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‘Seguir regras’ em Wittgenstein: uma leitura a partir da crítica ao

mentalismo

'To follow rules' in Wittgenstein: a reading from the criticism of mentalism

Alessandro Pereira1

Resumo: Com o objetivo de apresentar as considerações de Wittgenstein sobre ‘seguir regras’,


presente no contexto da concepção da linguagem como uso, escolhemos, neste artigo, como
pano de fundo para tal, abordar as críticas realizadas pelo filósofo vienense à concepção
mentalista da linguagem. Sendo assim, limitamo-nos, aqui, a investigar, ainda que de modo
incipiente, a oposição entre essas duas concepções filosóficas acerca da linguagem, e, com isso,
pretendemos elucidar, principalmente, as reflexões wittgensteinianas a respeito das regras, da
compreensão e o problema da interpretação de regras, assim como exposto nas Investigações
Filosóficas.

Palavras-chave: Regras. Jogos de Linguagem. Uso e Significado. Mentalismo.

Abstract: The aim of presenting Wittgenstein consideration about “following rules”, it´s
presented in the context of the language use conception, we´ve chosen this chapter, as
background to represent the criticism shown by this viennese philosopher about mentalist
conception of the language. Therefore we limit our investigation even in an incipient way, the
opposition between these two philosophical conceptions about language, thus, our goal is to
clarify mainly, the wittgensteinian musings about rules, of the comprehension and the rules
interpretation, as well as exposed in the Philosophical Investigations.

Keywords: Rules. Language Games. Use the Meaning. Mentalism.

***

1. Aspectos da concepção mentalista da linguagem

Para John Locke:


As palavras, na sua imediata significação, são sinais sensíveis de suas
ideias, para quem as usa. Palavras, em seu significado primário e
imediato, nada significam senão as ideias na mente de quem as usa,
por mais imperfeita e descuidadamente que estas ideias sejam
apreendidas das coisas que elas supostamente representam. Quando
um homem fala com outro, o faz para que possa ser entendido; e o fim
da fala implica que estes sons, como marcas, devem tornar conhecidas
suas ideias ao ouvinte. Estas palavras, então, são as marcas das ideias
de quem fala; ninguém pode aplicá-las como marcas, imediatamente,
a nenhuma outra coisa exceto às ideias que ele mesmo possui, já que
isto as tornaria sinais de suas próprias concepções; e, ao contrário,
aplicá-las a outras ideias fariam que elas fossem e não fossem, ao

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Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina. Orientadora Profª. Drª. Mirian Donat.
E-mail: pereira-alessandro@hotmail.com.
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mesmo tempo, sinais de suas ideias, e, deste modo, não teriam de


nenhum modo qualquer significado (LOCKE, 1978, p.23, grifo
nosso).

Esta concepção da linguagem tem sua explicação na teoria do conhecimento de


John Locke. Para ele, as ideias, as quais são nada mais que as imagens na mente de um
indivíduo, têm sua fonte, basicamente, nos objetos apresentados aos sentidos (Cf.
LOCKE, 1978, p.159). Um sujeito, ao falar, estaria expressando ideias da sua própria
mente. Diante disso, o significado das palavras seriam as próprias ideias presentes na
mente do sujeito. Basicamente, portanto, esse é um exemplo de concepção da linguagem
que chamamos mentalista.
Cabe-nos sublinhar que a concepção mentalista da linguagem não é uma teoria
restrita às reflexões filosóficas lockeanas, mas, ao contrário, é uma posição comum
adotada por vários filósofos ao longo da história. Em Aristóteles, por exemplo,
encontramos uma concepção semelhante acerca da linguagem humana (Cf. Da
interpretação, 2005, 16a 1-8). Desse modo, ao optarmos pelo fragmento retirado da obra
de Locke, não afirmamos aqui que Wittgenstein se refere diretamente ao filósofo inglês
em seus escritos, mas, ao contrário, como sustenta Sylvain Auroux, provavelmente ele o
ignora (Cf. AUROUX, 2009, p.89). Por isso, o nosso exemplo é somente ilustrativo,
haja vista Locke propor uma concepção de linguagem refutada pelo ‘segundo’
Wittgenstein.
A questão do significado está no núcleo dos problemas ocasionados pela
concepção mentalista da linguagem. Nela, para a compreensão de uma palavra, é
indispensável à imagem mental que a representa, pois é por meio dela que a palavra
recebe sua significação. Diante disso, podemos perguntar: como ter acesso a essa
imagem mental e, por conseguinte, ao significado da palavra? Na realidade, parece que
o significado é restrito ao sujeito e, de modo consequente, somente ele é portador do
significado no momento em que a palavra é proferida. Portanto, é na ‘cabeça’, no
‘espírito’, na ‘interioridade’ do sujeito que está localizado o significado das palavras por
ele faladas. Desse modo, então, o defensor da concepção mentalista da linguagem supõe
que a mente é a responsável pelo significado das palavras.
Uma clássica concepção do significado é a apresentada por Santo Agostinho.
Segundo Wittgenstein, na imagem agostiniana da linguagem, o processo de
significação das palavras era entendido por meio de uma relação nome-objeto. Qualquer
palavra deveria denotar e representar um objeto correspondente. Ora, como decorrência

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desta ideia, na concepção mentalista da linguagem a imagem mental passa a representar


o objeto que as palavras denotam. A questão é: de que modo isso é possível?
Em uma passagem localizada no § 139, das Investigações, Wittgenstein nos
concede o exemplo do ‘cubo’ que nos ajuda a esclarecer a maneira pela qual o
significado é entendido como uma imagem mental ou um objeto correlacionado com a
palavra, vejamos:

Quando alguém diz, p.ex., a palavra ‘cubo’, sei então o que ela
significa. Mas pode me pairar no espírito todo o emprego da palavra
quando a entendo assim?
Sim, mas o significado da palavra não é, por outro lado, determinado
também por este emprego? E podem contradizer-se estas
determinações? Aquilo que entendemos de um golpe só pode estar em
contradição com um emprego, pode encaixar-se nele e pode não se
encaixar nele? E como pode encaixar-se num emprego aquilo que nos
é presente num momento, que nos paira no espírito num momento?
O que é que nos passa pela mente, propriamente, quando entendemos
uma palavra? Não é algo assim como uma imagem? Não pode ser
uma imagem?
Bem, suponha que ao ouvir a palavra ‘cubo’, paire-lhe no espírito uma
imagem. Talvez o desenho de um cubo. Até que ponto essa imagem
pode se encaixar num emprego da palavra ‘cubo’ ou não? Talvez você
diga: “Isto é simples; quando essa imagem me paira no espírito e
aponto, p. ex., para um prisma triangular e digo que aquilo é um cubo,
então esse emprego não se encaixa na imagem.” Mas ela não se
ajusta? Escolhi, de propósito, um exemplo que tornei bem fácil
representar-se um método de projeção mediante o qual a imagem
seguramente se encaixa.
A imagem do cubo insinuou, todavia, um certo emprego, mas eu
poderia também empregá-la de outro modo (IF § 139).

Nas Investigações, o esforço de Wittgenstein consiste em mostrar que o


significado das palavras está correlacionado com o uso das mesmas, num determinado
contexto. A palavra ‘orgânico’, por exemplo, tem significados diferentes quando
utilizada no contexto da química, da biologia, do direito etc. O uso que fazemos das
palavras é fundamental para sua significação. Não basta somente definir uma palavra
relacionando-a com um objeto (nesse caso a imagem mental), para que esta adquira
significado, também é preciso elucidar os usos possíveis de tal palavra, pois a
linguagem tem uma função prática na vida humana. Neste sentido, argumenta
Wittgenstein no Livro Castanho: “suponham que um homem descrevia um jogo de
xadrez, sem mencionar a existência e o modo de utilização dos peões. A sua descrição
do jogo como fenômeno natural estará incompleta” (WITTGENSTEIN, 2009, p. 9). Ou

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seja, em vez de procurar o objeto que a palavra representa, devemos, acima de tudo,
investigar o uso que ela possui no jogo de linguagem em que está sendo aplicada.
Nos §§ 185-242 das Investigações, o assunto sobre ‘seguir regras’ é investigado
pelo filósofo austríaco de modo mais detalhado; podemos considerá-lo como um tema
chave da concepção da linguagem ali abordada. As regras têm um papel importante na
concepção da linguagem do ‘segundo’ Wittgenstein, uma vez que elas determinam o
que é falar com sentido e corretamente, ou seja, as regras funcionam como padrões de
correção linguística (Cf. GLOCK, 1998, p. 312). Vale lembrar que as regras são
inerentes a qualquer jogo de linguagem, sem elas não é possível a existência de jogos e
muito menos de linguagem, pois elas desempenham um papel normativo.
De modo geral, ao tratar desse assunto, nas Investigações, Wittgenstein procede
à refutação das ideias que estavam no fundamento da concepção mentalista da
linguagem. Como já mencionado a título de exemplo, Locke defendia que as palavras
recebiam sua significação por meio de imagens mentais. Quando um sujeito
pronunciava a palavra ‘cadeira’, por exemplo, esta recebia sua imediata significação de
acordo com a ideia de ‘cadeira’ presente em sua própria mente. Ora, tendo isso como
pressuposto, podemos perguntar: como ficaria a comunicação? No caso, parece que a
comunicação nunca chegaria a um acordo, pois cada sujeito seria portador do
significado de suas próprias palavras. O falar seria apenas a tradução, não muito
satisfatória, de uma linguagem interna do sujeito. É como se cada sujeito portasse uma
fala interna que atribuísse significação a sua fala externa. No entanto, se essa fala
interna confere o significado da fala externa, então, surgem às questões: o que concede
significado a tal fala interna? Imagens mentais e privadas são responsáveis pela
significação da linguagem externa e pública? É possível essa transferência de linguagem
interna para linguagem externa? Quais são os critérios para que tal transferência possa
acontecer?
Como vemos, são necessários critérios públicos para que a comunicação e a
compreensão linguística possam acontecer. Porque, do contrário, dois indivíduos, ao
pronunciarem a mesma palavra, lhe dariam significados diferentes. O significado da
palavra ‘cadeira’ estaria dependente do sujeito, pois a ideia de ‘cadeira’ nele pode ser
diferente da ideia de ‘cadeira’ para outrem. Ou seja, as imagens mentais atribuiriam o
significado e justificariam a linguagem pública, sem serem elas mesmas públicas e
justificáveis.

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A fim de afastar esse inconveniente, Wittgenstein fez uma elucidação do


equívoco da concepção mentalista da linguagem. Nela, a regra de uma palavra qualquer,
por assim dizer, não era instituída. Podemos, assumindo Locke como representante da
concepção mentalista, resumir a nossa investigação realizada até aqui, no seguinte
esquema abaixo:

CONCEPÇÃO MENTALISTA DA CONCEPÇÃO DA LINGUAGEM


LINGUAGEM (LOCKE) COMO USO (WITTGENSTEIN)
CORRELAÇÃO: MENTE / CORRELAÇÃO: JOGO-DE-
SIGNIFICADOS / PALAVRAS LINGUAGEM / SIGNIFICADO /
PALAVRAS
INTERNO / PRIVADO EXTERNO / PÚBLICO

Assim, pelo que podemos observar, na concepção mentalista da linguagem, o


significado e as regras linguísticas das palavras estão dados já na mente do sujeito. Na
concepção da linguagem como uso, prática e instituição, o significado das palavras não
remete mais a imagens mentais, mas ao uso que se faz das palavras em um determinado
jogo de linguagem.

2. Regras e jogos de linguagem

Estamos familiarizados com as regras, porque além de as usarmos


constantemente, desde muito cedo nos ensinaram a sua função. Em um casamento pede-
se para ir trajado desse ou daquele modo; para dirigir um veículo deve-se obedecer às
normas de trânsito, pois, do contrário, se sujeita às penalidades previstas; ao entrar
numa biblioteca, deve-se permanecer em silêncio; ao passo, que numa festa, o ideal é a
presença da comunicação e descontração. Em resumo, em qualquer lugar as regras estão
presentes; elas podem ser discutidas e até revogadas, porém jamais ausentadas.
Nas Investigações, o interesse de Wittgenstein não se refere exatamente a tais
regras, mas às regras da ‘gramática’ ou da ‘lógica da linguagem’ que estabelecem o
critério para um discurso significativo (Cf. SCHMITZ, 2004, p.149). Nesse sentido, não
se trata aqui da gramática de uma língua particular, por exemplo, o português ou o

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espanhol, mas da ‘gramática’ dos nossos modos de expressão, como aponta


Wittgenstein na seguinte passagem:

Por isso nossa reflexão é uma reflexão gramatical. E essa reflexão


ilumina o nosso problema, removendo mal-entendidos. Mal-
entendidos que dizem respeito ao uso das palavras, provocados, entre
outras coisas, por certas analogias entre as formas de expressão em
diversas áreas de nossa linguagem. Alguns podem ser eliminados,
substituindo-se uma forma de expressão por outra; a isto se pode
chamar ‘análise’ de nossas formas de expressão, porque o processo se
assemelha muitas vezes a uma decomposição (IF § 90).

Para Wittgenstein, os problemas filosóficos e metafísicos (que ele considera


pseudoproblemas) ocorrem tão somente pelo fato de certos filósofos não respeitarem as
regras ‘gramaticais’ de um determinado jogo de linguagem (Cf. IF § 93). Esse não
respeito é o motivo para a geração das confusões filosóficas e de uma espécie de mal-
estar mental, que se dissolvem somente quando analisamos a palavra no contexto em
que ela é utilizada, porque o que ‘dá vida’ a uma palavra é a sua utilização (Cf.
WITTGENSTEIN, 2008, p. 26). Nesse sentido, Wittgenstein afirma no § 5 das
Investigações: “Dissipa-se a névoa quando estudamos os fenômenos da linguagem em
espécies primitivas de seu emprego, nos quais se pode ter uma visão de conjunto da
finalidade e do funcionamento das palavras”, e ainda, no § 43, da mesma obra, temos
que “o significado da palavra é o seu uso na linguagem”. No Livro Azul, encontramos
um exemplo para esclarecer essa ideia:

[...] trata-se de uma espécie de parábola que ilustra a dificuldade em


que nos encontramos que nos mostra, também, o caminho que nos
permitirá toureá-la: certos cientistas, empenhados na vulgarização da
ciência, disseram-nos que o chão sobre o qual nos encontramos não é
sólido, tal como o senso comum o considera, dado que se descobriu
que a madeira consiste de partículas tão escassamente distribuídas no
espaço que este poderia ser considerado vazio. Isso pode desorientar-
nos, visto que, de certo modo, sabemos com toda a certeza que o chão
é sólido, ou que, se não é sólido, isso pode dever-se ao fato de a
madeira estar apodrecida, mas não ao fato de ela ser composta por
elétrons. Afirmar, de acordo com esse último ponto de vista, que o
chão não é sólido é usar corretamente a linguagem. Mesmo que as
partículas fossem tão grandes como o grão de areia, e estivessem tão
próximas umas das outras como acontece num monte de areia, o chão
não seria sólido se fosse composto por elas no sentido em que o monte
de areia é composto por grãos de areia. A nossa perplexidade baseou-
se numa má compreensão; a imagem do espaço escassamente
preenchido foi aplicada erradamente. Essa imagem da estrutura da

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matéria tinha a intenção de explicar o propósito fenômeno da solidez


(WITTGENSTEIN, 2008, p.86).

Essa passagem nos ajuda a entender o papel das regras. Como vemos, a palavra
‘sólido’ foi atribuída a dois contextos diferentes: ao jogo de linguagem científico e ao
jogo de linguagem não-científico, mas, e aqui está o problema, com apenas um sentido,
aquele referente ao jogo de linguagem científico. As regras que revestem a palavra
‘sólido’ não são as mesmas nos dois jogos de linguagem, sendo assim, a tarefa do
filósofo é dissolver confusões semelhantes a essa, e, para isso, é primordial elucidar as
regras familiares a cada jogo (Cf. WITTGENSTEIN, 2008, p. 60). Na concepção
mentalista da linguagem, era impossível saber quais eram as regras, porque elas eram
consideradas privadas, ou seja, não havia critérios de correção linguística, uma vez que
também não havia possibilidade de estabelecer o ‘certo’ e o ‘errado’. Com outro olhar,
essa passagem também nos ajuda a entender outro aspecto da regra. Para Wittgenstein, a
linguagem não é utilizada de acordo com regras rigorosas, porque ela também não nos
foi ensinada por meio de regras rigorosas (Cf. WITTGENSTEIN, 2008, p.57). Não
existe, nesse sentido, uma regra estanque para a palavra ‘sólido’, que esteja fora do jogo
de linguagem em que ela está inserida. Em outros termos, as regras não afetam
diretamente as palavras, elas norteiam os jogos de linguagem que, por sua vez, atuam
com as palavras; esquematicamente, temos o seguinte:
REGRAS → JOGOS DE LINGUAGEM → PALAVRAS / AÇÕES.
A correção ‘gramatical’ consiste numa espécie de terapia (Cf. IF § 133) para
afastar as confusões provocadas pelo uso inadequado de uma determinada palavra.
Afinal, não podemos serrar o galho sobre o qual estamos sentados (Cf. IF § 55). Cortar
o galho aqui é semelhante à rejeição das regras ‘gramaticais’ que dão significado ao uso
de uma palavra. Quando isso ocorre, perde-se o fundamento do discurso significativo, e,
ademais, passa-se a procurar um fundamento que sustente o discurso agora expresso.

3. Compreensão

Para seguir uma regra é preciso, obviamente, compreendê-la (Cf.


WITTGENSTEIN, 2008, p.93). A questão que pode surgir, então, é: com base em que
podemos dizer que alguém compreende a regra? Na concepção mentalista da linguagem
a compreensão de uma palavra era considerada um processo misterioso e estranho, visto
a dificuldade para entender o que de fato o sujeito queria dizer com as suas palavras (Cf.
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IF § 195). Como as regras e o significado das palavras remetiam a processos mentais,


então, a compreensão obedecia a critérios privados e internos, cujo acesso era limitado e
permitido apenas ao sujeito.
No entanto, segundo Wittgenstein, para a correta compreensão das regras
linguísticas, é conveniente aceitar que os critérios para isso sejam públicos e externos.
Retornemos às Investigações. No § 143 temos a imagem de um determinado
jogo de linguagem. Nele um professor ensina um aluno a escrever a série dos números
cardinais (1, 2, 3, 4, 5, 6,...). Depois, o professor pede para o aluno escrever a série
sozinho, sem a sua ajuda. Quando o aluno termina a tarefa, o professor se aproxima para
a correção e vê que alguma coisa está errada e, então, percebe que o aluno não
compreendeu a regra, pois não a praticou conforme lhe tinha ensinado. Feito isso o
professor diz: “Veja o que você está fazendo”, e o aluno, possivelmente, dirá: “Sim!
Não está correto? Eu pensei que deveria fazer isso”. Wittgenstein destacou a palavra
pensei, proferida pelo aluno ao ser questionado pelo professor, e, desse modo, ele
parece sugerir que o erro do aluno foi justamente pensar e, com isso, esqueceu-se de
olhar para como a regra, ensinada pelo professor, é utilizada. Nesse sentido, por isso,
conclui o filósofo:

Esse caso seria semelhante ao caso de uma pessoa que, por natureza,
reagisse a um gesto de apontar com a mão, olhando, na direção que
vai da ponta do dedo para o pulso ao invés de olhar na direção da
ponta do dedo para fora (IF § 185).

A compreensão não é uma teoria ou a explicação de um processo mental ou de


um mecanismo interno, mas, ao contrário, é uma prática. Imaginemos a seguinte
situação: é ensinado a um indivíduo o processo de construção de uma casa. Com a
aprendizagem, ele passa a saber as etapas básicas para a construção de qualquer
residência: a fundação, o alicerce, o levantamento, a cobertura, o acabamento etc. Feito
isso, tal indivíduo é submetido a um teste prático, em que se verificará a sua
compreensão, se ele aprendeu e sabe de fato construir uma casa. É nesse momento que
veremos se ele domina a técnica ensinada. Podemos resumir isso na seguinte fórmula: A
segue uma regra r, se e somente se:

a) A compreende r;
b) r prescreve x; e
c) A faz x;

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Ou seja, esse é o critério para verificar a compreensão ou não da regra. Vale


salientar que a) A compreende r e c) A faz x não constituem etapas diferentes em que a
primeira é a causa da segunda ou que existe uma sucessão entre a segunda e a primeira
etapa. Para Wittgenstein, não há essa determinação causal. Compreender x e fazer x é
apenas uma e a mesma etapa. A respeito disso, temos:

Neste ponto, gostaria de dizer, primeiramente: sua ideia foi que o ter a
ordem em mente já fez, a seu modo, todas as passagens: no ter-em-
mente, seu espírito voa, por assim dizer, à frente, e faz todas as
passagens antes de você chegar com seu corpo a esta ou àquela
passagem. Você estava, portanto, inclinado a expressões como: ‘as
passagens já estão propriamente feitas; mesmo antes de eu fazê-las
por escrito, verbalmente ou em pensamento.’ Era como se fossem pré-
determinadas, antecipadas, de uma forma singular, como só o ter-em-
mente pode antecipar a realidade (IF § 188).

Com esse exemplo, queremos mostrar a correta aplicação linguística da palavra


compreensão. Essa palavra não está associada com o ‘ter em mente’, e sim com a
capacidade para aplicarmos corretamente uma palavra. Ou seja, compreender uma regra
linguística remete a sua correta aplicação prática, pois o critério para a verificação da
compreensão de uma regra é a sua aplicação. Como temos no § 146, das Investigações,
“a aplicação permanece um critério da compreensão”. A relação da compreensão com
qualquer processo mental é interditado por Wittgenstein, pois eles não são nem
necessários, nem suficientes para explicar a compreensão.
Mais uma vez, retomemos as Investigações. No § 150 Wittgenstein afirma que:
“é evidente que a gramática da palavra ‘saber’ goza de estrito parentesco com a
gramática das palavras ‘poder’, ‘ser capaz’. Mas, também com a gramática da palavra
‘compreender’”, ao passo que no § 187, Wittgenstein afirma que não podemos nos
deixar enganar pela gramática das palavras ‘ter em mente’ e ‘saber’, pois elas não são
correlatas. Nesse sentido, dizer “agora sei”, “agora sou capaz” e “agora compreendo”
(IF § 151) é expressar um saber e não algo que temos em mente. No §190 é posto que
“ter em mente” uma fórmula do tipo x=y² significa apenas que usamos essa fórmula
constantemente porque fomos educados e treinados desde muito cedo para usá-la. “Qual
o critério para o modo como se tem a fórmula em mente? Talvez o modo como a
usamos constantemente, o modo como nos foi ensinado a usá-la” (IF § 190). Portanto, a
compreensão de uma regra linguística e a sua correta aplicação obedecem a critérios
públicos e externos que podem ser aprendidos e, por conseguinte, praticados. Nessa
mesma linha de argumentação, temos:
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A questão é que, quando dizemos “agora sei continuar”, temos a tendência a dar
explicações em termos de vivências espirituais, mas a compreensão expressada na frase
“agora sei continuar” não é uma descrição de um estado anímico, e sim um
compromisso com o futuro: a compreensão será comprovada na realização correta do
exercício ou do jogo em questão. Eu posso ter a impressão de ter compreendido a
sequência de números, dou um sorriso, estalo os dedos e, quando vou continuar... faço
tudo errado. Simplesmente entendi errado e a vivência de compreensão não serviu de
nada, girou no vazio (MARTINEZ, 2010, p.80).
Na concepção mentalista da linguagem, o critério de compreensão permanecia
obscuro, uma vez que não era possível verificar publicamente as ideias que
representavam o significado das palavras proferidas pelo sujeito. No caso da concepção
da linguagem como uso as regras, como vimos anteriormente, que dão significado às
palavras são externas e acessíveis a todos. Por isso, a compreensão de uma palavra é
vista no modo como o sujeito a utiliza. Para saber se um indivíduo compreendeu as
regras linguísticas da palavra ‘vermelho’, basta ver como ele a usa. Por exemplo, se ele
apontar para uma ‘toalha azul’ e disser ‘vermelho’, então, veremos que ele não
compreendeu as regras linguísticas dessa palavra ou talvez ele tenha uma doença ocular.
Ao corrigi-lo, ele poderá justificar dessa maneira: é que a ideia de ‘vermelho’ que tenho
em mente parece com a cor (azul) da ‘toalha’. Porém, podemos adverti-lo com a
seguinte resposta: acontece que esse não é o critério de compreensão da palavra
‘vermelho’, não é assim que a usamos, e, além disso, não nos interessa a ideia de
‘vermelho' presente na sua mente, pois ela não representa o significado da palavra
‘vermelho’.
A compreensão, portanto, das regras de uma determinada palavra sempre nos
deve remeter ao uso que dela fazemos em um determinado contexto. Como dissemos,
‘gramática’, regras, jogos de linguagem e significado são interdependentes.
Compreender uma palavra corresponde necessariamente a sua correta aplicação em seu
contexto de utilização. É no contexto que a palavra tem vida, nele ela é utilizada, ela
tem uma função, ela corresponde a uma prática.

4. Interpretação

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No § 198, das Investigações, pergunta o interlocutor de Wittgenstein: “mas


como pode uma regra me ensinar o que devo fazer nessa posição?”. Na concepção
mentalista da linguagem, como as regras linguísticas não eram instituídas, a sua
aplicação sempre dependia de uma interpretação. É como se existisse uma espécie de
ponte entre a regra linguística e a sua aplicação. Porém, pensar desse modo trazia
complicações. Pois se entre a regra e a sua aplicação sempre fosse preciso uma
interpretação, é lógico pensar que toda interpretação, por sua vez, dependeria de outra
interpretação e, assim, de modo sucessivo e infinito (Cf. IF § 201). Devido a esse
inconveniente, argumenta Wittgenstein: “toda interpretação, juntamente com o que é
interpretado, está suspensa no ar; não pode servi-lhe de suporte. As interpretações por si
só não determinam o significado” (IF § 198). Ou seja, entre a regra linguística e sua
correta aplicação, não podemos pressupor uma ponte construída por uma interpretação.
Caso isso fosse aceito, as palavras ‘correto’ e ‘incorreto’ perderiam o sentido, porque a
aplicação da regra estaria sujeita a qualquer tipo de interpretação.
No entanto, seguir uma regra é um costume, uma prática, um hábito: o que
denominamos “seguir uma regra” é algo que apenas um homem poderia fazer apenas
uma vez na vida? Trata-se, naturalmente, de uma observação para a gramática da
expressão “seguir a regra”.
Não é possível um único homem ter seguido uma regra uma única vez. Não é
possível uma única comunicação ter sido feita, uma única ordem ter sido dada ou
entendida uma única vez, etc. Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma
ordem, jogar uma partida de xadrez, são hábitos (usos, instituições) (IF § 199).
Wittgenstein refuta que a interpretação ou a intuição seja o critério que faz a
relação entre a regra linguística e a sua correta aplicação. As regras linguísticas são
semelhantes a uma “placa de orientação” (IF § 198). Quando estamos em viagem, por

exemplo, e nos deparamos com a seguinte placa: , que neste caso significa
proibida a ultrapassagem: será necessária, nessa ocasião, para a correta aplicação dessa
regra de trânsito, uma interpretação? Obviamente que não, para seguir corretamente
essa placa de orientação, basta observar as aulas práticas que obrigatoriamente
participa-se para aquisição da habilitação de motorista, onde se ensina a aplicar as
regras de trânsito, ou observar como outros indivíduos agem diante da placa. No que se
refere a isso, afirma Wittgenstein:

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[...] aprende-se o jogo assistindo como os outros jogam. Mas dizemos


que é jogado de acordo com tais regras, porque um observador pode
ler estas regras a partir da prática do jogo – é como uma lei natural,
em cuja regência as jogadas se desenrolam. Mas, como é que o
observador distingue, neste caso, um erro dos outros jogadores de uma
jogada correta? Para isso há sinais característicos no comportamento
do jogador. Pense no comportamento característico daquele que
corrige um lapsus linguae. Seria possível reconhecer que alguém faça
isto, mesmo que não entendamos a sua língua (IF § 54).

Seguir a placa acima não é uma prática isolada, privada e que se faz uma vez ou
outra. Pelo contrário, seguir as normas de trânsito é uma prática comum, pública e que
fazemos constantemente, pois aprendemos assim. Conforme Wittgenstein, “[...] alguém
só se orienta por uma placa de orientação na medida em que houver um uso contínuo,
um costume” (IF § 198).
A regularidade das ações humanas é preponderante para a existência de regras.
Se não houvesse constância em tais ações, provavelmente, não existiria a palavra regra,
ou seja, ela está correlacionada com as ações. A própria língua pertencente a um povo é
o resultado de traços culturais, geográficos e históricos. Sendo assim, as regras
linguísticas são expressões de certa regularidade nas ações humanas. Um indivíduo não
tem total liberdade para construir palavras para significar ideias a seu bel-prazer, e nem
mesmo aplicá-las conforme o seu agrado, pois as regras linguísticas têm relação mútua
com as ações humanas e é nelas que se encontra a sua correta aplicação. Wittgenstein
afirma que “a palavra ‘concordância’ e a palavra ‘regra’ são parentes, são primas. Se
ensino a alguém o uso de uma, com isso ele aprende também o uso da outra” (IF § 224),
e ainda “o emprego da palavra ‘regra’ está entretecido com o emprego da palavra
‘igual’. (Tal como o emprego de ‘proposição’ com o emprego de ‘verdadeiro’)” (IF §
225).
O problema da interpretação de regras linguísticas consiste em pressupor que
exista uma terceira coisa que fundamente a conexão entre a regra e a sua aplicação. Na
concepção mentalista da linguagem essa terceira coisa chama-se imagem mental ou
ideia. Por meio dela, a regra linguística recebia a sua correta aplicação. Nesse sentido,
por exemplo, é como se a palavra ‘vermelho’ tivesse várias interpretações e, por
conseguinte, aplicações diferentes, todas referentes à imagem mental a que corresponde.
No entanto, para o segundo Wittgenstein, a imagem mental não é o critério para
a correta aplicação e utilização da palavra ‘vermelho’. Quando um adulto ensina uma
criança a utilizar a palavra ‘vermelho’, certamente, ele não perguntará para a criança

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qual é a imagem mental referente. Ou seja, não há uma linguagem interna que
represente o significado da linguagem externa. Na maneira em que usamos a palavra
vermelho estão dadas as regras e a correta aplicação.
No § 241, das Investigações, Wittgenstein mostra que a linguagem humana está
enraizada em nossa forma de vida, em nossas práticas cotidianas. Há uma conexão entre
as regras linguísticas e as ações humanas que estabelecem a correta aplicação:
Por isso, “seguir uma regra” é uma prática. E acreditar seguir a regra não é:
seguir uma regra. E por isso não se pode seguir a regra ‘privatium’, porque, do
contrário, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra.
Do modo como as coisas estão, posso p.ex., inventar um jogo jamais jogado por
alguém - mas seria possível também o seguinte: A humanidade nunca jogou nenhum
jogo; certa ocasião, porém, alguém inventou um jogo, - que todavia jamais foi jogado?
(IF §§ 202-204).

Considerações finais

Diante do apresentado neste artigo chegamos a algumas conclusões. Em


primeiro lugar, tendo como exemplo o fragmento lockeano, vimos que na concepção
mentalista da linguagem há uma distinção entre linguagem interna e externa, sendo que,
a segunda é dependente da primeira, pois o significado das palavras é determinado por
uma linguagem interna do sujeito. Diante disso, a conseqüência principal proporcionada
por esta concepção atinge o conceito chave da semântica: o significado. Em suma, nesta
concepção o conceito de significado traz consigo a carga de uma dependência idealista
do sujeito, pois, como vimos, na concepção mentalista, o significado das palavras é
determinado pelas ideias do sujeito.
Em segundo lugar, a concepção da linguagem como uso, apresentada pelo
filósofo austríaco nas Investigações, opõe-se a concepção da linguagem mentalista. Para
Wittgenstein, não existe a distinção entre linguagem interna e externa e, como
conseqüência, o conceito de significado está entrelaçado com o jogo de linguagem, com
a gramática. Por meio dessa guinada na reflexão em torno do conceito de significado, o
objetivo do filósofo vienense, por assim dizer, é esvaziar do conceito de significado os
aspectos que o mantinha intimamente dependente do sujeito. No lugar ocupado pelo

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sujeito, um conjunto de conceitos interelacionados é introduzido, dentre os quais os


principais são: jogos de linguagem, gramática, etc.
O motivo principal para a realização dessa guinada na reflexão, como aponta o
filósofo austríaco no § 504 das Investigações, está na ausência de critérios para
identificar os estados mentais, de acordo com a concepção mentalista. Em outros
termos, se não há critérios, não há regras e, sendo assim, não há normatividade
lingüística. No entanto, de acordo com Wittgenstein, a linguagem é constituída por meio
de regras e critérios. Para Wittgenstein, os critérios só podem ser públicos e externos,
como apontado no § 580 das Investigações.

Referências

ARISTÓTELES. Organon: Da interpretação. Tradução de Edson Beni. Bauru, SP:


Edipro, 2005.
AUROUX, S. Filosofia da linguagem. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo:
Parábola, 2009.
GLOCK, H. J. Dicionário Wittgenstein. Tradução Helena Martins. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.
LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural,
1978. (Coleção Os Pensadores).
MARTÍNEZ, H. L. Linguagem e práxis: uma introdução à leitura do “segundo”
Wittgenstein. Cascavel: EDUNIOESTE, 2010.
SCHMITZ, F. Wittgenstein. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
WITTGENSTEIN. L. Investigações filosóficas. Tradução Marcos G. Montagnoli. 6 ed.
Petrópolis: Vozes, 2009.
_____. O livro azul. Lisboa: Edições 70, 2008.
_____. O livro castanho. Lisboa: Edições 70, 1992.

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