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Universidade de Brasília - UnB

Instituto de Ciências Sociais - ICS


Departamento de Sociologia

Disciplina: Arte e Sociedade / Código: 135623


Docente: Eduardo Dimitrov
Aluno: Marcos Vinícius da Silva / Matrícula: 15/0016948

Ensaio: As dores de um sensível


Análise sociológica da produção artística e poética de Augusto dos Anjos

2°/2017
1. Introdução

Pretende-se com este ensaio realizar uma análise sociológica da obra do poeta
paraibano Augusto dos Anjos “ Eu e outras poesias”. Para realizar esta análise
sociológica, se faz necessária uma matriz de análise. Os conceitos utilizados
durante a análise desta obra poética de Augusto dos Anjos são provenientes dos
autores Pierre Bourdieu, Norbert Elias, Baxandal e Ginzburg.
De Pierre Bourdieu, me concentrarei na análise do campo social, ou seja, nas
estruturas de produção poética e sociais do período em que Augusto dos Anjos
viveu, de 1884 a 1914, assim como o seu habitus e suas relações com estas leis
sociais incorporadas. Desta forma, este ensaio possui como objetivo pelos
conceitos de Bourdieu, tentar relacionar e delimitar em sua produção, a relação
poética com as estruturas sociais vigentes neste meio.
De Norbert Elias, trago as ideias de sociogênese e psicogênese da produção
poética de Augusto dos Anjos. Partindo do pressuposto de que não existem
gênios, mas na verdade posições sociais experiência individual em um meio
social, Elias nos diz que tudo é construído, não há talento ou habilidades inatas
no ser humano. Desta forma, existem condicionantes sociais e psicológicas,
raízes da produção artística. Com Augusto dos Anjos não é diferente, tentarei
apontar estas questões.
De Baxandal, tentarei discorrer sobre os problemas observados por Augusto
dos Anjos no mundo material e imaterial, na medida em que a produção artística,
de acordo com Baxandal, seria justamente para exprimir e resolver questões,
problemas que surgem das constrições sociais.
De Ginzburg, exponho suas ideias referentes as formas iconográficas, o
sentido dos símbolos e das imagens descritas de forma poética por Augusto dos
Anjos, em sua produção. Quais os significados atribuídos, e o porquê destas
atribuições e sentidos a suas poesias.
É importante ressaltar que o autor publicou a obra “Eu” em 1912, porém
postumamente, foram adicionadas outras poesias as edições do “Eu” o que
enriquece ainda mais a análise com poemas não selecionados pelo mesmo,
durante a sua breve existência na terra.
2. Campo e habitus de um sensível

Augusto dos Anjos nasceu no dia 20 de abril de 1884, e faleceu em 12 de


novembro de 1914, com apenas 30 anos. Durante sua breve existência terrena,
Augusto morou em cerca de quatro estados brasileiros, com realidades muito
distintas, porém, sua vida foi vivida em um período muito peculiar no Brasil.
Augusto nascera em um contexto brasileiro denominado “Belle Époche”,
período onde as ideias de civilidade, desenvolvimento material, avanço
tecnológico, e mudança artística e cultural no Brasil, espelhado no movimento
europeu, com ênfase na França, atrelando desta forma, as ideias iluministas e
cientificistas mudaram as formas de estruturação da sociedade. Este período no
Brasil, a pesar das inúmeras contradições, na medida em que atinge apenas
uma parcela da população brasileira, atinge Augusto dos Anjos, filho de pai
letrado e da aristocracia rural pernambucana.
É neste contexto que Augusto dos Anjos vai estruturar a sua obra poética. O
parnasianismo, por consequência do contexto histórico, era o método estético
ideal para a produção da poesia, com elementos refinados, métrica perfeita,
assim como as rimas, controlando cada verso e cada palavra, adequando a este
método, uma tentativa de retomada da cultura clássica na França, que acabou
por ser aderido também pelos intelectuais brasileiros, tendo em vista, é claro,
que o centro é o que delimita as produções artísticas de todo o mundo, e o que
vai ser aceito ou não como válido na produção artística global, mesmo nesta
época, com um mundo não globalizado.
É interessante perceber que, apesar de Augusto dos Anjos ser um ferrenho
crítico ao cosmopolitismo e as cosmovisões que estruturavam o Brasil nesta
época que o cercava pelo meio, aderiu sem hesitar as regras do jogo, ou seja,
ao campo literário e poético vigente no período. É fato que Augusto queria ser
reconhecido, e para ter esta produção reconhecida, é necessário se adequar e
seguir as regras do campo vigente.
Assim o sendo, Augusto dos Anjos inserido no seleto grupo de acadêmicos do
século XX no Brasil, não pode deixar de seguir as regras sociais, e
consequentemente adotar um habitus em concordância com as estruturas,
seguindo à risca, a métrica e a rima para estruturar seus poemas, porém
focalizando na realidade material, percebendo o mundo a sua volta assim como
suas formas gerativas, decodificando os piores lados da humanidade e da
sociedade brasileira, aderindo desta forma a illusio. Para evidenciar minha tese,
transcrevo o poema “Solilóquio de um visionário”. Peço que se atenham a
estrutura do poema para observar o campo do período, assim como o hábitus de
Augusto:

“Solilóquio de um visionário
Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!
A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,


Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,


Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!”

É interessante perceber ainda, que assim como diz Bourdieu, é possível


identificar as estruturas sociais com base nos personagens da produção
literária/poética, aqui no caso o próprio eu lírico de Augusto dos Anjos, que está
em uma profunda indagação sobre as ideias metafísicas, e como isto o abala
visceralmente, de acordo com o contexto histórico do mesmo, com as ideias
iluministas e cientificistas, deixando de lado o conforto irracional da religião, o
que é passível de ser observado por toda a sua obra.
Apesar de Augusto manter a estrutura hegemônica do contexto histórico em
sua obra, a crítica literária não recebe bem a sua produção. Considerada
degradante e até mesmo “degenerada” em certo sentido, não obteve muita
atenção tanto da crítica quanto da população, só vindo a ser relevante
postumamente, após a semana de arte moderna de 1922, que deu destaque ao
autor e a sua produção. Nem a escola simbolista, e tão pouco a parnasiana o
acolheu, permanecendo uma figura solitária na produção artística. Ele adere as
regras da estrutura, porém o conteúdo não agradou o gosto do circuito literário
brasileiro no começo, sendo assim incompreendido em vida pelo público.

3. Sociogênese e Psicogênese de um sensível

Como foi inferido anteriormente, Augusto dos Anjos nasceu na Paraíba, filho
de família aristocrata paraibana. Seu pai, homem letrado fez com que o jovem
Augusto, desde a infância tivesse contato com grandes autores, como Herbert
Spencer, e Ernst Haeckel e Arthur Schopenhauer. Como pode-se observar,
Augusto dos Anjos era dotado de muito capital, seja social, econômico ou
cultural, ocupando uma posição social muito privilegiada no fim do século XIX e
início do século XX no Brasil. Em 1903 ingressou na faculdade de Direito de
Recife, conseguindo o título de Bacharel em 1907. Laurino Leão, um professor
filósofo da faculdade de direito influenciou bastante seus alunos, incluindo
Augusto dos Anjos, acerca da corrente do materialismo histórico, o que acarretou
em um impacto profundo na visão de mundo e produção poética do mesmo.
A produção poética de Augusto dos Anjos, tem uma visão tão pessimista, que
sua poética vai se transformando na poética do horror pela vida, o homem que
dolorosamente se depara e reflete sobre toda a dor universal da existência
humana, pois o contexto material e social brasileiro naquela época, era
degradante e horrendo. Se por um lado, nas famílias aristocráticas e nas grandes
cidades estaria em curso o processo de modernização, com as novas
manifestações de tecnologias, por outro, oculto aos olhos de quem não queriam
ver, existia um Brasil violento, antropofágico e destruidor, que arrasava com os
povos indígenas, com a população negra, com os pobres. Mortes precoces,
devido as condições da medicina no contexto da época, onde as várias doenças
se proliferavam e arrasavam com a vida dos menos afortunados, falta de
saneamento básico, explorações de todos os tipos, fome e muita morte animal.
Augusto tira a máscara da falsa alegria carnavalesca brasileira, e via as mazelas
do “circo dos horrores” do Brasil na época. Com o poema “ A um mascarado”, é
possível identificar a visão direcionada para a realidade material do povo
brasileiro, que tem que comer comida azeda, conviver com atrocidades como o
incesto, em que a sua proibição é uma das primeiras regras sociais:

“A um mascarado

Rasga essa máscara ótima de seda


E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos...
É noite, e, à noite, a escândalos e incestos
É natural que o instinto humano aceda!

Sem que te arranquem da garganta queda


A interjeição danada dos protestos,
Hás de engolir, igual a um porco, os restos
Duma comida horrivelmente azeda!

A sucessão de hebdômadas medonhas


Reduzirá os mundos que tu sonhas
Ao microcosmos do ovo primitivo...

E tu mesmo, após a árdua e atra refrega,


Terás somente uma vontade cega
E uma tendência obscura de ser vivo!”
Já no poema “Ricordanza Della Mia Gioventú, fica evidente o seu olhar
materialista em relação a sociedade paraibana do fim do século XIX, e que
permeia toda a sua poética, até mesmo para com sua própria história, sua
própria infância, em que observa a injustiça para com sua ama-de-leite, que
roubava moedas dadas a um bebê burguês, e era repreendida por isto, sendo
que lhe roubavam um bem muito mais precioso, o leite materno, o alimento de
sua própria filha, interiorizando as dores, sem deixar de estar sensível a dor e o
sofrimento dos que o cercavam. Segue o poema para melhor visualização:

“Ricordanza della mia gioventú

A minha ama-de-leite Guilhermina


Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hipócrita, afetava


Susceptibilidades de menina:
“— Não, não fora ela!” — E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora, em minha cama,


Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha...

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,


Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!”

Alguns acontecimentos marcantes ocorreram na vida de Augusto dos Anjos, e


que contribuíram para sua macabra formação poética. A dor é um elemento
chave em sua composição, e também em sua vida. Ainda jovem, engravidou
uma moça do engenho. Seus pais, “carrascos de sangue frio” descobrem e
manda dar uma surra na pobre moça. Ela vem a falecer, e o poema “A árvore da
serra” teria sido dedicado a ela, de acordo com poetas no documentário “Eu,
estranho personagem” realizado pela TV senado. É muito interessante observar
o impacto da “derrubada da árvore” que fora preenchida com sua vida, com um
feto fecundo. Augusto indica ao fim do poema que ficou profundamente e para
sempre abalado com este acontecimento, além de evidenciar também a figura
de autoridade forte do pai perante Augusto. Transcrevo o poema para melhor
ilustração acerca da poiésis da dor, de Augusto dos Anjos:

“A árvore da serra
— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!


Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh’alma...

— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:


“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,


O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!”

Um outro episódio trágico em sua existência que reverberou em uma produção


poética e certamente na sua vida como um todo, foi a morte de seu filho, em
formação, com apenas 7 meses, nascido prematuro e morto, disponível no livro
“Eu”. O poema estruturado em forma de soneto, de acordo com as regras
parnasianas, conta com uma dedicatória ao seu filho nascido morto. É possível
identificar o vocabulário com rico conhecimento em biologia e ciência no soneto,
assim como a atmosfera mórbida e fatalista. Transcrevo aqui este forte poema:

“Soneto

Ao meu primeiro filho nascido


morto com 7 meses incompletos
2 fevereiro 1911.

Agregado infeliz de sangue e cal,


Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,

Que poder embriológico fatal


Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância,


Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?...

Ah! Possas tu dormir feto esquecido,


Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!”

Augusto tem a ideia de ir para o sudeste, pois para ele o “Eu” poderia ter uma
melhor recepção no sudeste do Brasil. Parte então para o Rio de Janeiro, sendo
sua segunda grande mudança na expectativa de conseguir sucesso como poeta,
e abandona o cargo de professor substituto que ocupava em Recife para isto,
fazendo assim um sacrifício em busca de seu sonho artístico. Augusto vai pedir
dispensa e deseja também conseguir algum dinheiro para a sua viagem, porém
o governador se nega a pagar as quantias que lhe cabiam por seus serviços
como professor. É com esse sentimento de ingratidão e revolta, que Augusto
escreve um de seus poemas mais aclamados postumamente, “Versos íntimos”:

“Versos íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável


Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão -- esta pantera --
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!


O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente invevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!


o beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,


Escarra nessa boca que te beija!”

No Rio de Janeiro, tem que lecionar em vários colégios para conseguir


sobreviver com sua esposa, conservando seus sentimentos negativos e
obscuros perante a sociedade e a índole humana. Lança seu livro durante sua
estadia no Rio, em 1912 . Porém, não se adapta ao Rio de Janeiro, e continuou
elaborando dentro de si estes discursos mórbidos que continuariam a serem
expostos em sua poética.

Muda-se então para Minas Gerais, onde lecionava aulas particulares de vários
idiomas, inclusive o grego e o latim. Após um tempo, consegue uma cadeira de
diretor de um colégio Leopoldino, que atendia alunos filhos dos barões do café.
Após alguns meses, Augusto vai a um enterro, pega uma chuva e contrai
pneumonia, sendo os esforços da medicina da época, não suficientes para curá-
lo. Morre em 12 de novembro de 1914, aos 30, precoce e tragicamente.

4. A matéria pútrida e o espírito livre

Ao longo deste ensaio, evidencia-se a dialética materialista e do horror na


produção artística de Augusto dos Anjos. Cabe agora, tentar explicar o problema
que Augusto observa no mundo, com tanta ênfase na dor humana, e a sua
solução transcendental que é discorrida ao longo de seus poemas.

Augusto é considerado por muitos um mártir das circunstâncias. Demonstra


além do lado mais vil e podre do ser humano, um medo cósmico, e toda a
insignificância humana. A problemática que Augusto dos Anjos tenta resolver
com a sua obra artística, é a da materialidade do corpo humano. Para Augusto,
a vida humana não valia a pena, por ser um monte de células apodrecendo em
direção a um nada. E vendo toda a miséria e dor humana ao seu redor, Augusto
tinha o desejo de refazer a humanidade. Para o mesmo, a vida só seria aceitável,
se se passasse inteiramente no plano do espírito, só a alma, e não o corpo. A
vida corpórea apavora, amargura e horroriza Augusto, e ao meu ver além de seu
sofrimento em vida, também a partir de problemas com sua própria imagem, seu
próprio corpo e autoestima, e de autoconfiança, como pode ser observado no
poema “As cismas do destino”, nos primeiros versos, da primeira estrofe: “Recife,
Ponte Buarque de Macedo. /Eu, indo em direção a casa do Agra, /Assombrado
com a minha sombra magra, /Pensava no destino e tinha medo!”. Estes versos
indicam que Augusto não via bem a seu corpo franzino, e se sentia fraco e
amedrontado no mundo, acreditando que o destino o punia, assim como a
negação da animalidade, dos instintos humanos, e os corpos que lhe “irritavam”
os globos oculares, uma espécie de escárnio com o lado “animal” da existência
humana e seus instintos, como pode ser visto em outros versos deste mesmo
poema, mais a diante:

“Lembro-me bem. A ponte era comprida,


E a minha sombra enorme enchia a ponte.
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!
Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.
E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.
Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Bilhões de centrossomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.
Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!” (11-36)

Acerca da imaterialidade e da busca pelo espírito que para Augusto seria sua
saída assim como a de toda a humanidade, a solução para toda a podridão
humana na terra, que só poderia ser alcançada a partir da morte física, da
transcendência da matéria, atingindo assim a existência somente nas ideias. Em
vida também realizava sessões de psicografia, em seu município natal, o que
constata sua afinidade com supostos outros planos de existência. Um dos
poemas que mais ilustram esta perspectiva, é o poema “O meu Nirvana”, já na
coletânea de outras poesias, este não foi publicado na edição original do “Eu”,
em 1912. Segue o poema para fins de maior compreensão:

“O meu nirvana

No alheamento da obscura forma humana,


De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhauereana,


Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora


Do tato -- ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias --

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,


De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias!”
5. A iconografia da putrefação

Como vem sendo explanado neste ensaio, Augusto dos Anjos é um poeta
visceral, e no sentido mais literal da palavra. Sempre sensível as mazelas
humanas, Augusto vai utilizar de uma “iconografia da putrefação” em sua
produção poética, associando a vida humana corpórea a metáforas associadas
a podridão da matéria, que em certo sentido faria com que os seres humanos se
comportassem de forma tão nociva para Augusto dos Anjos, e o mesmo sempre
tentando ir até a raiz da questão, buscando a origem de tudo, e ao mesmo tempo
o fim, com a morte. Termos como sombras, verme, embriões, tumbas e podridão
estão se inter-relacionando na produção artística de Augusto, e fazem alusão a
espécies ciclos de encarnações e permanência constante desta “sujeira
instintiva”, como umas espécie de karma hereditário da humanidade, que
Augusto está fadado a perceber para onde quer que olhe e atente a sua
consciência, enfatizando como inferido anteriormente neste ensaio, a morte
como a saída para sua agonia, em seu “destino” tão peneroso segundo seus
pensamentos.

A construção deste vocabulário mórbido é o ethos da iconografia de Augusto


dos Anjos, fazendo com que o leitor se ambiente a partir das imagens mentais
transmitidas por estes termos e cenários macabros em um grande lamaçal da
decadência física humana, gerando assim uma “iconografia da putrefação” muito
característica e original de Augusto, e com respaldo na sua experiência de dor e
sensibilidade para com o meio, elevadas a níveis extremos em sua poiésis. Uma
forma de expressar todas as contradições materiais que o cercavam, assim
como os episódios que lhe impressionavam, desde a infância. Aqui cito como
exemplo desta iconografia, os poemas “Versos a um cão”, “O caixão fantástico”
e “O deus verme”, ambos presentes na primeira edição do livro “Eu”. Anexo aqui
os três poemas para ilustrar o que discorro:

“Versos a um cão

Que força pôde, adstrita a embriões informes,


Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,


Suficientíssima é para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.

Cão! — Alma de inferior rapsodo errante!


Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais...

E irá assim, pelos séculos, adiante,


Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos teus pais!”

“O caixão Fantástico

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,


Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
De aberratórias abstrações abstrusas!

Nesse caixão iam talvez as Musas,


Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!

A energia monística do Mundo,


À meia-noite, penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio...

Era tarde! Fazia muito frio.


Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!”

“O deus verme

Fator universal do transformismo,


Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme — é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas agras,


Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...

Ah! Para ele é que a carne podre fica,


E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!”

6. Considerações Finais

Analisar sociologicamente um poeta não é tarefa fácil. Ao longo deste ensaio,


tentei delimitar a partir da uma análise internalista e externalista, a vida e obra
de Augusto dos Anjos, que aqui viveu tão brevemente, em solo brasileiro.

Augusto foi sem dúvidas um homem muito amargurado, sendo talvez o


episódio com a moça grávida o começo de todas as “sombras” em sua produção
artística e pensamento, além de diversos outros fatores. Fato é que os
acontecimentos em sua vida foram de fato traumáticos, e é certo que neste
sentido, a sociedade influenciou diretamente na sua produção poética, na
medida em que sua arte, era a solução dos problemas introjetados e observados
pelo mesmo na realidade material, que suas impressões levavam a obscuridade
da humanidade.

Por ser de família aristocrata, teve berço e pode estudar em uma universidade,
cursando direito no contexto de início do século XX, e adquiriu assim muito
capital social e cultural, o que contribuiu vivamente para a profundidade
conceitual de sua produção artística, e desenvolvimento de sua poética.

A vida para Augusto dos Anjos, foi como um cósmico fardo, e viu assim a
necessidade de “vomitar” o que estava em seus subsolos. Apesar de seu estilo
mórbido, Augusto dos Anjos foi um poeta quente, de emoção, que viu na vida a
dor de um mundo contraditório materialmente, a ponto de não ver saída, senão
na imaterialidade da existência, a morte.
7. Referências Bibliográficas

Bourdieu, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. São


Paulo: Companhia das Letras, 1996,

Elias, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Translated by Sérgio G. de


Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995

Baxandall, Michael. Padrões de Intenção: A Explicação Histórica Dos Quadros.


São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Ginzburg, Carlo. Indagações Sobre Piero: O Batismo, O Ciclo de Arezzo, a


Flagelação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989

DOS ANJOS, Augusto. “EU”. Rio de Janeiro, Brasil. 1912.

DERALDO, Goulart. “ Eu, estranho personagem” TV Senado. 2009

NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa, Edição
da Universidade da Paraíba, 1962

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