter descoberto a solução definitiva —, a
ciência ficaria constituída. Ora, está na própria natureza das ciên­
cias positivas nunca elas ficarem terminadas. As realidades de que
tratam são demasiado complexas para alguma vez poderem ser esgo­
tadas. Se a sociologia é uma ciência positiva, é garantido que ela
não depende de um só problema, mas compreende, pelo contrário,
partes diferentes, ciências distintas que correspondem aos diversos
aspectos da vida social.
Há, na realidade, tantos ramos da sociologia e tantas ciências
sociais particulares quantas as diferentes espécies de factos sociais.
Uma classificação metódica dos factos sociais seria prematura e.
de qualquer modo, não poderia ser aqui elaborada. Mas é possível
indicar quais as principais categorias.
Primeiro, há que estudar a sociedade no seu aspecto exterior.
Considerada sob esta perspectiva, ela surge como que constituída
por uma massa de população, de uma certa densidade, disposta
de determinada maneira num território, dispersa nos campos ou
concentrada nas cidades, etc.: ocupa um território mais ou menos
extenso, situado de determinada maneira em relação aos mares e
aos territórios dos povos vizinhos, mais ou menos atravessado por
cursos de água e por diferentes vias de comunicação que estabe-

1 É a lei cm virtude da qual a humanidade teria sucessivamente passado e


devia necessariamente passar por três idades: a idade teológica, a idade metafísica
c, por fim, a idade da ciência positiva.

133
lecem contacto, mais ou menos íntimo, entre os habitantes. Este
território, as suas dimensões, a sua configuração e a composição
da população que se movimenta na sua sujiperfície são naturalmente
factores importantes da vida social; é o seu substrato e, assim como
no indivíduo, a vida psíquica varia consoante a composição
i anató-
mica do cérebro que lhe está na base, assim os; fenômenos colec-
tivos variam segundo a constituição do substrato social. Justifica-
-se portanto o espaço de uma ciência social que faça a anatomia
da sociedade; e visto que esta ciência tem por objecto a forma
exterior e material da sociedade, propomos chamar-lhe morfologia
social. A morfologia social não se deve limitar a uma análise descri­
tiva; deve igualmente explicar. Deve procurar saber porque é que
a população se acumula em certos pontos mais do que noutros,
porque é que ela é principalmente urbana ou principalmente rural,
quais as causas que determinam ou travam o desenvolvimento das
grandes cidades, etc. Verificamos que esta ciência especial tem uma
quantidade indefinida de problemas a tratar '.
Mas ao lado do substrato da vida colectiva, existe essa mesma
vida. Reencontramos aqui uma distinção análoga àquela que se veri­
fica nas outras ciências da natureza. Ao lado da química que estuda
a maneira como os minérios são constituídos, há a física que tem
por matéria variadíssimos fenômenos de que os corpos assim cons­
tituídos são o teatro. Em biologia, enquanto a anatomia (tam­
bém chamada morfologia) analisa a estrutura dos seres vivos e o
modo de composição dos seus tecidos, a fisiologia estuda as fun­
ções destes tecidos e destes órgãos. Do mesmo modo, ao lado da
morfologia social há lugar para uma fisiologia social que estuda as
manifestações vitais das sociedades.
Mas a fisiologia social é já em si muito complexa e compreende
uma pluralidade de ciências particulares; pois os fenômenos sociais,
de ordem fisiológica, são em si muito variados.
Temos em primeiro lugar as crenças, as práticas e as institui-
ções religiosas. A ciência é efectivamente uma coisa social visto ter
sempre sido coisa de um grupo, isto é, de uma igreja, e que até,
na grande generalidade dos casos, a igreja e a sociedade política

1 Aquilo a que os Alemães chamam Anthropogcographie está relacionado com


o que nós chamamos morfologia social (v. os trabalhos de Ratzcl na Alemanha e
os de Vidal de la Blache em França).

134
se confundem. Até há muito pouco tempo, ser-se fiel a tais divin­
dades, e só por isso, era ser-se cidadão de tal estado. Em todo o
caso, os dogmas e os mitos sempre consistiram sistemas de crenças
comuns a toda uma colectividade e obrigatórios para todos os mem­
bros dessa mesma colectividade. Com os ritos é a mesma coisa.
O estudo da religião compete portanto à sociologia: ela constitui
o objecto da sociologia religiosa.
As idéias morais e os costumes formam uma outra categoria,
distinta da precedente. Veremos num outro capítulo como é que
as regras da moral são fenômenos sociais; eles são o objecto da
sociologia moral.
O caracter social das instituições jurídicas não tem necessidade
de ser demonstrado. São estudadas pela sociologia jurídica. Esta
está de resto em estreita relação com a sociologia moral, pois as
idéias morais são a alma do direito. O que constitui a autoridade
de um código é a ideia moral que ele encarna e que ele traduz em
normas definidas.
Temos por fim as instituições econômicas: instituições relativas
à produção das riquezas (servidão, arrendamento, regime corpora­
tivo, empresa patronal, regime cooperativo, produção em fábrica,
em manufactura, etc.), instituições relativas à troca (organização
comercial, mercados, bolsas, etc.) e instituições relativas à distri­
buição (renda, interesses, salários, etc.). Elas constituem matéria
da sociologia econômica.
São estes os principais ramos da sociologia. Não quer dizer que
sejam os únicos. A linguagem, que, de certa maneira, depende das
condições orgânicas, é no entanto um fenômeno social; pois tam­
bém ela é sempre obra de um grupo que a caracteriza. A linguagem
é, em geral, um dos elementos característicos da fisionomia das
sociedades e não é sem razão que o parentesco das línguas é muitas
vezes empregado para estabelecer o parentesco dos povos. Há por­
tanto matéria para um estudo sociológico da linguagem que, de
resto, já foi iniciado *. O mesmo se pode dizer da estética; pois,
embora cada artista (poeta, orador, escultor, pintor, etc.) imprima
um cunho próprio às obras que cria, todas as que são realizadas

1 V. os trabalhos de M. Meillet e particularmente a memória publicada


em L'Anníe sociologique (vol. IX) com o título: «Comment les mots changent
de sens».

135
num mesmo meio social e numa mesma época exprimem, sob diver­
sas formas, um mesmo ideal que, por sua vez, está estreitamente
relacionado com o temperamento dos grupos sociais aos quais estas
obras se dirigem.
É verdade que alguns destes factos foram já estudados por dis­
ciplinas há muito constituídas; em particular, os factos econômicos
servem de matéria a esse conjunto de investigações, de análises
e de teorias diversas a que normalmente se chama economia polí­
tica. Mas, como já dissemos, a economia política permaneceu até
hoje um estudo híbrido, intermediário entre a arte e a ciência; está
muito menos interessada em observar a vida industrial e comer­
cial, tal como ela é ou foi, para a conhecer e lhe determinar as leis
do que em reconstruí-la tal como ela deve ser. Os economistas têm
apenas uma leve intuição de que a realidade econômica se impõe
ao observador tal como as realidades físicas, que ela está subme­
tida à mesma necessidade e que, por conseguinte, é preciso fazer
a sua ciência de modo especulativo, antes de pensar em reformá-la.
Além disso, eles estudam os factos de que tratam como se eles
constituíssem um todo independente que se basta a si mesmo e que
se pode explicar por si. Ora, as funções econômicas são na reali-
dade funções sociais, solidárias com outras funções colectivas; e
tornam-se inexplicáveis quando se abstraem violentamente estas
últimas. O salário dos operários não depende unicamente das rela­
ções entre procura e oferta, mas igualmente de certas concepções
morais; ele aumenta ou diminui conforme a ideia que nós fazemos
do bem-estar mínimo que um ser humano pode reivindicar, ou seja,
em definitivo, conforme a ideia que nós fazemos do ser humano.
Poderiamos multiplicar os exemplos. Tornando-se um ramo da so­
ciologia, a ciência econômica será naturalmente arrancada a este
isolamento ao mesmo tempo que se deixará mais penetrar da ideia
do determinismo científico. Por conseguinte, tomando assim lugar
no sistema das ciências sociais, não se limitará a mudar de rótulo;
transformará o espírito que a anima e os métodos que aplica.
Verifica-se através desta análise quanto falta para que a socio­
logia seja uma espécie de ciência muito simples, que se limita, como
pensava Comte, a um único problema. Hoje em dia é impossível
um sociólogo possuir a enciclopédia da sua ciência; mas é neces­
sário que cada cientista se dedique a uma ordem especial de pro­
blemas, se não se quiser contentar com noções muito gerais e vagas,

136
que poderíam ter tido a sua utilidade enquanto a sociologia apenas
procurava explorar o seu domínio e tomar consciência de si mesma,
mas nas quais ela hoje em dia se não deve deter. Isto não quer no
entanto dizer que não haja lugar para uma ciência sintética que se
esforce por reunir as conclusões gerais que se deduzem de todas
estas ciências particulares. Por diferentes que as diversas classes
de factos sociais sejam umas das outras, não passam de espécies
de um mesmo géncro; há portanto que procurar saber o que pro­
voca a unidade do gênero, o que caracteriza o facto social in abs-
tracto e se, além disso, não haverá leis muito gerais, de que as
diversas leis estabelecidas pelas ciências particulares sejam apenas
formas particulares. Tal como a biologia geral, a sociologia geral
tem por objecto extrair as propriedades e as leis mais gerais da sua
vida. É a parte filosófica da ciência. Mas como o valor da síntese
depende do valor das análises de que ela resulta, fazer avançar este
trabalho de análise constitui a tarefa mais urgente da sociologia.
Resumindo, o quadro seguinte representa esquematicamente as
principais divisões da sociologia.

Estudo da base geográfica dos povos nas suas


relações com a organização social.
Morfologia social . Estudo da população, do seu volume, da sua
I densidade e da sua disposição no solo.

Sociologia religiosa.
— moral.
— jurídica.
Fisiologia social — econômica.
— linguística.
— estética.
Sociologia geral

3. O MÉTODO SOCIOLÓGICO

Depois de se ter determinado o domínio da sociologia e as suas


principais subdivisões, é preciso tentar caracterizar os princípios
essenciais do método que é utilizado nesta ciência.
137
Os principais problemas da sociologia consistem em saber qual
a maneira como se constituiu uma instituição política, jurídica,
econômica, religiosa, uma crença, etc., quais as causas que a origi­
naram, quais os fins úteis a que responde. A história comparada,
entendida como tentaremos precisar, é o único instrumento de que
o sociólogo dispõe para resolver este tipo de questões.
Efectivamente, para compreender uma instituição, é necessário
saber de que é que é feita. É um todo complexo, formado de par­
tes: é necessário conhecer estas partes, explicar cada uma delas
separadamente e a maneira como são compostas em conjunto. Para
as descobrir, não basta considerar a instituição sob a sua forma
mais recente; pois, como a ela nos acostumámos, parece-nos sim­
ples. Em todo o caso, nada nela indica onde começam e onde aca­
bam os diversos elementos que a constituem. Não há linha de
demarcação que os separe uns dos outros de maneira visível, tal
como nós não nos apercebemos a olho nu das células de que são
formados os tecidos do ser vivo, as moléculas de que são formados
os corpos brutos. É preciso um instrumento de análise para os fazer
aparecer. É a história que desempenha esse papel. Efectivamente,
a instituição considerada constituiu-se progressivamente, fragmento
por fragmento; as partes que a formam nasceram urnas depois das
outras e acrescentaram-se mais ou menos lentamente umas às ou­
tras; basta portanto seguir a sua gênese no tempo, ou seja, na his­
tória, para ver os diversos elementos de que ela resulta, natural­
mente dissociados. Apresentam-se então ao observador uns a seguir
aos outros, na mesma ordem em que se formaram e associaram.
Nada mais simples, parece, que a noção de parentesco; a história
mostra-nos que ela é de uma extrema complexidade: a ideia de
consanguinidade está presente, mas tem de haver outra coisa, pois
nós encontramos tipos de famílias onde a consanguinidade desem­
penha apenas um papel acessório; o parentesco materno e o paren­
tesco paterno são coisas qualitativamente distintas, que dependem
de causas totalmente diferentes e que exigem, por conseguinte, ser
estudadas separadamente, pois nós não encontramos na história
tipos de família onde um único destes parentescos tenha existido,
excluindo o outro. Numa palavra, a história desempenha, na ordem
das realidades sociais, um papel análogo ao do microscópio na
ordem das realidades físicas.
Além disso, só ela permite explicar. Efectivamente, explicar

138
uma instituição é compreender os diversos elementos que serviram
à sua formação, é mostrar as suas causas e as suas razões de ser.
Mas como descobrir essas causas, senão reportando-se ao momento
em que elas foram operantes, quer dizer, em que elas suscitaram os
factos que procuramos compreender? Pois é apenas nesse momento
que é possível compreender a maneira como elas agiram e as con­
sequências que geraram. Ora, esse momento está atrás de nós.
O único meio de conseguir saber como nasceu cada um destes ele­
mentos é observá-lo no próprio instante em que nasceu e assistir
à sua gênese: ora esta gênese ocorreu no passado e, por conse­
guinte, só pode ser conhecida através da história. Por exemplo,
o parentesco, hoje, é duplo; existe tanto na linha paterna como
na linha materna. Para conhecer as causas determinantes desta
organização complexa, observar-se-á em primeiro lugar as socieda­
des em que o parentesco é essencialmente ou exclusivamente ute­
rino 1 e procurar-se-á descobrir o que o originou; em seguida, con-
siderar-se-ão os povos em que o parentesco agnatício se constituiu:
por fim, como este, quando surge, rejeita muitas vezes o primeiro
para segundo plano, interrogar-se-ão as civilizações em que um e
outro começaram a ser colocados no mesmo plano e procurar-se-á
descobrir as condições que determinaram essa igualdade. É assim
que as questões sociológicas se escalonam, a bem dizer, nas diferen­
tes etapas do passado e é na condição de as situar deste modo, de as
relacionar com os diversos meios históricos em que nasceram, que
é possível resolvê-las.
A sociologia é portanto em grande parte uma espécie de his-
tória entendida de uma certa maneira. Também o historiador trata
dos factos sociais; mas ele considera-os sobretudo pelo que eles
têm de particular a determinado povo ou a determinada época,
É a vida de tal povo ou de tal individualidade colectiva, em tal
momento da sua evolução, que geralmente ele se propõe estudar,
A sua tarefa imediata é de reencontrar e de caracterizar a fisiono-
mia própria, individual, de cada sociedade e até de cada um dos
períodos que uma mesma sociedade compreende. O sociólogo, por
sua vez, preocupa-se unicamente em descobrir relações gerais e leis

1 Entende-se por parentesco uterino aquele que se estabelece exclusivamente


ou essencialmente através das mulheres; parentesco agnatício aquele que se esta­
belece essencialmente ou exclusivamente através dos homens.

139
verificáveis em sociedades diferentes. Não investigará especialmente
o que foi a vida religiosa ou o direito de propriedade em França,
ou em Inglaterra, em Roma ou na índia, em tal ou tal século; mas
estes estudos especiais, que aliás lhe são indispensáveis, apenas
constituem para ele meios de conseguir descobrir alguns factores
da vida religiosa em geral. Ora, nós temos apenas uma forma de
demonstrar que entre dois factos existe uma relação lógica, uma
relação de causalidade por exemplo: é comparar os casos cm que
eles estão simultaneamente presentes ou ausentes e procurar se as
variações que eles apresentam nestas diferentes combinações dc
circunstâncias demonstram que um depende do outro. No fundo,
a experimentação é apenas uma forma de comparação; consiste em
fazer variar um facto, produzindo-o sob formas variadas que são
em seguida metodicamente comparadas. O sociólogo não se pode
portanto limitar à consideração de um único povo e ainda menos
de uma única época; mas terá de comparar sociedades do mesmo
tipo e também de tipos diferentes, para que as variações que a
instituição aí apresentar e a prática que ele quer verificar, relacio­
nadas com as variações que paralelamente se verificam no meio
social, no estado das idéias, etc., permitam compreender as rela­
ções que unem estes dois grupos de factos e estabelecer entre eles
uma qualquer relação de causalidade. O método comparativo é por­
tanto o instrumento, por excelência, do método sociológico. A his­
tória, no sentido usual do termo, está para a sociologia como a
gramática latina ou a gramática grega ou a gramática francesa,
consideradas e tratadas separadamente umas das outras, estão para
a nova ciência que tomou o nome de gramática comparada '.
No entanto, há casos em que a matéria para as comparações
sociológicas deve ser procurada noutra disciplina que não a his-

1 Não temos de explicar aqui quais serão as futuras relações entre a socio­
logia e a história; estamos convencidos que estão destinadas a tornarem-se cada
vez mais íntimas e que virá um dia em que o espírito histórico e o espírito socio­
lógico apenas se diferenciarão no pormenor. Efectivamente, a sociologia só pode
proceder às suas comparações e às suas induções na condição de conhecer perfeita-
mente os factos particulares nos quais elas se apoiam, tal como um historiador
e, por outro lado, a realidade concreta que o historiador estuda mais imediata­
mente pode ser esclarecida pelos resultados das induções sociológicas. Assim, se no
que precede diferenciamos a história da sociologia, não é para cavar entre estas
duas disciplinas um fosso intransponível, visto elas serem chamadas a, pelo con­
trário, se tornarem cada vez mais solidárias; é apenas para caracterizar tão exacta-
mente quanto possível o que o ponto de vista sociológico tem de próprio.

140
tória. Acontece que se procure, não como se formou uma regra
jurídica ou moral ou uma crença religiosa, mas porque é que ela
é mais ou menos bem observada pelas colectividades que a prati­
cam. Por exemplo, em vez de nos perguntarmos de onde vem a
regra que proíbe o homicídio, encarregar-nos-emos de descobrir
as diversas causas que fazem com que os povos e todo o gênero de
grupos tenham mais ou menos tendência para a violar. Do mesmo
modo, poder-nos-emos propor encontrar alguns dos factores que
fazem com que os casamentos sejam mais ou menos frequentes,
mais ou menos precoces, mais ou menos facilmente dissolvidos
pelo divórcio, etc. Para responder a este tipo de questões, é à esta­
tística que nos devemos dirigir. Procuraremos saber como a fre­
quência dos homicídios, dos casamentos, dos divórcios varia con­
forme as sociedades, conforme as confissões religiosas, conforme
as religiões, etc. É essencialmente segundo este método que devem
ser tratados os problemas relativos às diversas condições das quais
depende a moralidade dos povos '. Em sociologia econômica, pode­
mos, utilizando o mesmo processo, estudar em função de que cau­
sas variam os salários, a taxa de lucro, o valor de troca das moe-
das, etc.
Mas, seja qual for a técnica especial a que recorre, há uma regra
que o sociólogo não deve perder de vista: antes de iniciar o estudo
de determinada categoria de fenômenos sociais, ele deve começar
por fazer tábua rasa das noções que pode ter formado ao longo
da sua vida; deve partir do princípio de que nada sabe acerca deles,
das suas características ou das causas de que dependem; numa pala­
vra, é preciso que ele procure encontrar-se no mesmo estado de
espírito em que estão físicos, químicos, fisiólogos e até, actual-
mente, psicólogos, quando se iniciam numa região ainda inexplo­
rada do seu domínio científico.
Infelizmente, esta atitude, por necessária que seja, não é fácil
de observar relativamente à realidade social; somos dificultados
por hábitos inveterados. Porque todos os dias praticamos as regras
da moral e do direito, porque compramos, porque vendemos, por­
que trocamos valores, etc., temos íorçosamente uma ideia quanto
a estas diferentes coisas: se assim não fosse não poderiamos desem-

1 Não confundir moral c moralidade. A moralidade avalia-se pelo modo como


a moral é aplicada. Pode levantar-se a mesma questão rclativamentc à religião.

141
penhar as nossas tarefas quotidianas. Donde uma ilusão perfeita-
mente natural: pensamos compreender com estas idéias o essencial
das coisas a que se referem. O moralista não se preocupa muito
em explicar o que é a família, o parentesco, o poder paterno, o con­
trato, o direito de propriedade; o mesmo se passa com o economista
relativamente ao valor, à troca, ao lucro, etc. Parece que a ciência
é inata em nós; limitamo-nos a tomar consciência, o mais clara­
mente possível, da ideia que correntemente fazemos destas reali­
dades complexas. Ora estas noções, que se formaram sem método
para responder às exigências práticas, não têm qualquer valor cien­
tífico; elas não exprimem mais exactamente as coisas sociais do
que as noções que vulgarmente se tem dos corpos e das suas pro­
priedades, da luz, do som, do calor, etc., não representam exacta­
mente a natureza destes corpos e os seus caracteres objectivos.
O físico e o químico abstraem estas representações usuais e acon­
tece que a realidade, tal como eles no-la revelam, é efectiva e sin­
gularmente diferente daquela que os nossos sentidos imediatamente
percebem. O sociólogo deve proceder da mesma maneira; deve
colocar-se face aos factos sociais esquecendo tudo o que pensa sa­
ber, como face ao desconhecido. A sociologia não deve ser uma
simples ilustração de evidências, aliás enganadoras; ela deve ser
a obreira de descobertas que muitas vezes não podem deixar de
nos desconcertar, atendendo às noções recebidas. Temos uma total
ignorância destas coisas sociais entre as quais nos movimentamos;
é às diferentes ciências sociais que compete a sua progressiva reve­
lação.
SEGUNDA PARTE

SOCIOLOGIA E SOCIALISMO
4. Propriedade social e democracia
(1885) Alfred Fouillée, «A propriedade social e a democra­
cia», Revue philosophique, XIX, pp. 446-453.

5. Os estudos de ciência social


(1886) «Os estudos de ciência social», Revue philosophique,
XX, pp. 61-80.

6. Os princípios de 1789 e a sociologia


(1890) «Os princípios de 1789 e a sociologia», Revue interna-
tionale de 1’enseignement, XIX, pp. 450-456.

7. Sobre a definição de socialismo


(1893) «Nota sobre a definição de socialismo», Revue philo­
sophique, XXXVI, pp. 506-512.

8. Socialismo e ciência social


(1897) Gaston Richard, «O socialismo e a ciência social»,
Revue philosophique, XLIV, pp. 200-205.

9. A concepção materialista da história


(1897) Antônio Labriola, «Ensaios sobre a concepção mate­
rialista da história», Revue philosophique, XLIV, pp.
645-651.

145
II

Ip..
71 4L1RCEE MAUSS escreve na sua introdução ao curso de Dur-
2 H kheim sobre o socialismo: «Sabemos de que problemas ele
partiu. Desde os seus tempos da Escola Normal, por vocação e num
meio animado de querer político e moral, de acordo com Jaurès...,
que ele se dedicou ao estudo da questão social. Ele levantava-a
então um tanto abstracta e filosoficamente sob o titulo: Relações
do individualismo e do socialismo» (SO, p. V). O relatório que,
em 1885, ele apresenta à Revue philosophique da obra de Fouillée,
La propriété sociale et la démocratie, mostra que, jâ na altura em
que ele estabelece o primeiro plano de La division du travail social,
o problema da conciliação do individualismo e do socialismo está
presente no seu espírito. Fouillée, que mais tarde procurará sinte­
tizar a «moral humanitária» da escola sociológica e a «moral literá­
ria» dos anarquistas e do seu genro Guyau (Humanistes et liber-
taires, 1914), pretende, no seu livro de 1884, demonstrar a insu­
ficiência do socialismo e do individualismo exclusivos. Diz no seu
prefácio:
«O socialismo pretende alargar o domínio da propriedade social
para absorver completamente a propriedade individual; o indivi­
dualismo exclusivo pretende, pelo contrário, alargar a propriedade
individual até absorver a propriedade social... Contrariamente a
estes sistemas exclusivistas, esperamos mostrar que os dois modos
de propriedade — individual e colectiva — se devem desenvolver
simultaneamente, sem se destruírem, e que este crescimento pro­
gressivo é a própria condição da verdadeira democracia (p. IX).»

147
Notar-se-á que, no seu relatório, Durkheim contesta a represen­
tação que Fouillée faz de um socialismo sempre e necessariamente
hipercentralizador, referindo-se nomeadamente às concepções de
Schaeffle (texto 4).
As análises reunidas, em 1886, num artigo intitulado «Les étu-
des de Science sociale» (texto 5), são significativas, não só pelo
marcado interesse do jovem Durkheim pelas obras sobre o Estado,
a questão social e o socialismo, mas também pela importância que,
já nessa época, ele concede às crenças religiosas no consensus social:
encontraremos uma interessante convergência entre as propostas
que o quarto volume de Príncipes de sociologie de Spencer encerra
e certas fórmulas da comunicação que ele faz em 1914, por ocasião
de uma sessão consagrada à concepção social da religião (texto 14)
— a idêntica convicção da permanência das crenças religiosas.
Sublinharemos que, através da leitura de Regnard, Durkheim
exprime o desejo da constituição imediata de uma «ciência do Es­
tado» e que o livro de Coste, Burdeau e Arréat lhe permite uma
primeira tomada de posição face à economia política clássica.
Quanto às páginas que ele dedica ao livro Quintessence du socia-
lisme, de Schaeffle, interessam-nos a vários títulos. Em primeiro
lugar, pelo que contam da influência sobre Durkheim deste «socia­
lista de cátedra» que pretendia combinar abordagem econômica e
abordagem sociológica no âmbito de uma hipótese organicista:
o primeiro escrito sociológico que possuímos de Durkheim, alguns
meses anterior ao artigo de Fouillée, é dedicado à obra de Schaeffle,
Bau und Leben des Socialen Kõrpers (Organização e vida do corpo
social) (1885 a). Podemos interrogar-nos, por um lado, em que
medida a tradução do opúsculo, La quintessence du socialisme, que
Benott Malon havia publicado em 1880, não teria sido um dos
primeiros contactos de Durkheim com o pensamento marxista.
O objectivo de Schaeffle tinha sido o de resumir, em 1874, as con­
cepções de Marx e de Lassale de modo a extrair «as consequências
econômicas do socialismo contemporâneo». O revisor da tradução
de Malon, publicada em 1904, escreve, numa nota preliminar, que
este pequeno livro «fez com que, em França, a doutrina colecti-
vista fosse aceite por um grande número de espíritos que foram
conquistados pela forma coerente e científica deste sistema provi­
sório». Schaeffle diz nomeadamente:

148
«Apliquemo-nos antes de mais ao princípio econômico que
forma o núcleo do socialismo... Está fora de dúvida que se trata
aqui de uma questão econômica; é pelo menos, primeiro que tudo,
uma questão de estômago. Esta questão é o produto de uma modi­
ficação fundamental no funcionamento social, fenômeno econômico
resultante da decadência do sistema industrial pequeno-burguês
— e, por conseguinte, o objectivo do movimento socialista é, antes
de mais, urna transformação fundamental do actual sistema econô­
mico. ..
«O alfa e o ómega do socialismo é a transformação da multi-
plicidade concorrente dos capitais privados na unidade do capital
colectivo (pp. 8-23).»
Note-se que Durkheim não adere totalmente a esta forma de
apresentar o socialismo: em Le socialisme, ele põe reservas quanto
à expressão questão de estômago (SO, p. 34) e, por outro lado,
ele sublinha que as aspirações de uma reorganização do corpo social
exprimem valores societais profundos.
Preludiando Note sur la définition du socialisme, o texto sobre
o livro de Ferneuil intitulado «Les Príncipes de 1789 et la Science
sociale» é bem demonstrativo da óptica sob a qual Durkheim pre­
tende abordar as ideologias sociais e políticas. Tal como as doutri­
nas socialistas, os princípios de 1789 não têm em si mesmos qual­
quer valor científico: eles são, antes de mais, aos olhos do sociólogo,
expressão de aspirações ligadas ao estado da sociedade, mesmo que,
efectivamente, eles dirijam a acção histórica dos homens. É assim
que o individualismo, princípio revolucionário, longe de ser iden­
tificável ao individualismo utilitário dos economistas, testemunha
a consciencialização da sociedade quanto aos valores personalistas
que doravante a fundamentam. Assim, «não serão todos os pro-
blemas com que os povos actualmente se debatem resultantes da
nossa dificuldade em adaptar a tradicional estrutura das sociedades
a estas aspirações novas e inconscientes de si mesmas que há um
século as agitam?» (texto 6).
É precisamente referindo tais aspirações que convém definir
sociologicamente o socialismo. A Note (texto 7) precede dois anos
o curso sobre socialismo e foi escrita num contexto polêmico. Gus-
tave Belot, em resposta a um leitor da Revue philosophique, que

149
fazia ver a ambiguidade do termo «socialismo», expunha nos se­
guintes termos a «ideia» que fazia do socialismo:

— do ponto de vista teórico. A ideia de socialismo define-sc


primeiramente pelo seu oposto, o individualismo; trata-se
da antítese do indivíduo e da sociedade. Mas se rapidamente
passa da ideia de sociedade à de Estado, trata-se de saber
de que maneira se passa de uma à outra; é disto que depende
a concepção final do socialismo. «Não vejo que obstáculo se
poderia então opor à ideia de um socialismo onde o Estado
já não fosse, em princípio, um poder exterior que domina
os indivíduos, mas a mais elevada associação desses mesmos
indivíduos... Ele avançaria assim paralelamente ao indivi­
dualismo...» A anarquia (individualismo absoluto) e o esta-
dismo (socialismo absoluto) substituir-se-ia então por um
socialismo cooperativo onde a função do Estado é apelar
para a cooperação social;
-— do ponto de vista histórico. A ideia socialista é sobretudo
liberal em França (Saint-Simon), impregnada de militarismo
e de hegelianismo, na Alemanha;
— do ponto de vista político. É inútil constituir um partido
pacífico, respeitador da lei, mas prático e liberal, de socia­
lismo «cooperativo» e «liberal» (Rev. phil., XXXVT, 1893.
pp. 182-189).

Procurando, em Note sur la définition du socialisme, ao con­


trário da definição subjectivista de Belot, uma definição objecti-
vista, Durkheim caracteriza o socialismo pela tendência para a so­
cialização das forças econômicas, considera-o «implicado na pró­
pria natureza das sociedades superiores», e pensa distingui-lo assim
do «comunismo» que, no sentido estrito da palavra, só é possível
nas sociedades pré-industriais e primitivas.
A análise que, em 1897, ele faz da obra de Gaston Richard,
Le socialisme et la Science sociale, fornece-lhe uma ocasião para
retomar uma critica fundamental que, pouco tempo antes, ele tinha
dirigido a Marx (SO, p. 6). G. Richard tem razão, diz ele, em subli­
nhar «o desnível que existe entre a proposta fundamental do sis­
tema e as observações nas quais ele se apoia». A expressão socia-

150
lismo científico é, aos olhos de Durkheim, contraditória em si
mesma. Só fazendo a «ciência» do socialismo — ao mesmo título
que a ciência do Estado, da moral, da religião, da vida econô­
mica —, a sociologia pode facilitar uma transformação no sentido
das aspirações conformes às necessidades e às condições de exis­
tência da sociedade. Em 1902, Gaston Richard, que tinha sido
seu condiscípulo na Normale Supérieure, sucede-lhe, em Bordéus,
quando ele foi nomeado para a cadeira de Pedagogia, que Ferdi-
nand Buisson ocupava na Sorbona (transformada, quatro anos
mais tarde, em cadeira de Sociologia). Richard, chegado à socio­
logia pelo direito e pela economia, colaborou, durante dez anos,
em Vannée sociologique, antes de, em 1910, se afastar quando
lhe pareceu que Durkheim excedia os dados da ciência na sua evo­
lução para uma «metafísica religiosa da sociedade». Ele próprio
resumiu, num número da Rcvue internationale de sociologie que
lhe era dedicado (V-Vl, 1935), o essencial do livro que Durkheim
comenta:
«Preocupava-me em dissipar um duplo sofisma, o dos economis­
tas qualificados de liberais e que identificavam o direito de pro­
priedade e o respeito pelos contratos com uma competição sem
regras morais, e o das escolas comunistas (Blanqui e Marx) que
identificavam a função normal do capital, a previdência que garante
a continuidade da produção com uma concentração parasitária de
que os dados estatísticos não apresentavam as provas. Concluía pois
uma política reformista incluindo a defesa legal da família operária
e as garantias de uma liberdade de associação capaz de elevar a
dignidade humana no exercício dos trabalhos manuais» (p. 28).
No texto que ele dedica, alguns meses mais tarde, ao livro
de Antonio Labriola intitulado Essais sur la conception matéria-
liste de l’histoire (texto 9), Durkheim toma, pela primeira e única
vez, uma posição nítida sobre um dos pontos fundamentais do
marxismo, o materialismo histórico. Filósofo e socialista, Labriola
(1843-1904) tinha partido de Hegel para chegar a Marx. O seu
livro contém dois ensaios, publicados em Itália, respectivamente
em 1895 e em 1896: En mémoirc du Manifeste du Parti Commu-
niste, Le Matérialisme historique — a tradução de 1897 era prece­
dida por um prefácio de Georges Sorel. Ele procura nomeadamente
afastar o «preconceito verbalista» que vicia o sentido marxista

151
do termo «materialismo», tal como numa interpretação do prefácio
a Critique de 1’économie politique:
«Não se trata de retraduzir em categorias econômicas todas as
manifestações complicadas da história, mas unicamente de explicar
em última instância (Engels) todos os factos históricos por inter­
médio da estrutura econômica subjacente (Marx)» (Essais, p. 120).
O seu comentário insiste no erro de uma interpretação «uni­
tária» do marxismo que o transformaria numa «nova ideologia
ao contrário» (p. 139), enquanto ele se apresenta como um «mé­
todo de investigação e de concepção», um fio condutor, conforme
a expressão de Marx (p. 156). Labriola mostra igualmente como
é que, longe de ser uma doutrina «caída do céu», o materialismo
histórico pode explicar a sua própria origem, e apresentar-se como
preparado pela própria sociedade. A essência do Manifesto está
precisamente na nova concepção da história que o anima: o comu­
nismo encontra, pela primeira vez, a sua expressão na consciência
da sua necessidade.
«O socialismo moderno encontra-se antes de mais na luz que
projecta sobre o movimento proletário, que aliás tinha nascido e se
desenvolve independentemente de qualquer doutrina... O comu­
nismo crítico só nasce no momento em que o movimento proletário
é não só resultado das condições sociais mas encontra já forças
suficientes para compreender que estas condições podem ser modi­
ficadas... Não bastava que o socialismo fosse um resultado da his­
tória como ainda era preciso compreender as causas intrínsecas
desta consequência e onde é que a sua actividade conduzia» (p. 24).
Por fim, Labriola dedica um desenvolvimento bastante longo
às teses de Marx sobre o Estado, mostrando como uma concepcão
materialista da história, longe de o considerar como uma «simples
excrescência», faz dele «algo de muito real», um conjunto de forças
que impõem o equilíbrio pela evidência e pela repressão.
Ao ler hoje a obra de Labriola, chocam-nos os esforços que ele
faz, antes de outros, mas no sentido inverso dos comentadores
guesdistas da época, para destacar o aspecto dialéctico do materia­
lismo histórico e para se distanciar relativamente à interpretação
corrente nessa altura: Labriola rejeita a interpretação segundo a
qual o factor econômico seria o único determinante, estabelece
a noção da acção recíproca da base e da superestrutura, e lembra
que a consciência, sob forma de tomada de consciência, é um mo-

152
mento crucial da evolução que faz do proletariado um agente da
história.
Parece que no entanto Durkheim, nas críticas que, além de a
Labriola, dirige a Marx e ao marxismo, seria menos sensível do
que nós hoje a estes esforços. As suas críticas dirigem-se efecti-
vamente aos seguintes pontos: 19 insuficiência de provas; 2) o subs­
trato do social não é constituído pela infra-estrutura econômica
da sociedade; 39 o materialismo histórico é comparável ao epifenó-
meno da psicofisiologia e recusa autonomia e realidade às represen­
tações colectivas; 49 a religião, não a economia, é o fenômeno social
mais primitivo. Elas revelam claramente a preocupação em se dis­
tinguir de Marx: segundo Mauss (SO, Introdução), ele «obstava
com a acusação de colectivismo que moralistas susceptíveis e vários
economistas clássicos ou cristãos lhe dirigiram a propósito de Divi-
sion du travail social. Devido a este gênero de barulhos, ele era
afastado do ensino em Paris. Por outro lado, entre os seus próprios
estudantes, alguns dos mais brilhantes tinham-se convertido ao
socialismo, mais especialmente marxista. No Cercle d’étudcs socia-
les, alguns comentavam O Capital, de Marx, do mesmo modo como
anteriormente comentavam Spinoza». Compreende-se assim o tom
desta frase em que Durkheim indica que a sua própria tese refe­
rente ao substrato morfológico do social não tem nenhuma relação
e até se opõe à tese marxista sobre a base do desenvolvimento
social.
Mas não será lutar contra um fantasma comparar marxismo e
epifenomenismo? Será que Marx afirma verdadeiramente que a
ideologia é um epifenómeno sem qualquer eficácia? E não será sim­
plesmente opor uma hipótese a outra hipótese substituir a economia
pela religião, enquanto factor «em última análise» preponderante
na história?
4

PROPRIEDADE SOCIAL E DEMOCRACIA

través de todas as revoluções do seu pensamento, Fouillée


manteve-se sempre fiel ao seu método de conciliação Os
opostos têm não sei o quê que atrai este dialéctico requin­
tado cujo espírito vivo não pode estar mais à vontade do que no
meio do conflito dos sistemas. Onde nós apenas vemos doutrinas
contraditórias, entre as quais é decididamente necessário escolher,
Fouillée vê apenas opiniões excessivas, mas que se completam e até
se conciliam. Foi assim que ele combinou sucessivamente, numa
síntese inteligente, o determinismo e a liberdade, o idealismo e o
realismo, a moral de Rousseau e a sociologia moderna. Pretende
hoje reconciliar o individualismo e o socialismo.

1. A propriedade individual não é recomendável unicamente


por razões de interesse; ela tem a sua base racional; é a própria
lei da vida. No indivíduo, é necessário que a célula viva encontre
no alimento a força que despende em movimentos; senão cansa-se
e morre. Do mesmo modo é necessário, sob pena de morrer, que
o trabalho da célula social lhe seja restituído mais tarde ou mais
cedo, sob uma forma equivalente. Assim, se algures existir um
objecto que tenha sido inteiramente criado por um homem, esse
objecto pertence-lhe inteiramente; eis o que se pode conceder ao
individualismo. Mas uma propriedade absoluta, sem reserva e sem
restrição, não fica por isso justificada; pois, unicamente com as

’ Análise crítica da obra de Alfrcd Fouillée, La proprieté socialc et la démo-


cratie, Hachette, 1884.

155
nossas forças, nada podemos criar. Nós apenas produzimos formas
e todos os nossos esforços se aplicam a uma matéria que a natureza
nos fornece. Esses bens não são obra nossa; porque haveriamos nós
de os conservar eternamente? Argumenta-se que as riquezas natu­
rais não têm valor se não forem fecundadas pelo trabalho humano.
Mas que produziría o trabalho humano se ele se consumisse no
nada? De resto é difícil de admitir que uma terra fértil não tenha
nem mais nem menos valor do que uma terra estéril, «um lago
cheio de peixes do que um lago onde os peixes não podem viver».
E mesmo que esta tese excessiva fosse demonstrada, seria ainda
preciso reconhecer que em qualquer produto está incluído, além
do trabalho individual, uma certa quantidade de trabalho social.
Faz-se passar uma grande estrada cm frente da minha casa: o seu
valor duplica imediatamente. Não fiz esforços: apenas tirei partido
do trabalho de outrem. Com que direito? E este facto não foi
escolhido por haver necessidade de provas. Procuremos em nós
próprios aquilo que apenas a nós devemos; as contas depressa se
fazem; a nossa bagagem pessoal não é muito pesada. Reprcsenta-
mo-nos geralmente a pessoa física como uma espécie de ilha ina­
cessível, onde o indivíduo reina em soberano, de onde não sai
senão quando quer, onde só penetramos com a sua autorização.
É por isso que o individualista está tão extremamente empenhado
em defender contra todos os obstáculos esta soberba independên­
cia. Esforços vãos. Enquanto ele se dobra sobre si mesmo para
fugir a toda a influência, o meio em que se movimenta, o ar que
respira, a sociedade que o envolve, tudo isto penetra nele, nele se
imprime, modela-o e forma-o, sem que ele se dê conta, sinta c so­
bretudo sem que ele disso tenha de se queixar; é, pois, assim que
se forma a melhor parte de si mesmo.
Assim, em qualquer propriedade, além da parte do indivíduo,
há a da natureza e a da nação. A economia ortodoxa perde em
ignorar esta colaboração. Mas, por razões análogas, o socialismo
absoluto é igualmente errado. Se o indivíduo não faz tudo, é atra­
vés dele que tudo se faz. Há, sem dúvida, numerosos auxiliares;
ele é no entanto o agente essencial da produção. Esta só é fecunda
se ele for estimulado a produzir. O solo bem poderá ser fértil, o
povo inteligente, a ciência desenvolvida; se nada vier accionar esta
última mas indispensável alavanca, a actividade individual, não se
criará um só átomo de valor e todas estas riquezas da natureza

156
e da inteligência serão como se não existissem. Ora o socialismo
faz da sociedade um exército de funcionários com tratamento mais
ou menos igual. Logo, o trabalhador, deixando de estar directa-
mente interessado na sua tarefa, realizá-la-á apenas mecanicamente.
Pode pcdir-se-lhe contas da exactidão, não do zelo. Absorvido pela
sociedade, sentirá demasiado pouco para ousar ter qualquer inicia­
tiva. Para quê esgotar esforços que se irão perder, anônimos e invi­
síveis, nessa enorme massa que é o Estado? De resto o Estado
é uma máquina demasiado sólida para todas estas operações, tão
delicadas. Como poderia ele adaptar a produção aos mil e um por­
menores da procura? Como poderia ele fixar o valor dos objectos
e a parte que cabe a cada um?
Mas se o Estado não é tudo, não se deve concluir que ele não
é nada. Ele não deve fazer tudo; mas não deve deixar fazer tudo.
Ele tem funções econômicas e obrigações determinadas. Se ele por
si não pode produzir e distribuir a riqueza, pelo menos pode e deve
regular a sua circulação. Ele tem obrigação de fiscalizar a :saúde
social. Ora, em qualquer ser vivo, o equilíbrio das forças e ai justa
proporção das partes é a condição da saúde. É portanto nefasto
que a riqueza abunde aqui para faltar ali e o Estado deve obstar
a essa monstruosa desigualdade. Quais as medidas que então con­
vém tomar? É isto que, segundo as circunstâncias, decidirá a sabe­
doria dos governos. O autor pensa no entanto poder indicar algu­
mas reformas que lhe parecem desde já úteis e práticas. Se não se
pode abolir o rendimento fundiário, pode-se pelo menos reservá-lo
para benefício do Estado, ou seja para toda a gente. As cidades
poderíam comprar o todo ou uma parte dos terrenos em que estão
construídas, o Estado aumentar o seu domínio. Este ager publicus
não poderia ser explorado pela comunidade; mas dividi-lo-iam
em parcelas que se dariam em concessão para cem ou cento e cin­
quenta anos. Ao fim de algumas gerações a sociedade entraria em
poder da sua propriedade, cujo valor teria aumentado e beneficiaria
da mais-valia. Há, efectivamente, um outro rendimento contra o
qual o Estado está mais indefeso, é o do capital. Mas o mal aqui
emenda-se por si próprio; a renda mobiliária tende cada vez mais
a diminuir. Uma melhor repartição do imposto permitiría pois res­
tituir à nação a parte destes benefícios que legitimamente lhe cabe.
Por fim, o Estado aumentaria facilmente os seus rendimentos regu­
lamentando, por uma lei severa, os bens de mão morta e reduzindo

157
aos parentes mais próximos a herança natural .na ausência de testa-
mento.
Esta riqueza colectiva poderia «constituir um fundo de assis-
tência e de seguro universais, uma espécie de lago Moeris que,
depois de cheio, pudesse em caso de necessidade fornecer o neces-
sário». É que, efectivamente, a caridade é para o Estado estrita-
mente um dever de justiça; é uma das cláusulas tácitas do contrato
social. A sociedade só pode exigir o respeito das propriedades
adquiridas se garantir a cada um um meio de existência. Pode-se
objectar, é verdade, que a filantropia se exerce no sentido inverso
à selecção e contraria os seus efeitos salutares. Protege, diz-se, os
fracos e os incapazes, permite-lhes perpetuarem-se e abaixa assim
progressivamente o nível físico e moral da raça. Mas é preciso dis­
tinguir. Não se trata de deixar morrer sem recursos o trabalhador
que uma doença acidental privou das suas forças. Seria portanto
unicamente aos doentes que a sociedade devia recusar a sua piedade.
Ora, eles são bem pouco numerosos, não se casam e, em todo o
caso, não se poderia impedir o seu casamento com obstáculos legais.
A caridade pública não tem portanto graves inconvenientes; em
compensação ela oferece grandes e sérias vantagens. Diminui os
excessos de desigualdades entre os homens; preserva muitas vezes
da morte inteligências preciosas; enfim, e sobretudo, é uma exce­
lente educadora das almas que se abre à simpatia e à piedade.

2. Mas o poder material não é o único em que a multidão quer


ter a sua parte. O poder político constitui uma espécie dc fundo
social de que é preciso regular a distribuição. Este problema tende
cada vez mais a ser solucionado da mesma maneira. A democracia,
com o sufrágio universal que distribui igualmente entre todos o
capital colectivo, tem sempre preferência. As nações são levadas
por uma larga corrente democrática a que seria absurdo querer
resistir. De resto, se consentirmos em não tornar o sufrágio univer­
sal num dogma absoluto, podemos justificá-lo com razões sólidas
e boas. A sociedade é composta de indivíduos livres: o sufrágio
universal permite a vida em comum, sem tocar nesta liberdade.
A sociedade é uma associação, uma espécie de companhia anônima
onde todos os interesses devem ser consultados sob a direcção da
empresa; o sufrágio universal é apenas o exercício deste direito.

158
Por fim, a sociedade é um organismo que, para se dirigir, tem de se
conhecer: o sufrágio universal é o melhor meio de que a nação
dispõe para tomar consciência de si mesma. «Pelo sufrágio univer­
sal, diriamos, todas as células do corpo político são chamadas a
tomar parte na vida intelectual e voluntária; a tornarem-se de certo
modo células conscientes e dirigentes como as do cérebro.» No
momento do voto, o eleitor cumpre uma função: ele representa
toda a nação.
Infelizmente, como tudo o que é relativo, o sufrágio universal
tem muitas antinomias: antinomia entre maioria e minoria; antino­
mia entre quantidade e qualidade dos sufrágios. Só a educação pode
atenuar estes antagonismos. É preciso instruir a maioria para lhe
ensinar a ser modesta e moderada. Para reconciliar o número e a
inteligência, é necessário estender a instrução. Toda a gente poderá
participar sem perigo no poder político, quando cada um tiver a
sua parte desse outro bem colectivo: o capital intelectual.
Só que não se deve perder de vista o objectivo da instrução
pública. Trata-se de formar, não operários para a fábrica ou conta­
bilistas para o comércio, mas cidadãos para a sociedade. O ensino
deve portanto ser essencialmente moralizador; libertar os espíritos
das visões egoístas e dos interesses materiais; substituir a piedade
religiosa por uma espécie de piedade social. Ora, não é nem com
o princípio de Arquimedes nem com a regra de três que alguma
vez poderemos moralizar as multidões. Só a cultura estética pode
agir tão profundamente sobre as almas. Sob a influência da arte,
os espíritos elevam-se, os corações aquecem, sensibilizam-se, tor­
nam-se assim mais permeáveis uns aos outros e portanto mais aptos
à vida comum. Logo, convém, a partir da escola primária, iniciar a
criança no amor do belo. No entanto, esta educação puramente lite­
rária não é, evidentemente, suficiente; é igualmente necessário que
o futuro cidadão esteja apetrechado com noções precisas de polí­
tica e de economia social. No ensino secundário, a instrução deverá
tornar-se mais larga e mais liberal. Em vez desse montão de conhe­
cimentos com que se enche hoje a memória dos alunos, deveriamos
abrir um espaço cada vez maior para a filosofia das ciências, das
artes, da história e, sobretudo, para a filosofia social e política.
Poder-se-ia então criar uma instrução cívica superior. Seria preciso
criar nas nossas faculdades cadeiras para o ensino das ciências so-

159
ciais. Neste aspecto, a Alemanha leva-nos um grande avanço e toda­
via a opinião pública, por ser mais poderosa entre nós, teria maior
necessidade de ser esclarecida.

3. Verificamos por esta exposição a infinita variedade das ques­


tões que são abordadas neste pequeno livro. Todos os problemas
que preocupam hoje a consciência pública são sucessivamente tra­
tados com rara independência. Os economistas da escola ortodoxa
têm pelo seu ideal um culto por vezes supersticioso: a liberdade
tornou-se para eles numa espécie de ídolo, ao qual de boa vontade
sacrificam todo o resto ’. Fouillée não tem esta fé exclusiva. Tem
certamente o maior apreço pela liberdade; mas também considera
que a vida social não seria pior se fosse mais regular e mais bem
equilibrada. Tem enorme confiança na iniciativa individual; mas
parece-lhe que as coisas não iriam pior se se produzisse menos e se
se amasse mais. Ele reconhece que o indivíduo deve pertencer a si
mesmo e dispor de si mesmo; mas ele não esquece que as crianças
têm necessidade de uma educação e de uma disciplina e que os
homens muitas vezes não passam de grandes e terríveis crianças.
Numa palavra, a menos que se conte com a Providência, como
fazia Bastiat, parece-lhe difícil que do jogo espontâneo dos egoís-
mos resulte milagrosamente a harmonia dos interesses.
Já dissemos tudo sobre o encanto que dá aos livros de Fouillée
a sua brilhante dialéctica. Ele não avança um passo sem que surja
um adversário e se trave um combate; algo cintilante como o bri­
lho das espadas passa frente aos nossos olhos; depois tudo termina
com uma reconciliação. Mas este processo não é para o nosso autor
um simples artifício dramático; é, antes de mais, um método cien­
tífico. É, para ele, o melhor meio de evitar as opiniões exclusivas
e os julgamentos absolutos. Efectivamente, o sociólogo descrê sem­
pre das soluções simples; pois não há espírito suficientemente pode­
roso para abraçar com o olhar a infinita complexidade dos aconte­
cimentos sociais. Mas também é preciso não esquecer que a riqueza
dos pormenores, a variedade das formas, a diversidade das cores
nunca excluem a unidade do conjunto. Esta torna-se apenas mais

’ Nos números de Novembro (p. 354) c de Dezembro (p. 535), Le jotirnal


des econontistes, resolvendo vigorosamente uma questão que divide os médicos,
condena as quarentenas em nome da liberdade. É levar muito longe o livre-câmbio.

160
habilidosa quando a realidade se torna mais complexa. Longe de
desaparecer, é nos seres superiores que ela se manifesta mais exu­
berantemente. O que é de temer acima de tudo não são tanto os
princípios absolutos como as idéias áridas e secas, imutáveis como
a rocha, incapazes de viver e de evoluir. Um sistema de pensamento
pretende representar um sistema de coisas; deve portanto ser vivo
como elas; crescer e desenvolver-se como as coisas vivas. E por isso
deve nascer de um germe, ou seja, de uma ideia originalmente sim­
ples, que pouco a pouco se divide, se diferencia, desperta vida em
volta, arrasta no seu turbilhão as idéias e os factos que caem na
sua esfera de acção, organiza-se, constitui-se, até chegar por fim
a um estado de equilíbrio que nunca pode deixar de ser provisório.
De resto é bastante difícil conciliar este eclectismo econômico
e a teoria que Fouillée tão veementemente defendeu em Science
sociale contemporaine. Aí, ele reconheceu o carácter orgânico das
sociedades; logo, ele estaria, ao que parece, logicamente no cami­
nho do socialismo. Spencer nega, efectivamente, que esta conse­
quência resulte da sua doutrina e manteve-se fiel ao velho libera­
lismo inglês, mas isto foi devido a uma contradição que é o vício
radical das suas últimas obras. Para o individualista, a sociedade
é uma reunião de sujeitos autônomos, iguais na sua liberdade, tro­
cando os serviços entre eles, mas sem nunca dependerem uns dos
outros. É portanto uma associação mecânica e não um organismo
vivo. Mas, diz Spencer, o cérebro do animal não intervém na vida
interior, dirige apenas os órgãos de relação. Os socialistas não pre­
tendem mais do que o cérebro da nação, ou seja, o Estado, o go­
verno propriamente dito, a dirigir a produção ou a distribuição
dos valores: eles, apenas pretendem que as grandes funções sociais
sejam unificadas e centralizadas, tal como as funções animais corres­
pondentes. No corpo, há um único sistema digestivo, um único
sistema circulatório. Os glóbulos do sangue não pertencem a algu­
mas células privilegiadas mas a todas indistintamente. O mesmo
devia acontecer com as riquezas, sangue alimentador da sociedade:
Fouillée invoca em vão o carácter consciente e voluntário do orga­
nismo social. Que importa? Também o socialismo será voluntário
e consciente. Só o comunismo autoritário pretende dispensar a refle­
xão e o livre consentimento que substitui pela opressão.
É verdade que Fouillée parece admitir que, por definição, qual­
quer socialismo é despótico, inimigo da liberdade e da iniciativa

161
6 - A Ciência Social c a Acção
individual e, apoiando-se nesta acusação, cita repetidas vezes o
opúsculo de Schaeffle sobre a quinta-essência do socialismo. Mas
não é neste pequeno livro, com fins propagandistas, que se devem
procurar as teorias econômicas de Schaeffle; é no Gesellschaftliches
System der menschlichen Wirtschaft e no terceiro volume do Bau
und Leben des socialen Kòrpers Ora, nesta última obra, Schaeffle
rejeita horrorizado a ideia de uma sociedade em que o Estado aspi­
rasse e absorvesse nele toda a actividade nacional; onde a massa
dos cidadãos não passasse de uma matéria maleável e dócil nas
mãos de um governo todo-poderoso. Tal concepção parece-lhe tão
monstruosa como a de um organismo em que o sangue, para cir­
cular, pedisse instruções ao cérebro; onde o estômago digerisse sob
ordens. Mas isto não é socialismo; é apenas a hipercentralização
administrativa e o próprio Schaeffle denuncia-a, não como um mal
futuro que é preciso prever e prevenir, mas como um mal presente
que precisamos curar. Repete constantemente que a vida colectiva
não poderá ser criada, com todos os seus elementos, por um decreto
que vem de cima; ela é uma resultante, a repercussão num centro
comum, desses milhões de vidas elementares que vibram espalhados
no organismo. Ele pretende coordená-los e não abafá-los. É certo
que no seu sistema o indivíduo não conserva outra propriedade
que a dos meios de consumo: mas ele continua a ser o impulso
essencial da evolução econômica. Revelando as suas necessidades,
que as comissões directivas consciencializam, é ele que regula a
produção. É também ele que escolhe o gênero de trabalho que lhe
agrada. Por fim, é ele ainda que lhe determina o valor. Schaeffle
tenta demonstrar como é que o valor corrente dos produtos pode-
ria variar com as necessidades e seguir as oscilações da procura:
ele pretende resolver assim uma grave questão que o seu opúsculo
deixava suspensa. Não é altura de expor ou de discutir a sua dou-
trina; mas enquanto não tivermos respondido não temos o direito
de dizer que o socialismo foi recusado2.
1 B. u. L., III, pp. 234-547.
2 Numa obra recente sobre o colectivismo, Le colleclivisnie (pp. 340 e 372).
Leroy-Bcaulieu, que também parece só ter lido Quinlessence du socialisme, repete
que Schaeffle levanta o problema sem o resolver; donde conclui que o colectivismo
de Schaeffle é uma burla para uso dos ingênuos. Esta solução, embora válida nou­
tros pontos, o ilustre financeiro tê-la-ia encontrado em Bau und Leben, no lugar
indicado. Nada de espantoso que um homem como Schaeffle, com uma obra
tão considerável, não tenha expressado todo o seu pensamento num in-18 de
110 páginas.

162
Quanto aos remédios que Fouillée propõe, não os consideramos
eficazes. Se a terra é um monopólio, não é tornando-se mais móvel
que modificará a sua natureza. Nem se distribuirá mais equitativa-
mente por circular mais ou menos depressa. Para tal seria neces­
sário preparar mais pessoas a receberem a sua justa parte. Mas,
pelo menos, beneficiará a sociedade das mais-valias? Infelizmente
o rendimento não aumenta de maneira regular. Tem os seus altos
e baixos. Poderá portanto atingir os seus máximos durante o pe­
ríodo das concessões e não será o Estado a beneficiar. No que se
refere ao capital móvel, verificámos que Fouillée não prevê ne­
nhuma maneira de regular a sua circulação. Ele conta, efectiva-
mente, com a diminuição progressiva do rendimento mobiliário;
mas nada mais infundamentado que esta vaga esperança. O lucro
só dccrcsce nas épocas cm que a indústria permanece estacionária.
Graças a novas descobertas, os novos capitais acabam por encon­
trar uma utilização igualmente produtiva. Estas reformas não iriam
portanto diminuir a desigualdade das fortunas. Assim o que se
modificaria, é que o Estado viria lançar-se na roda dos interesses
e perturbar o jogo regular do mecanismo social. Ele falsificaria os
impulsos naturais sem os substituir. Talvez ele conseguisse abran­
dar o ritmo da máquina, mas não a aperfeiçoaria.
Tal como as suas doutrinas econômicas, a política de Fouillée
parece ignorar a natureza orgânica da sociedade. Diz-se que o elei­
tor deve representar a nação? Mas será isso possível? Posso per-
feitamente admitir que as células do meu braço pensem por si; tal­
vez até sintam confusamente as células imediatamente vizinhas,
mas não entendem nada para além disso. Um cidadão isolado tam­
bém não pode tomar consciência dessa imensa sociedade de que
ele apenas vê e conhece uma ínfima parte. Como poderia ele então
tornar-se no seu substituto autorizado? Conta-se com os contri­
butos da instrução? Mas, por poderosa que seja, ela não pode fazer
milagres. Ela nunca conseguirá tornar a média dos espíritos sufi­
cientemente poderosos e vastos para que possam abraçar, numa
representação adequada, o enorme sistema das acções e das reac-
ções sociais. Aliás, se a sociedade é um organismo, o trabalho está
dividido; cada um tem a sua tarefa especial e é impossível que em
determinado momento todos os indivíduos possam desempenhar
igualmente bem a mesma função. Ora, suponhamos realizada a
sociedade ideal com que Fouillée sonha. No dia do voto, o con-

163
teúdo de todas as consciências individuais é idêntico. Todos se
assemelham e se valem. É então que o organismo social se desmo­
rona; em vez de células vivas e subordinadas umas às outras, restam
apenas átomos justapostos e situados num mesmo plano.
É verdade que esta perspectiva talvez nada contenha que desa­
grade ao autor. Em definitivo, a sociedade perfeita seria, para ele,
aquela em que cada um teria apenas riqueza suficiente para se bas­
tar a si mesmo trabalhando; inteligência suficiente para compreen­
der os seus deveres imediatos; coração suficiente para não se desin­
teressar dos outros. A harmonia social resultaria do acordo espon­
tâneo entre as vontades. Seria uma espécie de democracia agradável
e esclarecida, onde, apesar da igualdade das condições, se aceita­
riam reconhecidamente todas as superioridades naturais, enquanto
belas e felizes excepções. Este sonho, bastante sedutor, lembra
aquele que, do outro lado do Reno, os socialistas da cátedra ima­
ginam '. Infelizmente, ainda é de temer que tal organização seja
extremamente precária. Sentimentos, ainda que excelentes, consti­
tuem ligações frágeis. Uma sociedade que não fosse mais solida­
mente cimentada arriscar-se-ia a ser derrubada pela primeira tem
pestade.

1 Há quem faça excepção. As teorias de Wagner nada têm dc sentimentais.


5

OS ESTUDOS DE CIÊNCIA SOCIAL

Herbert Spencer, Ecclesiastical Institutions: Being


Part VI of the Principies of Sociology, London, 1885.
— A. Regnard, L/Etat, ses origines, sa nature et son
bnt, Paris, Derveaux. — A. Coste, Aug. Burdeau et
Lucien Arreat, Les questions sociales contemporaines,
Paris, Alcan et Guillauniin, 1886. — Dr A. Schaeffle,
Die Quintessenz des Socialisrn, Achte Auflage, Gotha,
1885.

~| 1 mbora estas obras tenham origens bem diferentes e aparen-


rH temente discordantes, não é por acaso que se encontram
J—reunidas neste estudo. Vão-nos efectivamente permitir com­
preender e apontar o estado em que actualmente se encontram as
principais ciências sociológicas. Possibilitar-nos-ão sobretudo uma
ocasião de deduzir a maneira como a sociologia tende a dividir-se
e a organizar-se. A organização de uma ciência não se improvisa:
faz-se por si mesma no dia-a-dia e resulta, em geral, de longas e
laboriosas experiências. Tudo o que podemos fazer é, de tempos
a tempos, tomar consciência dos resultados obtidos e é isso que
procuraremos fazer neste trabalho.

1. Depois de um silêncio de três anos e meio, devido em parte


ao seu precário estado de saúde, Spencer acaba de publicar o segui­
mento da sua Sociologie. A sexta parte que ele hoje nos entrega
é dedicada ao estudo das instituições eclesiásticas. Fiel ao seu mé­
todo, ele segue a evolução da vida religiosa desde a sua primeira

165
e obscura origem até ao seu completo apogeu: ele até procura tra­
çar previamente o seu provável desenvolvimento futuro.
A religião começa logo que o homem se eleva à concepção de
um ser sobrenatural e o primeiro ser sobrenatural que ele pôde
conceber foi um espírito. Encontraremos na primeira parte da So-
ciologie a história desta crença. Os nossos primeiros antepassados
só conseguiram explicar o duplo fenômeno, aparentemente contra­
ditório, do sono e do sonho, distinguindo dois homens no homem,
um que permanecia inerte, estendido, adormecido, enquanto o
outro errava livremente através do espaço. Este outro eu, este
duplo como diz Spencer, é o espírito. A morte é apenas uma disso­
ciação mais prolongada destes dois seres: o que a caracteriza é que
a duração é indeterminada. O selvagem imagina, portanto, que há
em volta dele uma multidão de espíritos errantes que ele teme
como se teme tudo o que é invisível e misterioso. Para prevenir
os efeitos dos seus funestos desígnios e assegurar a sua protecção,
ele procura torná-los propícios através de oferendas e sacrifícios
e, mais tarde, de orações. E assim que nasce o culto dos espíritos,
forma original de qualquer religião.
Todos os sistemas religiosos, tão complicados e tão subtis, que
encontramos na história não passam do desenvolvimento deste pri­
meiro germe. O fetichismo não é mais do que o culto do espírito
transportado para as coisas que o espírito é suposto habitar. Quanto
ao naturismo, é simplesmente devido a um erro de linguagem, a
uma metáfora grosseira que a ingenuidade destes homens primiti­
vos acabou por tomar à letra. Por lisonja, tinha-se dado a certas
personagens particularmente temidas e respeitadas os nomes que
serviam para designar as grandes forças da natureza. Mas rapida­
mente, com a tradição, deixou de se distinguir entre os homens
e as coisas que uma mesma palavra designava. Foi esta confusão
que gerou uma personificação destes agentes naturais, e fez com
que lhes fossem atribuídas origens e aventuras humanas.
Naturalmente, os espíritos que cada família de preferência vene­
rou foram os dos seus antepassados. Mas, quando várias famílias
se juntaram e submeteram à direcção de um mesmo chefe, cada
qual se pôs a adorar, além dos seus próprios antepassados, os do
patriarca comum. Parecia, efectivamente, que os espíritos protec­
tores de um homem tão poderoso deviam ser igualmente poderosos
e que interessava pois cair nas suas boas graças. Caminhava-se

166
assim para o politeísmo, seguindo cada indivíduo dois cultos simul­
taneamente, um estritamente doméstico e o outro comum a toda
a tribo. No entanto, entre estes dois deuses não havia diferenças
qualitativas. Todos tinham a mesma tarefa e as mesmas funções
e a única coisa que os distinguia era nem todos serem igualmente
poderosos. Os homens só conseguiram imaginar deuses verdadeira­
mente diferentes quando sociedades distintas se conseguiram mis­
turar umas com as outras. Sabe-se quanto a guerra contribuiu para
este progresso: os vencedores anexavam, ao mesmo tempo que os
próprios vencidos, os deuses que estes veneravam. Produzia-se o
mesmo fenômeno sempre que um fragmento importante se des­
prendia de uma tribo demasiado numerosa para ir viver noutros
habitais, onde elegia novos deuses cujo culto se acrescenta ao
das antigas divindades, trazidas da mãe-pátria. No entanto, entre
todos estes seres sobrenaturais, fruto da imaginação popular, de­
viam necessariamente surgir conflitos, visto que todos disputavam
a credulidade e a devoção públicas. Consoante as circunstâncias
e a habilidade dos padres, uns passaram aos olhos dos fiéis por
mais poderosos do que os outros e assim se estabeleceu como que
uma hierarquia entre eles. Pouco a pouco, subordinaram-se a um
deus supremo dc quem eram supostos ter recebido delegação do
poder e que acabou, ajudado pelos progressos do pensamento, por
absorvê-los a todos e por se tornar no único e verdadeiro deus.
O politeísmo tinha-se transformado em monoteísmo.
Isto é o que poderiamos chamar a fisiologia da religião; eis
agora a morfologia. Da função passamos à estrutura, da ideia reli­
giosa às instituições eclesiásticas. Enquanto o médico e o exor­
cista estão unicamente encarregados de combater os espíritos malé­
ficos, a função do padre é antes de mais tornar-se propício aos
espíritos benéficos. Ora estes são, para cada família, os dos seus
antepassados. E por isso as funções sacerdotais são primeiramente
domésticas e privadas e todos os membros da família exercem-nas
indistintamente. Mas como qualquer massa homogênea é instável,
elas não permanecem muito tempo neste estado de difusão. À me­
dida que a família se constitui, elas vão-se concentrando nas mãos
dos pais ou do filho mais velho. Ao mesmo tempo mudam de natu­
reza; de puramente domésticas que eram, tornam-se ao mesmo
tempo políticas e religiosas. Já não é apenas por afeição que se chora
um morto: é por dever. Como se considera o herdeiro apenas como

167
um administrador provisório dos bens que lhe são legados e de que
ele deverá prestar contas ao legítimo proprietário, quando o espí­
rito errante vier novamente animar o corpo que momentaneamente
abandonou, as oferendas funerárias constituem uma espécie de tri­
buto ou de servidão legal que apoia a herança. Por outro lado,
com elas são destinadas não mais a exprimir os sentimentos pes­
soais do sobrevivente, mas a garantir a toda a família a protecção
de um ser sobrenatural, aquele que estiver encarregado de as desem­
penhar toma um carácter propriamente eclesiástico.
O patriarca vê-se assim investido de um triplo poder: preside
simultaneamente à vida doméstica, política e religiosa. Sucessiva­
mente, estas três funções vão-se dissociando e a função religiosa
separa-se das duas outras para se constituir à parte. Quando a famí­
lia se tinha desenvolvido a ponto de se tornar numa comunidade
de vila (village-commumty), os estranhos acabaram por nela se con­
seguirem introduzir e estabelecer. Nestas condições, o patriarca
que administrava o grupo composto devia naturalmente perder o
seu carácter doméstico. Mas continuava a ser o chefe político e re­
ligioso, pois servia de intermediário entre as outras famílias e os
seus antepassados pessoais que toda a sua tribo venerava e adorava
com ele. A partir deste momento falta apenas um passo para que
as funções eclesiásticas se tornem completamente independentes.
Que a sociedade aumente e as preocupações políticas absorverão
toda a atenção do chefe; ele delegará os poderes religiosos a um
dos seus parentes próximos e o sacerdócio (priestbood) será defi­
nitivamente constituído. Uma vez formado, este órgão especial con­
tinua a evoluir tal como a função, integrando-se e diferenciando-se
como ela. Por outras palavras, ele desenvolve-se num sistema hie­
rárquico cada vez mais complexo e mais centralizado.
No entanto, depois de tantos séculos em que o poder religioso
e o poder político se confundiam, a separação é muito lenta e nunca
muito completa. As funções religiosas permanecem durante muito
tempo associadas a outras de que se vão dificilmente separando.
É assim que, em plena Idade Média, o padre ainda desempenha
verdadeiras funções militares, última memória desses tempos em
que ele estava encarregado de revelar e fazer respeitar os caprichos
de um deus ciumento e muitas vezes cruel. Quanto à acção que
o clero exerceu mesmo em tempos recentes sobre a administração
civil, política e judicial dos povos, a história relata inúmeros teste-

168
munhos. Unicamente pelo facto de controlar o poder sobrenatural,
esta casta, sempre rica e fortemente organizada, não podia deixar
de ter sobre as sociedades primitivas uma influência preponderante.
Aliás, o regime militar, oprimindo os espíritos, preparava-os para
todo o gênero de servidão e abria assim as portas ao despotismo
religioso. Logo, à medida em que o industrialismo substitui o mili­
tarismo, realiza-se uma revolução nos espíritos; os homens tomam
o hábito de se recusarem a qualquer espécie de jugo, ao jugo reli­
gioso como aos outros. Sob o regime do contrato livre, só podem
existir crenças livremente aceites. Ao mesmo tempo, os progressos
industriais, vulgarizando os conhecimentos científicos, abalam irre-
versivclmente o preconceito de uma origem sobrenatural. Produ-
zcm-se dissidências que se multiplicam cada vez mais.
Mas não seria por isto que a ideia religiosa desaparecería; pois
cie encerra um germe de verdade que já se revela nas superstições
grosseiras dos selvagens e que o tempo pouco a pouco aprofundou
e desenvolveu. Efectivamente, o culto dos espíritos implica a crença
que os acontecimentos internos e os fenômenos externos manifes­
tam duas forças diferentes mas análogas, ou seja, em definitivo,
que estas duas forças são apenas duas formas diferentes de uma
única c mesma energia, fonte de toda a vida e de qualquer trans­
formação, de que a razão percebe a necessidade, mas que a inteli­
gência é para sempre impotente em representar. É este o desconhe­
cido com o qual a ciência embate mas que ela não explica. Ele
liberta-nos, sem dúvida, dos preconceitos absurdos e das explica­
ções infantis; mas não deixa dc ser um resíduo incompreensível
que ultrapassa o conhecimento científico. Este mistério eterno, eis
o objecto e a razão de ser da religião. Naturalmente, se a religião
está destinada a sobreviver, o mesmo acontece com o sacerdócio,
mas também ele se purificará e se transformará cada vez mais.
Deixará de constituir uma corporação fortemente centralizada e
submetida a um governo mais ou menos autoritário, para se trans­
formar num vasto sistema de instituições locais e autônomas, como
convém a um regime verdadeiramente industrial. Ao mesmo tempo,
as funções do padre tornar-se-ão cada vez mais espirituais e morais.
A sua função não será mais apaziguar os deuses através de sacri­
fícios ou de outras medidas propiciatórias, mas instruir-nos dos
nossos deveres, tratar abertamente os grandes c obscuros proble­
mas da moral c por fim dar-nos o sentimento, quer pela palavra,

169
quer por todos os meios de que a arte dispõe, das relações que
mantemos com a causa desconhecida.
Como podemos verificar, a maior parte destas idéias já se en­
contrava exposta em germe em Premiers príncipes. Mas encontra­
mo-las aqui condensadas num sistema c fundamentadas num incal­
culável número de factos fornecidos por todas as histórias. Quanto
à erudição, que é prodigiosa, esta sexta parte da Sociologie não
fica atrás das outras. Ao mesmo tempo, todos estes factos estão
agrupados e organizados com a grande habilidade que conhecemos
a este eminente filósofo. É fantástico ver atribuir a crença aos fan­
tasmas, ideia pobre em aparência, o idealismo purificado das nos­
sas sociedades modernas, e isto sem que o olhar compreenda cm
toda esta longa evolução a menor solução de continuidade. À pri­
meira vista, parece que nada há de comum entre dogmas tão dis­
cordantes, cerimônias e rituais tão variados. Mas, se com Spencer
penetrarmos para além desta superfície, se atravessarmos a casca,
reencontramos sempre o mesmo desenvolvimento e, na origem, o
mesmo germe.

Este sistema tem, naturalmente, o defeito de todos os sistemas


e já foi acusado, não sem razão, de simplista. A fórmula proposta
parece efectivamente bem exígua quando se considera a prodigiosa
complexidade dos fenômenos religiosos. Não podemos deixar de
considerar singularmente subtil a explicação do processo através
do qual o espírito teria passado do culto dos mortos ao culto da
natureza. Então o naturismo, essa religião que foi durante muito
tempo a mais rica fonte de inspirações poéticas e à qual os povos
envelhecidos e cansados de todas as outras especulações religiosas
têm como que uma tendência instintiva em voltar, teria tido por
causa essencial e quase única uma figura de retórica e uma anfi-
bologia? Não se percebe porque é que os homens, uma vez que
tinham formado o conceito de um espírito distinto do corpo que
o animara, dele se não teriam servido para compreender os fenô­
menos naturais. Assim como concebiam, dentro do corpo humano,
uma espécie de alma, porque é que não teriam imaginado, sob as
águas do rio, uma força misteriosa que lhe regulasse o curso, por
detrás da casca da árvore uma energia secreta que lhe desse vida?
Assim, e muitos factos se citaram para apoio desta tese, o natu-

170
rismo, longe de resultar do animismo, seria totalmente indepen­
dente. Mas perguntamos se, destas duas religiões, a primeira não
teria sido por necessidade absoluta anterior à segunda. Efectiva-
mente, para conceber espíritos que podem, intervindo no desenrolar
das coisas, perturbar o seu curso normal, é preciso suspeitar que
existe uma ordem e um seguimento no encadeamento dos fenôme­
nos. Ora, esta é uma concepção demasiado complexa para poder
deixar de ser tardia: deve portanto ter sido posterior aos primeiros
sentimentos religiosos. Assim, segundo Reville, as primeiras mani­
festações religiosas teriam consistido na adoração pura e simples
das grandes forças da natureza personificadas *.
Mas temos alguns escrúpulos em agitar esta questão em que
nos sentimos incompetentes: e isto conduz-nos à mais grave objec-
ção que ousamos fazer a Spencer. Acusou-se muitas vezes a socio­
logia de ser uma ciência vaga e mal definida; reconhecemos que
por mais de uma vez mereceu esta censura. Se, efectivamente, ela
deve estudar, tal como muitas vezes ambiciona, todos os fenóme-
nos que se passam dentro das sociedades, não é uma ciência, mas
sim a ciência. É um sistema completo de todos os conhecimentos
humanos e nada lhe escapa. Quanto a nós, pensamos que ela tem
um alcance mais restrito e um objecto mais preciso. Para que um
facto seja sociológico é preciso que interesse, não só todos os indi­
víduos tomados isoladamente, mas a própria sociedade, ou seja, o
ser colectivo. O exército, a indústria e a família têm funções so­
ciais visto terem por objecto, uma defender, outra alimentar a
sociedade e por fim, a terceira, garantir a sua renovação e a sua
continuidade. Mas, se reduzirmos a religião a um conjunto de cren­
ças e de práticas relativas a um agente sobrenatural, projectado
pela imaginação, é difícil conseguir ver mais do que um agregado
bastante complexo de fenômenos psicológicos. Pode-se mesmo con­
ceber que o sentimento religioso se tenha desenvolvido fora de
qualquer sociedade constituída. Eis porque o livro de Spencer
contém grande número de questões que não são da competência
da nossa ciência. A sociologia e a história das religiões são e deve­
ríam permanecer coisas distintas.
Isto não é dizer que a religião não tem lugar na sociologia.

1 Ver uma interessante discussão sobre este assunto entre Harrisson e Sven-
cer: The híineleenth Century, Janeiro, Julho, Março e Setembro de 1884.

171
Mas o sociólogo só se deve preocupar em determinar a sua função
social. Esta questão, que Spencer trata superficialmente devia,
pensamos, ter dominado toda a obra. Só que, se equacionarmos
o problema nestes termos, tudo muda de aspecto. A ideia de Deus,
que ainda há pouco parecia ser a totalidade da religião, torna-se
apenas num acidente acessório. É um fenômeno psicológico que
se veio associar a todo um processo sociológico, só por si impor­
tante. Uma vez que a ideia de divindade se formou num certo
número de consciências sob a influência de sentimentos individuais,
ela veio servir para simbolizar diferentes tradições, hábitos e neces­
sidades colectivas. O que nos deve interessar não é, portanto, o
símbolo, mas o que ele encobre e traduz. Talvez conseguíssemos
descobrir o que se esconde por detrás deste fenômeno superficial,
se o relacionássemos com outros que se lhe assemelham em alguns
aspectos. Efectivamente, que diferença existe entre as prescrições
religiosas e as imposições da moral? Elas dirigem-se igualmente
aos membros de uma mesma comunidade, apoiam-se em sanções
por vezes idênticas, sempre análogas; enfim, a violação de urnas
e de outras provoca nas consciências os mesmos sentimentos de
indignação e de repugnância. Releiam-se os dez mandamentos: o
repouso ao sábado e a proscrição dos ídolos são ordenados em ter­
mos tão imperiosos quanto o respeito pela vida e pela propriedade
alheia. A história dos povos selvagens fornecería em apoio desta
tese exemplos ainda mais convincentes. É portanto impossível estu­
dar estes dois tipos de factos separadamente um do outro. E não
é tudo. Também o direito não passa de um conjunto de ordens,
de imperativos colocados sob a autoridade de uma sanção material.
Eis portanto três espécies de fenômenos cujo parentesco e mani­
festo e que se podem esclarecer utilmente uns aos outros. Ora,
o direito e a moral têm por fim garantir o equilíbrio da sociedade,
adaptá-la às condições ambientais. Tal deve igualmente ser a fun­
ção social da religião. Se ela é da competência da sociologia é por­
que exerce sobre as sociedades uma influência reguladora. Deter­
minar em que consiste esta influência, compará-la com outras e
distingui-la, eis o problema que a ciência social deve levantar. Mas
pouco importa que esta acção se exerça em nome do politeísmo,
do monoteísmo ou do fetichismo; pouco interessa saber como c

1 Cap. IX, pp. 763-774.

172
que a humanidade passou de um destes cultos para o outro e o que
se passava na consciência obscura dos homens primitivos. Isto com­
pete à história. De resto, quando as instituições sociais que a reli­
gião domina com a sua autoridade se transformam, não é por a
concepção popular da divindade se ter transformado. Pelo contrá­
rio, se esta ideia se transforma, é porque as instituições se modi­
ficaram, é porque as condições exteriores já não são as mesmas.
Qualquer variação do símbolo supõe outras na coisa simbolizada.
É verdade que, em geral, representamos esta evolução no sen­
tido inverso. É o que Spencer parece fazer em certas alturas. Ele
atribui efectivamente ao espírito crítico uma função bastante exa­
gerada no desenvolvimento da civilização. Para ele, os principais
progressos das idéias religiosas resultariam do sentimento de inde­
pendência e do gosto pela análise livre que o regime industrial
desperta e desenvolve. Nós consideramos que, pelo contrário, a
função da consciência colectiva, assim como a da consciência indi­
vidual se reduz a constatar factos sem os produzir. Ela reflecte
mais ou menos fielmente o que se passa nas profundezas do orga­
nismo. Mas não faz mais nada. Um preconceito não desaparece por­
que se descobriu que ele era irracional, mas descobriu-se que ele
era irracional porque ele estava a desaparecer. Quando deixa de
desempenhar a sua função, ou seja, quando já não garante a adapta­
ção dos indivíduos ou do grupo às circunstâncias exteriores, por­
que elas se modificaram, gera-se uma agitação e um mal-estar.
É então que a consciência avisada intervém, percebe que um ins­
tinto social está a desaparecer e toma nota desta dissolução; quanto
muito acelera-a ligeiramente. Sem dúvida se a religião greco-latina
se modificou, é em parte porque os filósofos a tiniram submetido
à crítica. Mas para eles a terem submetido à crítica, é porque ela
já não podia garantir o equilíbrio dessas grandes comunidades de
homens a que a conquista romana tinha dado origem.
O sociólogo prestará portanto pouca atenção às diferentes ma­
neiras como os homens e os povos puderam conceber a causa des­
conhecida e o fundo misterioso das coisas. Afastará todas estas
especulações metafísicas e considerará a religião apenas como uma
disciplina social. Ora, o que constitui a força e a autoridade de
qualquer disciplina é o hábito: é um conjunto de maneiras de agir
fixadas pelo hábito. A religião não passa de uma forma de hábito,
tal como o direito e os modos de vida. O que melhor distingue

173
esta forma das outras talvez seja o facto de ela se impor não só
ao comportamento como à consciência. Ela não só ordena actos
como idéias e sentimentos. Em definitivo, a religião começa com
a fé, ou seja, com qualquer crença aceite ou suportada sem dis­
cussão. A fé em Deus é uma das espécies de fé. Elá muitas outras.
A maior parte de nós acredita no progresso com a mesma ingenui­
dade com que os nossos pais outrora acreditavam em Deus ou nos
santos. De resto, não pretendemos afirmar que a religião não seja
mais do que isto. É evidente que, para certo número de pessoas,
ela é antes de mais um caminho aberto a esta necessidade de idea­
lismo, a estas aspirações infinitas, a esta vaga insegurança que
molda todos os espíritos generosos. Só que, por incontestáveis e
elevados que estes sentimentos sejam, não é à sociologia que inte­
ressam, mas à moral íntima e familiar. São fenômenos que não
saem da consciência privada e que não produzem consequências
sociais, pelo menos apreciáveis. A religião é um fenômeno dema­
siado complexo para que se possa, mesmo num livro volumoso,
estudar todas as suas facetas e as suas características. Cada qual
tem o direito de escolher o seu ponto de vista. Acabamos de indi­
car aquele que, pensamos, convém à sociologia; noutros termos,
qual o aspecto que a religião apresenta quando considerada apenas
como fenômeno social.
Se olharmos portanto as coisas sob este aspecto, o futuro da
religião parece ter de ser diferente daquele que Spencer anuncia.
Que difícil é, efectivamente, admitir que a representação confusa
do desconhecido possa fornecer matéria rica à meditação dos ho­
mens e exercer sobre o seu comportamento uma acção eficaz! Aliás,
as próprias razões que se dá para demonstrar a existência deste
desconhecido nem sempre são muito convincentes. Pois se a razão
não pode compreender que tudo seja relativo, também não pode
conceber o absoluto. Entre estes dois absurdos, como escolher,
e por que razão preferir o segundo ao primeiro? Mas deixemos
todas estas discussões lógicas e voltemos ao nosso ponto de vista.
Fazer da religião não sei que metafísica idealista e popular, redu­
zi-la a um conjunto de julgamentos pessoais e reflectidos acerca
da relatividade do conhecimento humano e da necessidade de um
além é ignorar qualquer função social que ela tenha. Ela não pode
permanecer como disciplina colectiva se não se impuser a todos os
espíritos pela irresistível autoridade do hábito; se, pelo contrário,

174
passa ao estado de filosofia voluntariamente aceite, torna-se então
num simples acontecimento da vida privada e da consciência indi­
vidual. Esta teoria implica, como consequência, que a religião tende
a desaparecer enquanto instituição social. Mas o lugar e a impor­
tância dos costumes estão longe de diminuir com a civilização,
ao contrário do que Spencer diz. É realmente extraordinário que
este espírito brilhante tenha partilhado tão completamente o erro
comum do poder crescente da análise livre. Apesar do sentido
corrente desta palavra, um preconceito não é um julgamento errado,
mas unicamente um julgamento adquirido ou considerado como
tal. Transmite-nos sob uma forma resumida os resultados de expe­
riências que outros fizeram e que nós, por nossa vez, não podemos
recomeçar. Por conseguinte, quanto mais o campo de conhecimento
c de acção se alarga, mais numerosas são as coisas na autoridade
das quais acreditamos. Por outras palavras, o progresso só pode
fazer aumentar o número de preconceitos ’; e quando dizemos que
ele, pelo contrário, conduz à substituição sempre e em todas as
coisas do instinto cego pela razão esclarecedora, estamos a ser víti­
mas de uma verdadeira ilusão. Como numerosos preconceitos here­
ditários estão a desaparecer, porque já não se adaptam às novas
condições da vida social, e como no meio destas ruínas só sobre­
vive a razão que raciocina, parece que todos os esforços da huma­
nidade não tiveram outro objectivo que o de preparar a sua che­
gada e garantir a sua supremacia. Mas aquilo que tomamos por
ideal não passa de um estado doentio e provisório. Uma sociedade
sem preconceitos seria como um organismo sem reflexos: seria um
monstro incapaz de viver. Mais cedo ou mais tarde os costumes
e o hábito retomarão portanto os seus direitos; é isto que nos
autoriza a presumir que a religião sobreviverá aos ataques de que
é objecto. Enquanto houver homens que vivem juntos, haverá sem­
pre entre eles uma fé comum. O que não podemos prever e que
só o futuro poderá decidir é a forma particular sob a qual esta fé
se irá simbolizar.
Resumindo, o direito, a moral e a religião são as três grandes
funções reguladoras da sociedade; estes três tipos de fenômenos
devem portanto ser estudados por uma parte especial da sociologia.
É esta a conclusão que interessa reter de toda esta discussão.

1 Só que os preconceitos de hoje talvez sejam mais maleáveis.

175
Mas qual é o órgão encarregado de desempenhar estas funções?
A opinião geral é que se atribua a maior parte ao que se chama
Estado. O que é então o Estado?

2. Há poucos conceitos assim tão obscuros. Pudemos verificá-lo


quando da recente discussão que foi levantada na Academia das
Ciências Sociais. Ouviram-se as opiniões mais divergentes sem que
se chegasse a uma conclusão e, no entanto, nem todas as doutrinas
estavam representadas na douta assembléia. Não pensamos que o
livro de Regnard esclareça esta difícil questão. Não podemos dei­
xar de lhe reconhecer um notável vigor de estilo e uma notável
riqueza de informação. Mas a total ausência de qualquer método
e o tom violento da discussão diminuem singularmente o valor
científico. Quando se pretende uma obra erudita não se tratam os
contraditores de «pedantes» ou de «sofistas» *. É sobretudo em
sociologia que a tolerância se impõe e que ela é fácil. Pois, quando
se teve a experiência dos problemas que esta ciência estuda e
quando se sentiu toda a sua complexidade, facilmente se explica
a diversidade das soluções e nada custa tratar todas as doutrinas
com deferência.
O Estado, segundo Regnard, não se confunde com o Governo
mas inclui simultaneamente governantes e governados. É a socie-
dade organizada. Esta organização não resulta de um contrato livre
mente debatido mas sim da própria natureza das coisas. O homem
é um animal social, um ser destinado pela sua natureza a viver em
sociedade. Isto não é, no entanto, dizer que as ciências políticas
tenham sido contemporâneas da humanidade. O homem existiu
primeiro no estado de grupos isolados, famílias ou clãs. Nesta altura
o famoso aforismo de Hobbes aplicava-se com todo o rigor. Era
a guerra universal, de todos contra todos, bellum omnium contra
otnnes. Veio finalmente um dia em que os clãs sedentários e vizi­
nhos, levados por um interesse comum, se uniram de modo perma­
nente. Assim nasceu uma nova sociedade, não mais baseada nas
ligações de sangue ou na identidade do culto, mas no facto da
ocupação em comum de um mesmo território. É então que surgem
no mundo a justiça, a legalidade, a própria moral e o direito.

' Regnard, L'Etat, pp. 28 20.

176
O autor, parafraseando Hegel, faz do Estado «o objectivo supremo,
o fim da natureza humana e a sua plena realização».
Assim concebido, o Estado distingue-se de todas as sociedades
inferiores por três caracteres essenciais: l.° À noção de consangui­
nidade substitui-se a de contiguidade; 2.° A massa social cinde-se
em duas partes, os governantes de um lado e os governados do
outro; 3." O que vai finalmente singularizar o Estado entre todos
os outros grupos sociais é que ele é o único organizado tendo por
fim a utilidade comum. Mas, por interesse comum, não deve enten­
der-se, como geralmente acontece, algo de essencialmente relativo
e contingente e de que os indivíduos são os únicos juizes. Não, o
autor personaliza este conceito fazendo dele uma verdade absoluta,
um scr transcendente, superior aos indivíduos, superior às próprias
leis e que paira invisível sobre a sociedade. É ele o verdadeiro
soberano. A soberania reside, sem dúvida, na universalidade dos
cidadãos. Mas o seu sufrágio não pode tornar o que é justo injusto
nem útil o que é mau. Assim, se o princípio da utilidade comum
for violado, uma vez que ele é a razão de ser do Estado, deixa
de haver Estado, ou direito, ou sufrágio, ou sequer soberania. Resta
apenas a força que c necessário utilizar. Há violências legítimas
e golpes de Estado aprovados pela moral. Estabelecendo como
axioma que a monarquia e a aristocracia são por natureza contrá­
rias ao interesse geral, o autor conclui que sob tais regimes «a in­
surreição é o primeiro dos direitos e o mais sagrado dos deveres».
Infelizmente, é bastante difícil perceber em que consiste esta
utilidade colcctiva que se diviniza. Não é o interesse da maioria,
uma vez que se faz da revolta, em determinados casos, um direito
e um dever da minoria. Também não é a soma de todos os interes­
ses particulares porque se contradizem e se negam uns aos outros.
Será então o interesse em si mesmo, a felicidade in abstracto7
Concepção singular para um teórico que se pretende materialista!
É provável que se trate do interesse da sociedade considerada como
um scr pessoal. Mas este ser não é uma substância, uma entidade
metafísica; é apenas urna colecção de indivíduos organizados. Do
mesmo modo, o interesse social c uma média entre todos os interes­
ses individuais, ideia relativa e que nada tem de transcendente.
Longe de chegar até nós já feita, por uma espécie de revelação,
somos nós que a determinamos no dia-a-dia, à força de experiên­
cias e de aproximações. Onde está então a tal verdade tão luminosa

177
que se impõe a todas as inteligências, tão autêntica que a temos
de defender com armas na mão quando a ameaçam? Na sociolo­
gia? Qual quê!, nascida ontem, a ciência social vai-se constituindo
laboriosamente e não encerra ainda senão um pequeno número de
proposições que possam ser olhadas como verdades demonstradas.
Serão precisos muitos anos para que ela nos possa indicar qual
é, em determinadas circunstâncias, o interesse da sociedade. Entre­
tanto, o melhor meio de o saber é ainda consultar os interessados.
Se eles se enganarem não é por isso que a sociedade fica des­
truída. A humanidade contará no activo mais uma experiência infe­
liz e é tudo. Em todo o caso, ninguém tem autoridade suficiente
para alterar pela violência os julgamentos assim obtidos. De resto,
não é só a ideia de interesse geral, mas a própria ideia de interesse
que teria necessidade de ser precisada. Pensamos ter explicado tudo
quando dissemos que os homens tinham formado Estados, conduzi­
dos pelo interesse. Mas nada é mais obscuro. Será que se pretende
dizer que o único objectivo era garantir a segurança e aumentar
o bem-estar? Toda a história protesta contra tal interpretação. São
causas bem diferentes que aproximam os indivíduos e os grupos,
e Espinas soube-as estabelecer em relação às sociedades animais.
Existe, ou pelo menos forma-se ao longo da evolução, uma necessi­
dade de sociabilidade e instintos sociais absolutamente desinteres­
sados. É para os satisfazer que os homens formam sociedades cada
vez maiores e isto por vezes em detrimento dos seus interesses
propriamente ditos. Aliás, se o útil fosse o único elo social, as socie­
dades seriam associações de um dia, pois não há nada mais incons­
tante do que o interesse. Ele pode opor amanhã aqueles que hoje
une. Poder-se-á mesmo dizer que ele une os homens? Aproxima-os
apenas exteriormente; mas não tem influência sobre as consciências.
Não é portanto de espantar que, nestas condições, a definição
de Estado que o autor dá nos deixe apenas uma ideia indecisa e
flutuante. Não se percebe bem o que distingue o Estado das outras
sociedades. Será porque ele age em função da utilidade comum?
Mas o mesmo se passa com todas as sociedades, por rudimentares
que sejam. Se o interesse não é o único móbil da humanidade, não
deixa por isso de estar sempre presente e de ser sempre actuante.
Será porque a contiguidade no espaço se substituiu à consaguini-
dade e se tornou no elo social por excelência? Mas é, pelo con­
trário, nas sociedades inferiores que os homens se unem uns aos

178
outros unicamente porque coexistem num mesmo ponto do es­
paço '. Quanto à distinção entre governantes e governados ela é
quase contemporânea da vida social. Torna-se mais clara e distinta
nas sociedades superiores, mas é unicamente uma diferença de graus
e uma questão de pormenor. A verdade é que, retomando a teoria
de Bluntschli, Regnard considera que não havia direito nem moral
antes do aparecimento do Estado. Infelizmente, esta doutrina es-
colástica não é muito mais inteligível no escritor francês do que
no jurista alemão. O direito e a moral exprimem apenas as con­
dições do equilíbrio social. Houve portanto um direito e uma moral
logo que vários homens entraram em relação e começaram a viver
juntos.
Em suma, o que falta completamente neste livro é o método.
O autor está muito menos preocupado em estudar objectivamente
o que constitui o Estado do que em desenvolver a ideia que tem
dele. As ciências sociais não progridem enquanto procederem assim.
Não é à consciência individual que nos dirigimos para saber o que
é a memória ou o que é que constitui a personalidade. Do mesmo
modo, a representação popular do Estado não tem nada a ver com
a ciência do Estado. O mais que ela pode fazer para nos ajudar
é indicar que ele constitui um objecto de estudo. Mas para conhe­
cer este objecto é necessário observá-lo tal como ele é, em vez
de nos interrogarmos sobre o que ele deve ser. E preciso classi­
ficar os fenômenos que manifestam a sua actividade e deste modo
obter-se-á um certo número de grupos que representarão as funções
do Estado. É aqui que a história poderia fornecer às ciências so­
ciais indicações úteis, pois ela apresenta-nos experiências feitas de
que bastaria tirar as respectivas conclusões. Efectivamente, como
as formas superiores dos seres encerram tudo o que as formas infe­
riores já continham, o estudo dos Estados desaparecidos mostrar-
-nos-ia, naturalmente isoladas, algumas das funções que reencon­
tramos, mas associadas a outras e dificilmente discerníveis nos
Estados contemporâneos. Só quando este trabalho de investigação
e de análise estiver concluído poderemos procurar uma definição
geral de Estado. Mas temos de reconhecer que até aqui pouco se

1 Summer Maine, que vê na família patriarcal a sociedade primitiva, tem o


direito dc fazer da contiguidade um princípio posterior à consanguinidade. Não
se passa o mesmo em relação a Regnard, que admite sociedades antepatriarcais.

179
utilizou este método. Na Alemanha, o Estado há muito que é
objecto de uma ciência particular (Staatswissenschaft), mas que só
foi desenvolvida por filósofos ou por juristas. No entanto, todas
as partes da sociologia estão interessadas em que se constitua uma
teoria científica do Estado.

3. De todas as ciências sociais, a economia política é talvez


a que mais beneficiará. Era esta a ideia que constantemente nos
ocorria quando líamos o livro de Coste Questions sociales. Não é,
efectivamente, esta a impressão que o autor queria deixar aos seus
leitores, pois ele é decididamente adverso à intervenção do Estado
nas funções econômicas. No entanto, ele não hesita em reconhecer
que a economia política, vendo apenas um aspecto da questão, não
se basta a si própria. Aplicando a um organismo vivo, a sociedade,
os processos das ciências mecânicas, ela simplifica artificialmente
os problemas para os resolver mais facilmente. Apologista da liber­
dade, ela ignora e nega a necessidade e as vantagens da solidarie­
dade, fecha sistematicamente os olhos aos males que resultam do
seu princípio, quando exclusivo de qualquer outro, e em vez de tor­
nar inútil o socialismo prefere difamá-lo. Não compreende que,
procedendo deste modo, se contradiz. Pois o ideal que ela pre­
coniza, a saber, o máximo de liberdade e de iniciativa individuais,
não pode ser alcançado pelo indivíduo isolado. Abandonado a si
próprio, «o mais dotado dos indivíduos não passa de um grão que
o vento lança ao acaso e que, noventa e nove vezes em cem, não
germina» Que pode o infeliz operário, reduzido unicamente aos
seus próprios recursos, contra o rico e poderoso patrão; e não
haverá uma verdadeira e cruel ironia em assimilar duas forças tão
manifestamente desiguais? Se elas entrarem em conflito não é evi-
dente que a segunda esmagará sempre e sem esforço a primeira?
Que liberdade é esta, e não será o economista, que com ela se satis-
faz, culpado de criar e de nos oferecer uma ilusão?

Para este mal, qual o remédio? Já o indicámos: é a solidarie-


dade. Reconhecemos a ideia que já servia de tema ao excelente
pequeno livro do mesmo autor sobre as condições sociais da felici-

* Questions sociales, p. 471.

180
dade e da força. Se sofremos, se nos sentimos mal, é porque um
sopro de desorganização passou através da sociedade. Quebraram-
se os velhos elos sociais sem que nada os substituísse. Como os
indivíduos se sentem afastados uns dos outros, cada qual deixa
de sentir o seu próximo e cada um puxa para seu lado. Donde con­
flitos, agitações e dolorosas divergências. Para que haja maior har­
monia nos movimentos, é necessário que os homens se aproximem
para que cada um sinta que não está só no mundo. Que se unam
em famílias fortes e fecundas! Que se unam em grupos corpora­
tivos, sociedades de socorro mútuo, sociedades cooperativas, socie­
dades de poupança colectiva e de previdência, sindicatos profissio­
nais onde o indivíduo encontra simultaneamente a experiência,
o exemplo e a protecção de que necessita. Mas que estas associa­
ções permaneçam livres! O Estado é uma máquina demasiado pe­
sada, que oprime tudo em que toca e que não poderia deixar de
falsear os recursos tão delicados da actividade individual. Embora
com as melhores intenções, o Estado domina sempre aqueles que
protege. Mas se não for a opressão, o que é que pode levar os
homens a associarem-se? Fica-nos unicamente a atracção moral.
E efectivamente, com grande perspicácia de psicólogo, Coste enu­
mera todos os meios que permitiríam às associações atrair os indi­
víduos e os capitais isolados, levar os primeiros à poupança e esti­
mular o gosto pela vida corporativa. Mas, para pôr em acção estes
diferentes meios, não bastam regulamentos administrativos e pre­
ceitos abstractos de economia política. São necessários homens que
tenham o sentimento da delicadeza da vida e da complexidade dos
mobiles que dirigem o coração humano. É efectivamente um difícil
problema de psicologia prática levar o operário à poupança. Não
basta, como crêem economistas e socialistas, que a taxa dos salá­
rios aumente, quer seja por acção de uma lei de segurança pública,
quer devido a um acréscimo natural da produção. É igualmente
necessário que a poupança tenha um objectivo determinante.
«O camponês tem este objectivo, é a aquisição de gado ou de terra.
O operário das cidades não o tem; mesmo que encontrasse maneira
de poupar, não teria a faculdade de empregar directamente a sua
poupança em seu próprio benefício. Sempre que esta possibilidade
existe, a poupança é abundante, o trabalhador está satisfeito: possi-
bilitemo-la então aos trabalhadores da indústria!» Ora, ela não lhes

181
pode ser possibilitada, segundo o autor, senão através de associa­
ções dirigidas por homens de cabeça e coração.
Como se verifica, o autor não é um puro economista; pelo
menos não hesita em fazer intervir em economia política considera­
ções estranhas a esta ciência. Aliás, os economistas realmente clás­
sicos começam a tornar-se raros. Com a perseverança que a carac­
teriza, a Alemanha há muito que procura, através de doutrinas
bastante divergentes, o novo método econômico de que sente a
necessidade, mas que ainda antevê confusamente. Em Inglaterra,
a fé no velho liberalismo parece ter sido muito abalada. Em França,
há já alguns anos, produziram-se finalmente dissidências bastante
notáveis dentro da ciência econômica. Précis, de Cauvès, c os tra­
balhos de Gide assinalam evidentemente uma nova tendência. Entre
estes neo-economistas, Coste tem um lugar à parte. Enquanto
Cauvès se afasta da tradição ortodoxa por ser um jurista, Coste
afasta-se porque é um psicólogo e um moralista. Ele percebe que
a paixão pelo bem-estar e pelo consumo não é a única que motiva
os homens; que há outras coisas neste mundo, outras necessidades
e outras aspirações; que a moral não é uma ciência sentimental,
mas que é composta por leis objectivas que devem penetrar e que
efectivamente penetram os factos econômicos.
Só que a moral, tal como Coste a concebe, é inteiramente indi­
vidualista e utilitária. É para garantir a felicidade do indivíduo que
ele recomenda a solidariedade. Ora, uma moral individualista nunca
pode ter senão um valor individual e subjectivo. Sou o juiz único
para a minha felicidade e para o meu ideal. Cada qual torna o seu
bem-estar material ou moral onde ele se encontra. Nós sofremos,
diz Coste, porque estamos demasiado isolados uns dos outros. Apro-
ximemo-nos e unamo-nos! Mas, argumentará um economista, eu
prefiro a minha independência com os sofrimentos que já lhe
conheço, com as suas lutas e com os seus riscos a essas associações
que vós louvais e que, por muito delicadas e discretas que sejam,
me levarão sempre algo da minha personalidade. Como respon­
der a esta linguagem? É uma questão de gosto e de sentimentos
e os gostos não se discutem. Ora, efectivamente, não estaremos
todos os dias a assistir em nosso redor a diálogos semelhantes
àquele que acabámos de imaginar? É que, efectivamente, quando
um estado social, mesmo decadente, resistiu um certo tempo, os
espíritos muito maleáveis não tardam em adaptar-se: por uma espé-

182
cie de perversão dos instintos sociais eles acabam por ter necessi­
dade deste estado de coisas tal como se ele fosse normal e natural.
A moral só pode dispor de uma autoridade objectiva se apenas
visar a felicidade ou o aperfeiçoamento do indivíduo. Ela nada é
se não for uma disciplina social. O que ela exprime são as condi­
ções de existência das sociedades. Ora, estas condições não se modi­
ficam de um dia para o outro; não dependem dos caprichos de cada
um, mas resultam da própria natureza das coisas e impõem-se a
todos com uma força obrigatória. O economista não pode abstrair-
-se disto e portanto a economia política não se basta a si mesma
e não pode dispensar a moral. A necessidade de uma alimentação
abundante não é a única que o organismo social sente. Há muitas
outras que frequentemente são deixadas para segundo plano. Que
diriamos nós de um fisiólogo que, depois de ter estudado o estô­
mago como se este constituísse só por si um organismo completo,
concluísse toda uma higiene desta ciência mutilada? Triste higiene
com certeza, à qual não resistiría o organismo demasiado dócil que
a ela se tivesse submetido. No entanto, é assim que procedem os
economistas que reclamam para a sua ciência e para a arte que dela
resulta total independência. Mas, por outro lado, os princípios
econômicos só se podem vergar face a necessidades sociais devida­
mente confirmadas. Se a solidariedade tem ou deve, portanto, ter
um lugar em economia política, não é porque satisfaz certas ten­
dências individuais, por mais legítimas que sejam; é porque ela
é a própria condição da vida social. Efectivamente, uma sociedade
cm que os membros não estivessem ligados uns aos outros por
qualquer elo sólido e durável assemelhar-se-ia a um montão de pó
desagregado que ao mínimo vento se dispersaria em todos os sen­
tidos do horizonte.
Chegamos assim à mesma conclusão que Coste, mas por outras
razões; e a diferença teórica que dele nos separa implica outras de
ordem prática. Efectivamente, se a solidariedade só traz vantagens
para o indivíduo, é natural que, tal como faz Coste, se recuse ao
Estado o direito de se preocupar com isso. O Estado desempenharia
mal uma tarefa que não o interessasse. Mas se a solidariedade é
antes de mais uma das condições de existência da sociedade, então
a situação inverte-se. É o indivíduo que é incompetente; pois, não
conhecendo do mundo senão o pequeno espaço onde se movimenta,

183
ele está mal situado para julgar dos interesses da comunidade. É ao
Estado que compete esta tarefa; e é por isto que dizíamos no início
que a economia política não pode deixar de ser uma ciência do Es­
tado. É verdade que os economistas escapam a esta consequência
negando as premissas e reduzindo a sociedade a uma simples justa­
posição de indivíduos. Mas é precisamente este o erro da ciência
econômica. Quer se queira quer não, quer sejam um bem ou um
mal, as sociedades existem. É no seio de sociedades constituídas que
a actividade econômica se manifesta. A lógica nada pode contra um
facto que complica, é verdade, os dados do problema, mas do qual
não se pode abstrair '.
Se quisermos ver em que se transformam as questões econômi­
cas quando as analisamos do ponto de vista da sociedade em vez
do ponto de vista do indivíduo, basta ler a brochura de Schaeffle
sobre a quinta-essência do socialismo. Este pequeno livro, que sabe­
mos ter tido um imenso sucesso na Alemanha, em França foi vítima
de interpretações muito inexactas que seria bom explicar.
Foi Benoit Malon que o introduziu entre nós2. Malon pensou
reconhecer em Schaeffle, apesar de algumas dissidências de porme­
nor, um colectivismo suficientemente ortodoxo e apresentou-o como
tal ao público francês. Quanto a isto, Paul Leroy-Beaulieu, no seu
livro Critique du collectivisme, não teve outra alternativa senão
ceder um lugar a Schaeffle, cujo socialismo recusou. Porque é que
ninguém protestou, isso não sabemos. Acontece que Schaeffle pu­
blicou no ano passado uma nova brochura onde rejeitava a acusa-

1 O livro de Coste termina com alguns estudos de Arréat e Burdeau sobre


a instrução publica, que infelizmente não têm lugar no quadro da Reune Mas con­
vém mencioná-los. Apesar de algumas divergências quanto ao pormenor, as visões
comuns dos dois escritores podem ser resumidas da seguinte maneira: na base
de toda a educação, um ensino geral conduziría a criança até aos treze anos. Nesta
altura, um sistema de bifurcação separaria as crianças cm duas grandes correntes,
uma que terminaria aos quinze anos e fornecería à sociedade operários, contrames-
tres e todo o gênero de amanuenses; a outra, continuando até aos dezassete ou
dezoito anos e dividindo-se então em três ou quatro ramos para lançar nas facul­
dades e nas escolas do Estado uma éliie de jovens apetrechados com uma cultura
geral bastante completa. Dentro dos liceus, abolição do grego e do latim. As ciên­
cias, a história e a filosofia seriam a base do ensino. Lembremos um justo reparo
de Burdeau: o verdadeiro meio de converter os jovens à filosofia é relacionar os
problemas, mesmo abstractos, com as questões morais c sociais.
2 Malon fez uma tradução, aliás bastante imperfeita, do opúsculo; por isso se
vê a palavra zuchtwahl traduzida por assimilação.

184
ção de colectivismo'. Esta obra lançou economistas e socialistas
numa verdadeira confusão. Um redactor do Journal des econo-
mistes, num artigo extremamente violento, acusou vigorosamente
Schaeffle do desprezo de que tinha sido vítima. No entanto, Schaef-
fle não era o culpado. Supondo que o seu opúsculo não fosse escla­
recedor — o que não é o caso —, ter-se-ia evitado tão estranho
mal-entendido se, antes de o louvar ou criticar, se tivesse cuidado
de ler uma ou outra das suas mais importantes obras. Não se julga
um homem, com uma obra tão considerável, com base numa bro­
chura de sessenta páginas.
A questão levantada em Quintessence poder-se-ia formular
assim: até hoje a vida econômica não passou de um conjunto de
reflexos; em que é que ela se tornaria se a relacionássemos com os
centros conscientes do organismo social? E portanto um estudo
objectivo da ideia socialista. O autor propõe-se verificar o seu con­
teúdo, den Inhalt des Socialismus zu constatiren-, revelar as suas
vantagens e as desiderata-, desobstruir assim o caminho dos argu­
mentos fracos e desusados que há muito se utilizam entre as duas
partes, sem que ninguém se pronuncie quanto ao fundo do debate.
Ele mostra-nos igualmente2, por várias vezes, na doutrina socialista
lacunas cuja importância não tenta minimizar. É verdade que, no
terceiro volume do seu Bau und Leben des socialen Kõrpers, ele
indicou como se poderíam superar estas lacunas. Mas não é por
isto que ele é colcctivista. Estão demasiado vincados nele o senti­
mento da realidade e da complexidade das coisas para que ele atri­
bua mais do que um valor lógico a uma simples construção do espí­
rito. Ele inclinar-se-ia sem dúvida a acreditar que seria possível
desembaraçar a concepção socialista de todas as contradições inter­
nas, na condição de se renunciar aos princípios fundamentais da
teoria de Marx. Será que isto quer dizer que o socialismo assim
renovado poderá passar aos factos? Só a experiência o pode provar
e ela não se pretende lógica. Não será pelo menos necessário afir­
mar que o individualismo é o melhor sistema que imaginar se pode,
como Schaeffle pretende demonstrar.

1 Die Aussichlslosigkeil der Socialdeiriocratie. Leroy-Beaulieu pensou se a publi­


cação desta última brochura não teria sido determinada pelo seu livro sobre o
colectivismo (v. prefácio da 2.‘ edição). Podemos afirmar que tal não aconteceu.
: Especialmente nas páginas 31 e 49.

185
O opúsculo de Schaeffle não é portanto nem uma declaração
de colectivismo, nem, como facilmente se afirmou, um simples jogo
de espírito.
Ele propõe-se apenas mostrar, isolado e como que no estado
de pureza, todo um lado das coisas que os economistas muitas vezes
preferem ignorar. Ele revela-nos os problemas econômicos sob o seu
aspecto social. Numa palavra, e isto resume bastante nitidamente
a nossa impressão, a melhor maneira de iniciar um jovem aos pro­
blemas da economia política seria dar-lhe o livro de Schaeffle
Quintessence du socialisme e o de Bastiat Harmonies economiqties,
para ele ler ao mesmo tempo.

4. Se não nos enganamos nesta análise, por rápida que tenha


sido, deduz-se desde já o plano segundo o qual a ciência tende a
organizar-se.
Há quem ainda não acredite no futuro da sociologia. O argu­
mento preferido é que não se distingue nitidamente nem o seu
objecto nem as suas divisões nem o seu programa. Esses descon­
fiam de uma ciência que se anuncia ao mundo como uma novidade,
sem antecedente histórico. Neste aspecto têm razão. Se, como por
vezes se pretendeu, a sociologia datasse realmcnte de Auguste
Comte, se nessa altura ela tivesse saído do nada, partilharíamos
esta legítima desconfiança. Não há mais revoluções e criações brus­
cas no mundo da ciência do que no mundo das coisas. Qualquer
ser existente é o produto de uma evolução. Mas é uma ilusão pen­
sar que a sociologia data de ontem e é o fruto de uma brilhante
improvisação. Ela existe desde sempre, num estado latente e difuso;
o maior serviço que Comte e a sua escola prestaram foi simples­
mente terem mostrado a unidade destas investigações, aparente­
mente incoerentes, terem dado à ciência social um nome e uma
personalidade e terem-na integrado no sistema das ciências posi­
tivas. Os fenômenos econômicos, o Estado, o direito, a moral, a
religião foram desde sempre estudados cientificamente, dando
assim origem a cinco ciências que temos o direito de chamar socio­
lógicas.
Só que estas ciências têm de permanecer fiéis a este título
que muitas vezes esquecem. Eis o importante passo que lhes falta

186
dar. A ciência social, segundo Maurice Block ', «vê apenas os ho­
mens, abstracção feita desse elo exterior a que se chama Estado».
Por outras palavras, a ciência dita social deveria estudar os homens
supondo que eles não vivem em sociedade. Seria de facto melhor
dar-lhe outro nome ■— argumentam que o Estado e a sociedade são
coisas distintas —, sim, mas com uma condição, é que se considere
o Estado como um elo exterior, como um sistema artificial que se
acrescenta à sociedade, mas que não resulta dela. É esta a concep­
ção simplista de Rousseau à qual a escola econômica adere opinio-
samente e isto depois de um século de experiências que pareciam
não terem sido nada favoráveis à teoria do Contrat social. As coi­
sas são mais complexas. Uma sociedade não é uma colecção de indi­
víduos que uma máquina enorme e monstruosa manteria violenta­
mente ligados e apertados uns contra os outros. Não, a solidarie­
dade vem de dentro e não de fora. Os homens atraem-se entre si
tão naturalmente quanto os átomos do mineral e as células do orga­
nismo. A afinidade que os aproxima uns dos outros é a simpatia,
sentimento de que encontramos os primeiros germes nas sociedades
animais, que cresce, que se transforma com o progresso, mas que
não é menos natural ao homem do que o egoísmo, ao qual os
economistas pretenderiam, para maior facilidade, reduzir o coração
humano.
A cada instante do seu desenvolvimento, esta solidariedade
exprime-se exteriormente por uma estrutura apropriada. O Estado
é uma dessas estruturas. O Estado é a forma exterior e visível da
sociabilidade. Assim, abstrair da sua existência é, tal como dizía­
mos, supor que os homens não vivem em sociedades. É admitir
como um axioma que não há nem pode haver entre eles senão con­
tactos exteriores e aproximações passageiras, determinadas por en­
contros interessados e sempre fortuitos. Objectar-se-á que a abs­
tracção é um processo legítimo da ciência. Com certeza. Mas
abstrair é distinguir na realidade uma parte que se isola: não é
criar todos os elementos de um ser racional. Ora o homem e a
sociedade que os economistas concebem são puras imaginações que
em nada correspondem à realidade. O sociólogo deverá portanto
considerar os factos econômicos, o Estado, a moral, o direito e a
religião como funções do organismo social e estudá-los-á enquanto

1 O artigo «Science sociale» no Diclionnaire politique.

187
fenômenos que se passam no seio de uma sociedade fechada e defi­
nitiva. Sob este ponto de vista, as coisas mudam imediatamente
de aspecto. A economia política perde, como já vimos, a sua auto­
nomia visto que não se pode estudar uma função social isolando-a
completamente das outras. O Estado deixa dc ser uma construção
lógica que se pode arrumar e desarrumar à vontade. É um órgão que
concentra e exprime toda a vida social. O direito e a moral já não
são colecções de máximas abstractas e de preceitos imutáveis, dita­
dos pela razão impessoal, mas coisas vivas que saem das próprias
vísceras da nação e partilham os seus destinos. Aliás, note-se que
esta concepção da moral e do direito não são irreconciliáveis com
nenhuma metafísica. Que os princípios da ética sejam ou não resul­
tantes da experiência, certo é que têm uma função social. E unica­
mente esta função que a ciência social procura determinar. Foi o
que permitiu a um idealista como Ahrens levantar o problema nos
termos que acabamos de dizer.
A sociologia contém portanto desde já três ciências particulares,
uma que estuda o Estado, outra as funções reguladoras (direito,
moral e religião) e por fim a terceira que estuda as funções econô­
micas da sociedade. Além desta sociologia normal, existe uma so­
ciologia patológica, de que a criminologia é a parte mais avançada.
Os notáveis artigos de Tarde revelaram aos leitores da Reviie philo-
sophique o actual estado desta ciência. No entanto, estes estudos
especiais não esgotam o campo da sociologia. A partir de Claude
Bernard concordou-se em admitir que, ao lado das ciências bioló­
gicas particulares, existe uma biologia geral que procura as proprie­
dades gerais da vida. Do mesmo modo, existe uma sociologia geral
que tem por objectivo estudar as propriedades gerais da vida social.
Ê esta ciência que, a bem dizer, é de origem recente e data real­
mente do nosso século. É a mesma que revelam os trabalhos de
Comte, de Schaeffle, de Spencer, de Lilienfeld, de Le Bon, de Gum-
plowicz, de Siciliani, etc. Mas não se deve pensar que ela foi criada
ex nihilo. Ela encontra, pelo contrário, materiais preparados nas
três ciências particulares de que acabamos de falar e das quais ela é
como que a síntese. É, pensamos, para este lado que se deviam
dirigir os espíritos filosóficos que este gênero de questões atrai.
É à sociologia geral que pertence estudar a formação da consciência
colectiva, o princípio da divisão do trabalho social, a função e os
limites da selecção natural e da concorrência vital no seio das socie-

188
dades, a lei da hereditariedade ou da continuidade na evolução
social, etc. Quanta matéria não teremos já aqui para belas genera­
lizações?
Discutir para saber se uma ciência é possível e viável é sempre
uma perda de tempo. No que se refere à sociologia a questão não
é só desnecessária; ela está prejudicada. A sociologia existe; vive
e progride; tem um objecto e um método; encerra uma variedade
suficientemente grande de problemas para justificar desde já uma
divisão do trabalho; suscitou trabalhos notáveis em França como
no estrangeiro e sobretudo no estrangeiro; e por fim ela é chamada
a prestar na ordem prática serviços incalculáveis. Efectivamente
só ela está apta a restaurar a ideia de unidade orgânica das socie­
dades, que eminentes doutrinadores actualmente destroem com ló­
gica. Só que, como diz Schaeffle a terminar a sua obra sobre a
estrutura e a vida do corpo social, é preciso não esquecer que a so­
ciologia, tal como as outras ciências, e talvez mais do que as outras,
só pode progredir através de um trabalho comum e de um esforço
colectivo.
6

OS PRINCÍPIOS DE 1789 E A SOCIOLOGIA

[7ja ou não para lamentar, a Revolução Francesa, de objecto


de fé que era, torna-se cada vez mais num objecto da ciência.
A doutrina revolucionária não nos surge já como um evan­
gelho impecável nem como um tecido de aberrações monstruosas,
mas pouco a pouco habituamo-nos a considerá-la apenas como um
facto social da mais elevada importância, cujas origens e alcance
procuramos conhecer. Começa a ser tempo de estudar objectiva e
imparcialmente esta história, embora ela ainda esteja muito asso­
ciada aos conflitos actuais. Seria curioso procurar de onde provém
esta transformação. Será simplesmente o efeito do afastamento das
coisas no tempo? Será o cansaço de lutar contra tendências irresis­
tíveis ou decepção causada por falhanços inesperados? É provável
que todas estas causas tenham simultaneamente concorrido para
produzir este movimento; seja como for ele existe. O livro muito
interessante que Ferneuil acaba de publicar sobre os princípios
de 1789 e a ciência social 1 é uma nova e importante manifestação
deste estado de espírito.
A questão que Ferneuil põe não é das que se resolvem com
uma palavra, pois os princípios de 89 podem ser considerados sob
os mais diversos aspectos. Eles constituem um acontecimento his-
tórico, um facto político e ao mesmo tempo uma teoria científica
da sociedade. Esqueçam as condições sociais em que eles se pro­
duziram e considerem-nos por si mesmos; encontrarão apenas um

1 Les príncipes de 1789 et la Science sociale, Paris, Hachette, 1889.


191
conjunto de proposições abstractas, definições, axiomas, teoremas,
que se apresentam como o resumo de uma ciência definitiva: é uma
espécie de breviário da sociologia, ou pelo menos de uma certa
sociologia. Mas coloquem-nos novamente no seu contexto histórico
e o ponto de vista modifica-se. Os homens da Revolução não eram
teóricos que imaginavam um sistema no silêncio dos gabinetes,
eram sim homens de acção que pretendiam ter sido chamados para
a reconstrução da sociedade em bases totalmente novas; é mais
do que evidente que tal reconstrução se não podia realizar segundo
um método científico. Na realidade, foram as necessidades e as
diferentes aspirações que caracterizavam a sociedade francesa que
guiaram os homens de Estado da época c determinaram as grandes
linhas de acção, acção simultaneamente destrutiva e reparadora
que eles realizaram. Os princípios famosos, mais do que as verda­
deiras relações das forças, exprimem apenas as suas tendências.
A autoridade vem-lhes, não por estarem de acordo com a realidade,
mas por serem conformes às aspirações nacionais. Acredita-se neles,
não como nos teoremas, mas como nos actos de fé. Não foram fei­
tos nem pela ciência nem para a ciência; resultam da própria prá­
tica da vida. Numa palavra, eles constituíram uma religião que
teve os seus mártires e os seus apóstolos, que agitou profundamente
as massas e que, em definitivo, suscitou grandes acontecimentos.
A distinção é importante: pois, consoante nos situarmos num
ou noutro ponto de vista, o julgamento que se faz quanto aos prin
cípios de 1789 modifica-se completamente.
Se considerarmos que são uma doutrina científica, devemos tra­
tá-los como tais e por conseguinte aplicar o método científico, único
que convém à ciência. É necessário verificar se eles se adaptam aos
factos que pretendem exprimir. Eles apresentam-se como uma ex­
plicação dos principais fenômenos sociais; será que real mente os
revelam? Será verdade que efectivamente «os homens nascem e
permanecem livres e iguais em direitos», que a «liberdade consiste
em poder fazer tudo o que não prejudica o próximo», etc.? Para
responder a estas questões basta confrontar a realidade dos factos
com as fórmulas que são supostas contê-los.
Mas este não é o único problema que se levanta. Admitindo
que, como verdades teóricas, os princípios de 1789 tenham sido
definitivamente rejeitados, eles subsistem como factos sociais> e
como expressão de um <estado de espírito de determinada época

192
e sociedade. Para os apreciar sob este ponto de vista, não basta
considerar à letra a fórmula para avaliar quanto à sua verdade
objectiva; pelo contrário, é preciso fazer abstracção para distinguir
as necessidades de que ela resulta e que ela resume e são estas
necessidades que temos de julgar. Os espíritos simplistas podem,
é verdade, pensar que para conhecer estas tendências e estas aspi­
rações basta desenvolver a fórmula que as manifesta e compreender
o seu sentido literal. Isto seria expor-se a graves erros. Efectiva-
mente, estas fórmulas são o resultado consciente de todo um pro­
cesso inconsciente. As causas longínquas de que este processo de­
pende escapam-nos devido ao seu afastamento no tempo e à sua
complexidade; só as consequências mais próximas e mais simples
penetram no campo da consciência. Como só nos é dado vê-las
separadas das condições que as explicam, somos obrigados a ela­
borá-las e a arranjá-las para as tornarmos inteligíveis. Por analogia
ou por qualquer outro processo de raciocínio, inventamos-lhes ra­
zões, na ausência das verdadeiras que não conhecemos, e é este
o resultado de todo este trabalho que traduzimos em proposições
claras e simples. Estas não podem deixar de reflectir apenas de
maneira inexacta a realidade subjacente. São símbolos, mas imper­
feitos e enganadores. Por exemplo, numerosas causas que o sentido
íntimo não consegue distinguir, que a própria análise científica difi­
cilmente encontra, há muito que obrigam as sociedades a proibir
os casamentos entre parentes. Hoje, de todas estas experiências
passadas nada sobrevive nas nossas consciências, a não ser o horror
que este gênero de união nos inspira. Para este horror procuramos
razões e encontramo-las variadas, consoante os países, os tempera­
mentos, razões religiosas aqui, fisiológicas ali, mas que, sabemo-lo
bem, nenhuma relação têm com as verdadeiras causas do fenômeno.
Se portanto não há relações directas entre estas fórmulas explica­
tivas e as necessidades sociais a que correspondem, não basta no
entanto recusar as primeiras para demonstrar a natureza doentia
das segundas. Não há religiões que, consideradas como doutrinas
científicas, resistam à crítica: a maior parte postula verdadeiras
heresias do ponto de vista da ciência. Mas não temos o direito de
concluir que elas tenham desempenhado ou desempenhem actual-
mente na história uma função nefasta. Pois é muito possível e até
infinitamente verosímil que, por insuficientes que sejam nas suas
explicações cosmológicas ou sociológicas, elas respondam a necessi-

193
7 - A Ciência Social c a Acção
dades reais e legítimas que de outro modo não teriam sido satis-
feitas.
Temos assim dois problemas perfeitamente distintos e indepen­
dentes, e este duplo aspecto da questão não escapou a Ferneuil.
Ele compreendeu perfeitamente que os princípios de 89 não depen­
dem pura e simplesmente do exame científico; que não são unica­
mente doutrinas mais ou menos exactas, mas factos sociais de que
o nosso desenvolvimento nacional é solidário desde há um século.
«A ciência», afirma com razão, «bem poderá destruir os princípios
de 1789, o dever restrito dos contemporâneos continuará a ser
o de recolher piedosamente na herança da Revolução estes tesouros
incalculáveis de fé patriótica, de devoção à causa pública e de soli­
dariedade nacional que os nossos pais deixaram para exemplo dos
seus descendentes.» No entanto, tal como o título do livro o indica,
é sobretudo na sua qualidade de cientista que ele os examina, e é
por isso que as suas conclusões puderam parecer demasiado severas
a certos críticos.
É que, no seu livro, os homens da Revolução não são os únicos
a serem atingidos. Sente-se perfeitamente pelo tom polêmico de
cada página que os adversários que ele combate não estão tão lon­
gínquos como se poderia pensar à primeira vista e que nem todos
tiveram ainda tempo de passar à história. Abstraíam efectivamcnte
os princípios de 1789 das circunstâncias de tempo e de lugar nas
quais eles se produziram; depreendam o espírito geral e poderão
reconhecer que ele ainda inspira a maior parte dos moralistas e dos
economistas franceses. É verdade que muitos deles protestam con­
tra tal aproximação; renegam os seus mestres, mas é porque são
discípulos inconsequentes ou ingratos. Uns e outros reduzem efec-
tivamente a ciência social a uma simples análise ideológica. Partem
do conceito abstracto do indivíduo em si e desenvolvem-no profun­
damente. Dada a situação de um indivíduo absolutamente autô­
nomo, dependendo apenas de si próprio, sem antecedentes histó­
ricos, sem meio social, como se deverá ele conduzir quer nas suas
relações econômicas, quer na sua vida moral, é esta a questão que
eles levantam e que procuram resolver pelo raciocínio.
Ora, como o autor demonstra, tal método não pode conduzir
a resultados objectivos. Procedendo deste modo conseguem-se ligar
conceitos, mas não podemos esperar que semelhante sistema ex­
prima as verdadeiras relações das coisas; uma vez que o indivíduo

194
que eles concebem não existe na realidade. O homem verdadeiro
nada tem em comum com esta entidade abstracta; faz parte de uma
época e de um país; tem idéias e sentimentos que não partem dele
mas do meio que o envolve; tem preconceitos e crenças; sujeita-se
a regras de acção que não elaborou e que no entanto respeita; tem
variadas aspirações e muitas outras necessidades além da de admi­
nistrar o seu orçamento; todas estas motivações heterogêneas cru­
zam e entrecruzam a sua acção de maneira que geralmente não é
fácil distingui-los e reconhecer a parte que cabe a cada um. Argu­
mentam que toda a ciência vive de abstracções, que não há dúvida
que o homem real e completo não é simplesmente uma individuali­
dade isolada e egoísta, mas que podemos concordar em estudá-lo
exclusivamcnte sob este ponto de vista. Com certeza, mas, para
que o resultado de semelhante investigação pudesse ter algum
valor, seria preciso que a abstracção fosse feita experimentalmente.
Teria sido necessário, senão para todos os tipos sociais, pelo menos
para aquele ao qual pertencemos, estabelecer através da observa­
ção quais as principais práticas que governam o comportamento
econômico e moral do homem; e em seguida isolar entre estes, por
meio de experiências adequadas, as que correspondem à faceta
egoísta da nossa natureza. Teríamos assim uma noção verdadeira­
mente correcta daquilo a que os economistas chamam indivíduo
e os moralistas pessoa, e da esfera de acção que lhe é própria;
poderiamos estudá-lo e, depois de termos determinado o que ele
é, procurar o que ele deve ser. Mas não é assim que os nossos teó­
ricos procedem. Este conceito de indivíduo, que efectivamente só
pode ser formado a partir de análises muito laboriosas, que supõe
que uma parte da ciência já esteja constituída, eles constroem-no
imediatamente por inteiro; consideram-no como uma dessas noções
muito simples e claras que o filósofo postula e não demonstra e
cuja exactidão pode facilmente ser verificada por toda a gente atra­
vés de uma introspecção e sem outro processo possível. Isto é dizer
que ela não tem mais do que um valor subjectivo.
Este erro de método traz um outro na doutrina, sendo este
da maior gravidade. Se procedermos com a lentidão que provámos
ser necessária, verificamos que a tal esfera de acção exclusiva do
indivíduo é de facto extremamente restrita. Pelo contrário, quando,
tal como os moralistas e os economistas desta escola, começamos
por supor o problema resolvido, é porque acreditamos e partimos

195
do princípio que esta parte exígua do homem é o homem na tota­
lidade. Esta é, a bem dizer, a ideia mãe de todos estes sistemas.
Se não se considera necessário proceder às experiências e às análi­
ses que acabamos de referir para isolar esta região da alma humana
das outras regiões, é porque se admite como um postulado que não
há grande coisa para além disso. Eis donde provém o individua­
lismo intransigente que é a fé comum de todos estes pensadores.
Este individualismo nunca foi nem pode ser demonstrado. Nunca
se provou em detalhe e através de uma comparação verdadeira­
mente experimental que as regras e as práticas que dominam e
governam a nossa vida jurídica, moral e econômica não tenham
outro objectivo nem outra razão de ser que o bem-estar moral e
material dos indivíduos. No entanto isto é um axioma, uma pro­
fissão de fé ou, para empregar uma palavra do gosto dos economis­
tas, apesar de ter uma cor pouco científica, uma ortodoxia. Mas
se realmente assim é, torna-se totalmente impossível reintegrar o
homem no meio social a que ele, no entanto, pertence. Se o homem
é essencialmente um todo, um ser pessoal e egoísta — egoísmo mo­
ral ou material, pouco importa—, se o seu único objectivo é o
desenvolvimento da sua personalidade moral (Kant) ou a satisfação
das suas necessidades com o menor esforço possível (Bastiat), a
sociedade surge como algo contra a natureza, como uma violência
para com as nossas inclinações mais fundamentais. Rousseau con­
fessa-o, ou melhor, proclama-o; Bastiat combate Rousseau, mas o
desacordo entre eles é apenas aparente. Ambos concordam efecti-
vamente em ver na sociedade — tal como ela existe com as suas tra­
dições e os seus preconceitos hereditários, os limites que ela impõe
ao indivíduo oprimindo-o através da opinião pública, dos costu­
mes, das leis, etc. — algo de fictício, de artificial, de monstruoso.
Os economistas dizem que o homem é, sem dúvida, naturalmente
feito para a vida social, mas eles subentendem: para uma vida social
que seria absolutamente diferente daquela que temos sob os olhos,
onde não haveria tradição nem passado, onde cada qual viveria em
sua casa sem se preocupar com os outros, onde a acção pública
serviría apenas para proteger cada indivíduo contra as interferên­
cias do próximo, etc. Quanto à sociedade, tal como cia se consti-
tuiu historicamente, ela é para eles um produto
] da opressão, uma
máquina de guerra contra os indivíduos, um vestígio de selvageria
que só se consegue manter pela força dos preconceitos e que mais

196
tarde ou mais cedo está destinada a desaparecer Rousseau nunca
pretendeu outra coisa.
Este é o duplo erro que Ferneuil muito corajosamente desmas­
carou e combateu. Pretendo que era preciso coragem para tal, pois
isto era insurgir-se contra uma opinião que, apesar de estar a per­
der terreno, está ainda muito generalizada em França. Esta é uma
maneira de ver e de sentir as coisas que a nossa educação, exclusi­
vamente literária, imprimiu vigorosamente nas inteligências. Uma
cultura puramente estética não relaciona tão directamente o espí­
rito com a realidade que lhe permita fazer dela uma representação
suficientemente adequada. Não é aprendendo a saborear as obras-
-primas das literaturas clássicas que se adquire o sentimento do
desenvolvimento orgânico da sociedade, da dependência em que nos
encontramos rclativamente às gerações anteriores e dos variados
meios que nos envolvem. Estes diferentes elos que nos ligam uns
aos outros e ao grupo de que fazemos parte não estão tanto à flor
da pele que para deles nos apercebermos baste ter o gosto desen­
volvido. Assim, quando não se recebeu outra educação, é-se neces­
sariamente levado a negar a sua existência, ou seja, a considerar
o indivíduo como uma potência autônoma que depende apenas de
si mesma e a sociedade como uma simples ligação de todas estas
forças independentes. É por isto que quem tentar reagir contra
este simplismo superficial e lembrar qual o verdadeiro lugar do
indivíduo na sociedade tem de enfrentar sentimentos e precon­
ceitos ainda muito vivos. E como tal concepção da vida colectiva
não se reduz a um desses sistemas de idéias nítidas que o tempera­
mento francês tanto aprecia, pensa-se que se lhe fez justiça por
tê-lo classificado desdenhosamente de importação germânica. Não
se pode demonstrar que a esfera da acção social se alarga à medida
que as sociedades se desenvolvem sem se ser acusado de socialismo
de Estado e tratado como um inimigo da liberdade. O nosso tem­
peramento, mesmo quanto a este assunto, está evidentemente a
modificar-se; desfazemo-nos pouco a pouco deste individualismo
mesquinho e sem generosidade. Todavia este movimento de regres­
são está apenas no início. O livro de Ferneuil contribuirá, espera-se,
para o acelerar. Sente-se uma tal sinceridade e uma tal seriedade
na convicção que é difícil ao leitor não se deixar convencer.

' Ver em especial Molinari, L'évolution politique.

197
Quanto ao segundo problema que os princípios de 1789 levan­
tam, o seu estudo pareceu-nos menos completo e menos profundo.
Reconhecendo embora, como já afirmámos, a legitimidade dos dois
pontos de vista, ele examinou as idéias da Revolução sobretudo
como uma teoria da sociedade e não como um facto social. Ele
parece nada ver de específico no espírito revolucionário, excepto
um gosto exagerado pelo absoluto que as circunstâncias excepcio­
nais em que a França se encontrava então explicam. Mas este gosto
do absoluto não é próprio à Revolução, reencontramo-lo em todas
as épocas criadoras, em todos os séculos em que havia uma fé nova
e ousada. Ferneuil sabe-o e di-lo ele próprio no seu livro; sempre
que lançamos mão a uma grande iniciativa, gostamos de pensar que
trabalhamos para a eternidade. Deste modo não podemos revelar
senão o carácter geral dos célebres princípios, isto é, a sua forma
categórica e absoluta. Tudo o que têm de próprio e de especial
continua por explicar. Aliás, eles sobreviveram ao tempo e expan­
diram-se muito para além do país onde nasceram. Grande parte
da Europa acreditou e ainda acredita neles. Eles dependem, por­
tanto, não de circunstâncias acidentais e locais, mas de uma trans­
formação geral que ocorreu na estrutura das sociedades europeias.
Só quando conhecermos com precisão qual foi esta transforma­
ção poderemos qualificar definitivamente os princípios de 1789 e
dizer se eles constituem um fenômeno patológico ou se, pelo con­
trário, eles representam simplesmente uma transformação neces­
sária da nossa conciência social. Sobretudo, só então poderemos
resolver esta outra questão: quais são os destinos da religião revo­
lucionária? Em que é que ela se tornará? Problema grave com cer­
teza, e consideramos perfeitamente natural que ele tenha atraído
um escritor preocupado com o futuro da pátria. Efectivamente, não
há problema que mais se imponha aos legisladores e aos homens
de Estado. Não resultarão todas estas dificuldades com que os
povos actualmente se debatem da dificuldade que temos em adap­
tar a estrutura tradicional das sociedades a estas aspirações novas
e inconscientes de si mesmas que há mais de um século as moti­
vam? Mas mais uma vez, para saber qual é o sentido destas aspira­
ções e qual a sua origem, não basta meditar sobre as fórmulas que
as traduzem para o consciente, pois não há nada menos seguro do
que a exactidão desta tradução.
Aliás, é preciso acrescentar que esta questão é mais da compe-

198
tência da arte política do que da ciência social. Ao apresentar ao
público o livro de Ferneuil, Albert Sorel mostrava-se inquieto com
as ambições excessivas da nossa jovem ciência. «Então», clamava,
«convoca-se um concilio de sociólogos para resolver estes proble­
mas!» Tais acusações poderíam ter sido merecidas por Saint-Simon
ou por Comte, mas hoje não se dirigem a ninguém. À medida que a
sociologia se constitui, separa-se cada vez mais nitidamente daquilo
a que se chamou, aliás fora de propósito, ciências políticas, espe­
culações bastardas, meio teóricas meio práticas, meio ciência meio
arte, que por vezes ainda se confunde, sem razão, com a ciência
social. Esta, como qualquer ciência, estuda aquilo que é e aquilo
que foi, procura as leis, mas não se interessa pelo futuro. Ferneuil
pôde por vezes ter abusado destas expressões: a sociologia admite,
a sociologia rejeita. Mas são erros de formulação que não traduzem
o seu pensamento. Basta ler o seu capítulo sobre a arte e a ciência
para compreender que ele não confunde os dois campos. As difi­
culdades práticas só podem ser definitivamente resolvidas através
da prática e da experiência quotidianas. Não será um conselho de
sociólogo mas as próprias sociedades que encontrarão a solução.
Mas só pode ser proveitoso que um homem como Ferneuil, a par­
dos resultados da ciência, reflicta sobre estes assuntos, e é por isso
que os homens dc acção não terão menos interesse em ler o seu
livro do que os homens de ciência.
7

SOBRE A DEFINIÇÃO DO SOCIALISMO

A definição que, com uma certa razão, um leitor da Reviie


ZA fhilosophiqtie reclama, parece-me só ter interesse se expri-
JL JL mir mais do que uma visão do espírito; se for uma defini­
ção de coisa, não de conceito. O que interessa não é saber qual
é a nossa doutrina particular; em que é que consiste este facto
objectivo que se desenvolve sob os nossos olhos e a que se chama
socialismo; pois só nesta condição será possível julgar e prever em
que é que ele se tornará e deverá tornar no futuro. Para que as
discussões de que ele é quotidianamente objecto não sejam simples
conflitos de paixão e de interesse, para que tomem um carácter
realmente científico, é preciso antes de mais estabelecer de que é
que se está a falar; é a esta necessidade lógica que a definição
pedida deve responder.

1. Para resolver o problema que assim se levanta, não pode­


mos evidentemente empregar o método dialéctico que Belot pre­
coniza numa nota que aqui publicou sobre o assunto (número de
Agosto) *. Analisar, como esse método pretende, a ideia do socia­
lismo é analisar a ideia que individualmente dele fazemos e não
o próprio socialismo. A matéria desta análise lógica é uma concep­
ção do espírito cujo valor objectivo não está de maneira alguma
garantido. Belot parte assim desta ideia de que o socialismo é «o
oposto do individualismo» (p. 183, in fine), enquanto este pre-

1 Reune philosophique, Agosto de 1893.

201
tenso antagonismo não está de modo algum demonstrado De
resto, é tão certo que se trata de expor o socialismo pessoal do
autor que a sua definição está apoiada numa série de afirmações
muito discutíveis ou pelo menos muito discutidas. Encontraremos
nestas poucas páginas, rapidamente esboçada e demonstrada, uma
teoria sobre a sociedade em geral, uma outra sobre o Estado, uma
outra sobre o contrato social, teorias que são a própria base da fór­
mula proposta e que, no entanto, estão longe de serem universal­
mente aceites. É verdade que se apresenta esta fórmula como se
ela exprimisse a essência do socialismo, mas com que direito? As
propriedades essenciais de uma coisa são aquelas que se verificam
sempre que essa coisa existe e que não pertencem senão a ela. Se
quisermos portanto saber em que é que, na sua essência, o socia­
lismo consiste, é preciso distinguir os traços que são sempre os
mesmos em todas as doutrinas socialistas sem exccpção. Ora, o
socialismo particular a tal ou tal sociólogo nunca passa de uma
das inúmeras variedades do gênero; não é o próprio gênero. Admi­
tindo mesmo que ele seja o único verdadeiro, que todas as outras
formas do socialismo estejam erradas e sejam, a bem dizer, mór­
bidas, não temos o direito de abstrair disso na definição do fenô­
meno. O socialismo errado continua a ser socialismo; desprezando-o
sistematicamente, arriscamo-nos a fazer da realidade que estudamos
uma noção truncada, visto que ela se apoia numa observação incom­
pleta. Na prática, só podemos saber o que é que constitui a essên­
cia de um facto se tivermos em conta não só as formas anormais
e patológicas que ele apresenta como as formas normais; é uma
verdade que está na base dos novos métodos psicológicos e que se
impõe com igual autoridade ao sociólogo 2.
No entanto, diz-se, uma vez que «historicamente se reconhece
uma doutrina como idealista, panteísta, socialista, etc., é porque se
tem, independentemente da história, uma ideia geral das tendências
que estas palavras representam e que estão classificadas in abstracto

1 Parece que o autor abandonou este antagonismo na conclusão do artigo.


•' De resto não se compreende como é que é possível qualificar de errado
ou de anormal tal ou tal socialismo, sem se ter constituído o tipo normal. É neces­
sário saber o que é que ele é efectivamente antes de procurar o que ele deve
ou não ser.

202

l
no espírito com mais ou menos precisão» Parece-nos assim que
basta tomar consciência desta ideia e exprimi-la em termos claros
e definidos. Mas é um erro considerar que esta ideia seja ante­
rior ao conhecimento das doutrinas. Pelo contrário, é delas que ela
resulta. Como poderia ter ela outra origem? Não existem, já feitas,
no espírito, tantas categorias especiais quantas as escolas filosóficas
ou sociológicas. A verdade é que ela se formou pouco a pouco, à
medida em que nos iniciávamos nas diferentes formas que histori­
camente cada sistema apresenta, e ela reproduz os seus traços mais
evidentes, ou melhor, aqueles que mais nos chocaram. Ela é como
que a sua imagem genérica. O método dialéctico, se o fizermos
consistir na análise destas idéias, aplica-se portanto a noções for­
madas empiricamente e, por conseguinte, os resultados a que con­
duz não têm outro valor que o das próprias noções. Ora elas for-
maram-se de tal maneira que nada podem ter de científico. Elas
constituíram-se efectivamente sem método, segundo o acaso dos
encontros, sob a força de mil circunstâncias sem relação com a rea­
lidade intrínseca do objecto ao qual correspondem? Nós não sabe­
mos, efectivamente, se as doutrinas particulares que conhecemos
esgotam todas as variedades do sistema; sobretudo não temos a
certeza que os traços que mais nos chocaram sejam verdadeira­
mente os mais essenciais. É inevitável que, pelo contrário, paixões
e todo o gênero de preconceitos tenham vindo alterar a observação,
pôr em evidência tal carácter secundário ou apagar artificialmente
tal propriedade fundamental; pois não tomámos, para afastar esta
fonte cie erros, nenhuma das medidas preventivas que constituem
o próprio método da ciência. Por isso podemos estar seguros que
semelhante ideia do socialismo está para a noção científica do fenô­
meno como a representação vulgar do Sol ou da Terra está para
a concepção que o astrônomo deles tem. Não é portanto da aná­
lise de tal noção que alguma vez conseguiremos definir o que ela
tão inexactamente traduz. Mas, para obter esta definição, é preciso
voltar ao próprio objecto, procurando alcançá-lo através de proces­
sos mais metódicos.
É certo que Belot procura em seguida confirmar as conclusões
do método dialéctico através do método histórico e empírico. Mas
esta verificação é na verdade conduzida segundo o mesmo espírito

1 Loc. cit., p. 183.

203
c segundo os mesmos princípios que a própria prova que visa con­
trolar. Ela apenas pretende, de facto, realçar que a definição dada
responde a essas doutrinas socialistas que existiram historicamente,
não que todas as manifestações do espírito socialista sem excepção a
ela se conformem. Por isso o autor vê-se obrigado a deixar à mar­
gem da sua fórmula quase todo o socialismo alemão. Não é no
entanto um factor desprezível.

2. Vê-se, pelo que precede, qual o método que seria necessário


seguir para tratar cientificamente a questão.
Existe um certo número de doutrinas que são qualificadas e que
se qualificam de socialistas. É legítimo considerá-las como expres­
sões diferentes dessa tendência geral a que se chama espírito socia­
lista. Se portanto existirem entre todas estas doutrinas caracteres
comuns e se for possível descobri-los, poderemos então fazer disso
matéria para a definição que se procura.
Para o conseguir, seria preciso comparar todas estas doutrinas
entre elas, desde o mais tímido socialismo da cátedra ao colecti
vismo mais revolucionário, classificá-los quanto aos gêneros e espé­
cies, comparar em seguida os tipos assim constituídos para deter­
minar o que eles têm em comum. O próprio enunciado deste
método basta para mostrar que nós não poderiamos, neste curto
apontamento, pô-lo em prática com toda a sequência e exactidão
desejáveis. Mas, mesmo sem proceder com rigor a esta análise e a
esta classificação, não é impossível compreender e indicar as ten­
dências que se encontram em todas as doutrinas socialistas que
conhecemos. É o que tentaremos fazer.
Uma primeira característica que todas sem excepção apresentam
é que protestam contra o actual estado econômico, cuja transforma­
ção reclamam, quer ela seja brusca ou progressiva. Embora, cm
rigor e por generalização, a palavra socialismo possa ser entendida
num sentido mais lato, as chamadas teorias socialistas são de facto
essencialmente relativas a esta esfera especial da vida colcctiva a
que se chama vida econômica. Isto não é dizer que a questão social
seja uma questão de salários; somos, pelo contrário, daqueles que
pensam que ela é, antes de mais, moral. Só que as transformações
morais a que o socialismo aspira dependem de transformações na
organização econômica; adiante indicaremos como é que as pri­
meiras se ligam às segundas.

204
Eis que o sentido da palavra se começa já a circunscrever e a
determinar. Mas agora, entre todas as transformações defendidas
pelas diversas seitas socialistas, o que é que há em comum?
O que caracteriza o actual estado das funções econômicas é a
sua difusão. Esta difusão processa-se a bem dizer em dois graus.
Primeiramente, elas são difusas porque não têm por substrato
nenhum órgão definido. Efectivamente, as empresas concorrentes,
dedicando-se a um mesmo objectivo ou a objectivos similares, não
estão agrupadas de modo a formar, no seio da sociedade, um todo
com alguma unidade. Não há uma empresa única e colectiva, rami­
ficando-se através das diferentes regiões e encarregada da explora­
ção das minas de carvão, por exemplo, ou da produção dos cereais,
ou da fabricação dos tecidos, etc., para todo o país. Mas cada casa
particular é totalmente independente das outras. Podem evidente­
mente ter relações entre elas, agir e reagir umas sobre as outras;
mas não têm objectivos comuns. Cada um trabalha para seu lado,
defende os seus próprios interesses e não outros quaisquer. Pode
acontecer que todas sejam afectadas da mesma maneira por um
mesmo acontecimento, uma fome, por exemplo, ou uma guerra.
Mas por todas reagirem da mesma maneira sob influência de uma
mesma causa não quer dizer que da sua reunião resulte uma vida
própria. Cada estabelecimento tem a sua individualidade, o con­
junto não. Ora, um órgão é uma associação entre um certo número
de unidades anatômicas, unidas por um elo de solidariedade tal que
a sociedade assim constituída tem uma verdadeira personalidade
dentro do organismo quer individual, quer social. Se portanto é
permitido dizer que estas empresas dispersas são como que os frag­
mentos e a matéria de um órgão, no entanto o órgão não existe,
não porque elas não sejam materialmente contíguas, mas porque
não formam nenhuma comunidade moral.
Em segundo lugar, as funções econômicas estão igualmente
difusas porque não estão regularmente ligadas ao órgão regulador
central, quer dizer, ao Estado. É evidente que não escapam total­
mente à influência social; já mostrámos como é que o direito exerce
sobre estes tipos de relações uma acção moderadora '. Mas esta
acção é por sua vez difusa. O legislador definiu o tipo normal de

1 De la diuisioti du travail social, passim, mas sobretudo pp. 230-239 (pp. 189-
-197, cd. 1960).

205
troca dentro das principais combinações de circunstâncias que se
revelam ao longo da experiência habitual. Este tipo impõe-se efec-
tivamente aos mercadores na maior parte dos casos; eles permane­
cem no entanto livres de se afastarem de comum acordo e o Estado
não intervém directamente para os obrigar a submeterem-se-lhe.
Não há um corpo especial de funcionários encarregados, com maior
ou menor autoridade, de administrar a vida econômica; ou então,
aqui e ali, esta administração começa a aparecer, ainda é apenas
rudimentar e foi, de resto, sob a influência das idéias socialistas
que ela surgiu. Regra geral, o jogo regular e normal das funções
industriais e comerciais escapa ao conhecimento do Estado e, por
conseguinte, não é directamente accionado por ele. Ora é evidente
que, num organismo onde o trabalho está dividido, as funções não
podem deixar de ser difusas para passarem a ser organizadas senão
quando estiverem estreitamente ligadas ao órgão central; pois é
unicamente por intermédio deste último que lhes é possível par­
ticipar na vida geral, visto ele estar especialmente encarregado
disso. Não temos de discutir se é bom que assim seja; compete-
-nos apenas enunciar o facto que é incontestável.
Posto isto, é fácil verificar que todas as escolas socialistas con­
cordam unanimemente em protestar contra este estado de difusão
e em reclamar o seu fim. Todas exigem que as funções econômicas
sejam organizadas. É verdade que a organização que elas declaram
necessária não é a mesma para as diferentes doutrinas. Para uns,
quase bastaria aumentar a autoridade do Estado em matéria econô­
mica; é o caso de certos socialistas da cátedra. Para outros, pelo
contrário, seria preciso antes de mais constituir solidamente estes
órgãos especiais da vida econômica, ou seja, dar aos grupos profis­
sionais a autonomia que lhes falta, e ao mesmo tempo ligá-los ao
órgão governamental. Entre estes últimos, verificam-se novas diver­
gências consoante se atribui aos órgãos secundários, assim consti­
tuídos, mais ou menos autonomia e ao Estado poderes mais ou
menos amplos; consoante concebem o grupo de empresas como
uma corporação independente ou como uma espécie de administra­
ção pública; consoante esperam que estas transformações resultem
de meios violentos ou pacíficos, etc. Mas isto são apenas diferenças
de pormenor e podemos concluir assim: o socialismo é uma ten­
dência para fazer passar, brusca ou progressivamente, as funções
econômicas do estado difuso em que se encontram para o estado

206
organizado. É, podemos dizer, igualmente uma aspiração à sociali-
zação, mais ou menos completa, das forças econômicas.
Compreende-se agora que uma tal revolução não se possa reali­
zar sem transformações morais profundas. Socializar a vida econô­
mica é, efectivamente, subordinar os fins individuais e egoístas que
ainda são preponderantes para fins verdadeiramente sociais e por­
tanto morais. E, consequentemente, introduzir uma moral mais ele­
vada. Por isso se pode dizer, não sem justificação, que o socialismo
tenderia a realizar maior justiça nas relações sociais. Mas, embora
estas consequências morais estejam incluídas na definição de socia­
lismo, não vão servir para o definir, pois ele vai muito além disto.

3. Esta definição, pensamos, é susceptível de esclarecer as ques­


tões que o socialismo levanta.
Em primeiro lugar, ela mostra que, apesar das divergências bem
reais que separam as escolas, todas elas, desde a mais modesta
à mais radical, estão imbuídas do mesmo espírito. Há um socia­
lismo comum a todos os socialismos particulares e que os envolve.
A observação é muito importante. Efectivamente, por vezes, utili­
zou-se a diversidade destas doutrinas para minimizar a importância
da crescente divulgação da ideia socialista. Que interessa o número
de adeptos que ela recruta, se eles se dividem entre uma quanti­
dade de igrejas irreconciliáveis? A corrente parece menos forte se
consistir num grande número de pequenos rios, independentes uns
dos outros e que nunca juntam as suas águas. Pelo contrário, as
reivindicações socialistas ganham autoridade se se reconhecer que
estas dissidências só começam a partir de um certo ponto para além
do qual existe acordo. Já não se pode negar o alcance deste movi­
mento, pelo menos no que ele tem de essencial, visto que já nada
impede o seu conceito genérico.
Em segundo lugar, a fórmula precedente não permite confun­
dir, como tantas vezes se fez, o socialismo actual com o comunismo
primitivo. Desta suposta identidade pretenderam os economistas
ortodoxos concluir a impugnação do socialismo; pois é manifesta­
mente insensato querer impor às sociedades mais complexas e mais
avançadas uma organização econômica conforme aos tipos mais
baixos e inferiores. Mas a objecção baseia-se numa confusão. Longe
de ser o restabelecimento do velho comunismo, o socialismo apro-
xima-se mais do seu oposto. O comunismo só é possível quando

207
as funções sociais são comuns a todos, quando a massa social não
é constituída, a bem dizer, por partes diferenciadas. Efectivamente,
nestas condições a propriedade é naturalmcnte colectiva, visto a
personalidade colectiva ser a única que se desenvolve. Logo que
órgãos especiais se destacam da massa primitivamente homogênea,
a vida comunitária torna-se impossível porque cada qual tem a sua
própria natureza e os seus próprios interesses. O socialismo im­
plica, pelo contrário, que o trabalho esteja muito dividido, visto
que ele tende a ligar funções distintas a órgãos distintos e estes
uns aos outros. O comunismo corresponde à fase histórica em que
a actividade social atinge o seu máximo de difusão e consiste nesta
mesma difusão, enquanto o socialismo tem por objecto possibili-
tar-lhe a mais elevada organização possível. Encontramos o mo­
delo do comunismo nas sociedades inorganizadas de medusas em
que um indivíduo não pode comer sem que os outros comam ao
mesmo tempo. Pelo contrário, os exemplos mais perfeitos de socia­
lismo são-nos oferecidos pelos animais superiores, com os seus múl­
tiplos órgãos, autônomos, mas solidários uns dos outros e do órgão
central que simultaneamente resume e garante a unidade do orga­
nismo *.
Longe de ser um passo para trás, o socialismo tal como o defi­
nimos parece bem mais implicado na própria natureza das socie­
dades superiores. Sabe-se, efectivamente, que quanto mais se avança
na história mais as funções sociais, primitivamente difusas, se orga­
nizam e se socializam. O exército, a educação, a assistência, as vias
de comunicação, os transportes, etc., sofreram já esta transforma­
ção e, no livro anteriormente citado, tentámos provar que ela era
necessária às modificações que paralelamente se produziram na
constituição do meio social. Se as condições fundamentais de que
o desenvolvimento histórico depende continuarem assim a evoluir
no mesmo sentido, pode-se prever que esta socialização será cada
vez mais completa e que se estenderá pouco a pouco às funções
que ainda não atingiu. Não se compreende em virtude de que privi­
légio as funções econômicas seriam as únicas em estado de resistir
vitoriosamente a este movimento.

1 Por isso não se deve fazer coincidir o socialismo com a «acção comum».
É que esta definição refere-se mais ao comunismo.

208
8

SOCIALISMO E CIÊNCIA SOCIAL

objectivo deste livro ' é constituir a noção de socialismo


e confrontá-la com os resultados da sociologia compara­
tiva.
É às grandes obras dos mestres e não aos programas dos par­
tidos políticos ou às deliberações dos congressos operários que
Richard vai buscar os elementos da sua definição. Para ele, é dimi­
nuir o socialismo reduzi-lo a uma lista mais ou menos extensa
de reivindicações de operários e de reformas práticas com que se
pretende fazer justiça. Quando apenas se considera o socialismo
sob este aspecto, é natural que se tenha razão; pois é sempre fácil
mostrar que os processos recomendados pelos diferentes sistemas,
como remédios soberanos contra os males de que sofremos, ou são
inaplicáveis aos factos, ou não têm as consequências que deles se
espera, etc. Uma fórmula geral e abstracta está, por hipótese, dema­
siado longe da realidade para poder penetrá-la imediatamente e sem
resistência. A não aplicação imediata de uma lei química não de­
monstra a sua falsidade; assim, por as aplicações que se deduziram
das teorias socialistas serem irrealizáveis ou contradizerem os seus
objectivos, não se tem o direito de concluir que estas teorias são
falsas. O socialismo é antes de mais um modo de conceber e de ex­
plicar os factos sociais, a sua evolução no passado e o seu desenvol­
vimento no futuro. Esta concepção deve portanto ser examinada

1 Análise crítica da obra de Gaston Richard, Le socialisme et la Science


soeiale, Alcan, 1897.

209
cm si mesma, abstraindo qualquer consideração relativa às conse­
quências práticas que dela possam resultar.
Interpretado assim, o socialismo, apesar das incontestáveis va­
riações que revelou ao longo da história, não deixa de ter unidade.
Por diferentes que sejam as formas que sucessivamente revestiu,
tem pelo menos uma proposta relativamente à qual todas as seitas
são unânimes: é a afirmação de que uma sociedade nova, onde
o capital não seria mais o motor da vida econômica e onde os valo­
res não seriam mais fixados pela concorrência, tem necessariamente
de surgir das actuais sociedades. Richard define-o portanto da se­
guinte maneira: «O socialismo é a noção do aparecimento de uma
sociedade sem concorrência, graças a uma organização da produção
sem empresa capitalista e a um sistema de distribuição em que
a duração do trabalho seria a única medida de valor (p. 79).» Isto
é, como se vê, reduzir o socialismo ao colectivismo e por pouco
ao marxismo. Efectivamente, os únicos intérpretes do pensamento
socialista que o autor ataca são Marx, Engels e Proudhon. Ele
recusa tal qualificação a Saint-Simon, a Fourier, ao socialismo agrá­
rio, bem como ao socialismo cristão.
Se algumas destas exclusões são perfeitamente fundamentadas,
outras há que se podem considerar insuficientemente justificadas.
Se o ascetismo cristão nada tem de comum com o socialismo, o
mesmo não se passa relativamente à doutrina de Saint-Simon.
Quanto a nós, o essencial da doutrina socialista já se encontra na
filosofia de Saint-Simon. Mas, em suma, um autor é senhor de cons­
tituir, como entender, o objecto das suas investigações e de o limi­
tar como quiser. Acontece que o socialismo, assim definido, suscita
a discussão sobre duas questões fundamentais, uma que respeita
ao passado e outra que se refere ao futuro. Ele implica efectiva­
mente uma certa teoria relativamente ao modo como se constitui
o capital e uma outra sobre o sentido em que a evolução social
se tende a orientar. Qual o valor destas teorias?
Segundo Marx, o regime capitalista seria apenas uma transfor­
mação do sistema feudal e o salariato uma forma nova e agravada
da servidão. Antigamente, o servo trabalhava abertamente para o
senhor durante uma parte da semana; hoje, o operário trabalha
para o seu patrão durante uma parte do dia. Só que a exploração
é menos visível. O seu salário, se ficarmos pelas aparências, repre-

210
senta o seu trabalho; na realidade representa apenas uma fracção
do seu trabalho: o resto é o benefício do empresário.
Ora, diz Richard, esta concepção histórica está duplamente
errada: l.° É falso que o salariato tenha nascido da servidão.
O servo de antigamente tornou-se, não no operário da indústria,
não no proletário assalariado, mas no pequeno camponês e no
pequeno proprietário de hoje. O antepassado do operário é o ofi­
cial da Idade Média. É da corporação que resulta a empresa capi­
talista, assim como a corporação era por sua vez resultado da
oficina doméstica. Todas estas comparações entre o trabalho suple­
mentar e la corvêe não têm portanto o menor fundamento objec-
tivo; 2.° Esta evolução, longe de ter piorado a condição do empre­
gado, «responde a uma verdadeira ascensão da liberdade pessoal»
(p. 95). A corporação é o regime do monopólio hereditário sob
o controle da autoridade. Os mestres mantêm os oficiais sob a sua
dependência, assim como estão sob a dependência do poder polí­
tico. A organização capitalista desenvolve-se ao mesmo tempo que
a personalidade individual. Ela é o instrumento através do qual o
indivíduo se emancipou do jugo colectivo e do jugo da hereditarie­
dade. É verdade que Marx só utiliza estas considerações históricas
para confirmar a sua teoria do valor que é a base de todo o seu
sistema. Mas esta teoria implica contradição. O valor não pode
exprimir-se como Marx pretendia, em função da duração do traba­
lho e unicamente em função dela se não se tiver em conta a sua
capacidade. Ou então, se tentarmos avaliar a própria capacidade
em termos de duração, será preciso ter em conta, enquanto termo
medio, a dificuldade do trabalho. Mas a dificuldade do trabalho só
pode elevar a remuneração dos trabalhadores na condição de difi­
cultar a concorrência. Ora, se voltarmos à concorrência, o que é
que nos resta da doutrina? Richard acaba mesmo por acusar a teo­
ria do trabalho suplementar de conduzir à negação da poupança.
Poupar não é efectivamente capitalizar, ou seja, empregar os pro­
dutos do trabalho, não em objectos de consumo, mas novamente
em trabalho ou, o que é o mesmo, em instrumentos de trabalho?
O autor passa à segunda questão. O que quer que se pense
sobre as origens da sociedade capitalista, haverá razões para acre­
ditar que ela está destinada a «gerar» uma nova sociedade onde
o capital não seja já a base das empresas econômicas?
Segundo Marx, é uma lei da história que os capitais se concen-

211
trem num número de mãos cada vez mais restrito; donde conclui
que, finalmente, eles devem passar para as mãos da comunidade,
Mas esta pretensa lei da evolução foi na realidade obtida através
da observação de um caso único. A sua história da acumulação pro-
gressiva dos capitais é, antes de mais e segundo ele próprio con-
fessa, a história econômica da Inglaterra. Não se pode imaginar
uma comparação com base mais estreita e, sobretudo, com maior
contraste com a extrema generalidade da lei induzida. Não se pode
ler o futuro da Europa unicamente no passado da Inglaterra. Aliás,
toda esta filosofia da história está viciada pelo famoso dogma do
materialismo econômico, que não tem qualquer valor científico.
Não foi a organização econômica que determinou as instituições
sociais; a prova é que os Incas do Peru eram comunistas tal como
a confederação iroquesa e que, no entanto, a constituição funda­
mental destas duas sociedades era bem diferente. É igualmente
falso que as funções de nutrição e de geração desempenhem o papel
preponderante que se lhes atribui. São as funções de relação, quer
dizer, as funções representativas, que são os factores essenciais
do desenvolvimento humano.
Mas vejamos a lei da acumulação em si. Se o capital se concen­
trasse efectivamente cada vez mais nas mãos de um pequeno nú­
mero, deveriamos assistir a uma diminuição paralela da mais-valia
do capital. Pois como, em virtude da teoria, os trabalhadores não
podem comprar todo o produto do seu trabalho, o excedente que
lhes escapa não pode ter por consumidores senão os próprios capi­
talistas. As possibilidades de utilização diminuiríam portanto neces­
sariamente se os detentores da fortuna pública se tornassem real­
mente cada vez menos numerosos. Além disso, esta acumulação
só é possível graças a uma acção coercitiva que imporia ao operário
um trabalho suplementar cada vez mais considerável. Mas onde c
que se encontram sinais dessa opressão? A história não é uma liber­
tação cada vez mais completa do indivíduo? A estatística confirma
as induções da história. O número de proprietários vai aumentando
sempre.
Mas o socialismo faz intervir relativamente às suas previsões
não só a história econômica como política da humanidade. O actual
estado social resulta, diz-se, da cisão da sociedade em classes hostis,
cisão que por sua vez resulta da actual organização da produção
comercial: uma coisa só pode desaparecer com a outra. Mas esta

212
organização, responde Richard, é solidária com a divisão do traba­
lho social. O socialismo, se for consequente consigo próprio, deve
portanto conduzir à conclusão que a divisão do trabalho está igual­
mente condenada a desaparecer; ora isto é insurgir-se contra a his­
tória. De resto, a lei que afirma que o espírito de classe se desen­
volve com o capitalismo é efectivamente contestável; ele enfraquece
à medida que a vida econômica se organiza sobre a base da empresa
privada. Os progressos da burguesia são contemporâneos dos da
ciência e dos da análise crítica. Tudo concorre assim para provar que
as sociedades se orientam num sentido muito diferente daquele que
os socialistas lhes destinam. É certamente necessário que a concor­
rência se atenue e urgente que uma regulamentação jurídica dos con­
tratos proíba incontestáveis abusos. É preciso que os fracos, espe­
cialmente a mulher e a criança, sejam protegidos. Mas, para que
estes resultados sejam obtidos, não é necessário subverter a actual
organização econômica; pelo contrário, se a destruição do capita­
lismo se viesse a realizar torná-los-ia impossíveis.
São estes os principais argumentos que Richard opõe ao socia­
lismo. Seja o que for que se pense da sua discussão, há um mérito
que se lhe não poderia negar sem injustiça e que, em semelhantes
assuntos, constitui já uma originalidade; é um desejo ardente de
introduzir, nestas controvérsias que levantam tantos ânimos, a
calma e a imparcialidade científicas. Pode-se assim considerar simul­
taneamente surpreendentes e lamentáveis os violentos ataques de
que ele foi alvo por parte de representantes autorizados das dou­
trinas socialistas. O socialismo, parece-nos, só tem portanto van­
tagens em acolher diferentemente aqueles que, embora discutin­
do-o, o tratam com a deferência e a consideração devidas a qualquer
sistema de idéias que tenha desempenhado um papel importante na
história do espírito humano. Toda a gente tem interesse em que
estas discussões passem a ser conduzidas, duma parte e doutra, com
mais sangue-frio e sem esta animosidade mútua que hoje é regra
e que lhes retira todo e qualquer carácter científico. Isto consti­
tuiría pelo menos um primeiro passo para uma certa confiança e é
este o serviço que, em semelhantes assuntos, a ciência pode mais
imediatamente prestar à prática.
Aliás, há algo de novo no ponto de vista em que Richard se
colocou e que merece ser retido. Pondo de parte todas as objec-
ções tradicionais à possibilidade de aplicação das teorias socialis-

213
tas, ele revela, pensamos, o seu espírito científico. Nada mais inútil,
efectivamente, do que toda esta dialéctica com que a paixão se
entretém livremente. Estamos à vontade relativamente ao futuro
precisamente porque ele não é e porque o podemos conceber um
pouco como queremos; consoante uma medida nos seduz ou não,
consideramo-la facilmente praticável ou irrealizável. Não há reforma
sobre a qual não se tenha dito, na própria véspera do dia em que
ela se devia tornar numa realidade, que ela era impossível e, em­
bora filósofos e homens de Estado estejam avisados pela experiên-
cia da inutilidade deste método, como ele é o mais fácil e o mais
acessível a todos, ainda é a ele que se recorre de preferência. Mas
se quisermos fazer trabalho útil, é para o passado e não para o
futuro que nos devemos voltar; aí pelo menos, visto haver uma
realidade determinada, há campo para a investigação objectiva e,
por conseguinte, para o acordo.
Encontraremos ainda no livro de Richard numerosas perspec­
tivas habilidosas e interessantes; o autor expôs as qualidades de
lógico que já distinguiam o seu livro Essai sur 1’origine de l’idée
du droit. É verdade que a sua argumentação tem por vezes um
carácter pouco formal. Talvez porque ele não tenha tomado relativa­
mente ao socialismo a única atitude que convém ao sociólogo.
Quanto ao socialismo, concebido como uma teoria dos factos so­
ciais, a sociologia só tem uma palavra a dizer: por uma questão
de método e para permanecer fiel a si mesma, ela deve-se recusar
a considerá-lo como uma iniciativa científica; se ela não lhe deve
reconhecer este carácter é que as proposições que ele enuncia são
demasiado extensas. É um sistema completo da sociedade, consi-
derado no passado, no presente e, por conseguinte, no futuro; ora
é impossível que um sistema tão amplo possa ser cientificamente
construído. Actualmente a ciência só pode estabelecer leis parciais,
restritas e mal ligadas entre si; ela impõe portanto a maior circuns­
pecção para tudo o que diz respeito à prática. Para fazer julgamen­
tos tão categóricos como os dos socialistas sobre o conjunto das
nossas instituições sociais, era preciso saber melhor o que são estas
instituições, quais as causas que as suscitaram, a que necessidades
respondem e que relações mantêm umas com as outras. Mas para
isto são necessárias muitas outras investigações que só agora foram
iniciadas. Para sermos exactos, o socialismo não pode portanto ser
científico. Ele apenas pode utilizar certos dados, incompletos e frag-

214

J
mentários, da ciência para os pôr ao serviço de uma causa que ele
defende por razões estranhas à ciência, pois ele ultrapassa-a. Por
exemplo, quantas observações estatísticas, históricas, etnográficas
supõe a menor das teorias do Capital'. Ora estes estudos, Marx
não só não os tinha feito, como a maior parte ainda está por fazer.
Não é que não haja, neste livro, pontos de vista filosóficos muito
sugestivos. Mas não se devem confundir intuições, mesmo belas e
fecundas, com leis definidas e metodicamente demonstradas. A obra
do cientista não é a do filósofo. Assim, de todas as críticas que
Richard dirigiu a Marx, a mais forte parece-nos ser aquela que se
limita a evidenciar o desnível entre a proposição fundamental do
sistema e as observações nas quais ela se apoia.
Mas, do que anteriormente se expôs, muito falta para se poder
concluir que a sociologia deva, quanto a nós, tratar o socialismo
como uma quantidade desprezível e abstrair da sua existência. Se
ele não é uma teoria científica dos factos sociais, é um facto social
da mais elevada importância que os sociólogos devem procurar
compreender. Seja como for, ele tem e não tem causas; ele exprime
um estado da sociedade. Podemos crer de antemão que ele não
a exprime fielmente. Não basta o doente interrogar-se sobre as
dores que sente para lhes descobrir as causas, a natureza e o remé­
dio. Ora o socialismo é antes de mais a maneira como certas cama­
das da sociedade, particularmente atingidas pelos sofrimentos colec-
tivos, os representam. Mas, pelo menos, ele atesta a existência de
um mal-estar social e, se não é a sua expressão adequada, pode aju­
dar a compreendê-lo, uma vez que é dele que resulta. Sob este
aspecto ele tem o maior interesse. Mas deste ponto de vista pouco
importa o valor científico do modo como ele justifica as suas fór­
mulas. Estas já são unicamente símbolos. É preciso afastar todo
este aparelho lógico para alcançar a realidade subjacente. Enquanto
assim se não proceder, por habilidosos que os argumentos imagi­
nados sejam, é difícil não terem um aspecto artificial e não se sen­
tirem na escola; pois eles não se referem a algo de real mas unica­
mente à forma exterior da realidade. Este estudo objectivo não
será, aliás, o único praticamente útil? Pois, quando se rejeitaram
as razões que o socialismo alega em apoio das suas afirmações, não
se ficou mais informado sobre as causas que o suscitaram há já
quase um século, ou sobre as necessidades normais ou não às quais
ele responde. Ou não será isto que interessa? É verdade que os

215
partidos têm, para resolver a questão, respostas prontas já feitas.
Mas estas soluções prematuras não têm mais valor quando negam
o socialismo do que quando o afirmam. Para conseguir saber o que
é o socialismo, o que o constitui e de que é que depende, não basta
interrogar os socialistas ou os seus adversários, são necessárias in­
vestigações, informações, comparações metódicas que as intuições
confusas e apaixonadas da consciência comum não poderíam subs­
tituir.
9

A CONCEPÇÃO MATERIALISTA
DA HISTÓRIA

T~? ste livro 1 tem por objectivo pôr em evidência o princípio


I—< da filosofia histórica que é a base do marxismo e submetê-lo
-1—J a uma nova elaboração, não para o modificar mas para o
esclarecer e precisar. Este princípio é que o desenvolvimento his­
tórico depende, em última análise, de causas econômicas. É aquilo
a que se chamou o dogma do materialismo econômico. Como o
autor pensa ter encontrado a sua melhor formulação no Manifesto
do Partido Comunista, é este o documento que serve de tema ao
seu estudo. Este compreende duas partes: a primeira expõe a gênese
da doutrina, a segunda comenta-a. Um apêndice contém a tradução
do manifesto.
O historiador, geralmente, vê apenas a parte mais superficial
da vida social. Os indivíduos, que são os agentes da história, fazem
uma determinada ideia dos acontecimentos em que participam. Para
poderem compreender o seu comportamento, imaginam-se a prosse­
guir tal ou tal objectivo que lhes parece desejável e constroem
razões para provarem a si mesmos e, caso seja necessário, para pro­
varem aos outros que este objectivo é digno de ser desejado. Ora
são estas motivações e estas razões que o historiador considera que
foram as causas determinantes do desenvolvimento histórico. Se,
por exemplo, ele conseguir descobrir qual o objectivo que os ho­
mens da Reforma se propunham atingir, pensa ter assim explicado

1 Antonio Labriola, Essais sur la conception matérialiste de Vhistoire, Giard


& Brière, 1897.

217
como é que a reforma se produziu. Mas estas explicações subjec-
tivas não têm valor; pois os homens não vêem os verdadeiros moti-
vos que os fazem agir. Mesmo quando o nosso comportamento é
determinado por interesses privados, os quais, por nos dizerem
mais directamente respeito, são mais fáceis de perceber, nós ape­
nas distinguimos uma pequena parte das forças que nos movem
e não as mais importantes. Pois as idéias e as razões que se desen­
volvem na consciência e cujos conflitos constituem as nossas deli­
berações resultam na maior parte das vezes de estados orgânicos,
de tendências hereditárias e de hábitos inveterados de que não
temos consciência. E é tanto mais assim quando agimos sob a in­
fluência de causas sociais que nos escapam ainda mais porque mais
longínquas e mais complexas. Lutero não sabia que era «um mo­
mento da evolução do terceiro estado». Ele pensava trabalhar para
a glória de Cristo e não suspeitava que as suas idéias e os seus actos
fossem determinados por um certo estado da sociedade; que a res­
pectiva situação das classes necessitava de uma transformação das
velhas crenças religiosas. «Tudo o que aconteceu na história é obra
do homem; mas só muito raramente foi o resultado da uma escolha
crítica e de uma vontade esclarecida (p. 149).»
Se quisermos portanto compreender o verdadeiro encadeamento
dos factos, é preciso renunciarmos a este método ideológico. É pre­
ciso afastar a superfície das idéias para atingir as coisas profundas
que elas exprimem mais ou menos infielmente e as forças subja­
centes de que elas resultam. Segundo as palavras do autor, «é pre­
ciso despojar os factos históricos das roupagens que os próprios
factos revestem enquanto evoluem». A única explicação racional
e objectiva dos acontecimentos consiste em reencontrar o modo
como eles realmente se processaram e não a idcia que os homens
que deles foram instrumentos faziam da sua gênese. É esta a revo­
lução no método histórico que a concepção materialista da história
teria realizado.
Efectivamente, se assim se proceder, verifica-se que, segundo
Marx e os seus discípulos, a evolução social tem por origem o estado
em que se encontra a técnica em cada momento da história, quer
dizer, «as condições do desenvolvimento do trabalho e dos instru­
mentos que lhe são próprios (p. 239).» É isto que constitui a estru­
tura profunda ou, como diz o autor, a infra-estrutura da sociedade.
Consoante a produção é agrícola ou industrial, consoante as máqui-

218
nas empregadas a obrigam a concentrar-se num pequeno número
de grandes empresas ou, pelo contrário, lhe facilitam a disper­
são, etc., as relações entre as classes de produtores são diferente­
mente determinadas. Ora, é destas relações, quer dizer, dos confli­
tos e das diferentes antíteses que resultam desta organização, que
depende todo o resto. O Estado é antes de mais uma consequência
necessária da divisão da sociedade em classes subordinadas umas às
outras; visto que o equilíbrio só se pode manter entre estes seres
economicamente desiguais se for imposto pela violência e pela re­
pressão. É esta a função do Estado; é um sistema de forças desti­
nadas a «garantir ou perpetuar um modo de associação cujo funda­
mento é uma forma de produção econômica (p. 223).» Os seus
interesses confundem-se portanto com os das classes dirigentes.
Do mesmo modo, o direito não passa da «defesa consuetudinária,
autoritária ou judicial de determinado interesse» (p. 237); «não
passa da expressão dos interesses que triunfaram» (p. 238) e, por
conseguinte, «reduz-se quase imediatamente à economia». A moral
é o conjunto das inclinações e dos hábitos que a vida social, con­
forme o modo como se organiza, desenvolve nas consciências parti­
culares. Por fim, até as produções da arte, da ciência e da religião
estão sempre relacionadas com determinadas condições econômicas.
Segundo se diz, o interesse científico deste ponto de vista é
que ele tem por efeito naturalizar a história. Naturaliza-a unica­
mente pelo facto de, na explicação dos factos sociais, se substituir
a estes ideais inconsistentes, a estes fantasmas da imaginação, que
eram até hoje considerados motores do progresso, forças definidas,
reais e resistentes, isto é, a distribuição dos homens em classes,
distribuição esta por sua vez ligada ao estado da técnica econômica.
Mas é preciso evitar confundir esta sociologia naturalista com
aquilo a que sc chamou darwinismo político e social. Este consiste
simplesmente em explicar a evolução das instituições através dos
princípios e dos conceitos que explicam a evolução zoológica. Como
a vida animal decorre num meio puramente físico que nenhum tra­
balho ainda modificou, esta filosofia simplista acaba por explicar
a evolução social através de causas que nada têm de social, como
seja a satisfação de necessidades e de desejos que se encontram
já na vida animal. A teoria que ele defende é, segundo Labriola,
totalmente diferente. Ela procura as causas motrizes do desenvol­
vimento histórico, não nas circunstâncias cósmicas que podem ter

219

L
afectado o organismo, mas no meio artificial que o trabalho dos
homens associados criou e acrescentou à natureza. Ela faz depen­
der os fenômenos sociais, não da fome, da sede, do desejo gené-
sico, etc., mas do estado a que a arte humana chegou e dos modos
de vida que dela resultaram, numa palavra, das obras colectivas.
É certo que originalmente os homens, tal corno os outros animais,
tinham apenas o meio natural para campo de acção. Mas a história
não tem de voltar atrás até essa época hipotética da qual nos
é actualmente impossível fazer uma representação empírica. Ela só
começa quando nos é dado um meio supernatural por elementar
que ele seja, pois só então começam a aparecer os fenômenos so­
ciais; e ela não tem de se preocupar com o processo, aliás inde-
terminável, como a humanidade acabou por se elevar acima da
natureza e por constituir um novo mundo. Pode-se portanto dizer
que o método do materialismo econômico se aplica à totalidade
da história.
O socialismo revolucionário decorre logicamente destes princí­
pios abstractos. Grandes transformações ocorreram na técnica in­
dustrial desde há um século; devem-se portanto ter produzido
transformações igualmente importantes na organização social. E,
como tudo o que se refere à natureza e à forma da produção é
fundamental e substancial, a perturbação assim originada não é uma
doença social e restrita a que correcções parciais da nossa economia
colectiva possam pôr fim. É necessariamente uma doença totius
substanciae que só pode ser curada com uma transformação radical
da sociedade. É necessário que todas as antigas estruturas sejam
destruídas e que toda a matéria social seja libertada para se pode­
rem finalmente processar em moldes novos.
Tal é o resumo desta obra que Sorel, no prefácio, apresenta
com razão como uma importante contribuição para a literatura so­
cialista. Ê certamente de lamentar a extrema difusão do desenvol­
vimento, a evidente insuficiência da composição e certas violências
de linguagem que não pertencem a uma discussão científica: toda­
via, tanto quanto sabemos, isto é um dos mais rigorosos esforços
que se fizeram para reconduzir a doutrina marxista aos seus con­
ceitos elementares e para os aprofundar. O pensamento não se
oculta, como tantas vezes sucede, por meio de pormenores indeci­
sos; pelo contrário, caminha em frente com uma espécie de vigor.
O autor só se preocupa em distinguir claramente o princípio de

220
crenças de que ele antecipadamente aceita todas as consequências
lógicas. Esta exposição do sistema encontra-se assim perfeitamente
apta a evidenciar as suas perspectivas fecundas e as suas fraquezas.
Consideramos fecunda esta ideia de que a vida social se deve
explicar, não através da concepção que fazem aqueles que nela par­
ticipam, mas pelas causas profundas que escapam à consciência:
pensamos igualmente que estas causas devem sobretudo ser pro­
curadas no modo como os indivíduos associados se agrupam. Pare­
ce-nos que é nesta condição e unicamente nesta condição que a his­
tória pode vir a constituir uma ciência e que a sociologia pode, por
conseguinte, existir. Para que as representações colectivas sejam
inteligíveis é pois necessário que resultem de alguma coisa e, como
não podem formar um círculo fechado sobre elas próprias, a ori­
gem de onde derivam deve encontrar-se fora delas. Ou a consciên­
cia colectiva paira no vazio, o que é um absoluto impossível de re­
presentar, ou então está ligada ao resto do mundo por intermédio
de um substrato de que acaba por depender. Por outro lado, de que
é que este substrato pode ser composto senão pelos membros da
sociedade tal como se combinam socialmente? Esta afirmação pare­
ce-nos evidente. Simplesmente não vimos razão para a relacionar,
como faz o autor, com o movimento socialista de que ela é total­
mente independente. Quanto a nós, chegámos a isto antes de ter
conhecido Marx, de quem não sofremos a menor influência. Com
efeito, esta concepção é efectivamente a consequência lógica de todo
o movimento histórico e psicológico dos últimos cinquenta anos.
Há muito que os historiadores perceberam que a evolução social
tem causas que os autores dos acontecimentos históricos não conhe­
cem. É sob a influência destas idéias que se tem tendência ou a
negar ou a restringir a função dos grandes homens e que se pro­
cura, a coberto dos movimentos literários, jurídicos, etc., a expres­
são de um pensamento colectivo que nenhuma personalidade defi­
nida encarna completamente. Ao mesmo tempo e sobretudo a psi­
cologia individual veio ensinar-nos que a consciência do indivíduo,
geraímente, não faz mais do que reflectir o estado subjacente do
organismo; que o processo das nossas representações é determinado
por causas que não são manifestadas pelo indivíduo. Torna-se en­
tão natural alargar esta concepção à psicologia colectiva. Mas não
nos é possível perceber qual a influência que o desolador conflito
de classes a que actualmente assistimos pode ter tido na elaboração

221
ou no desenvolvimento desta ideia. Esta surgiu certamente na sua
altura e quando as condições para o seu aparecimento estavam cria­
das. Não era possível em qualquer altura. Mas trata-se de saber
quais são estas condições; e quando Labriola afirma que ela foi
suscitada «pelo desenvolvimento amplo, consciente e contínuo da
técnica moderna e pela inevitável sugestão de um novo mundo
que está a nascer», ele anuncia como evidente uma tese que nada
prova. O socialismo pode ter utilizado esta ideia em seu benefício;
mas ele não a produziu e, sobretudo, ela não o implica.
É verdade que se esta concepção objectiva da história consti­
tuísse, como o autor o afirma, um todo com a doutrina do materia­
lismo econômico, como esta tem seguramente origens socialistas ',
poder-se-ia pensar que a primeira se formou sob a mesma influên­
cia e se inspira no mesmo espírito. Mas esta confusão não tem qual­
quer fundamento; e é importante acabar com ela. Não há a menor
solidariedade entre estas duas doutrinas cujo valor científico é sin­
gularmente desigual. Tanto nos parece verdade que as causas dos
fenômenos sociais devam ser procuradas fora das representações
individuais, como nos parece falso que elas se reduzam, em última
instância, ao estado da técnica industrial e que o factor econômico
seja o motor do progresso.
Mesmo sem opor ao materialismo econômico nenhum facto
definido, como é que é possível não verificar a insuficiência das
provas sobre as quais ele se apoia? Eis uma lei que pretende ser
a chave do problema! Ora, para a demonstrar, contentam-sc em
citar alguns factos dispersos e disjuntos que não constituem qual­
quer série metódica e cuja interpretação está longe de estar defi­
nida: alega-se o comunismo primitivo, as lutas do patriciado e da
plebe, do povo e da nobreza que se explicam economicamente.
Mesmo quando se tiverem acrescentado a estes raros documentos,
rapidamente vistos, alguns exemplos da história industrial da In­
glaterra, não se conseguirá demonstrar uma generalização tão ex­
tensa. Neste ponto, o marxismo está em desacordo com o seu
princípio. Ele começa por declarar que a vida social depende de
causas que escapam à consciência e à razão racional. Mas então,
para as descobrir, vão ser necessários processos tão tortuosos e tão
complexos quanto, pelo menos, aqueles que as ciências da natureza

1 Embora a economia ortodoxa também tenha o seu materialismo.

222
empregam; devem ser necessários todo o gênero de observações,
de experiências e de comparações laboriosas para descobrir isola­
damente alguns destes factores, sem que actualmente se possa pen­
sar em obter uma representação unitária. E eis que, num instante,
estes mistérios são esclarecidos e é encontrada uma solução sim­
ples para estes problemas onde a inteligência humana parecia só
muito dificilmente poder entrar! Será que a concepção objectiva,
que acabamos de expor sumariamente, não poderá ser provada de
um modo adequado? Nada mais certo. Mas ela também não se pro­
põe determinar uma origem definida para os problemas sociais;
limita-se a afirmar que eles têm causas. Pois dizer que eles têm
causas objectivas não tem outro sentido, visto que as representa­
ções colcctivas não podem conter em si próprias as suas causas
profundas. É portanto simplesmente um postulado destinado a diri­
gir a investigação, por conseguinte sempre suspeito, pois é a expe­
riência que, em última instância, deve decidir. É uma regra de
método e não uma lei que nos autorize a deduzir consequências
importantes, quer sejam teóricas, quer sejam práticas.
A hipótese marxista não só não está provada como é contrária
a factos que parecem estabelecidos. Sociólogos e historiadores ten­
dem cada vez mais a concordar com esta afirmação comum de que
a religião é o mais primitivo fenômeno social. É dela que resul­
tam, por sucessivas transformações, todas as outras manifestações
da actividade colectiva, direito, moral, arte, ciência, formas polí­
ticas, etc. Dc princípio tudo é religioso. Ora nós não conhecemos
nenhum meio de reduzir a religião à economia nem nenhuma tenta­
tiva de realizar efectivamente esta redução. Ainda ninguém mos­
trou sob que influências econômicas o naturalismo derivou do tote-
mismo, ou em resultado de que modificações na técnica ele se tinha
tornado aqui em monoteísmo abstracto de Javé, ali em politeísmo
greco-latino, e duvidamos que alguma vez se consiga realizar tal
trabalho. É incontestável que, originalmente, o factor econômico
é rudimentar, enquanto a vida religiosa é, pelo contrário, luxu­
riante e invasora. Como poderia ela portanto ser sua resultante e
não será pelo contrário mais provável que a economia dependa
da religião mais do que a segunda da primeira?
Aliás, não se devem levar as idéias a extremos onde perderíam
toda a sua realidade. A psicofisiologia, depois de ter provado no
substrato orgânico a base da vida psíquica, cometeu muitas vezes

223
o erro de recusar a esta última toda e< qualquer realidade; daqui
nasceu a teoria que reduz a consciênciai a um epifenómeno. Perdeu-
-se de vista que se as representações dependem originalmente de
estados orgânicos, uma vez constituídas tornam-se assim realidades
sui generis autônomas e capazes de por sua vez causarem e pro-
duzirem novos fenômenos. A sociologia de':ve evitar cuidadosamente
o mesmo erro. Se as diferentes formas da actividade colectiva têm,
também elas, o seu substrato, se em última instância elas derivam
dele, uma vez que elas existem tornam-se por sua vez fontes ori­
ginais de acção, têm uma eficácia particular e reagem sobre as pró­
prias causas de que dependem. Estamos portanto longe de defen­
der que o factor econômico seja um epifenómeno: uma vez que ele
existe, tem uma influência especial; pode modificar parcialmente
o próprio substrato de que resulta. Mas não há razão para o con­
fundir com este substrato nem para o considerar como algo de par­
ticularmente fundamental. Tudo faz crer que, pelo contrário, ele
é secundário e derivado. Donde se conclui que as transformações
econômicas que se produziram ao longo deste século, a substituição
da pequena pela grande indústria não têm de maneira nenhuma
necessidade de uma perturbação e de uma renovação integral da
ordem social, mesmo que o mal-estar de que as sociedades euro­
péias possam sofrer não deva ter estas transformações na sua ori­
gem.
TERCEIRA PARTE

O SOCIÓLOGO

8 - A Ciência Social c a Acção


10. O individualismo e os intelectuais
(1898) «L’individualisme et les intellectuels», Revue bleue,
4.a série, vol. X, pp. 7-13.

11. A «élite» intelectual e a democracia


(1940) «L’élite intellectuelle et la démocratie», Revue bleue,
57 série, vol. I, pp. 705-706.

12. Internacionalismo e luta de classes


(1906) «Sur 1’internationalisme», Libres entretiens, 27 série,
7.° entrevista, pp. 392-436 (fragmentos).

13. Pacifismo e patriotismo


(1908) «Pacifisme et patriotisme», Bulletin de la Société
Française de Pbilosophie, VIII, pp. 44-67 (fragmen­
tos).

227
TJSTA terceira parte reúne textos de circunstância, artigos ou rela-
I j tórios de improvisações, que devem a sua existência a uma
crise nacional — o caso Dreyfus —, a um inquérito sobre «a elite
intelectual», à participação em entrevistas sobre problemas que
apaixonavam: o pacifismo, a esperança que alguns depositavam na
classe operária organizada internacionalmente face ao perigo de uma
guerra. Período da «ascendência dos perigos» para uma república
dilacerada entre a direita e a esquerda, os nacionalistas e os inter-
nacionalistas, os clericais e os laicos, mas que assiste, em 1905,
à união dos socialistas sob a égide de Jaurès. Durkheim, primeiro
em Bordéus, onde se encontrava na altura do caso Dreyfus, e em
seguida em Paris, responde às «questões» que se lhe impõem, nesta
situação, nos termos do seu sistema, quer dizer, como sociólogo.
O individualismo e os intelectuais (.texto 10) apareceu em 2
de Julho de 1898 na Revue bleue. Escrito em resposta a um artigo
de Ferdinand Brunetière saído a 15 de Março na Revue des Deux
Mondes com o título «Depois do processo», iria permitir a Dur­
kheim precisar a perspectiva em que convinha analisar o caso Drey­
fus e também comprometer-se publicamente.
O artigo de Brunetière referia-se ao processo Zola. Sabe-se que
o veredicto de 1894, que condenava Dreyfus, tinha suscitado, a
partir de 1897, quando as irregularidades do processo começaram
a ser desvendadas, uma campanha revisionista por parte daqueles
que G. Clemenceau, director do jornal de esquerda L’Aurore, foi
o primeiro a baptizar de «Intelectuais»: assiste-se a um compro­
misso maciço e espontâneo de professores, escritores e artistas,

229
que defendiam a revisão pondo em causa o exército, a razão de
Estado e o anti-semitismo, em nome da moral, dos direitos do
homem, etc. A 13 de Janeiro de 1898, Emile Zola publica no
Aurore o famoso panfleto «J’accuse», que punha em causa nomea­
damente generais, coronéis e outros oficiais. A partir do dia 14,
jornais e revistas, acolhendo os partidários de Dreyfus, começam
a publicar manifestos e petições exigindo a revisão e assinados por
Lucien Herr, Péguy, Lavisse, Marcei Proust, Charles Richet, Sei-
gnobos, Lanson... Entre aqueles a quem choca mais esta descida
inesperada do pensamento à rua destaca-se Brunetière, critico lite­
rário e escritor católico: parece-lhe isto uma coisa estranha e inde­
cente. Depois do processo de Zola ocorrido em Fevereiro e que
termina por uma condenação à pena máxima e ao mesmo tempo
que a campanha revisionista retoma fôlego e mobiliza mais «inte­
lectuais», ele redige um artigo intitulado «Après le procès» para a
Revue des Deux Mondes (156, pp. 428-446).
Trata-se de saber se «o primeiro que aparece, sem provas nem
início de provas, tem direito de insultar grosseiramente a justiça
c ao mesmo tempo o exército».
Pretendeu-se descobrir uma incompatibilidade entre a existên­
cia da democracia e a própria existência dos exércitos. Mas não
é com a democracia nem sequer com o socialismo que «a existência
e a disciplina indispensáveis à existência dos exércitos são compa­
tíveis», é com «o individualismo e a anarquia». «O instinto da mui
tidão sentiu perfeitamente que, apesar deste processo tristemente
famoso, apesar de todos os sofismas do exército francês, hoje como
ontem, era a própria França.»
«Os piores inimigos da democracia e do exército» são precisa­
mente esses poucos intelectuais que «se arrogam direitos que não
têm», «desconversam com autoridade sobre coisas que não são da
sua competência» e «invocam o espírito científico para o impor».
«Método científico, aristocracia da inteligência, respeito pela
verdade, todas estas palavras importantes só servem para encobrir
as pretensões do individualismo, e o individualismo, nunca é de
mais repeti-lo, é a grande doença dos tempos que correm.»
Verificaremos que, na sua resposta, Durkheim se situa muito
exactamente no plano da problemática de Brunetière. Ele afirma,
por um lado, que o exército é um corpo de «funcionários», um
grupo profissional, em suma, que não tem particular proeminência

230
e que se obriga a fazer respeitar os valores que fundamentam o
«consensus social»; e, por outro lado, que o individualismo, no
sentido de religião da humanidade, é a antítese do individualismo
utilitarista ou anárquico.
É interessante notar que aqui ele se comprometeu em nome
de exigências morais e não em função de considerações estreita­
mente políticas, ou ainda na sua qualidade de judeu, tal como
G. Davy c Henri Durkheim o testemunham. Quando Jaurès, du­
rante o processo de Zola, levou os seus companheiros do Parti
Ouvrier Français e outros socialistas ainda para o campo revisio­
nista — modificando assim as posições anteriores, que tenderíam
a considerar o caso como um ajuste de contas entre burgueses sem
o menor interesse para a classe operária —, foi em grande parte
devido à instigação de Durkheim: devemo-lo igualmente a Henri
Durkheim. E por fim é significativo, para situar a intervenção
de Durkheim, indicar que ele aderiu à Liga dos Direitos do Homem
que se constituiu durante este período.
O artigo de Julho provocou certo barulho: em Bordéus, um
comunicado local põe em causa Durkheim. Uma folha de protesto
circulou entre os estudantes e levantou as assinaturas de numerosos
estudantes, incluindo os eclesiásticos (René Lacroze, Allocution
de 1960 — testemunho confirmado por H. Durkheim).
Em 1904, por ocasião de um inquérito sobre a «elite intelec­
tual e a democracia», suscitado pela mesma Revue bleue, ele desen­
volve alguns aspectos da função social que o sociólogo, e mais
geralmente o «intelectual» (visto o termo se ter tornado moda),
pode e deve desempenhar no processo de transformação (texto 11).
A resposta — muito curta — de Durkheim é precedida por estas
linhas devidas à redacção da revista:
«Para Durkheim, sabemo-lo, a ciência social deve edificar-se
lentamente por sobre um montão de observações minuciosas. Mais
precisamente, objectiva e definitiva, ela é fecunda em inspirações
úteis ao homem de acção. Fiel a este princípio, o mestre soció­
logo reivindica para o pensador uma função de educador, sem se
preocupar se ele entra para o Parlamento.»
Os textos 12 e 13 reproduzem a maior parte dos relatórios
das duas sessões em que Durkheim participou e nas quais inter­
veio demoradamente.
A primeira, realizada eni 11 de Março de 1906, fazia parte

231
de uma série de entrevistas livres organizadas pela Union pour
l’Action morale, que se tornou na Action pour la Vérité entre 1905
e 1914. Economistas, historiadores, filósofos, sindicalistas eram
convidados para trocar opiniões sobre os seguintes temas: a sepa­
ração das Igrejas e do Estado, a evolução do ensino, o internacio-
nalismo econômico, etc. As discussões eram geralmente presididas
por Paul Desjardins.
O tema da «entrevista» de 11 de Março era «o internaciona-
lismo e a luta de classes». Participavam igualmente, além de Paul
Desjardins e de Durkheim, P. Bureau, Léopold Dor, membro do
Labour Party inglês, Charles Gide, Frédéric Rauh, Emile Pouget,
secretário-adjunto da C. G. T., e por fim Hubert Lagardelle. Este
último tinha fundado em 1898 o jornal Le mouvement socialista,
de tendência sindicalista revolucionária, e fazia parte da extrema-
-esquerda do Partido Socialista S. F. I. O. (mais tarde foi minis­
tro do Trabalho no Governo de Vichy, em 1942-43). Efectiva-
mente, a sessão foi preenchida com um diálogo muito animado
entre Lagardelle e Durkheim: é esse o diálogo que aqui retomamos.
Tinha sido precedido de uma apresentação de Hubert Lagardelle
por Paul Desjardins em termos de «o representante do socialismo
revolucionário antipatriota» e de uma exposição do militante socia­
lista sobre a luta de classes, que considerámos útil incluir aqui para
dar pleno sentido à intervenção de Durkheim, que se lhe segue.
O tema desta outra sessão, organizada em 30 de Dezembro
de 1907 no âmbito das reuniões da Société Française de Philo-
sophie e de que o texto 13 agrupa importantes fragmentos, ê certa­
mente parente do anterior. Os diálogos entre Durkheim e Théo-
dore Ruyssen e entre Durkheim e Daniel Parodi permitem no en­
tanto uma tomada de posição do sociólogo em relação à natureza
de um «patriotismo aberto», que conciliaria o apoio a nações sin­
gulares e a exigência de universalidade. Pacifismo e patriotismo
não são portanto inelutavelmente contraditórios se, tal como o
culto do indivíduo é o respeito em cada um do homem em geral,
o culto nacional é o amor da sua própria sociedade de pertença
in abstracto.
A comunicação liminar de Th. Ruyssen definia o «pacifismo»
como «a doutrina e a propaganda cujo objectivo comum é estabe­
lecer entre as nações, através do direito, uma paz durável». Não
dava portanto razão nem aos «internacionalistas patriotas», nem

232
aos «nacionalistas patriotas», visto ambos serem igualmente adver­
sários do pacifismo. Para os primeiros, «a paz faz-se automatica­
mente graças ao inevitável desaparecimento das pátrias ultrapassa­
das pela crescente internacionalização da produção e do consumo»;
para os segundos «pregando a paz acerrimamente, conscientes dos
verdadeiros antagonismos, dissolve-se o instinto de preservação
indispensável à vida das sociedades nacionais». O pacifismo fica
aquém do objectivo num caso e vai além dele no outro. Ruyssen
acusa as duas teses de se basearem numa política de «deixa-andar»,
quando o pacifismo propõe uma organização concreta da segurança
colectiva.
Assistiam a esta discussão, presidida por Xavier Léon, além
de Tb. Ruyssen, D. Parodi e Durkheim, numerosos filósofos e
sociólogos, tais como G. Belot, L. Brunschvicg, Ferdinand Buisson,
H. Delacroix, L. Delbos, J. Lachelier e F. Raub.
' ■
10

O INDIVIDUALISMO E OS INTELECTUAIS

questão que há seis meses divide tão dolorosamente o país


está a transformar-se: de princípio, simples questão de
facto, foi-se generalizando pouco a pouco. A recente inter­
venção de um conhecido literato 1 muito contribuiu para este resul­
tado. Parece que chegou o momento de renovar uma polemica que
se prolongava com repetições fastidiosas. É por isso que, em vez
de retomar novamente a discussão dos factos, quisemos, num re­
lance, ir ao fundo da questão: foi o estado de espírito dos «intelec­
tuais» 2 e as idéias fundamentais que eles anunciam e não o por­
menor da sua argumentação que se atacou. Se eles se recusam
obstinadamente «a vergar a sua lógica frente à palavra de um gene­
ral do exército», é evidente que se arrogam o direito de julgar por
si mesmos a questão; é que eles põem a sua razão acima da autori­
dade, é que os direitos do indivíduo lhes parecem imprescritíveis.
Foi portanto o seu individualismo que determinou a sua oposição.
Mas então, argumenta-se, se se pretende levar a paz aos espíritos

1 Ver o artigo de Brunetière: «Depois do processo», in Reune des Denx


Mondes, de 15 de Março de 1898.
2 Note-se que esta palavra, muito cômoda, não tem dc maneira nenhuma o
sentido impertinente que maldosamcntc se lhe atribuiu. O intelectual não c aquele
que tem o monopólio da inteligência; não há funções sociais em que a inteligência
não seja necessária. Mas há-as onde ela é, ao mesmo tempo, o meio e o fim,
o instrumento e o objectivo; emprega-se a inteligência para alargar a inteligência,
quer dizer, para enriquecê-la com conhecimentos, idéias ou sensações novas. Ela
é portanto tudo para estas profissões (arte, ciência), c é para exprimir esta par­
ticularidade que se acabou naturalmente por chamar intelectual ao homem que
a isso se dedica.

235
c prevenir o retorno de semelhantes discórdias, é este individua­
lismo que é necessário atacar corpo a corpo. É preciso acabar de
uma vez para sempre com esta fonte inesgotável de divisões inter­
nas. E iniciou-se assim uma verdadeira cruzada contra esta praga
pública, contra «esta grande doença dos tempos que correm».
Aceitamos de bom grado um debate nestes termos. Também
nós pensamos que as controvérsias de ontem exprimiam apenas
superficialmente um desentendimento mais profundo; que as pes­
soas se dividiram mais sobre uma questão de princípio que sobre
uma questão de facto. Deixemos portanto de parte os argumentos
de circunstância que se trocam de parte a parte; esqueçamos o pró­
prio caso e os tristes espectáculos que testemunhámos. O problema
que se nos levanta ultrapassa infinitamente os actuais incidentes
e é deles que resulta.

Há um primeiro equívoco que é preciso desfazer antes de mais.


Para elaborar mais facilmente o processo do individualismo,
confundem-no com o utilitarismo estreito e com o egoísmo utili­
tário de Spencer e dos economistas.
Estamos efectivamente em condições favoráveis para denunciar
como um ideal sem grandeza este comercialismo mesquinho que
reduz a sociedade a um vasto aparelho de produção e de troca,
e é evidente que toda e qualquer vida em comum é impossível se
não existirem interesses superiores aos interesses individuais. Que
semelhantes doutrinas sejam tratadas de anárquicas, nada o merece
mais e nós juntamo-nos ao coro. Mas o que é inadmissível é que
se raciocine como se este individualismo fosse o único existente
e mesmo possível. Pelo contrário, ele torna-se cada vez mais em
raridade e excepção. A filosofia prática de Spencer é de uma tal
miséria moral que já não encontra adeptos. Quanto aos economis­
tas, em determinada altura deixaram-se seduzir pelo simplismo
desta teoria, mas há muito que sentiram a necessidade de temperar
o rigor da sua ortodoxia primitiva e de se abrirem a sentimentos
mais generosos. Em França, Molinari é mais ou menos o único que

236
permaneceu irredutível e não conheço que tenha exercido uma
grande influência sobre as idéias da nossa época. Em verdade, se
o individualismo não tivesse outros representantes, seria inútil agi­
tar' assim céus e terras para combater um inimigo que está a morrer
tranquilamente de morte natural.
Mas existe outro individualismo contra o qual é difícil lutar.
Há um século que é professado pela grande generalidade dos pen­
sadores; é o de Kant e de Rousseau, o dos espiritualistas, o mesmo
que a Declaração dos Direitos do Homem tentou, com mais ou
menos êxito, traduzir em fórmulas, o mesmo que é corrente ensi­
nar nas nossas escolas e que se tornou a base do nosso catecismo
moral. É verdade que pensamos encontrá-lo a coberto do primeiro,
mas ele difere profundamente desse individualismo e as críticas que
se aplicam a um não poderíam convir ao outro. Longe de fazer
do interesse pessoal o objectivo da sua conduta, ele considera tudo
o que é motivação pessoal como a própria origem do mal. Segundo
Kant, só posso ter a certeza de estar a agir correctamente se os
motivos que me determinam dependerem, não das circunstâncias
particulares em que estou envolvido, mas da minha qualidade de
homem in abstracto. Inversamente, a minha acção é má quando só
se pode justificar logicamente através da minha situação econômica
ou social, dos meus interesses de classe ou de casta, das minhas
paixões, etc. Por isso, o comportamento imoral reconhece-se por
estar estreitamente ligado à individualidade do agente e por não
poder ser generalizado sem manifesto absurdo. Do mesmo modo,
se, conforme Rousseau, a vontade geral, que é a base do contrato
social, é infalível, se ela é a expressão autêntica da justiça perfeita,
é porque ela é uma resultante de todas as vontades particulares;
por conseguinte, ela constitui uma espécie de média impessoal
donde todas as considerações individuais são eliminadas, porque,
sendo divergentes e mesmo antagônicas, neutralizam-se e apagam-
-se mutuamente *. Assim, para um e para outro, as únicas maneiras
morais de agir são as que podem convir a todos os homens indis-
tintamente, quer dizer, que estão implicadas na noção do homem
em geral.
Eis-nos bem longe dessa apoteose do bem-estar e do interesse
individuais e desse culto egoísta do «ego» de que justamente se

1 V. Contrai social, Liv. II, Cap. III.

237
pode ter acusado o individualismo utilitário. Pelo contrário, se­
gundo estes moralistas, o dever consiste em desviar o olhar daquilo
que nos diz respeito pessoalmente, de tudo o que se deve à nossa
individualidade empírica, para procurar unicamente aquilo que a
nossa condição de homem, tal como ela é comum a todos os nossos
semelhantes, reclama. Este ideal ultrapassa de tal maneira o nível
dos fins utilitários, que surge perante as nossas consciências, que a
ele aspiram, como que totalmente impregnada de religiosidade. Esta
pessoa humana, cuja definição é como que a pedra de toque se­
gundo a qual o bem se deve distinguir do mal, c considerada
sagrada, no sentido ritual da palavra, a bem dizer. Tem algo dessa
majestade transcendente que Igrejas de todos os tempos conferem
aos seus deuses; concebemo-la como que investida dessa proprie­
dade misteriosa que cria um vazio em torno das coisas santas, que
as subtrai aos contactos vulgares e as retira da circulação comum.
É precisamente daqui que vem o respeito de que ela é objecto.
Quem quer que seja que atente contra a vida de um homem, con­
tra a liberdade de um homem, contra a honra de um homem, ins­
pira-nos um sentimento de repulsa, análogo àquele que o crente
sente quando vê profanarem o seu ídolo. Semelhante moral não
pode portanto ser simplesmente uma disciplina higiênica ou uma
sensata economia da existência; é uma religião de que o homem
é, ao mesmo tempo, o fiel e o deus.
Mas esta religião é individualista visto que tem o homem por
objecto e que o homem é, por definição, um indivíduo. Nem existe
mesmo sistema nenhum onde o individualismo seja mais intransi­
gente. Em sítio algum os direitos do indivíduo são afirmados tão
energicamente, visto que aí o indivíduo é colocado no grupo das
coisas sacrossantas; em sítio algum ele é mais ciosamente protegido
contra os ataques exteriores, venham eles donde vierem. A dou­
trina do útil pode facilmente aceitar todo o gênero de compromis­
sos sem mentir ao seu axioma fundamental; ela pode admitir que
as liberdades individuais sejam suspensas sempre que o interesse
da maioria exija este sacrifício. Mas não há composição possível
com um princípio que se coloca assim fora e acima de quaisquer
interesses temporais. Não há razão de Estado que possa desculpar
um atentado contra a pessoa quando os direitos da pessoa estão
acima do Estado. Se portanto o individualismo é em si mesmo um
fermento de dissolução moral, devíamos assistir aqui à manifesta-

238
ção da sua essência anti-social. Concebe-se que ela seja desta vez
o centro da questão. Pois o liberalismo do século xviii que, no
fundo, é o objecto do litígio, não é unicamente uma teoria de gabi­
nete ou uma construção filosófica; ele passou aos factos, penetrou
nas nossas instituições e nos nossos costumes, está associado a toda
a nossa vida e, se realmente nos fosse preciso desfazermo-nos dele,
é toda a nossa organização moral que seria necessário destruir ao
mesmo tempo.

II

Ora é já um facto notável que todos estes teóricos do indivi­


dualismo não sejam menos sensíveis aos direitos da colectividade
que aos do indivíduo. Ninguém insistiu tanto como Kant sobre
o carácter supra-individual da moral e do direito; ele transforma-a
numa espécie de ordem à qual o homem deve obedecer porque ela
é a ordem, sem a ter de discutir; e se por vezes o acusaram de ter
exagerado a autonomia da razão, também se disse, não sem funda­
mento, que ele pôs na base da sua moral um acto de fé e de sub­
missão impensados. Aliás, as doutrinas julgam-se sobretudo pelos
seus produtos, ou seja, pelo espírito das doutrinas que elas susci­
tam: ora, da doutrina de Kant saíram a ética de Fichte, já total­
mente impregnada de socialismo, e a filosofia de Hegel, de quem
Marx foi o discípulo. Para Rousseau, sabe-se quanto o seu indivi­
dualismo está reforçado por uma concepção autoritária da socie­
dade. Em seguida, os homens da Revolução, promulgando embora
a famosa Declaração dos Direitos do Homem, tornaram a França
una, indivisível e centralizada e talvez se deva mesmo ver antes
de mais, na obra revolucionária, um grande movimento de concen­
tração nacional. Por fim, a principal razão pela qual os espiritualis­
tas sempre combateram a moral utilitária é porque ela lhes parecia
incompatível com as necessidades sociais.
Dir-se-á que este eclectismo não deixa de ser contraditório?
Certamente, nós não pretendemos defender a maneira como estes
diferentes pensadores resolveram conjugar estes dois aspectos dos

239
seus sistemas. Se, com Rousseau, se começa a fazer do indivíduo
uma espécie de absoluto que pode e deve bastar-se a si próprio,
evidentemente que é difícil explicar em seguida como é que o es­
tado civil se constituiu. Mas, presentemente, trata-se de saber, não
se tal ou tal moralista conseguiu demonstrar como é que estas duas
tendências se conciliam, mas se, por si mesmas, elas são ou não
conciliáveis. As razões que foram dadas para estabelecer a sua uni­
dade podem não ter valor e esta unidade ser real; o próprio facto
de elas se terem geralmente encontrado nos mesmos espíritos é pelo
menos uma suspeita de que elas são contemporâneas; donde se se­
gue que devem depender de um mesmo estado social do qual, como
é evidente, apenas constituem aspectos diferentes.
E, efectivamente, logo que se deixou de confundir o individua­
lismo com o seu contrário, ou seja, com o utilitarismo, todas estas
pretensas contradições desaparecem como que por encanto. Esta
religião da humanidade tem tudo o que é preciso para falar aos
seus fiéis num tom menos imperativo do que as religiões que ela
vem substituir. Longe de se limitar a elogiar os nossos instintos,
ela estabelece-nos um ideal que ultrapassa infinitamente a natureza;
pois naturalmente que não somos esta razão sensata e pura que,
despida de qualquer móbil pessoal, ditaria no abstracto sobre o seu
próprio comportamento. Sem dúvida que, se a dignidade do indi­
víduo advém das suas características individuais e das particulari­
dades que o distinguem do próximo, poderiamos temer que ela
o fechasse numa espécie de egoísmo moral que impossibilitaria toda
e qualquer solidariedade. Mas ele recebe-a na realidade de uma
origem mais elevada e que é comum a todos os homens. Se ele
tem direito a esse respeito religioso é porque existe nele qualquer
coisa da humanidade. É a humanidade que é respeitável e sagrada;
ora ela não está totalmcnte inserida nele. Está espalhada em todos
os seus semelhantes; ele não pode por conseguinte tomá-la como
objectivo do seu comportamento sem ser obrigado a sair de si pró­
prio e a estender-se aos outros. O culto de que ele é ao mesmo
tempo o objecto e o agente não se dirige ao ser particular que
ele é e que traz o seu nome, mas à pessoa humana, esteja onde
estiver e seja qual for a forma que ela encarna. Impessoal e anô­
nimo, semelhante fim paira portanto muito acima de todas as
consciências individuais e pode assim servir-lhes de elo de ligação.
O facto de ela não nos ser estranha (unicamente por ser humana)

240
não impede que ela nos domine. Ora tudo o que é preciso às socie­
dades para que sejam coerentes é que os seus membros tenham os
olhos fixos num mesmo objectivo e se encontrem numa mesma fé;
mas não é de maneira nenhuma necessário que o objecto desta fé
comum se ligue de algum modo às naturezas individuais. Em defi­
nitivo, o individualismo assim interpretado é a glorificação, não
do eu, mas do indivíduo em geral. Tem por motor, não o egoísmo,
mas a simpatia por tudo o que é homem, uma maior piedade por
todas as dores, por todas as misérias humanas, uma mais ardente
necessidade dc os combater e atenuar, uma maior sede de justiça.
Não será isto suficiente para fazer comungar todas as boas cons­
ciências? Pode evidentemente acontecer que o individualismo seja
praticado num espírito totalmente diferente. Alguns utilizam-no
para fins pessoais, empregam-no como um meio de encobrir o seu
egoísmo e dc se furtarem mais facilmente aos seus deveres para
com a sociedade. Mas esta exploração abusiva do individualismo
nada prova contra ele, tal como as mentiras utilitárias da hipocrisia
religiosa nada provam contra a religião.
Mas tenho pressa em chegar à objecção máxima. Este culto do
homem tem como primeiro dogma a autonomia da razão e como
primeiro rito a análise livre. Ora, pergunta-se, se todas as opiniões
são livres, porque milagre seriam elas harmônicas? Se elas se for­
maram sem se conhecerem e sem se terem de ter em conta umas
às outras, como é que haviam de não ser incoerentes? A anarquia
intelectual e moral seria assim a consequência inevitável do libera­
lismo. Tal é o argumento, sempre rejeitado e sempre renascente,
que os eternos adversários da razão retomam periodicamente, com
uma perseverança que nada desencoraja, sempre que um cansaço
passageiro do espírito humano o expõe à sua mercê. Ê bem ver­
dade que o individualismo supõe um certo intelectualismo; já que
a liberdade de pensamento é a primeira das liberdades. Mas onde
é que se viu que ele tenha por consequência essa absurda presun­
ção de si próprio que fecharia cada qual no seu próprio sentimento
e criaria o vazio entre as inteligências? O que ele exige é o direito
para cada indivíduo de conhecer coisas que ele pode legitimamente
conhecer; mas ele não consagra direito algum à incompetência.
Sobre um problema do qual não me posso pronunciar em conhe­
cimento de causa, nada custa à minha independência intelec­
tual seguir uma opinião mais competente. A colaboração entre

241
cientistas só é mesmo possível graças a esta deferência mútua; toda
a ciência pede constantemente às vizinhas proposições que aceita
sem verificar. Somente são precisas razões para que a minha razão
se incline face à de outro. O respeito pela autoridade não tem nada
de incompatível com o nacionalismo desde que a autoridade seja
fundamentada racionalmente.
É por isto que, quando se vêem intimar certos homens a uni-
rem-se a um sentimento que não é o seu, não basta, para os con­
vencer, lembrar-lhes esse lugar-comum de retórica banal que a socie­
dade não é possível sem sacrifícios mútuos e sem um certo espírito
de subordinação; é também necessário justificar um por um a doci­
lidade que se lhes pede, demonstrando-lhes a sua incompetência.
Se, pelo contrário, se tratar de uma dessas questões que pertencem,
por definição, ao julgamento comum, semelhante abdicação é con­
trária a toda a razão e, por conseguinte, ao dever. É um problema
de moral prática para o qual qualquer homem de bom senso é com­
petente e pelo qual ninguém se deve desinteressar. Se portanto,
nestes últimos tempos, um certo número de artistas, e sobretudo
de sábios, pensaram dever recusar o seu consentimento a um jul­
gamento cuja legalidade lhes parecia suspeita não é que, na sua
qualidade de químicos ou de filósofos, de filólogos ou de historia­
dores, eles se atribuam não sei que privilégios especiais e como
que um direito eminente de controle sobre a causa julgada. Mas
sim que, sendo homens, eles entendem exercer todo o seu direito
de homens e tomar nas suas mãos um caso que depende unicamente
da razão. É verdade que eles se mostraram mais ciosos deste direito
do que o resto da sociedade; mas é simplesmente porque, devido
aos seus hábitos profissionais, têm-lhe maior apego. Habituados
pela prática do método científico a reservar o seu julgamento en­
quanto não se sentem esclarecidos, é natural que cedam menos facil­
mente aos arrebatamentos da multidão e ao prestígio da autori­
dade.

242
III

Não só o individualismo não é a anarquia como é, a partir


de agora, o único sistema de crenças que possa garantir a unidade
moral do país.
Ouve-se muitas vezes dizer hoje que só uma religião pode
produzir esta harmonia. Esta afirmação que os profetas modernos
supõem ter de desenvolver num tom místico é, no fundo, um
simples truísmo com o qual toda a gente pode concordar. Sabe-se
hoje que uma religião não implica necessariamente símbolos e ritos
propriamente ditos, templos e padres; este aparelho exterior é ape­
nas a sua parte superficial. Essencialmente ela não é mais do que
um conjunto de crenças e práticas colectivas com uma autoridade
particular. Logo que um objectivo é seguido por todo um povo,
adquire, devido a esta adesão unânime, uma espécie de supremacia
moral que o eleva bem acima dos fins privados e lhe confere assim
um caracter religioso. Por outro lado, é evidente que uma socie­
dade só pode ser coerente se existir entre os seus membros uma
certa comunidade intelectual e moral. Somente que, quando se lem­
brou mais uma vez esta evidência sociológica, não se avançou
muito; pois se é verdade que uma religião é, num certo sentido,
indispensável, não é menos certo que as religiões se transformam,
que a de ontem não pode ser a de amanhã. O importante seria
portanto dizer o que é que a religião de hoje deve ser.
Ora tudo concorre precisamente para fazer crer que a única
possível é essa religião da humanidade de que a moral individua­
lista c a expressão racional. Efectivamente, a que é que a sensibili­
dade colectiva pode hoje em dia aderir? À medida em que as socie­
dades se tornam mais volumosas e se estendem por mais vastos
territórios, tradições e práticas, para se poderem moldar à diver­
sidade das situações e à mobilidade das circunstâncias são obriga­
das a conservarem-se num estado de plasticidade e de inconsistência
tal, que já não oferece resistência suficiente às variações indivi­
duais. Estas, sendo muito menos reprimidas, produzem-se mais
livremente e multiplicam-se: é dizer que cada qual segue melhor
o seu próprio sentido. Ao mesmo tempo, devido a uma divisão
mais evoluída do trabalho, cada um está virado para um ponto dife­
rente do mundo e, por conseguinte, o conteúdo das consciências

243
difere de um indivíduo para o outro. Caminha-se assim, pouco a
pouco, para um estado, que hoje quase se atingiu, e onde os mem­
bros de um mesmo grupo social não terão mais nada em comum
entre eles senão a sua qualidade de homens e os atributos da pes­
soa humana em geral. Esta ideia da pessoa humana, diferente con­
soante a diversidade dos temperamentos nacionais, é portanto a
única que se mantém imutável e impessoal, para além da corrente
móvel das opiniões particulares; e os sentimentos que ela desperta
são os únicos que se podem encontrar mais ou menos em todos os
corações. A comunhão dos espíritos não pode mais processar-se
sobre ritos e preconceitos definidos, uma vez que ritos e precon­
ceitos passam a ser levados pelo curso das coisas; logo, nada mais
resta que os homens possam amar e honrar em comum senão o
próprio homem. Eis como o homem se tornou um deus para o ho­
mem e porque é que ele não pode, sem se mentir a si próprio,
construir outros deuses. E como cada um de nós encarna algo da
humanidade, cada consciência individual encerra algo de divino e
fica assim marcada por um caracter que a torna sagrada e inviolá­
vel para os outros. O individualismo é isto; e é isto que constitui
a doutrina necessária. Pois, para parar o motor, seria preciso impe­
dir os homens de se diferenciarem cada vez mais uns dos outros,
nivelar as suas personalidades, reconduzi-los ao velho conformismo
de antigamente, conter, por conseguinte, a tendência das sociedades
em se tornarem cada vez mais extensas e mais centralizadas e fazer
obstáculo ao progresso incessante da divisão do trabalho; ora, tal
iniciativa, desejável ou não, ultrapassa infinitamente as forças hu­
manas.
Que é que nos propõem em vez deste individualismo desa­
creditado? Gabam-nos os méritos da moral cristã e convidam-nos
discretamente a juntarmo-nos a ela. Mas será que se ignora que
a originalidade do cristianismo consistiu justamente num notável
desenvolvimento do espírito individualista? Enquanto a religião
da cidade era inteiramente constituída por práticas materiais onde
o espírito estava ausente, o cristianismo mostrou na fé interior,
na convicção pessoal do indivíduo a condição essencial da pie­
dade. Foi o primeiro a ensinar que o valor moral dos actos se deve
avaliar pela sua intenção, coisa íntima por excelência, que obsta
por natureza a todos os julgamentos exteriores e que só o agente
pode apreciar com competência. O próprio centro da vida moral

244
foi assim transportado do exterior para o interior e o indivíduo
elevado a juiz soberano do seu próprio comportamento, sem ter
de prestar contas senão a ele próprio e ao seu Deus. Por fim,
consumando a separação definitiva do espiritual e do temporal e
abandonando o mundo aos conflitos dos homens, Cristo entregou-o
igualmente à ciência e à análise livre: assim se explicam os rápidos
progressos que o espírito científico fez no dia em que as sociedades
cristãs se constituíram. Não venham portanto denunciar o indivi­
dualismo como inimigo que é necessário combater a todo o preço!
Seria combatê-lo para voltar a ele, de tal maneira é impossível esca­
par-lhe. Não lhe podemos opor outra coisa a não ser ele próprio;
mas todo o problema é saber qual é a justa medida e se há alguma
vantagem em mascará-lo sob os símbolos. Ora, se ele é tão peri­
goso como se diz, não percebemos como é que se poderia tornar
inofensivo ou benéfico unicamente por dissimularmos a sua verda­
deira natureza com a ajuda de metáforas. E por outro lado, se este
individualismo restrito, que é o cristianismo, foi necessário há
dezoito séculos, há muitas probabilidades que um individualismo
mais desenvolvido seja indispensável hoje; visto que as coisas mu­
daram desde então. É portanto um erro singular apresentar a moral
individualista como antagônica da moral cristã; pelo contrário, é
dela que deriva. Agarrando-nos à primeira, não renegamos o nosso
passado; não fazemos mais do que continuá-lo.
Estamos agora em melhores condições de compreender por que
razão certos espíritos crêem dever opor uma resistência opiniosa
a tudo o que lhes parece ameaçar a crença individualista. Se qual­
quer iniciativa dirigida contra os direitos do indivíduo os revolta,
não é unicamente por simpatia para com a vítima; também não
é por receio de terem igualmente de se sujeitar a semelhantes
injustiças. Mas é que semelhantes atentados não podem deixar de
ser castigados sem comprometer a existência nacional. É efectiva-
mente impossível que eles se produzam em liberdade sem afectar
os sentimentos que eles ferem; e como estes sentimentos são os
únicos que nos são comuns, não podem enfraquecer sem que a coe­
são da sociedade seja fortemente afectada. Uma religião que tolera
os sacrilégios abdica de qualquer autoridade sobre as consciências.
A religião do indivíduo não se pode portanto deixar injuriar sem
resistência, sob pena de perder a confiança; e como ela é o único
elo que nos liga uns aos outros, semelhante fraqueza implica um

245
princípio dc dissolução social. Assim io individualista, que defende
os direitos do indivíduo, defende ao> mesmo tempo os interesses
vitais da sociedade; pois ele impede que se empobreça criminosa-
mente esta última reserva de idéias e de sentimentos colectivos que
são a própria alma da nação. Ele presta à sua pátria o mesmo ser­
viço que o velho romano prestava outrora à sua cidade quando
defendia contra temerários inovadores os ritos tradicionais. E se há
um país, entre todos os outros, onde a causa individualista seja
verdadeiramente nacional é o nosso; pois não há nenhum que
tenha solidarizado tão estreitamente o seu destino com o destino
destas idéias. Fomos nós quem deu a fórmula mais recente, e foi de
nós que os outros povos a receberam; e é por isto que, até hoje,
passávamos por ser os seus mais autorizados representantes. Não
podemos portanto renegá-los hoje sem nos renegarmos a nós mes­
mos, sem nos diminuirmos aos olhos do mundo e sem cometermos
um verdadeiro suicídio moral. Em certa altura duvidámos sc não
seria talvez conveniente consentir num eclipse passageiro destes
princípios, para não perturbar o funcionamento de uma adminis­
tração pública que toda a gente, de resto, reconhece ser indispen­
sável à segurança do Estado. Não sabemos se a antinomia se levanta
realmente sob esta forma aguda; mas, em todo o caso, se é verda­
deiramente necessário escolher entre estes dois males, seria escolher
o pior sacrificar assim aquilo que foi até hoje a nossa razão de ser
histórica. Um órgão da vida pública, por importante que seja, não
passa de um instrumento, um meio em vista de um fim. Para que
serve conservar tão ciosamente o meio se abandonamos o fim?
E que cálculo triste renunciar, para viver, a tudo o que faz o preço
e a dignidade da vida.
Et propter vitam vivendi perdere causas!

IV

Em verdade, receamos que tenha havido uma certa precipitação


na maneira como foi iniciada esta campanha. Uma semelhança ver­
bal pode fazer crer que o individualismo derivava necessariamente

246
de sentimentos individuais, portanto egoístas. Na realidade a reli­
gião do indivíduo é de instituição social, como todas as religiões
que se conhecem. É a sociedade que nos determina este ideal, como
único objectivo comum que possa actualmente unir as vontades.
Tirarem-no-la, sem contudo nada nos darem em troca, é precipi­
tarem-nos nessa anarquia moral que queremos precisamente com­
bater *.
Muito falta no entanto para que consideremos como perfeita
e definitiva a fórmula que o século xvui estabeleceu do individua­
lismo e que fizemos mal em conservar quase sem transformações.
Suficiente há um século atrás, ela precisa agora de ser alargada e
completada. Ela apresenta o individualismo apenas pelo seu lado
negativo. Os nossos pais tinham-se exclusivamente proposto a tarefa
de libertar o indivíduo dos entraves políticos que perturbavam o
seu desenvolvimento. A liberdade de pensar, a liberdade de escre­
ver, a liberdade de votar foram propostas por eles na categoria dos
valores principais que era preciso conquistar e esta emancipação
era certamente a condição necessária para todos os progressos ulte-
riores. Simplesmente, levados pelo ardor da luta e inteiramente
entregues ao objectivo que perseguiam, eles acabaram por nada
ver para além desse objectivo e por elevar o termo próximo dos
seus esforços a finalidade superior e última. Ora, a liberdade polí­
tica é um meio, não um fim; o seu único preço é a maneira como
é utilizada; se não servir algo que a ultrapasse, ela não se torna só
inútil; torna-se também perigosa. Arma de combate, se aqueles que
a manejam não a sabem utilizar em lutas fecundas, não tarda a vol­
tar-se contra eles próprios.
E é justamente por esta razão que ela actualmente caiu num
certo descrédito. Os homens da minha geração lembram-se do nosso
entusiasmo quando, há uns vinte anos, assistimos finalmente à
queda dos últimos obstáculos que continham as nossas impaciên-
cias. Mas qual! O desencanto depressa chegou; pouco tempo depois

* Eis como sc pode, sem contradição, ser individualista dizendo ao mesmo


tempo que o indivíduo é um produto da sociedade, mais do que a sua causa.
É que o próprio individualismo é um produto social, como todas as morais e todas
as religiões. O indivíduo recebe da própria sociedade as crenças morais que o divi-
nizam. É o que Kant e Rousseau não compreenderam. Quiseram deduzir a sua
moral individualista, não da sociedade, mas da noção do indivíduo isolado. Tal
empresa era impossível e daí as contradições lógicas dos seus sistemas.

247
acabavamos por confessar que não sabíamos que fazer dessa liber­
dade tão penosamente conquistada. Aqueles a quem a devíamos
utilizaram-na unicamente para se destruírem uns aos outros. Sen­
tiu-se desde então levantar-se sobre o país esse vento de tristeza
e de desencorajamento que se tornou cada dia mais forte e que
devia acabar por matar as energias menos resistentes.
Não nos podemos portanto agarrar a esse ideal negativo. É pre­
ciso ultrapassar os resultados adquiridos, quanto mais não seja para
os conservar. Se não aprendermos finalmente a utilizar os meios
de acção que temos entre as mãos, é inevitável que eles se depre­
ciem. Utilizemos portanto as nossas liberdades para procurar o que
é preciso fazer e para o fazer, para amenizar o funcionamento da
máquina social, tão rude ainda para os indivíduos, para pôr ao seu
alcance todos os possíveis meios de desenvolver as suas faculdades
sem obstáculos, e finalmente para transformar numa realidade o
famoso preceito: «A cada um segundo a sua produção!» Reconhe­
çamos até que, de uma maneira geral, a liberdade é um instrumento
delicado cujo manejamento deve ser aprendido e ensinemo-lo aos
nossos filhos; toda a educação moral devia ser orientada nesse sen
tido. Vê-se que matéria não falta para a nossa actividade. Só que,
se é verdade que agora será preciso propormo-nos novos fins para
além daqueles que são alcançados, seria insensato renunciar aos
segundos para melhor realizar os primeiros: pois os progressos
necessários só são possíveis graças aos progressos efectuados. Tra­
ta-se de completar, de alargar, de organizar o individualismo, e não
de o combater e restringir. Trata-se de utilizar a reflexão e não de
lhe impor o silêncio. Só ela nos pode ajudar a sair das presentes
dificuldades; não vimos o que a possa substituir. Não é a meditar
sobre a Política Tirada da Sagrada Escritura que alguma vez encon­
traremos os meios de organizar a vida econômica e de introduzir
maior justiça nas relações contratuais!
Será que, nestas condições, o dever nos surge já traçado? Todos
os que acreditam na utilidade ou simplesmente na necessidade das
transformações morais realizadas desde há um século têm idêntico
interesse: devem esquecer as divergências que os separam e con­
jugar os esforços para manter as posições adquiridas. Depois de
atravessada a crise, será certamente oportuno relembrar os ensina­
mentos da experiência para não se voltar a cair nessa inacção este-
rilizante de que actualmente sofremos as consequências; mas isto

248
é trabalho para amanhã. Para hoje, a tarefa urgente e que deve pas­
sar à frente de todas as outras é salvar o nosso patrimônio moral;
logo que ele esteja seguro tentaremos fazê-lo prosperar. Que o
perigo comum nos sirva pelo menos para sacudir o nosso entorpe­
cimento, para nos fazer retomar o gosto pela acção! E já se encon­
tram efectivamente pelo país iniciativas que despertam e boas von­
tades que se procuram. Venha quem os una e quem os dirija no
combate e talvez a vitória não se faça esperar. Pois, em certa me­
dida, o que nos deve tranquilizar é que a força dos nossos adver­
sários não é mais do que a nossa fraqueza. Eles não têm nem esta
fé profunda nem este entusiasmo generoso que arrastam irresisti­
velmente os povos às grandes reacções como às grandes revoluções.
Não que pensemos em contestar a sua sinceridade! Mas como não
sentir tudo o que a sua convicção tem de improvisado? Eles não
são nem apóstolos que deixam transbordar as suas iras ou o seu
entusiasmo, nem cientistas que nos tragam o produto das suas
investigações ou das suas reflexões; são letrados seduzidos por um
tema interessante. Parece-nos portanto impossível que estes jogos
de diletantes consigam, se soubermos agir, absorver as massas por
muito tempo. Mas também que humilhação se, não tendo de tra­
tar com adversários de maior envergadura, a razão acabasse por ser
vencida, mesmo por pouco tempo?
11

A ÉLITE INTELECTUAL E A DEMOCRACIA

scritores e cientistas são cidadãos; é portanto evidente que


eles têm rigorosamente o dever de participar na vida pública.
Resta saber sob que forma c em que medida.
Homens de pensamento e de imaginação, não parece que este­
jam particularmente predestinados à carreira propriamente política;
esta exige, antes de mais, qualidades de homens de acção. Mesmo
aqueles cuja profissão é meditar sobre as sociedades, mesmo o his­
toriador e o sociólogo, não me parecem muito mais aptos para estas
funções activas do que o literato ou o naturalista; pode-se muito
bem ter o talento que faz descobrir as leis gerais através das quais
se explicam os factos sociais do passado sem que por isso se tenha
o sentido prático que faz adivinhar as medidas que exige o estado
de determinado povo, em dada altura da sua história. Tal como
um grande fisiólogo é geralmente um clínico medíocre, um soció­
logo tem as maiores probabilidades de fazer um homem de Estado
muito incompleto. Sem dúvida, é bom que os intelectuais estejam
representados nas assembléias deliberantes; além de que a sua cul­
tura lhes permite contribuir para as deliberações com elementos
de informação não desprezíveis, eles, mais do que ninguém, são
qualificados para defender, face aos poderes públicos, os interesses
da arte e da ciência. Mas para cumprir esta tarefa não é necessário
que sejam muito numerosos no Parlamento. Aliás, podemos inter-
rogar-nos se — excepto nalguns casos de gênios eminentemente
dotados — é possível ser-se deputado ou senador, sem deixar,
nessa mesma medida, de ser escritor ou cientista, de tal maneira

251
estes dois tipos de funções implicam uma orientação diferente do
espírito e da vontade!
Assim, a meu ver, é sobretudo através do livro, da conferência
c das obras de educação popular que a nossa acção se deve exercer.
Nós devemos ser antes de mais conselheiros e educadores. Somos
feitos para ajudar os nossos contemporâneos a reconhecerem-se nas
suas idéias e nos seus sentimentos mais do que para os governar;
e, no estado de confusão mental em que vivemos, que função pode­
ría ser mais útil? Por outro lado, desempenhá-la-emos tanto melhor
quanto nos limitarmos a esta ambição. Ganharemos tanto mais
facilmente a confiança popular quanto menos segundas intenções
pessoais nos atribuírem. É preciso que, no conferencista de hoje,
não se suspeite o candidato de amanhã.
No entanto, disse-se e repetiu-se que o povo não era feito para
compreender os intelectuais e foi a democracia e o seu pretenso
espírito rude que se responsabilizou por essa espécie de indiferença
política que cientistas e artistas revelaram durante os vinte pri­
meiros anos da nossa terceira república. Mas o que prova que esta
explicação é destituída de qualquer fundamento é que tal indife­
rença acabou logo que um grande problema moral e social se pôs
ao país. A longa abstenção precedente resulta simplesmente de que
não havia qualquer questão que pudesse ser apaixonante. A nossa
política arrastava-se miseravelmente pelos problemas pessoais. Ha­
via divisões quando se tratava de saber quem devia ter o Poder.
Não havia uma grande causa impessoal à qual as pessoas se pudes­
sem consagrar, nem um objectivo superior a que as pessoas se
pudessem agarrar. Seguiam-se assim, mais ou menos distraidamente,
os pequenos incidentes da política quotidiana, sem se sentir alguma
necessidade de intervir. Mas logo que se levantou uma grave ques­
tão de princípio, viram-se os cientistas sair do seu laboratório, os
eruditos deixar o seu gabinete, aproximarem-se da multidão, mis­
turarem-se com ela, e a experiência provou que eles sabem fazer-se
entender.
A agitação moral que estes acontecimentos suscitaram não se
apagou e eu sou daqueles que pensam que ela não deve morrer;
pois ela é necessária. Era a nossa calma de antigamente que era
anormal e que constituía um perigo. Quer se lamente quer não, o
período crítico iniciado com a queda do antigo regime não acabou,
longe disso; é melhor consciencializarmo-nos disso do que abando-

252
narmo-nos a uma segurança enganadora. A hora do descanso ainda
não tocou para nós. Há demasiadas coisas para fazer para que não
seja indispensável conservar, a bem dizer, perpetuamente mobili­
zadas as nossas energias sociais. Ê por isto que considero que a
política seguida nestes quatro últimos anos é preferível à que a pre­
cedeu. Foi ela que conseguiu manter uma corrente de actividade
colectiva durável e de uma certa intensidade. É evidente que estou
longe de pensar que o anticlericalismo baste; tenho até uma certa
pressa em ver a sociedade agarrar-se a fins mais objectivos. Mas
o essencial era não nos deixarmos recair no estado de estagnação
moral em que tanto tempo nos demorámos.
12

INTERNACIONALISMO E LUTA DE CLASSES '

TA-AUL Desjardins. — É a famosa «luta de classes» que todos


Lz temos na ideia. Trata-se de saber se hoje existem realmente
JL «classes», duas e não três ou trinta, mas duas, nitidamente
separadas, necessariamente antagônicas; hoje mais do que nunca,
trata-se de saber em seguida se este antagonismo, que os proletários
devem não deixar amortecer, mas levar ao extremo, eliminará neces­
sariamente o antagonismo histórico das nações e substituirá os sen­
timentos que este antagonismo alimenta por sentimentos novos;
trata-se por fim de saber se a «consciência de classe» vale, como
estimulante de energias devotas, o patriotismo nacional ao qual se
pretende que ela vai suceder...
Lagardelle. — É muito simples e eu estou sempre pronto.
Falar da «luta de classes» é-me muito familiar, como a todos os
socialistas.
A ideia de «luta de classes» é essencial, é mãe do socialismo;
é a luta de classes que explica todo o socialismo.
A luta de classes supõe que a sociedade está dividida em grupos
homogêneos com uma subestrutura econômica, moral, intelectual
(os elementos desta subestrutura estão subordinados uns aos outros,
dependendo a vida intelectual do meio social). A sociedade aparece
assim como que formada de blocos de homens diferentes uns dos
outros; é a «insolidariedade» social. A classe operária constituiu-se
ao longo do século xix com o desenvolvimento da grande indústria.

1 Extraído de Libres enlreticns, 2." série, 7." entrevista, Paris, Bureaux des
Libres Entrcticns, 1906.

255
Ela tem uma dupla função, destruidora e criadora. O movimento
revolucionário arruina cada vez mais a sociedade actual, impondo-
-Ihe instituições novas que por sua vez criam novas noções de
direito. A classe operária está portanto em antagonismo absoluto
e total com a sociedade moderna: propriedade, família, pátria são
idéias completamente estranhas ao movimento operário que se
desenvolve de modo independente. O produtor está no centro
da sociedade, é dele que tudo depende e é sobre ele que tudo pesa;
se ele conseguir compreender que há antagonismo entre a sua fun­
ção de produtor e a função parasitária das outras classes, a luta
de classes deve surgir; senhores e escravos, governantes e governa­
dos desaparecem para dar lugar a uma sociedade de produtores
independentes e autônomos. Para conseguir a eliminação das clas­
ses parasitárias, a classe operária deve realizar a ruptura da socie­
dade moderna. Deve igualmente ter consciência de si mesma e tor­
nar-se cada vez mais homogênea. Acrescento que o trabalho de
destruição e de criação pode ser realizado ao mesmo tempo; a classe
operária cria ao mesmo tempo que destrói.
Quando a classe operária se encontra cm presença da ideia de
pátria, qual é a sua atitude? A ideia de pátria é tão forte que
quando a afirmamos só vimos a unidade de interesses dentro da
nação, esquecemos as diversidades de interesses, de opiniões e até
de confissões; a ideia de pátria nega radicalmente o movimento de
ruptura. Se as classes operárias romperem com a ideia de pátria,
acabam com a classe dominante. Elas conseguem-no. Quer se seja
um operário francês ou um operário alemão, a função que se desem­
penha na produção é a mesma, a organização da oficina é a mesma,
as relações com o patronato são as mesmas, não há diferença na
situação que foi criada. Só quando se consideram como cidadãos,
quando se situam em terreno político e não em terreno econômico,
é que os operários sentem a solidariedade com os outros cidadãos.
É verdade que a função política do operário é diferente em França
ou na Alemanha; compreende-se que o operário defenda as liber-
dades políticas que tem aqui e que não encontra noutro sítio, com-
preende-se um certo patriotismo político. Mas isto são coisas de
ordem secundária: os operários consideram que não vale a pena dar
a vida por diferenças que não são fundamentais; e o patriotismo
considera um dever dar a vida. Pouco interessa ao operário ser fran­
cês ou alemão, não digo enquanto cidadão mas enquanto produtor:

256
o produtor separa-se da actual sociedade, o cidadão incorpora-se
nela.
É assim que se pode compreender o imenso movimento que
se produziu contra a ideia de pátria. No inquérito do TAouvement
socialiste, os operários reconheceram como um facto que a ideia
de pátria existe, reconheceram que é natural que os burgueses
tenham esta ideia. Mas acrescentaram: «Pátria implica patrimônio.
De patrimônio, nada temos. Estamos fora da cultura; a cultura que
temos em nós é outra, ou melhor, temos de a criar; representamos
um movimento de bárbaros, em suma, estamos em antagonismo
com a sociedade burguesa.» Temos portanto de verificar um anta­
gonismo irredutível entre duas classes, entre dois estados. É na
medida em que as idéias de luta de classes se tornarem profundas
que o socialismo se realizará. Não sei se a realização total se poderá
cfectuar, mas sei que ela está subordinada ao esforço moral e ao
sentimento de responsabilidade social; esta vontade e este senti­
mento, os operários têm-no...
Durkheim. — Lagardelle pôs muito bem o problema. Disse
que o antipatriotismo é necessário à luta de classes. Segundo o
depoimento de Lagardelle, o antipatriotismo é apenas a conse­
quência particular de uma ideia mais geral, da ideia de que a socie­
dade só se poderá reconstituir com a destruição das actuais nações:
a sociedade actual forma dois blocos, é preciso que um destrua o
outro. Eis uma forma relativamente recente do socialismo. É esta
noção que é preciso discutir; é preciso examinar se socialismo e
revolução destrutiva se implicam necessariamente; é esta noção
de uma destruição necessária que me parece errada; é contrária
a todos os factos que conheço.
Primeiro disse-se que era o aparecimento da grande indústria
que condenava a uma destruição necessária as sociedades actuais.
Mas para isso seria preciso admitir que as sociedades modernas
não incluíam normalmente esta forma de economia, que seria o pro­
duto de uma verdadeira doença do corpo social. Neste caso, seria
legítimo defender que as nossas sociedades realizam uma contra­
dição, que não conseguiríam por si mesmas harmonizar-se com este
sistema industrial que é estranho à sua natureza. Mas, de facto,
parece que a grande indústria é o produto de um desenvolvimento
perfeitamente normal; é devida a uma progressiva extensão da
indústria local. Não se percebe portanto porque é que as sociedades

257
9 - A Ciência Social e a Acção
seriam essencialmente impotentes para se porem em relativa har­
monia com este regime econômico que saiu das suas vísceras e que
exprime a sua natureza, mas uma natureza atingindo um certo grau
de desenvolvimento. Porque é que um progresso das instituições
jurídicas e morais, paralelo a este progresso econômico, progresso
esse que realizaria esta harmonia, porque seria ele impossível?
Em segundo lugar, toda a argumentação do sindicalismo revo­
lucionário — e aqui, de Lagardelle — se apoia nesta ideia: o operá­
rio é exclusivamente um produtor. Ora o operário reduzido ao pro­
dutor é uma abstracção. Existe uma vida intelectual e moral na
qual o operário participa. É igualmente impossível não tomar parte
nela ou não respirar o ar ambiente. Dizer que o operário é apenas
um produtor, é fazer o erro dos velhos economistas, é restaurar
a velha noção do Homo oeconomicus.
A terceira objecção é a mais grave: como é que é possível que
amanhã o homem, sabendo o que é a vida do homem, queira a des­
truição da sociedade, ou seja, a barbárie? O homem é homem por­
que tem uma vida social. Poder-se-á querer destruir a sociedade?
Disse-se com razão que, se a guerra rebentasse hoje entre a França
e a Alemanha, seria o fim de tudo. A revolução destrutiva que se
anuncia seria um movimento destruidor pior do que este. Sempre
que uma sociedade desapareceu, com ela desapareceu uma civiliza­
ção; destruir uma sociedade é destruir uma civilização. Sem dúvida,
estas catástrofes não foram raras no passado, mas a inteligência
do homem deve ter precisamente por missão algemar, amordaçar
estas forças cegas, em vez de as deixar produzir as ; suas razias.
Parto do princípio que quando se: fala de destruir as sociedades
actuais, reserva-se o direito de as reconstruir. Mas isto são sonhos
de criança. Não se reconstrói assim a vida colectiva; uma vez des­
truída a nossa organização social, serão necessários séculos para
reconstruir outra. No intervalo, haverá uma nova Idade Média, um
período intermédio em que a antiga civilização desaparecida não
será substituída por nenhuma outra, ou, pelo menos, não será subs­
tituída senão por uma civilização que se inicia, insegura, em busca
de si mesma. Não será o sol da nova sociedade que se levantará,
resplandescente de luz, sobre as ruínas da antiga; entrar-se-á, sim,
num período de trevas. Em vez de apressar este período, devemos
empregar toda a nossa inteligência em evitá-lo ou, se for impossí­
vel, para o abreviar ou para o tornar menos sombrio. E para isso

258
é preciso impedir as destruiçoes que suspenderíam o curso da vida
social e da civilização.
Não contesto evidentemente ao indivíduo o direito de querer
viver numa outra sociedade que não seja aquela onde nasceu. Mas
não é a determinada sociedade existente que o antipatriotismo faz
guerra, é a todas, visto que todas são capitalistas. Aceitamos por­
tanto a perspectiva da época intermédia de que acabo de falar,
e aceitamo-la com alegria. Eis o que me parece constituir uma ver­
dadeira monstruosidade.
...Resumo o que acabo de dizer: l.° Para querer destruir a
sociedade actual é preciso considerar que a grande indústria repre­
senta um desenvolvimento econômico anormal; 2.° O antagonismo
das classes apoia-se na ideia de que o operário só existe enquanto
produtor. Porque é que só se considera este aspecto da sua pes­
soa?; 3.° Compreendo que se possa perguntar: a que nacionalidade
queremos pertencer? Não temos o direito de impedir um homem
de se desnacionalizar ■— uma vez saldadas as dívidas para com a
sua pátria natal. Mas que se queira viver numa sociedade, no
período que se seguirá à destruição da sociedade actual, é como se
dissessem que queriam viver fora da atmosfera, visto que a socie­
dade é a atmosfera moral do homem, do operário tal como dos
outros.
Lagardelle. — O socialismo operário é um movimento criado
unicamente pela classe operária. Neste movimento nenhum intelec­
tual participou. Os operários não têm de se justificar frente a um
intelectual como Durkheim. Um intelectual não poderia compreen­
der as suas razões: não tem de os fazer passar exames. Por outro
lado, Durkheim, sociólogo, encontra-se aqui em presença de um
fenômeno social de grande importância: o socialismo operário, tal
como se criou na consciência dos operários. Durkheim, sociólogo,
não tem de o contestar, tem de o verificar.
Durkheim.—Não se trata disso...
Lagardelle. — Nós, socialistas, sindicalistas revolucionários,
podemos escolher entre duas atitudes, sob o ponto de vista do
patriotismo: qual delas iremos escolher? Os operários concebem
perfeitamente que os burgueses defendam a pátria, mas eles consi­
deram-se a si próprios fora da pátria. Esta convicção pode escan-
dalizar-nos, mas é um facto...

259
Durkheim. — Todas as doenças sao factos.
(Risos.)
Lagardelle. — Temos portanto de escolher entre duas ati­
tudes contrárias...
Durkheim. — Mas é preciso escolher inteligentemente.
Lagardelle.—Tal escolha pode ser boa para si e má para
mim. Eis o que vários sindicalistas operários escreviam em resposta
ao inquérito do M.ouvement socialiste-, «Sou estranho a tudo o que
é benefício da pátria, a qualquer realidade da pátria. Não posso
ser patriota.» Este sentimento é o da grande maioria dos militantes
operários.
Durkheim. — O senhor não justificou esse sentimento.
Lagardelle. — Não o posso justificar a não ser descreven-
do-o.
Durkheim.—-Vejamos, não pode abdicar da sua razão! Não
pode aprovar um movimento violento só porque é violento. Bem
sei que nem sempre se pode julgar metodicamente e que é por
vezes necessário um certo espírito de partido para agir. Mas nesta
sala, reunimo-nos para julgar os nossos sentimentos, para os reflec-
tir, e não para nos abandonarmos cegamente a eles.
Lagardelle. — A minha resposta tende a demonstrar que as
idéias que exponho são produtos de um movimento espontâneo
das massas. É importante.
Durkheim. — Já sabíamos. Vocês são massa, são força. E de­
pois? É isto a vossa justificação?
Lagardelle.—Não. Volto à sua primeira objecção: não vê,
disse, como é que o desenvolvimento do capitalismo, que é o resul­
tado normal da evolução, conduz necessariamente à revolução.
Quem é que lhe diz que em determinada altura o regime capitalista
não gera em si mesmo forças contrárias ao próprio princípio capi­
talista e que conduzem à revolução?
Durkheim. — Seria preciso mostrar como é que o desenvol­
vimento do capitalismo produziu de repente esse antagonismo, que
tem necessariamente de trazer a destruição da actual sociedade...
«Se a vida econômica se desenvolveu naturalmente, porque é
que as instituições morais e jurídicas não se podiam ter desenvol­
vido paralelamente? Porque é que as instituições morais, jurídicas,
políticas, solidárias com a vida econômica da Idade Média, não

260
poderíam evoluir ao mesmo tempo que a vida econômica, de modo
a ela se adaptarem e a regulamentá-la?
Lagardelle. — Porque estamos em presença de dois regimes
econômicos radicalmente distintos. A produção capitalista contém
em si mesma forças que tendem a destruir o regime capitalista e a
transformar a sociedade.
Durkheim. — Penso que houve maior transformação relativa
(repito, transformação relativa) entre o ofício da Idade Média e as
manufacturas do século xvm do que entre o século xvm e a grande
indústria dos nossos dias... Mas não tenho tempo para entrar nesta
demonstração.
«Eis a chave do problema: o senhor esquece-se do factor cons­
ciência que ainda há pouco fez intervir... É sob a influência da
Revolução Francesa que novas aspirações se formaram; o início
do socialismo está na Revolução Francesa.
Lagardelle. — A sociedade política e a sociedade econômica
opõem-se; a sociedade política deve desaparecer, absorvida pela
sociedade econômica.
Durkheim. -— Facto capital: depois da Revolução, o socialismo
de Saint-Simon ignora tudo isso.
«Se penso que o senhor está a cair num erro, é porque não está
a ter em conta o factor que já mencionou, a Revolução Francesa
e as idéias de que ela foi a resultante e a expressão, é porque o
senhor se está a prender à fórmula marxista materialista.
Lagardelle. — O facto de o regime capitalista se desenvolver
lenta e progressivamente não prova que esse regime não possa
conduzir a uma revolução. Segundo, o capitalismo é um facto novo
que se diferencia pela dimensão.
«Passo à segunda objecção: a qualidade de produtor é a que
mais importa para qualquer operário, porque toda a sua vida anda
à volta dessa qualidade de produtor. Todas as outras qualidades
que o operário possa ter — pode ser cidadão, crente, membro de
uma associação moral ou intelectual — dependem desta mesma.
É sobre o campo da produção que se apoia a sua vida essencial
e primordial. Além disso, as concepções jurídicas e morais que ele
tem em nada se parecem com as concepções jurídicas e morais das
outras classes. Por exemplo, o princípio jurídico da propriedade
individual é negado pelas classes operárias. Porque não têm pro­
priedade, elas conseguem conceber um regime onde seriam elas

261
que teriam a propriedade indivisa. Outro exemplo: o direito patro­
nal dá ao capitalista o direito de se organizar como quiser, de tra­
tar o operário como coisa sua. O direito do operário diz: «A pro­
dução, sou eu que a faço, tenho o direito de saber como é que ela
vai ser organizada, quem será o meu camarada de oficina, não quero
que me dêem como companheiro de trabalho um alcoólico (em cer­
tas indústrias onde isso tem consequências), também não quero
que, ao meu lado, um operário seja despedido arbitrariamente.»
O arbitrário patronal parece ao operário tão contrário ao direito
como o arbitrário do rei de direito divino pode ter parecido aos
olhos dos burgueses de 1789. É assim que se afirma o direito da
classe trabalhadora em regulamentar por si próprio o trabalho. Em
suma, na classe operária formam-se por toda a parte idéias especi­
ficamente operárias, idéias novas.
Durkheim. — Essas idéias não são novas. A prova é que eu,
que não sou um proletário, cheguei em muitos pontos às mesmas
idéias no meu gabinete e muitos outros estão no meu caso. Sem
dúvida, estas idéias tomam uma cor diferente segundo as classes.
O burguês pode negar o direito de propriedade, mas fá-lo-á com
serenidade, porque pode esperar. No operário, estas ideias facil­
mente tomam a forma de sentimentos prontos a exasperarem-se por
razões fáceis de compreender. Mas são as mesmas ideias, com dife­
renças de pormenor. É que efectivamente burgueses e operários
vivem no mesmo meio, respiram a mesma atmosfera moral, são,
façam o que fizerem, membros de uma mesma sociedade, e, por
conseguinte, não podem deixar de estar impregnados com as mes­
mas ideias. Com notável serenidade, o senhor afirma que isto não
pode ser. Mas anuncia a sua proposta como um acto de fé, sem
fazer demonstração nenhuma...
«Ainda há pouco disse que o antimilitarismo operário é uma
consequência de uma ideia mais geral. Essa ideia é que há uma des­
truição indispensável; é esta noção que eu não posso compreender.
«Mais uma vez, concebo perfeitamente que se possa perguntar
a que sociedade se gostaria de pertencer. Mas se se insurgem con­
tra todas, deixa de haver alguma à qual se possa pertencer. Não
consigo sequer pensar nisso. Não insisto mais, acabo por me repe­
tir, já é tarde, o melhor é ouvir a resposta de Lagardelle.
Lagardelle. — Eu lembrava ao senhor Durkheim as novas
ideias jurídicas que se formam na classe operária. O senhor Dur-

262
kheim objectava que estas idéias existem sem ser nos operários,
É possível que se encontrem estas idéias em certo grau nalguns
burgueses; mas não seriam as mesmas idéias com cores diferentes:
a forma implica o fundo. Tomemos, por exemplo, o antiestatismo:
o socialismo actual é antiestatal como a escola econômica liberal;
mas não o é da mesma maneira. Repito em duas palavras: l.°, para
o operário o que interessa, o que é essencial, é a sua qualidade
de produtor, e 2°, o operário, no seio da sociedade capitalista, é,
na sua vida moral, um isolado. Ele pertence a outra sociedade.
«Passo à terceira objecção: quando falo da destruição das actuais
instituições, entendo que elas se deterioram pouco a pouco e que
em determinado momento se produzirá a introdução de um prin­
cípio novo. Sob que forma exacta esta introdução se irá produzir?
Não sei. Será uma destruição total? Não creio. Conservar-se-á sem
dúvida o que for de conservar; mas haverá concepções de direito
e de moral e instituições que substituirão as actuais concepções e
instituições. Haverá finalmente uma sociedade nova.
Durkheim. — Trata-se de saber se o socialismo é milagroso
como diz ser, se ele é contrário à natureza das nossas sociedades,
ou se é conforme à sua evolução natural, de modo a não ter de
os destruir para se instalar. É esta última concepção que a história
me parece demonstrar.
13

PACIFISMO E PATRIOTISMO 1

| 'X urkheim. — Creio que todos concordamos facilmente com


| J as duas teses antagônicas que Ruyssen acaba de opor uma
w à outra e de rejeitar sucessivamente: nem o antipatriotismo
nem o nacionalismo são, a meu ver, posições defensáveis. Fiquei
mesmo surpreendido ao ouvir Ruyssen exprimir o receio de que
fosse incomodo explicar a pátria a crianças ou a homens de cultura
média. Contactei muitas vezes com ouvintes deste gênero e não
me parece ter encontrado neles resistências tão particulares.
«Mas há um ponto quanto ao qual estou um pouco indeciso:
interrogo-me se, apesar dos esforços de Ruyssen em nos fazer ver
a unidade da doutrina pacifista, esta não se reduzirá finalmente a
uma simples justaposição das duas negações, se ela nos oferece um
objectivo positivo a que seja possível aderir. Na questão da guerra
e da paz está obrigatoriamente implícita a questão de pátria. Ora
é o modo como o pacifismo concebe a pátria que eu não percebo
distintamente.
«Que não podemos passar sem pátria, parece-me evidente: pois
nós não podemos viver fora de uma sociedade organizada e a mais
alta sociedade organizada que existe é a pátria. Assim, neste sen­
tido, o antipatriotismo pareceu-me sempre um absurdo. Só que há
outra questão cuja solução é menos fácil de encontrar: é a de saber
qual o gênero de pátria que devemos desejar. Sem dúvida, temos

1 Fragmentos da sessão de 30 de Dezembro de 1907, na Sociélé Française


de Philosophie. A intervenção de Durkheim situa-se no seguimento de um depoi­
mento liminar de Th. Ruyssen (cf. acima a apresentação dos textos da 3.“ Parte,
pp. 259-260).

265
para com a pátria aqui e agora constituída, de que fazemos parte,
obrigações a que não temos o direito de fugir. Mas, acima desta
pátria, há uma outra em vias de formação que inclui a nossa pátria
nacional; é a pátria europeia, ou a pátria humana. Essa pátria, em
que medida a devemos desejar? Devemos tentar realizá-la, apres­
sar a sua chegada; ou devemos manter ciosamente e a todo o custo
a independência da pátria presente à qual pertencemos?
«Este problema, de que muitas questões práticas dependem,
como é que o pacifismo o resolve?
Ruyssen. — Para resolver a questão é necessário distinguir
dois pontos de vista: o pacifismo como organização internacional
— e como esforço interior. Do primeiro ponto de vista as questões
de Durkheim são fáceis de resolver: penso que é preciso afastá-las.
No Congresso Internacional da Paz, que se realizou em Munique
em Setembro passado, levantou-se um problema deste gênero. Pro-
pôs-se mandar um telegrama ao presidente Roosevelt; Novicov
reclamava o envio de uma mensagem semelhante ao czar. Os con­
gressistas opuseram-se a isso, lembrando as medidas contra a Fin­
lândia, os massacres de 22 de Janeiro, etc. Tratava-se aqui de fazer
um julgamento relativamente a uma pátria; mas é uma questão a
afastar e efectivamente o Congresso rejeitou-a. Temos de aceitar
as pátrias — entendo pátrias estrangeiras — como factos, sem os
julgar. Quanto ao segundo ponto de vista, o pacifismo é nacional.
Pessoalmente, considero que as nossas preferências devem ir ainda
menos para a pátria de hoje do que para a pátria futura, que nos
devemos esforçar por fazer a melhor pátria, a pátria justa. Kant
já dizia que o aparecimento da paz está ligado à existência das
democracias. Mas, mais uma vez, sobre este ponto, é preciso dis­
tinguir a nossa propaganda interna da propaganda extranacional.
Durkheim.—Não vejo que esta resposta resolva a dificul­
dade que lhe apresentei. Perguntava eu se devemos procurar man­
ter mesmo assim e antes de mais a autonomia da nossa pátria nacio­
nal, ou então se não devemos preparar o aparecimento de uma
pátria mais vasta de que a nossa apenas seria uma província.
Ruyssen.—Não tinha percebido a questão.
Durkheim. —Eis exactamente a minha questão. Cada um de
nós pertence a uma pátria, de facto, para com a qual temos deveres
incontestáveis. Mas ao mesmo tempo nasce uma pátria mais vasta
que tende a englobar a nossa: é a que a Europa constitui ou, se

266
quisermos, o mundo civilizado. Em que medida devemos desejar
a nossa pátria acima e contra tudo? Em que medida devemos que­
rer essa outra pátria que ainda não passa de um ideal, mas um
ideal que no entanto se tem vindo a realizar.
Ruyssen.—A questão é então saber se a nossa pátria real
é ou não conciliável com a pátria humana, se se podem conciliar
os patriotismos nacionais com o patriotismo europeu ou mundial.
Durkheim. — A questão, a meu ver, não traz essa extrema
generalidade. Trata-se assim mais uma vez de saber até que ponto
devemos trabalhar na organização de uma pátria nova que incluiría
a nossa pátria actual ou se nos devemos recusar a tudo o que dimi­
nuísse a autonomia desta última.
«Parece-me que o pacifismo, se for consequente consigo mes­
mo, não deve temer propor-se como ideal à formação dessa pátria
maior. Manter a paz só deixará de ser uma simples aspiração moral
para se tornar numa realidade jurídica quando existir uma socie­
dade organizada, encarregada de a fazer respeitar. O direito só pode
efectivamente passar aos factos se se apoiar num Estado que o san­
cione. E o que faz com que o pacifismo deixe indiferentes certo
número de pessoas, que de resto odeiam a guerra, é que, evitando-
-se esta questão fundamental, não vêem em que é que as reivindica­
ções dos pacifistas são mais do que aspirações, incontestavelmente
legítimas, mas pouco eficazes, da consciência moral.
«Em suma, a minha questão poder-se-ia ainda formular da se­
guinte maneira. Se nós fôssemos alemães de antes de 1870, deve­
riamos desejar a formação da grande pátria alemã, ou manter ciosa­
mente a autonomia da pequena pátria local? Se vivéssemos na
Idade Média, deveriamos trabalhar para a formação da grande pá­
tria francesa ou ficar obstinadamente agarrados à pequena pátria
provinciana? Em termos um pouco diferentes, é o mesmo pro­
blema que hoje se nos levanta.
Ruyssen. — Pondo-se assim a questão, eu não ousaria dizer
que, neste difícil problema, haja unanimidade de doutrinas no par­
tido da paz, que é antes de mais um partido de acção, c distinguiria
a minha opinião pessoal da dos pacifistas em geral. Pelo meu lado,
não hesito: a maior verdade está no internacionalismo. Penso que
as nossas pátrias se devem integrar num conjunto cada vez mais
vasto. A pátria já perdeu muitos dos seus elementos: assim o ele­
mento religioso; e perderá ainda muitos sem que possamos prever

2G7
com certeza o termo desta dissolução. Mas esta crença não é comum
a todos os pacifistas. Alguns desejam simplesmente a arbitragem,
as convenções livremente aceites c não a federação das nações. São
estas as divergências inerentes a um partido ao qual é suficiente
apoiar-se num mínimo de crenças comuns.
Durkheim. — Receio que esta indecisão, esta ausência de en­
tendimento sobre uma questão essencial, seja, para o pacifismo,
causa da fraqueza.
«Para acabar faço ver que a palavra internacionalismo não me
parece muito própria para exprimir a concepção que acabo de indi­
car. Tal como geralmente é entendido, o internacionalismo tende
a não ter em conta as pátrias existentes nem, de uma maneira geral,
a necessidade de uma pátria. Tem qualquer coisa de nivelador. Ele
não vê que, em geral, uma sociedade internacional, uma vez reali­
zada, tomaria necessariamente, por sua vez, o carácter de uma
pátria, de uma colectividade solidamente organizada.
«...O que a história nos mostra é que, desde sempre, as peque­
nas pátrias, por uma verdadeira força das coisas, acabaram por se
fundir no seio de pátrias maiores e estas no seio de outras ainda
maiores. Porque é que este movimento histórico, que há séculos
se desenvolve no mesmo sentido, acabaria repentinamente frente
às nossas pátrias actuais? Que têm elas de particularmente intan­
gível que o impeça de continuar?
«Interrogo-me se o verdadeiro pacifismo não consiste em fazer
tudo o que está ao nosso alcance para que este movimento conti­
nue, mas pacificamente, e não mais pela violência e pela guerra
segundo a lei dominante do passado. Sem dúvida, é um ideal difi­
cilmente realizável à letra; é inútil esperar que a guerra não desem­
penhe nenhuma função nesta transformação. Mas procurar previa­
mente que a sua parte seja mínima não deixa de ser um objectivo
digno de ser seguido.

Parodi. — Gostaria primeiramente de contribuir com um tes­


temunho de facto: tratei muitas vezes esta questão nas universi­
dades populares e sou obrigado a confessar que Ruyssen tem razão.
É geralmente muito difícil fazer sentir, nos meios populares, tudo
o que a pátria contém de força viva.
«Ora, eu penso que o problema que constantemente se levanta

268
nestes meios é precisamente aquele que Durkheim indicava: o con­
flito entre a pátria de direito, a pátria justa e ideal, que se poderia
amar e defender, e a pátria de facto que se tem tendência a apre-
sentar como má, iníqua, hostil ao povo; é para preparar os órgãos
da futura vida internacional que se pretende ter de se separar do
organismo nacional tradicional. E, sem dúvida, é evidente que a
pátria é a única realidade verdadeira, que ela se nos impõe efecti-
vamente e que temos para com ela deveres incontestáveis: mas é
isto que no entanto é difícil fazer ver aos meios operários. Eles não
compreendem que nos tenhamos de inclinar perante o facto, unica-
mente porque ele é o facto; e, por outro lado, no sindicalismo
operário, eles pensam estar a assistir ao tal esboço de organização
internacional que Durkheim reclamava.
«Parece-me que a dificuldade se apresenta exactamente como
Durkheim a indicava: só que ela não se põe unicamente para o con­
junto dos Franceses que procuram preparar, para além da pátria
actual, uma pátria europeia ou humana mais vasta: mas põe-se den­
tro de uma mesma nação, quando alguns perguntam se não devem
subordinar à preparação do futuro internacionalismo os interesses
da pátria presente. O problema toma então a forma de um caso
de consciência: se a pátria de facto vai contra o ideal de justiça,
devemos segui-la acima e contra tudo? A dificuldade que Durkheim
levanta põe-se assim, não só quando se trata da organização dos
grupos nacionais entre eles e do seu futuro, mas a propósito das re-
lações entre as classes opostas dentro de uma mesma nação.
Durkheim. —■ É sem dúvida mais fácil explicar as razões de
ser da pátria a crianças do que a adultos cujo espírito já foi defor­
mado por preconceitos emocionais. Não penso no entanto que a
tarefa seja impossível. Parodi faz ver que, nos meios operários, se
pretende substituir à pátria actual uma pátria superior que seria
constituída pelo alargamento de uma única classe social, pelo apa­
recimento do proletariado internacional. É fácil demonstrar que
esta concepção se baseia numa confusão: uma classe, mesmo alar­
gada, não é, não pode ser uma pátria: é apenas um fragmento de
pátria, tal como um órgão é apenas um fragmento do organismo.
É por ignorar esta verdade elementar que o internacionalismo é
muitas vezes a negação pura e simples de qualquer sociedade orga­
nizada.

269
Parodi. — Como fazer admitir nesses meios a necessidade de
uma outra pátria? Mas o difícil é fazer admitir ao simples popular
a necessidade de se inclinar face ao facto como tal, mesmo reconhe-
cido parcialmente injusto e imperfeito.
Durkheim. — É verdade que não se chega lá com a apolo-
gética vulgar. Geralmente pensa-se que o melhor meio de defender
a ideia de pátria é mostrar quanto a nossa própria pátria é digna
de ser amada. Celebramos as virtudes da cultura francesa, a supe­
rioridade da democracia, etc. É colocar-se em muito mau terreno.
Pois, frente aos méritos da nossa pátria, será fácil, visto as perso­
nalidades colectivas não serem mais perfeitas do que as personali­
dades individuais, enumerar uma longa lista de defeitos; e então
cada qual fará pesar os pratos da balança no sentido em que as
suas paixões pessoais o inclinarem. E necessário justificar a pátria
de maneira a que a explicação que sc dá seja aplicável a todas as
pátrias indistintamente, seja qual for a sua forma de governo. Deve
ver-se na pátria in abstracto o meio normal e indispensável da vida
humana. Não é difícil fazer compreender ao operário que até as
suas mais caras aspirações supõem sempre, como postulado neces­
sário, uma pátria fortemente organizada; de modo que ao tentar
destruir as pátrias ele destrói por suas próprias mãos o único ins­
trumento que lhe permitia alcançar o objectivo pretendido.
«...Espanta-me o lugar que a questão política ocupa na dis­
cussão. Só se fala do operário e dos meios de o convencer ao patrio­
tismo. Trata-se evidentemente do operário adulto, convertido já
a outras idéias, que eu penso igualmentc ser muito difícil de con­
verter. Mas além do adulto há a criança... E deste lado é-nos per­
mitido um certo optimismo. Em suma, é preciso não perder de
vista que o internacionalismo violento, agressivo e negador da pá­
tria é de data recente. Ainda não é um mal inveterado. É-nos
portanto permitido ter alguma esperança. Simplesmente, para for­
mar de maneira sã o espírito da criança, para o apetrechar com
idéias correctas, é preciso que nós próprios tenhamos uma ideia
justa do que é a pátria. Ora, alguns dos argumentos que ainda há
pouco foram invocados parecem-me lembrar aqueles que o nacio­
nalismo correntemente emprega. Não será, efectivamente, falar uma
linguagem nacionalista colocar a cultura francesa acima de qual­
quer outra, mesmo a título revolucionário? Somos capazes de amar

270
a nossa família sem pensar que ela é a mais perfeita; porque é que
o mesmo se não poderia passar com a pátria?
«...Seria desesperante se estivéssemos condenados a não poder
ser patriotas senão pondo a França acima de tudo; é preciso amar
a pátria in abstracto, sem fazer depender este sentimento de algum
preço especial que se atribua à cultura francesa.
QUARTA PARTE

O HOMEM
14. O futuro da religião
(1914) «Le sentiment religieux à l’heure actuelle», terceira
entrevista: a concepção moral da religião, Vrin, pp. 97-
-105.

15. O dualismo da natureza humana


e as suas condições sociais
(1914) «Le dualisme de la nature humaine et ses conditions
sociales», Scientia, XV, pp. 206-221.

275
I

‘"3
I yuRKHEIM, cujo pai era rabino, muito cedo abandonou o ju-
daísmo: ele dizia-se agnóstico, racionalista e ateu. Em Bor-
déus, fundou juntamente com Hamelin uma associação de estudan­
tes laicos ligada à Federação das Juventudes Laicas, de que ele era
o presidente de honra. Um rabino, sucessor de seu pai, tendo-se
aproveitado um dia da sua presença acidental na sinagoga de Epi-
nal1 para pregar que a religião judaica continuava igualmente viva,
já que um professor da Sorbona, «pessoa muito esclarecida», se
encontrava entre a assistência, Durkheim ficou muito aborrecido.
No entanto, ele não era anti-religioso. O seu pensamento era
que uma religião é indispensável a qualquer sociedade; ele punha
em questão o conteúdo das religiões tradicionais, não a religião
enquanto sistema simbólico. Segundo o seu próprio testemunho,
ele teve, em 1895, a revelação do papel fundamental que a religião
desempenha na vida social (embora ele já em 1886 pensasse que
a religião sobrevivería aos ataques de que era objecto, como o
indica o texto 5).
«Só em 1895 tive o sentimento nítido do papel capital desem­
penhado pela religião na vida social. Foi nesse ano que descobri
pela primeira vez o meio de abordar sociologicamente o estudo
da religião. Foi para mim uma revelação. Este curso de 1895 marca
uma linha de separação no desenvolvimento do meu pensamento,
de modo que todas as minhas investigações anteriores tiveram de

1 Quando de uma festa religiosa e por instâncias de sua mãe, por «sacrifício»
(testemunho de Henri Durkheim).

271
ser retomadas para serem postas em acordo com esta nova visão...
Esta transformação da orientação... foi inteiramente devida aos
estudos de história religiosa que acabava de empreender e, espe­
cialmente, à leitura dos trabalhos de Robertson Smith e da sua
escola. (1907 «).»
Será preciso relacionar a religiosidade latente de Durkheim com
o desenvolvimento espiritualista do seu sistema? Eis um retrato
de Durkheim feito por Hubert Bourgin, colaborador de UAnnéc
Sociologique:
«Ele era padre mais ainda do que cientista. Era uma figura
hierática. A sua missão era religiosa. Revolucionário em religião
e em moral, este cientista queria deixar aos seus contemporâneos
razões e meios de moralidade. É por isto e neste sentido que ele
era socialista. Meditando sobre as condições da sua investigação,
da sua ciência e da sua acção, deu-se um dia conta e tomou cons­
ciência dos novos deveres que esta revelação lhe impunha, com
uma emoção que voltei a encontrar no momento em que, com a
sua voz grave e surda, ele me contou esta recordação.» (Hubert
Bourgin, De Jaurès à Léon Blum, 1936, pp. 318-319.)
A Union de Libres Penseurs et de Libres Croyants pour la Cul-
ture Morale tinha organizado para o Inverno de 1913-1914 uma
série de «entrevistas» sobre o Sentimento religioso na hora actual.
Esta associação, presidida por Emile Faguet e por Ferdinand Buis-
son, agrupava laicos e crentes. O objectivo das entrevistas em ques­
tão era «apreciar o valor das crenças religiosas ou a eficácia de uma
moral sem Deus». «Grande número de espíritos esclarecidos e de
publicistas falam hoje de um renascimento religioso», escrevia o
secretário da União, F. Abauzit. «Uns consideram que isso é apenas
uma ilusão, outros denunciam-na como um grave perigo, outros há
ainda que a aclamam com entusiasmo. Que é que se passa real­
mente?» O tema da entrevista de 18 de Janeiro de 1914, «a con­
cepção social da religião», permite a Durkheim condensar, num
improviso substancial, os elementos de uma posição certamente
original relativamente à questão levantada (texto 14).
O texto sobre o Dualismo da natureza humana e as suas con­
dições sociais, ao mesmo tempo que retoma ideias já expostas nou­
tros sítios (em particular em Education et sociologie e em Formes
élémentaires de la vie religieuse), confere-lhe um aspecto sistemá­
tico e sintético que transcende o seu significado. Trata-se de um

278
dos escritos de Durkheim mais susceptíveis de manifestar até que
ponto Durkheim, por certas intuições dualistas, se adiantou à psi­
cologia freudiana de modo a aproximar-se, como o fez, de Freud.
Se não vai até perceber, como Freud, a dualidade nos próprios
impulsos do instinto de vida e do instinto de morte (embora este
último esteja de certo modo presente em Le Suicide,), em contra­
partida, é evidente que a dualidade do isso e do superego como
interiorização das instâncias objectales, o narcisismo e a passagem
da líbido narcísica à libido objectal, a elaboração dos processos pri­
mários em processos secundários (a propósito da formação dos con­
ceitos) podem ser «lidos» numa leitura atenta a presssentimentos
freudianos. Este texto pode igualmente ocasionar uma melhor com­
preensão de Durkheim na sua própria personalidade, nas suas ambi-
valências e na sua dualidade. Relacionado com o texto precedente,
indica que se Durkheim era pessimista relativamente às possibili­
dades intrínsecas de felicidade no homem, ele acreditava em com­
pensação na criatividade dos homens reunidos, aceitando viver no
calor que nasce das suas relações. Tal como se, em definitivo, a
sociedade fosse a projecção da necessidade de vida, além daquilo
que nela há de forças de morte. Talvez por isso Durkheim a pre­
tendia comunicante e não podia ver o bomem de outro modo que
não fosse recusando a transgressão em nome da sua própria exi­
gência de vida.
14

O FUTURO DA RELIGIÃO

enhoras e senhores, sinto-me penhorado com a honra que me


foi conferida e o convite que me foi dirigido. Só esta tarde
o senhor Abauzit, avisado de que eu não poderia senão assis­
tir ao início desta sessão *, me pediu para vos dirigir algumas pala­
vras. Trago-vos assim a expressão totalmente improvisada de um
pensamento que o não é e que no entanto gostaria de vos apresen­
tar sob uma forma diferente. Abster-me-ei, aliás, de antecipar
o tema que o senhor Belot deve tratar esta noite. Constitui já uma
grande condescendência da sua parte permitir-me tomar a palavra
antes dele, o que desde já lhe agradeço. Mas visto que ele se propõe
examinar perante vós um livro que recentemente publiquei sobre
certas formas da vida religiosa, gostaria de tentar indicar-vos muito
brevemente em que espírito desejaria ser estudado e, em seguida,
discutido. E, visto que esta assembléia contém dois tipos de ele­
mentos, livres-pensadores por um lado, livres-crentes por outro,
pedir-vos-ei autorização para me dirigir a cada um separadamente.
Dirigir-me-ei primeiro aos livres-pensadores, ou seja, aos ho­
mens que conservam inteira a sua liberdade de espírito face a todos
os dogmas, mesmo face àqueles que algumas vezes se decorou com
o lindo nome de livre-pensamento. Para os fazer compreender o
que há de um pouco particular nas concepções que desenvolví,
pedir-lhes-ei que prestem sobretudo a sua atenção a uma particula­
ridade da vida religiosa que, sem dúvida, não é ignorada pelo crente

1 Sessão de 18 de Janeiro de 1914 da Union de Libres Penseurs et de Libres


Croyants pour la Culture Morale.

281
mas que o livre-pensador nem sempre suspeita suficientemente e
que, no entanto, contém a verdadeira característica da vida reli-
giosa.
Em geral, os pensadores que empreenderam traduzir a religião
em termos racionais não lhe encontraram senão um sistema de
idéias, um sistema de representações destinadas a exprimir tal ou
tal parte da realidade, como o sono, o sonho, a doença, a morte
ou os grandes espectáculos da natureza. Ora, quando só se vêem
na religião idéias ou quando se vêem principalmente idéias, parece
que o indivíduo tenha podido edificá-la unicamente com as suas
forças. Sem dúvida, estas representações têm algo de desconcer­
tante, têm como que um caracter misterioso que nos inquieta. Mas,
por outro lado, sabemos por experiência que as combinações men­
tais são tão variadas, tão diversas, tão ricas, tão criadoras que,
a priori, damos crédito ao espírito e aceitamos voluntária e previa­
mente que o pensamento tenha podido inventar todas as peças des­
tas maravilhas. Ainda que os ideais religiosos tenham só por si
qualidades especiais, não é por esse lado que se deve procurar o que
há de verdadeiramente específico na religião.
A religião não é, de facto, unicamente um sistema de idéias,
é antes de mais um sistema de forças. O homem que vive religio­
samente não é unicamente um homem que imagina o mundo de tal
ou tal maneira, que sabe o que os outros ignoram; é antes de mais
um homem que sente em si um poder que normalmente não
conhece quando não está no estado religioso. A vida religiosa
implica a existência de forças muito particulares. Não posso pen­
sar em descrevê-las aqui; lembrando uma palavra conhecida, con­
tento-me em dizer que são estas forças que levantam as montanhas.
Entendo com isto que, quando o homem vive da vida religiosa, ele
crê participar numa força que o domina, mas que ao mesmo tempo
o mantém e o eleva acima de si próprio. Apoiado nela, parece-lhe
que pode melhor fazer face às provas e às dificuldades da exis­
tência, que pode mesmo vergar a natureza às suas vontades.
Este sentimento foi demasiado geral à humanidade, foi dema­
siado constante para que possa ser ilusório. Uma ilusão não dura
assim séculos. É portanto preciso que esta força que o homem sente
invadi-lo exista realmente. Por conseguinte, o livre-pensador, ou
seja, o homem que se propõe metodicamente como tarefa exprimir
a religião através de causas naturais, sem fazer intervir nenhuma

282
espécie de noção que não resulte das nossas vulgares faculdades
discursivas, tal homem deve levantar a questão religiosa nos se­
guintes termos: de que parte do mundo da experiência é que lhe
podem vir estas forças que o dominam e ao mesmo tempo o sus­
tentam?
Compreende-se perfeitamentc que não é por interpretar tal ou
tal fenômeno natural que nos foi possível fazer chegar a nós seme­
lhante fluxo de vida. Não é de uma representação errada do sono
ou da morte que forças desta natureza alguma vez puderam surgir.
O espectáculo das grandes forças cósmicas também não pode ter
produzido este efeito.
Esta é, como provavelmente já sabem, a mais alta e racional
explicação da religião que alguma vez tenha sido proposta. Mas as
forças físicas são apenas forças físicas: ficam, por conseguinte, fora
de mim. Posso vê-las de fora; elas não penetram em mim, não se
vêm misturar à minha vida interior. Não me sinto mais forte nem
mais bem armado contra os destinos, nem menos dependente da
natureza por ver os rios correrem, as colheitas germinarem, os
astros completarem as suas revoluções; as forças morais são as úni­
cas que posso sentir em mim, forças que me possam dirigir e recon-
fortar. E, mais uma vez, é necessário que estas forças sejam reais,
que estejam realmente em mim. Pois este sentimento de reconforto
e de dependência não é ilusório.
Assim determinado, o problema põe-se portanto em termos
bastante simples. Para explicar a religião, para a tornar racional­
mente inteligível — e é o que o livre-pensador se propõe —, é ne­
cessário encontrar no mundo, que podemos atingir pela observação
e pelas nossas faculdades humanas, uma fonte de energias superio­
res àquelas de que o indivíduo dispõe e que no entanto possam
comunicar com ele. Ora, pergunto se esta fonte pode ser encon­
trada nalgum outro sítio a não ser nessa vida tão particular que
resulta dos homens associados. Efectivamente, sabemos por expe­
riência que, quando os homens estão reunidos, quando vivem uma
vida comum, da sua reunião surgem forças excepcionalmente inten­
sas que os dominam, os exaltam, conduzem o seu tom vital a um
grau que eles não conhecem na vida privada. Sob o efeito da atrac-
ção colectiva, ficam por vezes possessos de um verdadeiro delírio
que os leva a actos em que não se reconhecem a si próprios.
Não posso pensar em expor aqui, mesmo sucintamente, as aná-

283
lises e os factos em que baseei esta tese fundamental. Limitar-me-ei
apenas a avisar aqueles que entre os ouvintes não me leram que
esta forma de entender e de explicar a religião, se não se apresenta
como uma verdade demonstrada, não assenta no entanto em pers­
pectivas puramente dialécticas. Não é uma hipótese abstracta e
puramente filosófica. Mas, resultante dos factos e da observação
histórica, inspirou já mais de uma investigação particular que guiou
com êxito: já serviu para interpretar, em diversas religiões, diver­
sos fenômenos; passou portanto as provas da experiência e provou
assim a sua vitalidade.
Mas abstenho-me de insistir sobre as razões que militam a favor
da concepção que vos será exposta daqui a pouco dentro da maior
imparcialidade, tenho a certeza, e discutida com igual liberdade.
O único objectivo que me proponho é preparar-vos para escutar
este depoimento e essa análise; não me pertence antecipá-lo. Resu­
mindo, o que eu peço ao livre-pensador é que se coloque face à
religião no estado de espírito do crente. Só nesta condição pode
esperar compreendê-la. Que a sinta tal como o crente, pois ela não
é verdadeiramente senão o que é para o crente. Assim, quem quer
que seja que não traga ao estudo da religião uma espécie de senti­
mento religioso não pode falar dela. Seria como um cego a falar
de cores. Ora, para o crente, o que constitui essencialmente a reli­
gião não é uma hipótese plausível ou sedutora sobre o homem
ou sobre o seu destino; o que o liga à sua fé é que ela faz parte
do seu ser e que ele não pode renunciar a ela, parece-lhe, sem nada
perder de si mesmo, sem que daí resulte uma depressão, uma dimi­
nuição da sua vitalidade ou um abaixamento da sua temperatura
moral.
Numa palavra, a característica da religião é a influência dina-
mogénica que ela exerce sobre as consciências. Explicar a religião
é portanto, antes de mais, explicar esta influência.
Dirijo-me agora ao livre-crente, ao homem que, tendo embora
uma religião, aderindo embora a uma fórmula confessional, traz no
entanto à análise desta fórmula uma liberdade de espírito que se
esforça por tornar tão com]ipleta quanto possível e com ele falarei
uma outra linguagem.
Pedir-lhe-ei a sua simpatia. Creio que a concepção que me
esforço por creditar merece esta simpatia. É certo que se nos agarra­
mos a uma fórmula confessional de modo exclusivo e intratável,

284
se pensamos possuir a verdade religiosa sob a sua forma definitiva,
então o acordo é impossível e a minha presença aqui não teria
sentido algum. Mas se consideramos que as fórmulas são apenas
expressões provisórias, que não duram nem podem durar senão
um certo tempo, se consideramos que todas são imperfeitas, que
o essencial não é a letra destas fórmulas mas a realidade que elas
encobrem e que todas elas exprimem mais ou menos inexacta-
mente, que é por conseguinte necessário ultrapassar a superfície
para atingir a força das coisas, creio que há um trabalho que pode­
mos realizar de comum acordo, pelo menos até certo ponto.
Mas é preciso trazer-lhe esta liberdade de espírito; é neces­
sário praticar, durante um certo tempo, uma espécie de dúvida car-
tesiana. Sem ir até duvidar da fórmula em que se acredita, deve-se
pelo menos esquecê-la provisoriamente, para ela voltar mais tarde.
Uma vez que nos libertámos desta tirania, não estamos mais sujei­
tos a cometer o erro e a injustiça em que certos crentes caíram
ao qualificarem de essencialmente irreligioso o meu modo de inter­
pretar a religião.
Não pode haver interpretação racional da religião que seja
esencialmente irreligiosa; uma interpretação irreligiosa da religião
seria uma interpretação que negaria o facto de que se trata de reve­
lar. Nada mais contrário ao método científico. Este facto, podemos
compreendê-lo diferentemente, podemos até nem o compreender,
mas não poderiamos negá-lo.
E efectivamente, quando recusamos confundir a religião com
tal ou tal dogma particular, o que vemos sobretudo nela é um con­
junto de idéias que têm por consequência elevar o homem acima
de si mesmo, levá-lo a desprender-se dos seus interesses temporais
e vulgares e fazê-lo viver uma existência que ultrapassa em valor
e em dignidade a que ele leva quando trata apenas de garantir a
sua subsistência. Ora, o que a doutrina de que vos irão falar e de
que há pouco lembrei as linhas gerais implica é que, acima de todos
os dogmas e de todas as confissões, existe uma fonte de vida reli­
giosa, tão velha quanto a humanidade e que não se pode nunca
esgotar: é a que resulta da fusão das consciências, da sua comunhão
num mesmo pensamento, da sua cooperação numa mesma obra,
da acção moralmente tonificante e estimulante que qualquer comu­
nidade de homens exerce sobre os seus membros. Não será esta
uma afirmação com a qual podemos concordar? Sem dúvida, podem

285
I
pensar que esta vida religiosa não é suficiente, que há outra, mais
alta, que deriva de outra origem. Mas não será já qualquer coisa
poder reconhecer que existem em nós, fora de nós, forças religio­
sas que depende de nós despertar, chamar à vida, que nem sequer
podemos deixar de originar unicamente pelo facto de nos aproxi­
marmos uns dos outros, de pensarmos, de sentirmos e de agirmos
em comum.
Há tempos, um orador, mostrando-nos os céus com um gesto
profético, dizia-nos que eles se esvaziam e pretendia que desviásse­
mos o olhar para a terra, ou seja, que nos preocupássemos antes
de mais em tratar o melhor possível dos nossos interesses econômi­
cos. Disse-se da fórmula, que ela é ímpia. Do ponto de vista em
que me coloco pode dizer-se que ela é falsa. Não, não é de recear
que alguma vez os céus se despovoem de forma definitiva; pois
somos nós próprios que os povoamos. O que neles projectamos são
imagens ampliadas de nós próprios. E enquanto houver socieda­
des humanas, elas tirarão do seu seio grandes ideais de que os
homens se tornarão servidores.
Nestas condições, não será permitido dizer que uma concepção
social da religião é necessariamente animada por um sopro reli­
gioso que não se pode ignorar sem injustiça?
Mas para precisar estas idéias, gostaríamos de imaginar um
pouco em que poderia consistir uma religião do futuro, quer dizer,
uma religião mais consciente das suas origens sociais. É certo que
nos não poderiamos exprimir sobre este ponto com demasiadas
reservas. É perfeitamente inútil procurar adivinhar sob que forma
precisa semelhante religião se irá exprimir. Mas o que podemos
antever são as forças sociais que lhe darão origem.
Se hoje a nossa vida religiosa se impacienta, se os renascimen­
tos que verificamos só têm por consequência movimentos super­
ficiais e passageiros, não é que nos tenhamos desviado de tal ou tal
forma confessional, mas sim que o nosso poder criador de idéias
enfraqueceu. É que as nossas sociedades atravessam uma fase de
profunda perturbação. Desta perturbação que sofrem podem, num
certo sentido, sentir-se orgulhosas; pois ela vem de que, tendo pas­
sado o período de equilíbrio em que podiam viver tranquilamente
do passado, são obrigadas a renovar-se e a procurar-se laboriosa
e dolorosamente. Os velhos ideais e as divindades que eles encar­
navam estão a morrer porque não respondem suficientemente às

286
novas aspirações que surgem e os novos ideais que nos seriam
necessários para orientarmos a nossa vida não nasceram. Encontra­
mo-nos pois num período de frio moral que explica as diversas
manifestações de que somos constantemente as testemunhas inquie­
tas ou tristes.
Mas quem é que não sente — e quem é que nos deve tranqui­
lizar —, quem é que não sente que, nas profundezas da sociedade,
há uma intensa vida que se elabora e procura as suas vias de saída
que acabará por encontrar. Aspiramos a uma justiça mais elevada
que nenhuma das fórmulas existentes exprime de modo a satisfa-
zer-nos. Mas estas aspirações obscuras que nos vão formando con­
seguirão, mais cedo ou mais tarde, tomar mais claramente cons i ­
ciência de si mesmas, traduzir-se em cm fórmulas definidas em volta
das quais os homens se voltarão a unir e que tornar-se-ão num
centro de cristalização para novas crenças. Quanto à letra destas
crenças, é inútil tentar antevê-la. Será que permanecerão gerais e
abstractas, ligar-se-ão a seres pessoais que as encarnarão e as repre­
sentarão? Isto são contingências históricas que não saberiamos
prever.
O que importa é sentir, sob o frio moral que reina à superfície
da nossa vida colectiva, as fontes de calor que as nossas sociedades
têm em si mesmas. Podemos mesmo ir mais longe e dizer com uma
certa precisão em que região da sociedade estas novas forças estão
particularmente em vias de formação: é nas classes populares.
Senhoras e senhores, há uma ideia a que nos temos necessaria­
mente de habituar: é que a humanidade foi abandonada sobre a
terra às suas únicas forças e não pode contar senão consigo mesma
para dirigir os seus destinos. À medida que se avança na história
esta ideia ganha terreno; duvido portanto que ela o perca no
futuro. À primeira vista, ela pode perturbar o homem que está
habituado a imaginar como extra-humanas as forças nas quais se
apoia. Mas se se conseguir convencer que a própria humanidade
lhe pode fornecer o apoio de que necessita, não haverá nesta pers­
pectiva algo de altamente reconfortante, visto que os recursos que
ele reclama ficam assim ao seu alcance?
15

O DUALISMO DA NATUREZA HUMANA


E AS SUAS CONDIÇÕES SOCIAIS

j ^mboba a sociologia se defina como a ciência das sociedades,


|~i na realidade, ela não se pode referir a grupos humanos, que
* * são o objecto imediato das suas investigações, sem atingir
finalmente o indivíduo, elemento último de que estes grupos são
constituídos. Pois a sociedade só se pode constituir na condição
de penetrar nas consciências individuais e de as moldar «à sua
imagem e semelhança»; sem querer dogmatizar excessivamente,
pode-se portanto dizer com segurança que muitos dos nossos esta­
dos mentais e dos mais essenciais têm uma origem social. Aqui,
é o todo que, em larga medida, forma a parte; por conseguinte, é
impossível procurar explicar o todo sem explicar a parte, pelo me­
nos por via indirecta. O produto por excelência da actividade colec-
tiva é esse conjunto de bens intelectuais e morais a que se chama
civilização. Mas, por outro lado, foi a civilização que fez do homem
o que ele é; é ela que o distingue do animal. O homem só é homem
porque é civilizado. Procurar as causas e as condições de que a civi­
lização depende é portanto procurar igualmente as causas e as con­
dições daquilo que há de mais especificamente humano no homem.
É assim que a sociologia, apoiando-se embora na psicologia sem
a qual não poderia passar, lhe traz por sua vez um contributo que
iguala e ultrapassa em importância os serviços que dela recebe.
É unicamente através da análise histórica que nos podemos dar
conta do que o homem é constituído; pois ele só se formou ao
longo da história.

289
10 - A Ciência Social c a Acção
A obra que recentemente publicámos sobre as Formes élémen-
taires de la vie religieuse permite ilustrar com um exemplo esta
verdade geral. Procurando estudar sociologicamente os fenômenos
religiosos, fomos levados a antever uma maneira de explicar cien­
tificamente uma das particularidades mais características da nossa
natureza. Como, para surpresa nossa, o princípio no qual assenta
esta explicação não parece ter sido percebido pelos críticos que,
até hoje, falaram deste livro, pareceu-nos que poderia ter interesse
expô-lo sumariamente aos leitores de Scientia.

Esta particularidade é a dualidade constitucional da natureza


humana.
Desta dualidade, o homem sempre teve um vivo sentimento.
Efectivamente, ele sempre se concebeu como que formado por dois
seres radicalmente heterogêneos: o corpo, por um lado, a alma,
do outro. Enquanto a alma é representada sob forma material,
a matéria de que ela é constituída passa por não ser da mesma
natureza que o corpo. Diz-se que ela é mais ctérea, mais subtil,
mais plástica, que não afecta os sentidos como os objectos propria­
mente ditos, que não está sujeita às mesmas leis, etc. Não só estes
dois seres são substancialmente diferentes, como são, em larga me­
dida, independentes um do outro, estando mesmo frequentemente
em conflito. Durante séculos pensou-se que a alma podia, mesmo
nesta vida, escapar-se ao corpo e, longe, levar uma existência autô­
noma. Mas é sobretudo na morte que esta independência se afir-
mou sempre mais nitidamente. Enquanto o corpo se dissolve e
morre, a alma sobrevive-lhe, e, nestas novas condições, prosse­
gue, durante mais ou menos tempo, o curso dos seus destinos.
Pode-se mesmo dizer que, embora estreitamente associados, a alma
e o corpo não pertencem ao mesmo mundo. O corpo faz parte
integrante do universo material, tal como o conhecemos pela expe­
riência sensível; a pátria da alma está algures noutro sítio para
onde a alma constantemente tende a voltar. Esta pátria é o mundo

290

4
das coisas sagradas. Tem assim uma dignidade que foi sempre re­
cusada ao corpo; enquanto este é considerado essencialmente pro­
fano, ela inspira algo como esses sentimentos que são sempre
reservados para o que é divino. Ela é feita da mesma substância
que os seres sagrados: diferindo apenas deles pelo grau.
Uma crença assim universal e permanente não podería ser pura­
mente ilusória. Para que, em todas as civilizações conhecidas, o
homem se tenha sentido duplo, é preciso que haja nele algo que
tenha dado origem a este sentimento. A análise psicológica vem
efectivamente confirmá-lo: ela volta a encontrar a mesma duali­
dade no próprio seio da nossa vida interior.
A nossa inteligência assim como a nossa actividade apresentam
duas formas muito diferentes: há as sensações 1 e as tendências sen­
síveis por um lado, o pensamento conceituai e a actividade moral
por outro. Cada uma destas duas partes de nós próprios gravita
em volta de um pólo que lhe é próprio, e estes dois pólos não são
unicamente distintos, são opostos. Os nossos apetites sensíveis são
necessariamente egoístas; têm por objectivo a nossa individuali­
dade e só ela. Quando satisfazemos a nossa fome, a nossa sede, etc.,
sem que qualquer outra tendência esteja em jogo, somos nós pró­
prios e unicamente nós que estamos a satisfazer. Pelo contrário,
a actividade moral reconhece-se porque as regras de comporta­
mento pelas quais ela se rege são susceptíveis de serem universali­
zadas; ela prossegue, pois, por definição, fins impessoais. A mora­
lidade só começa com o desinteresse e a ligação a qualquer outra
coisa que não nós próprios3. Igual contraste no campo intelectual.
Uma sensação de cor ou de som está directamente dependente do
meu organismo individual e não a posso desligar dele. É-me impos-

1 Às sensações, devemos acrescentar as imagens; mas como estas não passam


de sensações sobrevivendo a si próprias, parece-nos inútil mencioná-las separada­
mente. O mesmo acontece com os conglomerados de imagens e de sensações que
são as percepções.
1 Há, sem dúvida, sentimentos egoístas que não tem por objecto coisas mate­
riais. Mas os apetites sensíveis são, por excelência, o tipo das tendências egoístas.
Pensamos mesmo, que os sentimentos que nos ligam a um objecto de outro gênero,
seja qual for a função que o móbil egoísta aí desempenhe, implicam necessaria­
mente um movimento de expansão para fora de nós próprios que ultrapassa o
egoísmo puro. É o caso, por exemplo, do amor, da glória, do poder, etc.
1 Ver a comunicação que dirigimos à Société Française de Philosophie sobre
a determinação do facto moral (Bullelin de la Société Française de Philosophie,
1906, p. 113 e segs.) (in Sociologie et philosophie, ed. 1963, p. 49 e segs.).

291
sível fazê-la passar da minha consciência para a consciência de ou­
trem. Bem posso convidar alguém a colocar-se face ao mesmo
objecto e a sujeitar-se à sua acção, mas a percepção que esse alguém
terá será obra sua e será sua, tal como a minha me é própria. Pelo
contrário, os conceitos são sempre comuns a uma pluralidade de
homens. Constituem-se graças às palavras; ora tanto o vocabulário
como a gramática de uma língua não são obra nem propriedade de
ninguém em particular; são o produto de uma elaboração colectiva
e exprimem a colectividade anônima que as emprega. A noção de
homem ou de animal não me é pessoal; é-me, em grande medida,
comum a todos os homens que pertencem ao mesmo grupo social
que eu. Assim, por serem comuns, os conceitos são o instrumento
por excelência de todo o comércio intelectual. É através deles que
os espíritos comunicam. Sem dúvida, cada qual individualiza, ao
pensá-los, os conceitos que recebe da comunidade, marca-os com o
seu cunho pessoal; mas não há coisa pessoal que não seja susceptível
de uma individualização deste gênero '.
Estes dois aspectos da nossa vida psíquica opõem-se portanto
um ao outro tal como o pessoal ao impessoal. Há em nós um ser
que se representa tudo cm função dele próprio, do seu próprio
ponto de vista, e que, em tudo o que faz, não tem outro objectivo
que não ele mesmo. Mas há igualmente outro que conhece as coi­
sas sub speciae aeternitas, como se participasse noutro pensamento
que não o nosso, e que, ao mesmo tempo, tende a realizar, nos
seus actos, fins que o ultrapassam. A velha fórmula Homo duplex
verifica-se portanto pelos factos. Longe de sermos simples, a nossa
vida interior tem como que um duplo centro de gravidade. Há,
por um lado, a nossa individualidade e, mais especialmente, o nosso
corpo que a apoia 2; por outro, tudo o que em nós exprime algo
que não nós próprios.

1 Não pensamos dever recusar ao indivíduo a faculdade de formar conceitos.


Ele aprendeu com a colectividade a formar representações deste gênero. Mas,
mesmo os conceitos que ele forma deste modo têm o mesmo caracter que os outros:
foram construídos de modo a poderem ser universalizados. Mesmo quando obra
de uma personalidade, eles são, em parte, impessoais.
2 Dizemos a nossa individualidade e não a nossa personalidade. Embora as
duas palavras sejam muitas vezes tomadas uma pela outra, é importante distingui-las
com o maior cuidado. A personalidade é feita essencialmente de elementos supra-
-individuais. (Quanto a este ponto, consultar Formes élémentaires de la vie rcli-
gieuse, pp. 386-390.)

292
Estes dois grupos de estados de consciência não são apenas dife­
rentes pelas suas origens, e pelas suas propriedades; há entre eles
um verdadeiro antagonismo. Contradizem-se e negam-se mutua­
mente. Não nos podemos entregar a fins morais sem dependermos
de nós mesmos, sem afastarmos os instintos e as inclinações mais
enraizadas no nosso corpo. Não há acto moral que não implique
sacrifício, uma vez que, tal como Kant bem o mostrou, a lei do
dever não se pode fazer obedecer sem humilhar a nossa sensibi­
lidade individual ou, como ele dizia, «empírica». Este sacrifício,
podemos perfeitamente aceitá-lo sem resistência e até com entu­
siasmo. Mas, mesmo quando realizado num alegre entusiasmo, não
deixa de ser real; a dor que o asceta procura espontaneamente não
deixa de ser dor. E esta antinomia é tão profunda e tão radical
que nunca pode ser rigorosamente resolvida. Como poderiamos nós
pertencer-nos inteiramente e pertencer inteiramente aos outros ou
inversamente? O eu não pode ser inteiramente algo a não ser ele
mesmo, caso contrário dissolver-se-ia. É o que acontece no êxtase.
Para pensar, é preciso ter uma individualidade. Mas, por outro
lado, o eu não pode ser inteira e exclusivamente ele mesmo, senão
esvaziar-se-ia de qualquer conteúdo. Se, para pensar, é preciso ser,
é igualmente preciso ter coisas em que pensar. Ora, a que é que
a consciência ficaria reduzida, se apenas exprimisse o corpo e os
seus estados? Não podemos viver sem nos representarmos o mundo
que nos envolve, todo o gênero de objectos que o enchem. Mas,
pelo simples facto de os representarmos, eles entram em nós e tor­
nam-se assim parte de nós próprios; por conseguinte, dependemos
deles e agarramo-nos a eles ao mesmo tempo que a nós. Há, desde
logo, em nós alguma outra coisa a solicitar a nossa actividade.
É um erro pensar que nos é fácil viver como egoístas. O egoísmo
absoluto, tal como o altruísmo absoluto, são limites ideais que
nunca podem ser alcançados na realidade. São estados de que nos
podemos aproximar infinitamente sem nunca os realizar totalmente.
Tal é a ordem dos nossos conhecimentos. Só compreendemos
com a condição de pensar por conceitos. Mas a realidade sensível
não é feita para entrar por si e espontaneamente no âmbito dos
nossos conceitos. Ela resiste-lhes e, para a vergar, é preciso, em
certa medida, violentá-la, submetê-la a todo o gênero de operações
laboriosas que a alteram para a tornar assimilável ao espírito e
nunca nós conseguimos vencer completamente as suas resistências.

293
Nunca os nossos conceitos conseguem dominar as nossas sensações
c traduzi-las em termos inteiramente inteligíveis. Só tomam uma
forma conceituai na condição de perder o que há de mais concreto
nelas, o que faz com que se dirijam ao nosso ser sensível e con­
duzam à acção; elas tornam-se então em algo de morto e de conge­
lado. Não podemos portanto compreender as coisas sem renunciar,
em parte, a sentir a sua vida e não podemos senti-la sem renun-
ciar a compreendê-la. Sem dúvida, sonhamos por vezes com uma
ciência que exprima adequadamente todo o real. Mas isso é um
ideal de que nos podemos aproximar sem limite, mas que nos é
impossível atingir.
A nossa contradição interna é uma das características da nossa
natureza. Segundo Pascal, o homem é, ao mesmo tempo, «anjo
e bicho» sem ser exclusivamente nem um nem outro. Donde re­
sulta que nunca estamos completamentc em acordo connosco mes­
mos, visto que não podemos seguir uma das nossas duas naturezas
sem que a outra sofra com isso. As nossas alegrias nunca podem
ser puras; há sempre uma dor que se mistura, visto que não saberia­
mos satisfazer simultaneamente os dois seres que estão em nós.
É este desacordo, esta divisão perpétua contra nós mesmos que
constitui, ao mesmo tempo, a nossa grandeza e a nossa miséria:
a nossa miséria porque nos vimos assim condenados a viver no
sofrimento; a nossa grandeza também, porque é por isso que nos
singularizamos entre todos os seres. O animal caminha para o pra­
zer num movimento unilateral e exclusivo: só o homem sc vê obri­
gado a dar normalmente ao sofrimento um lugar na sua vida.
Assim, a antítese tradicional do corpo c da alma não é uma vã
concepção mitológica, sem fundamento na realidade. É bem ver­
dade que realizamos uma antinomia. Mas levanta-se então uma
questão que nem a filosofia nem a psicologia positiva podem evi­
tar: de onde vem esta dualidade e esta antinomia? De onde vem,'
para retomar outra palavra de Pascal, que sejamos este «monstro
de contradições» que nunca se pode satisfazer completamente a si
mesmo? Se este estado singular é um dos traços distintivos da
humanidade, a ciência do homem deve procurar revelá-lo.

294
II

No entanto, as soluções que foram propostas para este pro­


blema não são nem numerosas nem variadas.
Duas doutrinas, que tiveram grande importância na história
do pensamento, pretendem levantar a dificuldade negando-a, ou
seja, fazendo da dualidade do homem uma simples aparência; é o
monismo empírico ou idealista.
Segundo o primeiro, os conceitos não passam de sensações mais
ou menos elaboradas: consistiríam inteiramente num grupo de ima­
gens semelhantes às quais uma mesma palavra daria uma espécie
de individualidade; mas não teriam realidade para além dessas
imagens e das sensações de que elas são o prolongamento. Do
mesmo modo, a actividade moral não seria mais do que um outro
aspecto da actividade interessada: o homem que obedece ao dever
não faz mais que obedecer ao seu interesse. Nestas condições, o
problema desaparece: o homem é um e, se nele se produzirem gra­
ves conflitos, é porque ele não age nem pensa conforme à sua natu­
reza. O conceito, bem interpretado, não se deveria opor à sensação
à qual deve a sua existência e o acto moral não poderia entrar em
conflito com o acto egoísta visto que, no fundo, procede de moti­
vações utilitárias. Infelizmente, os factos que a questão levanta
subsistem. Mas o homem sempre foi um descontente e um inquieto;
sempre se sentiu em conflito, dividido contra si mesmo e as cren­
ças e as práticas às quais, em todas as sociedades e em todas as
civilizações, ele dava mais importância, tinham e têm ainda por
objcctivo, não suprimir estas divisões inevitáveis, mas atenuar as
suas consequências e dar-lhes um sentido e uma finalidade, torná-
-las mais facilmente suportáveis, ou pelo menos reconfortá-lo.
É inadmissível que este estado de mal-estar universal e crônico
tenha sido produto de uma simples aberração, que o homem tenha
sido o causador do seu próprio sofrimento e que a ele se tenha
estupidamente obstinado se a sua natureza o predispusesse a viver
harmonicamente; pois a experiência há muito que devia ter dissi­
pado tão deplorável erro. Devíamos pelo menos explicar de onde
pode provir esta cegueira inconcebível. Sabe-se, aliás, como são
graves as objecções que a hipótese empírica levanta. Ela nunca
pode explicar como é que o inferior se podia tornar superior, como

295
é que a sensação individual, obscura e confusa, se podia tornar num
conceito impessoal, claro e distinto, e como é que o interesse se
podia transformar em desinteresse.
O mesmo se passa com o idealismo absoluto. Também para cie
a realidade é una: ela é feita unicamente de conceitos, tal como para
o empírico ela é exclusivamente feita de sensações. O mundo, para
uma inteligência absoluta que visse as coisas como são, aparecería
como um sistema dc noções definidas, ligadas umas às outras por
relações igualmente definidas. Quanto às sensações, elas nada são
por si mesmas; não passam de conceitos confusos e emaranhados
uns nos outros. O aspecto sob o qual elas se nos revelam pela
experiência vem unicamente do facto de nós não sabermos distin­
guir os elementos. Nestas condições, não haveria portanto oposição
fundamental nem entre nós e o mundo, nem entre as diferentes
partes de nós próprios. Aquela que nós pensamos ver seria devida
a um simples erro de perspectiva que bastaria corrigir. Mas então,
dever-se-ia verificar que ela se atenua progressivamente à medida
em que o campo do pensamento conceituai se alarga, à medida em
que aprendemos a pensar menos por sensação e mais por concei­
tos, quer dizer, à medida em que a ciência se desenvolve e se torna
um factor mais importante da nossa vida mental. Infelizmente, a
história está longe de confirmar estas esperanças optimistas. Pelo
contrário, a inquietação humana parece ser crescente. As religiões
que mais insistem nas contradições com as quais nos debatemos,
que mais se preocupam em nos mostrar o homem como um ser
atormentado e sofredor, são as grandes religiões dos povos moder­
nos, enquanto os cultos grosseiros das sociedades inferiores respi­
ram e inspiram uma confiança radiosa Ora, o que estas reli­
giões exprimem é a experiência vivida pela humanidade: seria
muito surpreendente que a nossa natureza se unificasse e harmoni­
zasse, quando o que sentimos é que os nossos conflitos aumentam.
Aliás, mesmo supondo que estes conflitos fossem apenas superfi­
ciais e aparentes, ainda seria preciso verificar tal aparência. Se as
sensações nada são para além de conceitos, seria ainda preciso ex­
plicar porque é que estes não se revelam tal como são, e, pelo
contrário, nos parecem confusos e emaranhados. Que é que lhes

1 Ver Formes élémenlaires dc la vie religieuse, pp. 320-321, 580.

296
pode ter imposto uma indistinção manifestamente contrária à sua
natureza? Aqui, o idealismo enfrenta dificuldades inversas àquelas
que tão frequente e legitimamente se objectou ao empirismo. Se
nunca se explicou como é que o inferior se pôde tornar superior,
como é que a sensação, continuando embora a ser ela mesma, pôde
ser elevada à dignidade de conceito, é igualmente difícil compreen­
der como é que o superior se tornou inferior, como é que o con­
ceito se pôde ter alterado e degenerado de modo a tornar-se sensa­
ção. Esta queda não pode ter sido espontânea. Foi necessariamente
determinada por algum princípio contrário. Mas não há lugar para
semelhante princípio numa doutrina essencialmente monista.

Se pusermos de parte estas teorias que suprimem o problema


mais do que o resolvem, as únicas consequentes e que mereçam
uma análise limitam-se a afirmar o facto de que se trata de explicar
sem o apreciarem.
Há, primeiramente, a explicação ontológica que Platão formu­
lou. O homem seria duplo porque nele se encontram dois mundos:
o da matéria incompreensível e amoral, por um lado, e o das Idéias,
do Espírito e do Bem, por outro. Estes dois mundos, por serem
naturalmente opostos, estão em conflito dentro de nós e, uma vez
que dependemos de um e de outro, estamos necessariamente em
conflito com nós mesmos. Mas se esta resposta metafísica tem o
mérito de afirmar, sem o procurar minimizar, o facto que se trata
de explicar, ela limita-se a distinguir os dois aspectos da natureza
humana sem os analisar. Dizer que somos duplos porque há em
nós duas forças contrárias, é repetir o problema em termos dife­
rentes, não é resolvê-lo. Seria ainda preciso dizer-nos de onde vêm
estas duas forças e qual o porquê da sua oposição. Sem dúvida,
podemos admitir que o mundo das Idéias e do Bem encerre em si
mesmo a razão da sua existência, dada a excelência que lhe é atri­
buída. Mas como sucede então que, exterior a si, haja um princípio
de mal, de obscuridade, de não-ser? Qual a função útil que ele
pode ter?
O que se compreende ainda menos é como estes dois mundos,
que em tudo se opõem e que, por conseguinte, se deveríam afastar
e excluir mutuamente, tenham no entanto tendência para se unirem
e se penetrarem de modo a originarem os seres mistos e contradi-

297
tórios que somos. O seu antagonismo deveria, ao que parece, man­
tê-los fora um do outro e tornar o seu acasalamento impossível.
Para empregar a linguagem de Platão, a Ideia, que é por definição
perfeita, encerra a plenitude do ser; ela basta-se a si mesma; só
tem necessidade de si para existir. Porque se abaixaria ela à ma­
téria cujo contacto só a pode desnaturar e fazer perder a si mesma?
Por outro lado, porque é que a matéria aspiraria ao princípio con­
trário que nega e porque é que ela se deixaria penetrar por ele?
Enfim, o homem é por excelência o teatro da luta que acabamos
de descrever; não a encontramos nos outros seres. No entanto o
homem não é o único onde, segundo esta hipótese, os dois mun­
dos se deveríam encontrar.
Ainda menos explicativa é a teoria que mais correntemente
satisfaz: fundamenta-se o dualismo humano, não mais nos dois
princípios metafísicos que estariam na base de toda a realidade
mas na existência em nós de duas faculdades antitéticas. Temos
simultaneamente uma faculdade de pensar sob as diversas espécies
do individual, é a sensibilidade; e uma faculdade de pensar sob as
espécies do universal e do impessoal, é a razão. A nossa actividade
apresenta por sua vez caracteres totalmente opostos, consoante
depende de motivos sensíveis ou de motivos racionais. Kant, mais
do que ninguém, insistiu no contraste entre a razão e a sensibili­
dade, entre a actividade racional e a actividade sensível. Mas, se
esta classificação dos factos é perfeitamente legítima, ela não traz
solução alguma ao problema que nos preocupa. Dado que temos
simultaneamente uma aptidão para viver de modo pessoal e <de
modo impessoal, o que se trata de saber é, não que nome dar■ a
estas duas aptidões contrárias, mas como é que elas coexistem num
único e mesmo ser, não obstante a sua oposição. Como acontece
pois que possamos participar simultaneamente nestas duas exis­
tências? Porque seremos nós feitos de duas metades que parecem
pertencer a dois seres diferentes? Quando se atribuiu um nome
diferente a uma e a outra, não se avançou um passo na questão.
Se nos contentamos demasiadas vezes com esta resposta verbal
é que, geralmente, consideramos a natureza mental do homem como
uma espécie de dado último que não tem de ser explicado. Pensa­
mos portanto estar tudo dito quando se relacionou tal ou tal facto,
de que procuramos as causas, com uma faculdade humana. Mas
porque é que o espírito humano, que afinal não passa de um sis-

298
tema de fenômenos comparáveis a outros fenômenos observáveis,
estaria fora e acima da explicação? Sabemos actualmente que o
nosso organismo é o produto de uma gênese; porque haveria de ser
diferente relativamente à nossa constituição psíquica? E se há em
nós algo que exija uma explicação urgente é justamente a estranha
antítese que ele realiza.

III

Dc resto, o que dissemos pelo caminho quanto à forma reli­


giosa sob a qual o dualismo humano sempre se exprimiu é sufi­
ciente para se poder antever que a resposta à questão levantada
deve ser procurada num sentido totalmente diferente. A alma,
dizíamos, foi sempre considerada como uma coisa sagrada; ela sur­
ge-nos como uma parcela da divindade que vive apenas durante
um certo tempo uma vida terrestre e que tende, como que de si
própria, a voltar ao seu lugar de origem. Sob este aspecto ela opõe-
-se ao corpo que é considerado profano; e tudo o que, na nossa
vida mental, depende directamente do corpo, as sensações, os dese­
jos sensíveis, partilha o mesmo caracter. Por isso as qualificamos
de formas inferiores da nossa actividade, enquanto à razão e à
actividade moral atribuímos uma maior dignidade: são estas facul­
dades pelas quais, ao que dizem, comunicamos com Deus. Até o
homem mais independente de qualquer crença confessional ima­
gina esta oposição de uma forma, senão idêntica, pelo menos com­
parável. Atribuímos às nossas diferentes funções psíquicas um valor
desigual: elas têm uma hierarquia própria e são as que mais baixo
se situam no corpo que mais baixo estão na hierarquia. Aliás, nós
mostrámos 1 que não há moral que não esteja associada à religiosi­
dade; mesmo para o espírito laico, o Dever, o imperativo moral,
é uma coisa grandiosa e sagrada e a razão, auxiliar indispensável
da actividade moral, inspira naturalmente sentimentos análogos.
Atribuímos-lhe igualmente uma espécie de excelência e de valor

1 Ver «La détermination du fait moral», in Bulletin de la Société Française


de Pbilosophie, 1906, p. 125 (in Sociologie et philosophie, 1963, p. 69).

299
incomparável. A dualidade da nossa natureza não passa portanto
de um caso particular dessa divisão das coisas em sagradas e pro­
fanas que verificamos na base de todas as religiões e deve expli-
car-se segundo os mesmos princípios.
Ora foi precisamente esta a explicação que tentámos na obra
já citada Formes élémentaires de la vie religieuse. Preocupámo-nos
em mostrar que as coisas sagradas são simplesmente ideais colec-
tivos que se fixaram em objectos materiais '. As idéias e os senti­
mentos elaborados por uma colectividade, qualquer que ela seja,
são investidos, devido à sua origem, de um ascendente e dc uma
autoridade que fazem com que os indivíduos que os pensam e que
neles acreditam os representem sob a forma de forças morais que
os dominam e que os apoiam. Quando estes ideais impelem a nossa
vontade, sentimo-nos conduzidos, dirigidos, arrastados por ener­
gias singulares que, manifestamente, não vêm de nós, mas que se
nos impõem, para com as quais temos sentimentos de respeito,
de temor reverenciai, mas também de reconhecimento devido ao
conforto que recebemos; pois elas não se podem comunicar a nós
sem fazerem apelo ao nosso tom vital. E estas virtudes sui generis
não são devidas a nenhuma acção misteriosa; são simplesmente
efeitos dessa operação psíquica, cientificamente analisável, mas sin­
gularmente criadora e fecunda, a que chamamos fusão, a comunhão
de uma pluralidade de consciências individuais numa consciência
comum. Mas, por outro lado, as representações colectivas não se
podem constituir senão encarnando-se em objectos materiais, coi­
sas, seres de todas as espécies, figuras, movimentos, sons, pala­
vras, etc., que os traduzem exteriormente e os simbolizam; pois só
exprimindo os seus sentimentos, traduzindo-os através de sinais
e simbolizando-os exteriormente, as consciências individuais, natu­
ralmente fechadas umas às outras, podem sentir que comunicam
e que estão em harmonia2. As coisas que desempenham esta fun­
ção participam necessariamente dos mesmos sentimentos que os
estados mentais que elas representam e, a bem dizer, materializam.

1 Ver Formes élémentaires dc la vie religieuse, pp. 268-342. Não podemos


reproduzir aqui os factos e as análises nas quais se apoia a nossa tese: limitamo-nos
a lembrar sumariamente as principais etapas da argumentação desenvolvida no
nosso livro.
2 Ibidem, p. 329 c segs.

300
Também elas são respeitadas, temidas ou procuradas como forças
benéficas. Não estão portanto colocadas no mesmo plano que as
coisas vulgares, as quais apenas interessam a nossa individualidade
física; são postas à parte por estas últimas; conferimos-lhes um
lugar perfeitamente distinto no conjunto do real; separamo-los;
é nesta separação radical que consiste essencialmente o carácter
sagrado1. E este sistema de concepções não é puramente imaginário
e alucinatório; pois as forças morais que estas coisas despertam em
nós são bem reais, como o são as idéias que as palavras nos lem­
bram depois de terem servido para as formar. É disto que provém
a influência dinamogénica que as religiões desde sempre exerceram
sobre os homens.
Mas estes ideais, produto da vida em grupo, não se podem
constituir, nem sobretudo subsistir, sem penetrarem nas consciên­
cias individuais e sem aí se organizarem de modo duradouro. Estas
grandes concepções religiosas, morais, intelectuais que as socieda­
des extraem do seu seio durante os períodos de efervescência cria­
dora, os indivíduos levam-nas consigo uma vez que o grupo se
dissolveu e que a comunhão social se realizou. Sem dúvida, depois
de terminado o período de efervescência, e quando cada qual, reto­
mando a sua existência privada, se afasta da fonte de onde lhe
vieram este calor e esta vida, ela não se mantém no mesmo grau
de intensidade. No entanto ela não se extingue visto que a acção
do grupo não acaba por completo, mas vem perpetuamente dar
a estes grandes ideais um pouco da força que lhes pode atenuar
as paixões egoístas e as preocupações pessoais do dia-a-dia: é para
isto que servem as festas públicas, as cerimônias, os diversos ritos.
Só que, vindo-se assim associar à nossa vida individual, estes diver­
sos ideais por sua vez individualizam-se; estreitamente relacionadas
com as nossas outras representações, harmonizam-se com elas, com
o nosso temperamento, com o nosso carácter, os nossos hábitos, etc.
Cada qual os marca com o seu cunho próprio; é assim que cada
um tem a sua maneira pessoal de pensar as crenças da sua Igreja,
as regras da moral comum, as noções fundamentais que servem
de quadro ao pensamento conceituai. Mas, ao mesmo tempo que
se particularizam e se tornam elementos da nossa personalidade,

1 Ver Formes éléntentaires de la vie religieuse, p. 53 c segs.

301
os ideais colectivos não deixam de conservar a sua propriedade
característica, ou seja, o prestígio que lhes é conferido. Embora
sendo nossos, eles exprimem-se em nós num tom totalmente dife­
rente do resto dos estados de consciência: ordenam-nos, impõem-
-nos o respeito, não nos sentimos no mesmo plano do que eles.
Damo-nos conta que eles representam em nós algo de superior a
nós. Não é portanto sem razão que o homem se sente duplo. Há
realmente nele dois grupos de estados de consciência que contras­
tam entre eles pelas suas origens, a sua natureza e os fins que se
propõem. Uns apenas exprimem o nosso organismo e os objectos
com os quais ele está mais directamente em ligação. Estritamente
individuais, eles ligam-nos apenas a nós próprios e não podemos
separá-los de nós assim como não nos podemos separar do nosso
corpo. Os outros, pelo contrário, vêm-nos da sociedade; traduzem-
-na em nós e ligam-nos a algo que nos ultrapassa. Sendo colectivos,
são impessoais; orientam-nos para fins que são comuns aos outros
homens; é por eles e só por eles que podemos comunicar com os
outros. É portanto bem verdade que somos formados de duas par­
tes e como que de dois seres, os quais, embora associados, são cons­
tituídos por elementos muito diferentes e orientam-nos em sentidos
opostos.
Esta dualidade corresponde, em suma, à dupla existência que
levamos simultaneamente: uma puramente individual, que tem as
suas raízes no nosso organismo, a outra social, que não é mais do
que o prolongamento da sociedade. A própria natureza dos elemen­
tos entre os quais existe o antagonismo que acabamos de descrever
testemunha que é essa a sua origem. É efectivamente entre as sen­
sações e os desejos sensíveis, por um lado, a vida intelectual e
moral, por outro, que ocorrem os conflitos de que demos exemplos.
Ora, é evidente que paixões e tendências egoístas derivam da nossa
constituição individual, enquanto a nossa actividade racional,
quer teórica quer prática, depende directamente de causas sociais.
Tivemos muitas vezes ocasião de afirmar que as regras da moral
são normas elaboradas pela sociedade *; o carácter obrigatório que
as caracteriza não é mais do que a própria autoridade da sociedade
comunicando-se a tudo o que dela sai. Por outro lado, no livro

1 Division du Iravail social, passirn. «A determinação do facto moral», in Bulle-


tin de la Société Française de Philosophie, 1906.

302
que é ocasião do presente estudo e cuja consulta indicamos, esfor-
çamo-nos por mostrar que os conceitos, matéria de todo o pensa­
mento lógico, eram originalmente representações colectivas: o facto
de eles serem impessoais é a prova que eles são produto de uma
acção já de si anônima e impessoal *. Encontramos mesmo razões
para conjecturar que estes conceitos fundamentais e eminentes a
que se chamam categorias foram formados sobre o modelo de coi­
sas sociais2.
O caracter doloroso deste dualismo explica-se nesta hipótese.
Sem dúvida, se a sociedade não fosse senão o desenvolvimento na­
tural e espontâneo do indivíduo, estas duas partes de nós próprios
harmonizar-se-iam e ajustar-se-iam uma à outra sem conflitos: a pri­
meira, sendo apenas o prolongamento e como que o acabamento
da segunda, não encontraria nesta a menor resistência. Mas, efec-
tivamente, a sociedade tem uma natureza própria e, por conse­
guinte, exigências totalmente diferentes daquelas que estão implí­
citas na natureza do indivíduo. Os interesses do todo não são
necessariamente os interesses da parte; por isso a sociedade não se
pode formar nem manter sem reclamar de nós perpétuos sacrifícios
que nos custam. Só por isto ela nos ultrapassa e nos obriga a nos
ultrapassarmos a nós próprios; e ultrapassar-se a si próprio é, para
um ser, sair em certa medida da sua natureza, o que não se pode
fazer sem uma tensão mais ou menos penosa. A atenção voluntária
é, como se sabe, uma faculdade que só desperta em nós sob a acção
da sociedade. Ora a atenção supõe o esforço; para estarmos aten­
tos somos obrigados a suspender o desenrolar espontâneo das nos­
sas representações, a impedir a consciência de se deixar levar pelo
movimento de dispersão que naturalmente a arrasta, numa palavra,
a violentar as nossas inclinações mais imperiosas. E como a parte
do ser social no ser completo que nós constituímos aumenta sem­
pre à medida cm que avançamos na história, é totalmente invero-
símil que alguma vez se possa iniciar uma era onde o homem seja
dispensado de resistir a si mesmo e possa viver uma vida menos
tensa e mais fácil. Pelo contrário, tudo faz prever que o esforço
aumentará sempre com a civilização.

1 Formes élémentaires de la vie religieuse, p. 616 e segs.


2 Ibidem, pp. 12-28, p. 205 e segs., p. 336 e segs., pp. 386, 508, 627.
ÍNDICE
rás.
INTRODUÇÃO, por Jean-Claude Filloux 7
BIBLIOGRAFIA ... ..................................... 65
PRIMEIRA PARTE
DA CIÊNCIA SOCIAL OU SOCIOLOGIA
1. Curso de ciência social. Lição de abertura 75
2. A sociologia emcm França no século xix 103
3. ' Sociologia e ciências sociais 125

SEGUNDA PARTE
SOCIOLOGIA E SOCIALISMO
4. Propriedade social e democracia 155
5. Os estudos de ciência social 165
6. Os princípios de 1789 e a sociologia 191
7. Sobre a definição do socialismo 201
8. Socialismo e ciência social 209
9. A concepção materialista da história 217

TERCEIRA PARTE
O SOCIÓLOGO
10. O individualismo e os intelectuais 235
11. A élite intelectual e a democracia 251
12. Internacionalismo e luta de classes 255
13. Pacifismo e patriotismo 265

QUARTA PARTE
O HOMEM
14. O futuro da religião .............................................................. ■ • 281
15. O dualismo da natureza humana e as suas condições sociais ... . 289

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