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LINGÜÍSTICA Novos estudos reacendem polêmica entre linguagem e pensamento

O retorno da hipótese
de Sapir-Whorf

Konrad Szczesniak
Faculdade da Língua Inglesa,
Universidade da Silésia (Sosnowiec, Polônia)

A tualmente, está na moda dizer que as pessoas


pensam em sua língua materna. Quer por pa-
triotismo, quer por desinformação, muitos dizem que
ser brasileiro é, entre outras coisas, ‘pensar em por-
tuguês’, ou que a comunicação internacional é hoje
praticamente impossível porque os norte-america-
nos ‘pensam em inglês’, uma língua fria, ou muito
menos acolhedora que o português. Tais convicções
são tão comuns e parecem tão evidentes que poucos
Edward Sapir
questionam sua legitimidade. e Benjamin Lee Whorf
A questão da relação entre a fala e o pensamento
já era discutida pelos gregos antigos e pelos filósofos
alemães do século 19. Hoje, porém, tal questão é
associada normalmente ao trabalho de dois lingüis- do pelo presente e em direção ao futuro. Uma conse-
tas e antropólogos norte-americanos, Edward Sapir qüência lógica dessa descoberta seria admitir que
(1884-1939) e Benjamin Lee Whorf (1897-1941), as palavras provocam e moldam nosso pensamento.
que formalizaram as noções de que o pensamento Em seu lendário livro Linguagem: uma introdu-
seria dependente da linguagem. ção ao estudo da fala, publicado em 1920 (disponí-
Ao estudar as línguas indígenas norte-ameri- vel na internet em www.bartleby.com/186/), Sapir
canas, Sapir e Whorf constataram que elas eram argumentou que, mesmo em momentos de silêncio,
muito estranhas para um falante de inglês. Uma sem serem pronunciadas, as palavras são usadas
das características mais intri- durante o processo de pensamento. Segundo ele, as
gantes, na qual eles concentra- pessoas, ao pensar, “deslizam para um fluxo silen-
ram sua atenção, era a ausência cioso de palavras”, que servem como “cápsulas de
de tempo na língua Hopi – ou pensamento que contêm milhares de experiências
seja, essa língua não dispunha distintas”. Essas idéias foram desenvolvidas e ra-
de palavras ou estruturas gra- dicalizadas mais tarde por Whorf e são hoje conhe-
maticais que exprimissem a cidas como a ‘hipótese de Sapir-Whorf’. Em sua for-
idéia de passagem do tempo. ma mais dura, essa hipótese diz que sem as palavras
Sugeriram então que isso sig- e sem os conceitos que elas trazem, sequer seria
nificava que os falantes de possível pensar. Linguagem:
Hopi não eram capazes de Existe um exemplo ideal para entender como, de uma introdução
pensar no tempo e que não acordo com Sapir e Whorf, a linguagem gera o pen- ao estudo
da fala, de
viam o tempo como uma samento. Portugueses e brasileiros orgulham-se do
Edward Sapir,
progressão contínua: a fato de sua língua conter uma palavra especial que publicado
partir do passado, passan- define a alma lusa: ‘saudade’. Argumentam que essa  em 1920

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palavra não existe em qual- consistências nessa hipóte-
quer outra língua, o que deve se, tanto em sua forma dura
significar que só os lusófonos (linguagem produz pensa-
são capazes de sentir, no fun- mento), quanto na mais mo-
do do coração, essa melanco- derada (a língua só molda e
lia angustiante. organiza os pensamentos,
O argumento é errado, por sem os originar). Foi compro-
duas razões. Primeiro, outras vado, por exemplo, que cer-
línguas também têm um subs- tas comunidades, embora
tantivo que corresponde a não disponham em suas lín-
‘saudade’ (em polonês, por guas de vocábulos correspon-
exemplo, a palavra tesknota dentes a algumas cores, não
também – posso garantir – ex- têm problemas para ver tais
prime estados da mais since- cores e sabem muito bem
ra tristeza causada por uma distingui-las de outras. Do
ausência). Segundo, mesmo mesmo modo, as pessoas não
que ‘saudade’ de fato só exis- precisam do vocabulário
tisse em português, custaria especializado de um pintor
Desenhos feitos acreditar que só 0,03% da po- para perceber diferenças de
por artistas
pulação mundial fosse capaz cor quando lhes são mostra-
nativos Hopi,
cuja língua, de sentir a falta de alguém ou dos o amarantino, o âmbar e
segundo Sapir de uma terra, e que o resto do o vermelho.
e Whorf, não mundo fosse tão desumana- No livro Termos de cores
incluiria a noção mente incapaz desse sentimento. Ao contrário, uma básicas, publicado em 1969, Brent Berlin e Paul
de tempo.
das hipóteses mais básicas da psicologia moderna diz Kay, da Universidade da Califórnia, afirmam que,
Essa hipótese
foi derrubada que as emoções existem independentemente das pa- embora as línguas sejam bem diferentes quanto ao
em 1983 lavras e que as palavras não passam de meros rótulos número de cores para as quais têm um nome especí-
por Malotki, aplicados a emoções e conceitos. fico (uma palavra), a maioria delas dispõe em seus
que listou várias O lingüista e psicólogo Steven Pinker, da Univer- léxicos de vocábulos para algumas cores básicas,
expressões
sidade de Harvard, defende que há em todos nós como branco, preto, vermelho, verde, amarelo e azul.
Hopi para
descrever emoções que não têm nomes em muitas línguas. Por outro lado, existem línguas sem a palavra ‘bege’,
a passagem Como exemplo, Pinker aponta um sentimento bas- mas cada indivíduo da espécie Homo sapiens, inde-
do tempo tante conhecido: a satisfação que sentimos ao ver pendentemente da língua que fala, percebe o bege
a desgraça ou o sofrimento de uma pessoa abomi- como menos básico que o preto ou o vermelho.
nável. Esse tipo de satisfação não tem nome em in- Outro problema da hipótese de Sapir-Whorf é que
glês, ou em português, e dificilmente os falantes ela implicaria acreditar que os animais são ‘autô-
dessas línguas podem defini-la sem usar um grupo matos’ não-pensantes – afinal, não falam. Como
de palavras. Até onde sabemos, apenas uma língua se fosse a última pá de terra no túmulo, o lingüista
dispõe de um vocábulo adequado: a palavra é alemão Ekkehart Malotki, da Universidade de Müns-
Schadenfreude e só os alemães sentiram a necessi- ter, demonstrou que não é verdadeira a informação,
dade de inventá-la. No entanto, isso não de Whorf, de que a língua dos Hopi não tem meios
impede que todos os seres huma- para descrever a passagem do tempo. Em 1983,
nos – e não só os alemães – este- Malotki elaborou uma enorme lista de expressões
Uma das hipóteses jam familiarizados com a Hopi que servem precisamente para descrever tem-
delícia de assistir ao infor- po. E os Hopi, claro, como o resto do mundo, tam-
mais básicas da psicologia túnio de alguém que o bém pensam no tempo.
moderna diz que as emoções mereceu. Tornou-se claro, portanto, que a versão ‘dura’ da
Assim, a hipótese de hipótese de Sapir-Whorf devia estar errada. Restava
existem independentemente Sapir-Whorf foi perden- a possibilidade de que uma versão mais moderada
das palavras e que as palavras do força. Ao longo dos ainda fosse convincente: a linguagem pode não ser
anos, vários estudos em- fonte do pensamento, ou pode não moldar pensa-
não passam de meros rótulos píricos e reflexões teóri- mentos nascidos independentemente das palavras,
aplicados a emoções cas, iniciadas por Eric H. mas talvez só tenha esse efeito em ‘alguns’ tipos de
Lenneberg (1921-1975) e pensamento. Para verificar essa possibilidade, um
e conceitos Roger W. Brown (1925-1997), grupo de lingüistas – Peter Gordon, da Universidade
apontavam cada vez mais in- de Columbia, junto com o casal Daniel e Keren Eve-

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rett – estudou a tribo amazônica Pirahã, cuja língua rias), e são obcecadas com o poder dos números (por
só tem três maneiras de exprimir numerais. Além exemplo, ‘sexta-feira, 13’), mas para uma tribo que
das palavras hói (‘um’), hoí (‘dois’) e baagi ou aibai nunca se importou com quantidades isso deve ser
(que correspondem a ‘muito; mais que dois’), os uma novidade estranha. Assim, é bem provável que
Pirahã não têm outros numerais. Para Gordon, os a falta dos numerais na língua reflita apenas a au-
Pirahã e sua língua eram uma oportunidade exce- sência de matemática na vida dos Pirahã, e não seja
lente para averiguar a hipótese de Sapir-Whorf, bas- a causa de bloqueios mentais diante de números.
tando verificar se a relativa escassez léxico-numéri- Apesar do entusiasmo de outros, o próprio Gordon
ca dessa língua estava ou não relacionada a uma per- admite que suas observações não servem para dar
cepção também falha de quantidades maiores que apoio absoluto a Sapir e Whorf. Se elas comprovam
dois entre os seus falantes. a influência da língua, é só em relação a umas pou-
No artigo ‘Numerical cognition without words: cas áreas limitadas de pensamento. Por mais inte-
evidence from Amazonia’ (‘Cognição numérica sem ressante que esse assunto seja, é prudente encará-lo
palavras: evidência da Amazônia’), publicado em com cautela, pois parece que ainda teremos que es-
agosto de 2004 na revista Science, Gordon descreve perar muito tempo para conhecer toda a verdade
como, durante suas três estadias na selva amazôni- sobre a questão. Na psicologia, por exemplo, inúme-
ca, observava os índios nas tarefas que envolviam ras teorias foram tidas como sen-
quantidades maiores que três, ouvindo o que di- sacionais e depois descarta-
ziam e tentando ainda verificar se eles por acaso não das com desilusão. A pró-
usavam outros meios de exprimir números, como, pria hipótese de Sapir- Mesmo os mais
por exemplo, algum tipo de gesticulação. Tendo ex- Whorf também já viveu ásperos críticos de Sapir
cluído essa possibilidade, após várias observações, seus melhores dias,
Gordon constatou que os Pirahã realmente não pa- entrando até, graças e Whorf, como Pinker, deixam
reciam ver diferença alguma entre, por exemplo, aos eloqüentes tex- uma margem de dúvida, dizendo,
oito, nove ou 10 pedaços de pau, e não conseguiam tos de seus autores,
reconstituir, de memória, a ordem em que viram no mainstream cul- por exemplo, que nossa língua
essas quantidades. tural e despertando o materna pode de fato dirigir
É importante ressaltar que a metodologia em- interesse de não-espe-
pregada pelo lingüista e o grande número de testes cialistas, só para depois nosso pensamento, mas só
feitos parecem impecáveis, garantindo que os resul- ser, alternadamente, ani- no exato momento em
tados não foram distorcidos, e claro, que os Pirahã quilada e ressuscitada com
não se divertiam à custa dos pesquisadores. Por in- novas provas. que se fala
crível que pareça, os integrantes da tribo realmente O que vai acontecer com essa
não sabem o que fazer com numerais, considerando hipótese? Realmente ninguém sabe. Mes-
objetos em grandes quantidades como uma espécie mo os mais ásperos críticos de Sapir e Whorf, como
de mundo desconhecido. As descobertas de Gordon Pinker, deixam uma margem de dúvida, dizendo,
e dos Everett excitaram o mundo a tal ponto que os por exemplo, que nossa língua materna pode de fato
maiores jornais e revistas chegaram a dizer solene- dirigir nosso pensamento, mas só no exato momento
mente que as idéias de Sapir e Whorf finalmente se em que se fala. Alternativas desse tipo surgem em
confirmaram. cada novo texto sobre a questão. O problema com tal
Entretanto, muitos lingüistas advertem que as di- hipótese é que, quanto mais se pensa na questão,
ficuldades numéricas dos Pirahã podem ter outras mais possibilidades parecem surgir.
causas não relacionadas com a língua. Inicialmente, Com dados assim tão facilmente disponíveis,
considerou-se a possibilidade de os Pirahã serem como os obtidos com os índios, é possível que sejam
deficientes mentais por casamentos consangüíneos, descobertos outros elos entre a linguagem e o pensa-
mas isso foi descartado, pois eles se mostravam nor- mento. Mas é igualmente possível que nunca saiba-
mais em muitos outros aspectos, como orientação mos se Sapir e Whorf tinham razão. Por enquanto, as
espacial ou táticas de caça. Uma causa muito mais tecnologias de imageamento do cérebro não permi-
plausível para esses problemas numéricos parece tem definir onde acaba o pensamento e onde come-
ser a mera falta de prática. Afinal, é muito natural ça a palavra que o exprime – não podemos facil-
que pessoas que nunca usaram números em sua vida mente separar essas duas coisas observando ima-
fiquem atrapalhadas diante de formidáveis fileiras gens do cérebro na tela de um computador. O certo é
de oito pedaços de pau ou nove nozes, que o pesqui- que, graças ao encanto e à controvérsia da hipótese,
sador branco quer que reconstruam de memória. não faltarão novos experimentos com o intuito de
Tal tarefa pode parecer banal para pessoas que con- resolver o enigma de Sapir e Whorf, o que só vai
tam diariamente altas somas de dinheiro (ou calo- proporcionar novos enigmas. ■

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