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2012
Recebido em 1° de setembro de 2012. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 20, n. 44, p. 5-10, nov. 2012
Aprovado em 29 de outubro de 2012. 5
APRESENTAÇÃO
(SFIO) por um único indivíduo por quase um responsável (“racionalmente”, nós diríamos) sem
quarto de século, para ficarmos no principal e a tutela de um líder, seja ele o partido ou o chefe
irmos só até a metade do século. E, contudo, o carismático?
mais irônico é que todos esses exemplos são uma
Essas três indagações constituíram boa parte
validação espetacular das principais proposições
da agenda dos estudos políticos ao longo do século
de Michels a respeito das conhecidas
XX e preocuparam, com ênfases diferentes,
“extravagâncias das oligarquias partidárias”
elitistas, pluralistas, radicais, liberais,
(POUTHIER, 1993, p. 812).
institucionalistas e marxistas. Entre esses últimos,
Uma contraposição rápida entre os achados vale lembrar aqui a discussão de um grande
de Michels e as proposições de Gramsci tendo pensador como Antonio Gramsci, cuja teorização
como pano de fundo a democracia política e a sobre o partido revolucionário inspirou mais de
democracia no interior dos partidos políticos uma geração de militantes socialistas1.
ajudam a destacar a oportunidade de retornar ao
O problema do qual Gramsci parte é: como
nosso autor.
construir um mecanismo político mediante o qual
II. MICHELS FACE A GRAMSCI uma classe, ou uma aliança de classes, pode
conquistar o poder de Estado e impor, pela via da
Nas sociedades democráticas modernas, o
revolução social, uma nova hegemonia? Esse
partido político é por excelência o canal da
desafio teórico e político, complexo por si
representação. Os partidos são (ou foram no
mesmo, desdobra-se em outros. Em termos
passado, a discutir) os mecanismos institucionais
gerais, trata-se do “problema dos modos e formas
mais importantes da vocalização política. É através
[políticos] que possibilitarão organizar toda a
deles que os grupos sociais costumam exprimir,
massa de trabalhadores italianos numa hierarquia
de modo mais ou menos completo, suas
que organicamente culmina no partido”. Mas não
reivindicações e interesses, assim como participar,
a qualquer preço, e sim sob certas condições
de modo mais ou menos eficaz, da formação das
limitantes. Construir o socialismo implica apostar
decisões públicas. O problema da representação
na “construção de um aparelho estatal que,
põe, contudo, uma questão política essencial e
internamente, funcione de maneira democrática,
que diz respeito à sua possibilidade, natureza e
isto é, garanta liberdade a todas as tendências
grau: como a representação poder ser efetiva,
anticapitalistas, [isto é, garanta] a possibilidade
genuína e legítima? Nesse tema, A sociologia dos
de [todas essas tendências políticas] se tornarem
sistemas partidários na moderna democracia (na
partidos do governo proletário”. Por outro lado,
tradução literal do título) tornou-se um clássico
o socialismo exige que esse Estado-partido “seja
da Ciência Política e da Sociologia Política. E um
externamente uma máquina implacável que
clássico porque a pergunta de fundo desse livro
esmague as organizações do poder industrial e
não cessa de nos interpelar: a democracia é, enfim,
político do capitalismo” (Antonio Gramsci apud
viável (cf. MICHELS, 1971, p. 18-19; REMOND,
MILIBAND, 1979, p. 139; sem grifos no original).
1971, p. 14; POUTHIER, 1993, p. 812)?
Em uma breve seção dos Quaderni (“Roberto
Esse grande problema pode ser desdobrado,
Michels e os partidos políticos”), o comunista
teoricamente e empiricamente, em pelos menos
italiano comenta alguns escritos esparsos de
outros três: a) se o partido (qualquer partido)
engendra, necessariamente, uma oligarquia, que
forma política seria a mais adequada para 1 O próprio pensamento de Gramsci, assim como o de
organizar as diferentes correntes de opinião, visões Lênin, sobre os problemas da organização revolucionária
de mundo e interesses sociais nas sociedades sofreu, entre 1919 e 1935, transformações importantes.
modernas? b) Se nesse contexto institucional Enquanto os artigos publicados nos anos que precederam
impera a delegação do poder das massas aos a fundação do Partido Comunista Italiano (PCI) (1921)
no Ordive Nuovo e no Avanti expressam soluções para as
burocratas da organização, como viabilizar, de um
questões organizatórias em termos quase idênticos ao
lado, a verdadeira representação e a participação “espontaneísmo” luxemburguista, os Cadernos do Cárcere
efetiva e, de outro, o controle social sobre os (1929-1935) contêm uma visão completamente nova da
comissários? c) Qual a capacidade real das massas política revolucionária e do Partido (cf. LÖWY, 1962, p.
agirem politicamente de maneira consciente e 151-152).
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Michels e as questões colocadas por esse último oligárquicas no interior do partido socialista)
aos políticos socialistas2. resulta, no essencial, da “diferença de classe
[existente] entre chefes e seguidores”. Exemplo
Gramsci insiste que é preciso diferenciar as
onde isso ocorreria? Naqueles mesmos sindicatos
coisas. Um problema é a democracia interna (ou,
e partidos social-democratas analisados por
precisamente, a falta de democracia interna) da
Michels. Ora, se hipoteticamente não há, ou
organização partidária, fenômeno ressaltado por
melhor, quando não houver, no futuro, diferença
Michels; outro, bem diferente, é o objetivo
de classe entre dirigentes e dirigidos, as relações
estratégico da organização política comunista, isto
ordinárias no partido, prevê Gramsci, se
é, o Estado verdadeiramente democrático. E que
converterão apenas em questões administrativas,
“para conquistar a democracia no Estado pode
já que decorrerão tão só das exigências práticas e
ser necessário (ou melhor, quase sempre é
da divisão do trabalho interno da organização, isto
necessário) um partido fortemente centralizado”
é, elas serão um problema “puramente técnico”.
(GRAMSCI, 1984, p. 108), como, aliás, ensinou-
E como as massas, sem qualquer treinamento
nos Lênin3. Só que, assim pensada, essa fórmula
técnico, poderão participar das tarefas dirigentes
de Gramsci apenas adia o problema – em nome
do partido agora socialmente nivelado? A
da eficácia política dos meios e da justeza dos
incapacidade das massas para a direção poderá
fins pretendidos – sem absolutamente resolvê-lo.
ser resolvida graças à educação prática e ao
A dificuldade aqui, como se percebe, é evidente:
aprendizado adquirido graças à “participação ativa
como garantir que essa organização “fortemente
dos seguidores na vida intelectual (discussões) e
centralizada”, isto é, hierárquica, desigual e
organizativa do partido” (idem, p. 109). Todo
despótica, vá perseguir um fim – a igualdade –
problema aqui é saber como e por que a igualdade
que é o exato oposto da sua natureza? Ou ainda:
social, numa esfera da vida, transformará, ipso
como exatamente uma vez no poder, essa
facto, as questões organizativas, que pertencem
organização antidemocrática poderá ser
a outro domínio, ao domínio interno da vida dos
democraticamente controlada?
partidos, em questões meramente administrativas,
A outra crítica de Gramsci é, surpreendente- abolindo o conflito e a separação política entre as
mente, mais incongruente ainda. Ele argumenta ordens que constituem uma organização. Em
contra Michels que a diferença entre a democracia segundo lugar, seria preciso que Gramsci
e a oligarquia (supõe-se, pelo contexto, que ele explicasse qual seria e de onde viria o interesse
esteja falando de relações democráticas e relações das cúpulas partidárias “proletárias” (mas ainda
assim cúpulas) em promover a participação ativa
dos filiados nas dicussões políticas e estratégicas
2 “Ao todo, Gramsci escreveu 14 parágrafos com alguma
da organização. Qual seria a motivação das
referência a Michels”. São eles: Quaderni 2, § 45, § 75 e §
minorias dos funcionários do partido não para
93; Q 3, § 59; Q 6, § 97; Q 7, § 12 e § 64; Q 8, § 148; Q 9,
§ 142; Q 11, § 25, § 26 e § 66; Q 13, § 29 e Q 13, § 33. repartir tarefas administrativas, mas para
“Dentre estes parágrafos existem sete nos quais há compartilhar voluntariamente o poder?
referência à obra de Michels, sendo que alguns só
A terceira dificuldade enfrentada por Gramsci
apresentam uma referência ocasional e em outros já há um
debate da obra do autor. E os outros sete parágrafos são quando comenta as análises de Michels, repletas
aqueles nos quais Gramsci só fez referência a algum de “palavras vazias e imprecisas”, diz respeito ao
conceito de Michels – na sua maior parte, ao conceito de desenvolvimento, nos “partidos avançados”, ou
chefe carismático. Entre estes textos, há apenas um texto seja, nos partidos socialistas burocraticamente
A, oito textos B e cinco textos C. A principal nota crítica estruturados, de uma camada de intelectuais que
de Gramsci a Michels, é um texto B, do Caderno 2 (§ 75),
concentram e monopolizam muitas funções
escrito entre 1929 e maio de 1930” (FERNANDES, 2011,
políticas. A saída para isso seria criar, nesses novos
p. 17). Como meu comentário não tem uma função
exegética, utilizo a edição temática dos Quaderni, partidos, uma grande camada intermediária entre
especificamente o volume publicado no Brasil como os chefes políticos e as massas “capaz de servir
Maquiavel, a política e o Estado moderno (GRAMSCI, de equilíbrio para impedir os chefes de se
1984, p. 103-111). desviarem” da linha correta “nos momentos de
3 Tomo como referência para essa ideia os trabalhosb crises radicais e de elevar sempre mais [o nível e
Que fazer? (1902) e Um passo à frente, dois passos atrás o poder da] massa” (ibidem). Novamente, essas
(1904). palavras não refutam, por si mesmas, as ideias
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o assunto e elabora um modelo institucional de balanço da literatura que busca alternativas ao viés
análise que permite examinar processos de hoje dominante contra a forma partido e
oligarquização de organizações sociais e políticas. antissocialista.
Para André Marenco e Maria Izabel Noll a Por fim, Maria do Socorro Sousa Braga busca
predição de Robert Michels sobre a inevitabilidade resgatar os pressupostos da tese de Michels a
da conversão de todas as organizações partidárias respeito da dinâmica organizacional dos partidos
em oligarquias estaria temporalmente delimitada políticos marcada por duas tendências
a um contexto específico, marcado pela expansão supostamente antagônicas: a propensão à
do sufrágio universal e pela integração na concentração de poderes nas mãos de uma
competição eleitoral de candidatos populares, oligarquia, de um lado, e, de outro, a aspiração de
combinado a reformas eleitorais (em especial, a participação pelos demais integrantes nas decisões
substituição do voto majoritário pela intrapartidárias. Além disso, discute como a obra
representação proporcional). A validade da lei de Michels influenciou estudiosos do fenômeno
férrea micheliana, portanto, estaria circunscrita partidário vinculados à perspectiva organizacional
apenas ao período de predomínio dos partidos de contemporânea.
massa, e seria estruturada em um tripé formado
Em síntese, cem anos depois, a tese da “lei de
pelo a) ativismo voluntário, b) finanças coletivas
ferro da oligarquia”, cunhada por Michels, segue,
e c) ideologias partidárias como vantagens
conforme os artigos arrolados neste dossiê, como
comparativas na competição eleitoral e sua
referência controversa, porém fundamental não
disponibilidade oligopólica por dirigentes
só nos debates sobre a democracia interna dos
partidários.
partidos políticos, mas também nas discussões
Já Ingrid Sarti revisita o tema da alternativa sobre a possibilidade alcançarmos uma
entre participação e representação e como ele democracia substantiva em outras organizações
impactou a história e a doutrina dos partidos (sindicatos, associações de classe, grêmios de
socialistas. No contexto atual, em que o anúncio estudantes, clubes políticos) e na gestão dos
da crise e do esgotamento da forma “partido” é próprios Estados nacionais contemporâneos. A
cada vez mais insistente, como ler Michels? E, reflexão plural e crítica sobre essa obra clássica
principalmente, como ler Michels depois que, no e duradoura desenvolvida durante o seminário de
clima ideológico da Guerra Fria, sua obra foi São Carlos, seguida por sua publicação nesse
assimilada pela crítica liberal como um diagnóstico dossiê, com certeza é uma excelente mostra da
mais do que fiel do partido único da União persistência das questões que esse livro de 1911
Soviética? O artigo de Sarti faz um importante levanta ainda hoje entre os cientistas políticos.
Adriano Codato (adriano@ufpr.br) é Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do
Observatório de elites políticas e sociais do Brasil (http://observatory-elites.org).
Maria do Socorro Sousa Braga (msbraga2009@gmail.com) é Doutora em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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APRESENTAÇÃO
MICHELS, R. 1971. Les Partis politiques. Essai POUTHIER, J.-L. 1993. Michels, Roberto, 1876-
sur les tendances oligarchiques des 1936. In: CHATELET, F. ; DUHAMEL, O. &
démocraties. Paris: Flammarion. PISER, E. (orgs.). Dicionário de obras
políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
MILIBAND, R. 1979. Marxismo e política. Rio
de Janeiro: Zahar. RÉMOND, R. 1971. Préface. In: MICHELS, R.
1971. Les Partis politiques. Essai sur les
tendances oligarchiques des démocraties.
Paris: Flammarion.
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