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A Música e o Cérebro

As "funções musicais” são um conjunto de atividades cognitivas e


motoras envolvidas no processamento da música
| Neurociência | Temas Livres |

Há tempos vem se falando sobre as influências da música sobre a atividade


mental e, em alguns casos, até sobre o comportamento animal. Bebês se
acalmariam ouvindo músicas clássicas, bois confinados engordariam mais,
galinhas botariam mais ovos e tantas outras observações curiosas. De
qualquer forma, o tema música-cérebro tem sido fascinante.

De fato, atualmente algumas pesquisas têm revelado interações entre reações


humanas e estímulo musical. Os trabalhos mais recentes se beneficiam dos
exames de imagens funcionais cerebrais obtidas de aparelhos de ressonância
magnética e tomografia por emissão de pósitrons.

Procura-se compreender, cada vez mais, o comportamento musical


neurológico e as reações mentais das pessoas à música e ao som. Além de
ampliar os conhecimentos sobre a fisiologia neurológica, esses trabalhos visam
obter subsídios para as bases da musicoterapia em pacientes com distúrbios
neurológicos e psiquiátricos. Uma das conclusões que já se pode obter é que
nossos cérebros têm circuitos distintos para perceber, processar e tocar
música.

A música, como atividade neuropsicológica, requerer múltiplas funções


cerebrais, tais como a função auditiva para escutar e apreciar a harmonia,
ritmo, timbre, a função visual, para ler uma partitura, a função motora para
execução instrumental e, mais fascinante, as funções cognitivas e emocionais
para a interpretação e representação musical interior (Barbizet e Duizabo,
1985). Estudar as relações multifuncionais da música com o cérebro amplia os
conhecimentos sobre a integração cerebral da capacidade de percepção e
atividades comportamentais complexa.

O termo “funções musicais”, utilizado pela neurociência, são um conjunto de


atividades cognitivas e motoras envolvidas no processamento da música. São
mecanismos pelos quais o cérebro se organiza para coordenar todas as
operações mentais envolvidas com a música. Atualmente já se pesquisa se a
pessoa tem as habilidades musicais preservadas.

Outro termo que está cada vez mais presente nos exames de neurociências é
a “amusia”. No plural, as amusias correspondem à perda das funções musicais.
Observando que as afasias, que são alterações neurológicas da linguagem,
nem sempre são acompanhada das amusias e, por causa disso, deduz-se que
haja uma autonomia dos processos de comunicação verbal e musical,
conseqüentemente, uma independência estrutural e funcional dos substratos
neurobiológicos (Sergent, 1993).

Anatomicamente sabe-se que não existe um centro neurológico específico para


a música, como existe para a linguagem, sendo a função musical difusamente
presente em diversas áreas cerebrais, mesmo naquelas áreas envolvidas com
outros tipos de cognição (Zatorre e McGill, 2005).

Para as pesquisas atuais a música ultrapassou sua natureza artística e passou


a ser um instrumento para o estudo de vários aspectos da neurociência. Não é
demais afirmar que o ato de ouvir e de produzir música envolve praticamente
todas as funções cognitivas. Outra constatação interessante é que as áreas
ativadas pela função musical variam com as experiências individuais e com o
treinamento musical, tornando então muito mais complexo este estudo.

Sabe-se, há tempos, que cada cérebro tem suas preferências musicais


pessoais, porém, alguns critérios de preferência são universalmente comuns e
presentes em todos os cérebros. Acredita-se que as músicas capazes de
chamar a atenção possuam uma estrutura melódica e temporal (harmonia e
ritmo) suficiente para desencadear processos mentais automáticos de análise
que criam expectativas sobre como a melodia deve prosseguir, desde as
primeiras notas ouvidas. Esse processo não consciente de tentar adivinhar as
próximas notas e, eventualmente acertar, é um estímulo prazeroso de
recompensa que mantém o cérebro interessado em continuar expectando. Isso
acaba resultando no sentimento de gostar da música.

Por conta dessa avidez cerebral em construir uma suposta familiaridade


musical, quanto mais música se ouve, mais o cérebro aprende a acertar
antecipadamente os padrões de melodias e ritmos, assim, mais música quer
ouvir. O prazer da música talvez venha do trabalho agradável que ela dá ao
cérebro.

As melodias simples demais como, por exemplo, um batuque ou um simples


dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó, têm uma estrutura musical tão trivial que rapidamente
deixam de estimular o cérebro a pressupor o próximo passo musical, perdem o
interesse, logo, deixam de estimular o sistema de recompensa. Não obstante, a
mesmice musical desses arranjos mais simples pode exercer um efeito rítmico,
hipnótico ou torporoso no cérebro, mas não estimula o prazer pleno em desejar
mais música.

Por outro lado, seqüências musicais muito complexas e difíceis de serem


adivinhadas pelo cérebro, ou que não seguem algum padrão (normalmente de
natureza cultural), são frustrantes para o sistema de recompensa. Por não
oferecer prazer algum, a novidade musical complexa, estranha e algo bizarra é
logo abandonada (Housel, 2002).

Na Universidade Federal Paulista de Medicina, o neurologista Mauro Muszkat


pesquisou as alterações elétricas no cérebro de pacientes ao escutarem
música. De um modo geral, as funções musicais parecem ser complexas,
múltiplas e de localizações assimétricas, envolvendo o hemisfério direito para
altura, timbre, discriminação melódica, e o esquerdo para ritmos, identificação
semântica de melodias, senso de familiaridade e processamento temporal e
seqüencial dos sons. No entanto a lateralização das funções musicais pode ser
diferente em músicos, comparado a indivíduos sem treinamento musical, o que
sugere um papel da música na chamada plasticidade cerebral segundo
Muszkat. Para este neurologista, “um paciente que tenha sofrido algum dano
cerebral pode recuperar algumas funções se for estimulado com a música”.

A arte não apenas produz prazer no ser humano, mas, sobretudo, provoca
uma reação vivencial, um juízo, uma resposta (Blasco, 1998). Como arte a
música tem o poder de sugestão, de projeção, de permitir a realização
imaginária de desejos inconscientes, de lembranças, de sentimentos
hedonistas e de comunicação, aliás, de comunicação universal.

Segundo o eminente maestro e compositor alemão Hans-Joaquim Köellreutter,


figura proeminente da educação musical no Brasil nos anos 40, música é
também linguagem, uma vez que utiliza um sistema de signos que transmite
informações ou mensagens. Entretanto, preferimos considerar a música um
eficiente meio de comunicação não verbal, mas não uma linguagem
propriamente dita, pois não separa significante e significado com faz a
linguagem. Além do mais, as estruturas neurológicas envolvidas para o
processamento musical são funcionalmente autônomas e diferentes daquelas
envolvidas com a linguagem, isto é, envolvidas com a fala, com a leitura e com
a escrita.

Os atuais conhecimentos neuropsicológicos da música pretendem ainda


compreender melhor as reações e o comportamento musical não apenas
inatos, mas também adquiridos pelo aprendizado.

Músicas e Emoções
A música interfere na plasticidade cerebral, favorece conexões entre neurônios
na área frontal do cérebro, que é relacionada a processos de memorização e
atenção, além de estimular a comunicação entre os dois lados do cérebro, o
que pode explicar sua relação com raciocínio e matemática. O ser humano é
essencialmente musical, seja no ritmo corporal (andar, mastigar, falar...), seja
no ritmo fisiológico (respirar, nos batimentos cardíacos, intestinos...), e a
música tem se mostrado importante para o neurodesenvolvimento da criança e
de suas funções cognitivas.

Do lado psíquico, a música


acompanha praticamente todos os
momentos emocionais importantes
nas nossas vidas, desde as canções
de ninar até a música fúnebre. Isso
contribui para a construção de
relações de afeto com a música,
afeto este que pode ser mobilizado
na presença de determinadas
músicas.
Coletivamente e culturalmente nota-se a existência de grupos de pessoas com
determinadas identidades musicais e que tendem a atribuir valores afetivos
semelhante a determinadas músicas.

Dessa forma, existe tanto um caráter social quanto um caráter pessoal


relacionados às experiências musicais. Geralmente os afetos da pessoa são
profundamente mobilizados pela música, a ponto de não se sentir feliz ouvindo
uma música que recorde um momento triste e o vice-versa disso é importante
nas recomendações musicais para ajudar no tratamento da depressão.

A atividade musical envolve quase todas as regiões do cérebro e os sistemas


neurais. Por exames de imagem funcional cerebral vê-se que a música capaz
de emocionar ativa estruturas das regiões cerebelares, responsáveis pela
produção e liberação dos neurotransmissores dopamina e noradrenalina e,
principalmente da amídala, que é a principal área do processamento
emocional. O ato quase automático de acompanhar uma música é capaz de
ativar a região do hipocampo, responsável pelas memórias, bem como o córtex
frontal inferior. Para a execução de músicas são acionados os lobos frontais,
tanto através do córtex motor quanto sensorial.

O cérebro humano é formado por três partes: o arqui-cérebro, ou cérebro


reptiliano, comum a todos os animais, o sistema límbico, aquisição evolutiva
nos mamíferos, e o neo-cérebro ou cérebro cortical, presente em seres
biologicamente mais evoluídos – como símios, baleias, golfinhos e ser humano.

O ritmo estaria relacionado com o cérebro reptiliano, um sistema comum a


todos os animais e responsável pelo instinto. Músicas de ritmo básico, primitivo
e primário, como o batuque ou o ritmo eletrônico, estimulariam mais essa parte
reptiliana do cérebro humano. Bastante primitivo e capaz de entorpecer
emoções mais sublimes. As músicas mais elaboradas e melodiosas
provocariam o lado emocional do cérebro, como as músicas clássicas e
românticas. Esse tipo de música ativa também o sistema límbico, relacionado
com a intuição e o sentimento.

O compositor italiano Rossini, autor de músicas sacras, músicas de câmara e


de mais de trinta óperas, dentre elas O barbeiro de Sevilha e Cinderela,
escreveu: “A influência da música sobre a alma, sobre o seu progresso moral, é
reconhecida por todo o mundo. A harmonia coloca a alma sob o poder de um
sentimento que a desmaterializa. Tal sentimento existe num certo grau, mas se
desenvolve sob a ação de um sentimento similar mais elevado. A música
exerce uma influência feliz sobre a alma. E a alma, que concebe a música,
também exerce sua influência sobre a música. A alma virtuosa, que tem a
paixão do bem, do belo, do grande, e que adquiriu harmonia, produzirá obras-
primas capazes de penetrar as almas mais encouraçadas e de comovê-las”.

Efeito “Mozart”
A idéia do Efeito Mozart surgiu em 1993 na Universidade da Califórnia, em
Irvine, com o físico Gordon Shaw e Frances Rauscher, pesquisadores em
desenvolvimento cognitivo. Eles estudaram os efeitos sobre alguns estudantes
universitários produzidos quando escutavam os primeiros 10 minutos da
Sonata para Dois Pianos em Ré Maior de Mozart. Eles encontraram um
melhoramento temporário do raciocínio espaço-temporal, conforme medido
pelo teste Stanford-Binet de QI (Rauscher e Shaw, 1995).

Entretanto, nenhum outro pesquisador foi capaz de reproduzir esses


resultados, mas, não obstante, o chamado efeito Mozart continuou a ser
bastante divulgado na mídia, apesar de ser alvo de inúmeras controvérsias na
literatura.

Mais recentemente o Efeito Mozart


tem sido investigado em relação à
atividade registrada no EEG de
pacientes portadores de epilepsia. O
Hughes (1998) observou que a
audição de Mozart (a mesma Sonata
para dois Pianos em Ré Maior)
induziu a significativa redução da
atividade cerebral paroxística em
períodos entre as crises em 23 de 29
pacientes (79%), incluindo pacientes
em estado de coma. Mas Isso não é
o mesmo que afirmar que ouvir a Wolfgang Amadeus Mozart (1756 –
Mozart aumenta a inteligência em 1791), foi um compositor influente do
crianças. período clássico.

Baseados nesse tal efeito Mozart, em 1998 os entusiasmados Rauscher e


Shaw anunciaram ter provas científicas de que a instrução em piano e canto é
superior à instrução em computação para aumentar as habilidades de
raciocínio abstrato em crianças. A experiência incluiu três grupos de pré-
escolares: um grupo recebeu aulas particulares de piano-teclado e aulas de
canto; um segundo grupo recebeu aulas particulares de computação; e um
terceiro grupo não recebeu nenhum treinamento. As crianças que receberam
treinamento em piano e teclado tiveram desempenho 34% melhor em testes
medindo habilidade espaço-temporal, que os outros.

Observou ainda que não só a freqüência da atividade paroxística diminuía, mas


também a amplitude das descargas. O Mapeamento Cerebral realizado durante
a sonata mostrava diminuição da atividade teta e alfa nas regiões centrais, com
aumento da atividade delta nas regiões central e média. O que isso significa
clinicamente continua sendo um mistério.

Musicoterapia
As respostas do ser humano à música são variadas por múltiplos fatores,
desde a sensibilidade afetiva e cultural, afinidade musical, receptividade
sensorial, educação e aprendizado, conjuntura social e outros.
Fisiologicamente o som, com todas suas qualidades de ritmo, timbre e melodia,
é uma das experiências sensoriais mais precoces do ser humano. Seus efeitos
sobre o psiquismo são evidenciados a partir das cantigas das mães para
embalar seus filhos. Esses sons precoces fixam-se indelevelmente no
psiquismo do ser humano.
Os trabalhos com propósitos terapêuticos se baseiam nas múltiplas influências
da música sobre diversos sistemas fisiológicos (não apenas cerebrais).
Prioritariamente os conhecimentos atuais sugerem que a música possa ser
aplicada em, pelo menos, quatro funções terapêuticas: na melhora da atenção,
estimulando o desenvolvimento motor e cognitivo, nas habilidades
comunicativas, na expressão emocional e na reflexão/sentimento da situação
existencial.

Segundo alguns trabalhos de pesquisa, a musicoterapia poderá ser um recurso


terapêutico e preventivo para diversas enfermidades neurológicas e psíquicas,
porém, dentro do bom senso que deve acompanhar a ciência, essas
possibilidades devem estar inseridas ainda no campo da pesquisa.

para referir:
Ballone GJ - A Música e o Cérebro - in. PsiqWeb, Internet, disponível
em www.psiqweb.med.br, 2010.

Bibliografia
Barbizet J, Duizabo Ph - Manual de Neuropsicologia. Trad. Silvia Levy e Ruth Rissin Josef, Porto Alegre,
Editora Artes Médicas Sul Ltda., 1985.
Blasco SP – Compendio de Musicoterapia. Volume I. Barcelona, Empresa Editorial Herder, S.A., 1999.
França Correia CM, Muszkat M, De Vicenzo NS, Reis de Campos CJ - Lateralização das Funções
Musicais na Epilepsia Parcial - Arq. Neuro-Psiquiatr. vol.56 n.4 São Paulo Dec. 1998.
Houzel SH - O Cérebro Nosso de Cada Dia, ed. Vieira e Lent, 2002.
Hughes JR, Daaboul Y, Fino JJ, Shaw GL - The "Mozart Effect" On Epileptiform Activity - Clinical
Eletrooencephalography, 1998, 29(3):109-119
Rauscher FH, Shaw GL - Key components of the Mozart effect. Percept Mot Skills. 1998 Jun;86:835-41.
Rauscher FH, Shaw GL, Ky N - Listening to Mozart enhances temporal reasoning: Towards a
neurological basis. Neuroscience Letters, 185, 44-47, 1995.
Sacks O - Alucinações Musicais, Relatos sobre a Musica e o Cérebro, Companhia das Letras, 2007.
Zatorre R, McGill J – Music, the food of neuroscience? Nature 434, 312-315, March, 2005.

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