Você está na página 1de 93

MICHAEL BURAWOY

;
t
í
i


í

t
O MAR XISM O ENC ONT RA BOU RDIE U

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS ORGANIZA ÇÃ O

Reitor ; Ruy Braga


FERNANDO FERREIRA COSTA

Coordenador Geral da Universidade TRADUÇ AO, REFER Ê NCIAS BIBLIOGR Á FICAS E NOTAS
EDGAR SALVADORI DE DECCA
Fernando Rog é rio Jardim
o i r o R A
r
Conselho Editorial
Presidente
PAULO FRANCHETTI
ALCIR PêCORA - ARLEY RAMOS MORENO
EDUARDO DELGADO ASSAD - JOSé A. R. GONTIJO
-
JOSé ROBERTO ZAN MARCELO KNOBEL
SEDI HIRANO - YARO BURI AN JUNIOR

COLE ÇÃO MARX 21


Comiss ão Editorial
ARMANDO BOITO JUNIOR (coordenador )
ALFREDO SAAD FILHO - JOãO CARLOS KFOURI QUARTIM DE MORAES
MARCO VANZULLI SEDI HIRANO -
Conselho Consultivo
-
ALVARO BIANCHI ANDR é IA GALVã O ANITA HANDFAS
ISABEL LOUREIRO - LUCIANO CAVINI MARTORANO
-
LUIZ EDUARDO MOTTA - REINALDO CARCANHOLO - RUY BRAGA

Me p I T O R A U H I C A H P
FICHA CATALOGRÁ FICA ELABORADA PELO !
:
SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP
DIRETÓ RIA DE TRATAMENTO DA INFORMA ÇÃO

Burawoy, Michael.
B8 <> m O marxismo encontra Bourdieu /, Michael Burawoy ; organizador ; Ruy Gomes Braga Neto;
tradu çã o, refer ê ncias bibliográ ficas e notas: Fernando Rogé rio . -
Jardim - Campinas, SP: Edito SUM Á RIO
ra da Unicamp, 1010.
1

1 - .
. Bourdieu , Pierre, 1950 1001. 2 Economia marxista . 3. Sociologia política. . Sociologia -
4 ;
Estados Unidos. 5. Teoria crítica. 6. Sociedade civil. I. Braga Neto, Ruy Gomes. II.
Fernando Rogério. III. Tí tulo
Jardim, f

CDD 30J
330.1594 i
:
301.592
301.0973
ISBN 978 -85-268-0868- 3
301.01
320.1
APRESENTAÇÃ O 7
índices para catálogo sistemá tico: :

PREFÁCIO. 11
1. -
Bourdieu, Pkrre, 1930 1002 301
2. Economia marxista
330.1594
3 .
Sociologia política 301.591
NOTA DO TRADUTOR 23
4. Sociologia - Estados Unidos 301.0973
5. Teoria cr ítica 301.01
6. Sociedade civil I A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIOLOGIA! MARX ENCONTRA BOURDIEU 25
320.1

II TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á VEL! GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU 49


Copyright © by Michael Burawoy
Copyright da tradução © 101 o by Editora da Unicamp III A QUEM PERTENCE A FALSA CONSCIÊNCIA? BURAWOY ENCONTRA BOURDIEU 81
:

IV COLONIALISMO E REVOLUÇÃO! FANON ENCONTRA BOURDIEU 107


Nenhuma par ce desta publica ção pode scr gravada, armazenada
cm sistema eletrónico, fotocopiada, reproduzida por meios mecâ nicos
ou outros quaisquer sem autorização pré via do editor.
V AS ANTINOMIAS DO FEMINISMO! BEAUVOIR ENCONTRA BOURDIEU 131

VI OS INTELECTUAIS E SEUS P Ú BLICOS! BOURDIEU HERDA WRIGHT MILLS 159

BIBLIOGRAFIA •V" 177

Editora da Unicamp
-
Rua Cato Graco Prado, 50 Campus Unicamp
CEP 13083 -892 - Campinas - SP - Brasil
Tcl./ Fax: (19 ) 3521-7718 /7718
.
www.editora unkamp br . - vendas@edicora.unicamp.br

!
\
í

i
APRESENTA ÇÃ O

Conhecido no Brasil por suas etnografias do trabalho e pelo desenvolvimento


i
do método do estudo de caso ampliado, Michael Burawoy é , também , um dos
mais importantes teóricos marxistas de nosso tempo. Gõ ran Therborn 1 chega
mesmo a afirmar que o trabalho de reconstrução teórica do marxismo empre-
endido por Burawoy, em colaboraçã o com Erik Olin Wright 2 , configura o mais

i
ambicioso projeto acad êmico marxista “resiliente” da atualidade. Tal caracte -
rística radicaria, em primeiro lugar, no entendimento de que o marxismo é uma
poderosa tradição analítica da teoria social de vital importâ ncia para compre-
endermos cientificamçnte as contradições e as possibilidades de transformação
social nas sociedades contemporâ neas.
^
Além disso , se desejamos transformar o mundo em um sentido igualit á rio
e emancipatório, o rriarxismo, conforme esse projeto, é uma ferramenta in-
-
dispensá vel. Isso não í signif íca, contudo , que todo elemento presente no mar
xismo tal como ele existe na atualidade seja sustent á vel . Se o marxismo
aspira a ser uma teoria social científica, ele deve ser continuamente testado
e aperfeiçoado. De acordo com essa elaboração , construir o marxismo sig -
-
nifica , ao mesmo tempo , reconstru í lo continuamente. Ou seja, o marxismo
n ã o deve ser tratado como uma doutrina, um corpo de cren ças estabelecido
>
em definitivo.
De acordo com Burawoy, contudo, o marxismo n ão pode, igualmente, ser
considerado um cat álogo desconjuntado de ideias interessantes: “Se o objetivo
for incrementar nossa capacidade de compreender o mundo para transformá - lo,

i
JÍ.C. .
0 MARXISMO ENCONTRA BO URDI EU APRESENTA ÇÃ O

construir o marxismo é uma tarefa central”3. Diante disso, não deixa de ser movimentos sociais ém um contexto marcado pela crise do neoliberalismo.
curioso que o sucesso dos estudos etnográficos de Burawoy tenha, de certa Em resumo , a sociologia pú blica nos auxilia a evitar a aliena çã o acadêmica
forma, obliterado essa face de sua produção. A curiosidade não reside tanto no que muitas vezes se apodera da sociologia profissional .
fato de ele ser um etn ógrafo, afinal, para alguns desavisados, a etnografia po- Tendo em vista as características teóricas e políticas desse projeto acadê-
deria até mesmo prescindir de teoria, bastando certa descrição laboriosa de mico marxista, n ão é de estranhar que Burawoy se tenha interessado pela so-
relações, instituições e estruturas. ciologia de Bourdieu ; Em primeiro lugar, pelo simples fato de que Bourdieu
Na verdade, desde a publicação de seu livro sobre o trabalho nas minas

se consagrou mundialmente transformando- se, com inteira justi ça, no mais
de produ çã o de cobre em Zâmbia4, passando por seu já cl ássico estudo dedi-
cado à produção do consentimento à exploração capitalista em uma fábrica —
importante soció logo da segunda metade do século XX , por seus estudos
etnográficos e pesquisas empiricamente orientadas pela reflexão teórica. As
do sul de Chicago5, até chegarmos a sua tentativa de apreender, de um ponto características da sociologia de Bourdieu , da mesma forma, estimulam a sen -
de vista dos trabalhadores envolvidos nesses processos , a constru ção
— na sibilidade dos marxistas: trata- se de um pensamento incontestavelmente ma -
Hungria
— e o colapso
— na Uniã o Soviética, depois R ú ssia
— das socie-
dades burocratizadas de tipo sovi é tico6, salta aos olhos daqueles que o leem
a centralidade da problematização teórica marxista. Para Burawoy, “ n ós nun-
terialista, evidentemente determinista, sensível à realidade das classes sociais
e ao sofrimento social dos trabalhadores.
De fato , Bourdieu foi o mais importante soci ólogo pú blico de sua geração,
ca começamos com dados, mas com teoria. Sem teoria, nós somos cegos, n ão n ão apenas na Ffança, como também no resto do mundo. Suas cr íticas ao ne-
conseguimos ver o mundo”. E, parafraseando Gramsci, dirá: “Todos somos oliberalismo atingiram amplas audiências extra-acad êmicas, levando -o a in-
necessariamente teó ricos, pois possu ímos uma certa concepçã o de mundo, gressar na arena pol ítica como um intelectual profundamente afinado com as
mas alguns se especializam em sua produção”7. principais antinomias do tempo presente. A natureza reflexiva, crítica e públi-
Concomitantemente, ao revolver o terreno da teoria, em permanente conta- ca dessa sociologia simplesmente n ão poderia passar incólume pelo crivo da
to com investigações etnográficas, a obra de Burawoy afastou-se de uma certa sociologia pública marxista de Burawoy. Fazendo uso dos conceitos gramscia-
tradição marxista ocidental cuja produção se inclinara fortemente na direção da nos de intelectual orgâ nico e intelectual tradicional , as insuficiências da pro-
epistemologia , da estética e da crítica cultural. Ao contrário, as questões por blematização bourdieusiana da relação entre teoria social e pr ática pol ítica
meio das quais ele aperfeiç oou o método do estudo de caso ampliado remetem serão esquadrinhadas pelo soci ólogo inglês ao longo deste livro.
à tradição clássica do marxismo: consciência de classe
— — seu assunto predile-
to , emancipação colonial, exploração económica, dominação política, tran-
Finalmente, n ão devemos subestimar a atraçã o que certos paralelos re-
lacionados às respectivas trajetórias pessoais dos autores pode exercer. Ambos,
sição ao socialismo... Trata-se de um universo temático muito próximo do mar-
xismo de Leon Trotsky8 e de Antonio Gramsci9, dois autores que notoriamente
por exemplo, começaram suas pesquisas sociol ógicas em países africanos

Bourdieu na Argélia e Burawoy em Zâmbia , tendo que lidar com uma rea-

deixaram marcas duradouras em sua produção. lidade marcada pela jcrise do sistema neocolonialista. Assim , era de esperar
Burawoy distanciou-se igualmente do marxismo ocidental em um outro que Burawoy se interessasse pelos trabalhos de Bourdieu acerca das classes
sentido: o engajamento social . Seu apelo “por uma sociologia p ú blica” tem-
se espalhado por diferentes países e promovido intensos debates no interior
subalternas — trabalhadores e camponeses —
argelinas. Diria que as li ções
que ambos tiraram dèsse período africano os acompanharam por toda a vida
da comunidade sociológica acerca da relação entre teoria social (acadêmica) profissional.
s prá tica política (extra-acadêmica)10. A teoria da divisão do trabalho socioló- O livro que o leitor tem em mãos configura um momento muito especial da
gico elaborada por ele, com seus quatro estilos principais de pr á tica so - reflex ão acerca da tortuosa relação do marxismo com a sociologia, especial-
cioló gica — profissional , crítica, para pol íticas pú blicas e pú blica , pro-
moveu uma vez mais a oportunidade de refletirmos a respeito dos fundamentos
mente no que concerne à liga ção entre a teoria e a prá tica. Os di á logos imagi-
n ários de Bourdieu com autores marxistas s ão uma forma engenhosa encon -
sociais e cognitivos de nosso próprio “campo”, ao mesmo tempo que legiti- trada por Burawoy de problematizar o alcance e os limites dessa ligação. Em
mou por meio de padrões científicos o envolvimento dos soci ólogos com os suas próprias palavras: “Essas conversações s ã o uma reconstituição imagin á ria

5 9
O MARXISMO ENCONTRA BO URDI EU

sobre como essa série de teóricos sociais falecidos (Marx, Gramsci, Fanon,
Beauvoir e Mills) poderiam confrontar as alegações de Bourdieu . Por isso , eu
DS trago de volta à vida para se encontrarem com ele e conosco”.
O leitor logo perceberá que se trata de uma reflexão capitaneada por um :
marxista crítico, aberto, impenitente e, sobretudo, impertinente. Ou , conforme !
a feliz expressão utilizada por Therborn, um marxista ‘" resiliente”. Mas que,
?or isso mesmo , procura valorizar a grandeza do legado de Bourdieu. Estou
convencido de que o leitor se beneficiará duplamente da leitura deste livro: de
im lado, mergulhar á no mar espesso e profundo do
pensamento de Bourdieu •
PREF Á CIO
c, de outro, viajará pelas sedutoras e desafiadoras águas do marxismo cr ítico.
Jma ótima leitura a todos.

!
Ruy Braga
S ão Paulo, junho de 2009

Estas aulas sobre Bourdieu tiveram in ício em uma brincadeira despretensiosa


Notas com o meu amigo Erik Olin Wright. Ele costuma me visitar na Calif órnia a
cada dois anos , onde ministra um seminário de graduação de três semanas em
Ver Therborn, 2008, p. 177 . Berkeley. Certa vez , enquanto ele me preparava uma das suas esplêndidas re-
: Ver Burawoy e Wright , 2002.
feições , eu lhe perguntei se já n ão era o momento de me beneficiar do conv ívio
i Idem, op. cit., p. 460.
• Ver Burawoy, 1972. com os brilhantes estudantes do seu departamento em Madison , assim como
: Ver Burawoy, 1979 . ele se beneficiava da conviv ência com os estudantes de Berkeley. Sem titu -
' Ver Burawoy e Luk ács, 1992; e Burawoy, Fairbrother, Krotov e Clarke, 1996 . bear, ele me convidou para o Havens Center de Wisconsin , para conduzir uma
Burawoy, 2009, p. 13. série de semin á rios pú blicos sobre a obra de Bourdieu . Ele sabia (é claro) que

-
Ver Burawoy, 1989, pp. 759 805.
Ver Burawoy, 2003, pp. 193-261.
aquela era a minha mais recente obsess ão — obsessão pela qual ele també m
tinha certa simpatia. Eis uma oferta que eu n ão podia recusar! Então , ainda que
0 Ver Burawoy e Braga (orgs.) , Por uma sociologia pública , 2009b.
com algum receio, aceitei. Eu precisaria desenterrar Bourdieu do meu baú ; e
tinha só um ano e meio para me preparar para os seminá rios.
Durante os anos anteriores , eu havia feito todo tipo de queixa , de careta e
de reclamação improvisada sobre Bourdieu . Entã o, decidi que levaria aquele
autor a sério. Eu sempre me senti atraído pela relação tortuosa entre o marxis-
mo e a sociologia ; por isso, seria esse o tema das minhas aulas . Como so-
ci ólogo, Bourdieu havia se digladiado com o marxismo durante boa parte da
sua vida ; e a presen ça do marxismo ficou inscrita em seus volumosos traba-
lhos — inscrita, porém , escassamente reconhecida . Minha proposta seria
então restaurar (inventar ? imaginar ? ) essas conversações reprimidas entre
Bourdieu e o marxismo. E que lugar melhor havia para fazer isso sen ã o no

10 11

. .i.
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
PREFÁ ao

Havens Center? Por 25 anos, intelectuais de esquerda oriundos de todo o conclu ía minha dissertação de mestrado, eu tive a oportunidade de ler A re -
globo ( incluindo o próprio Bourdieu) apresentaram suas ideias —
por vezes

ainda inacabadas e preliminares ; por vezes totalmente formuladas l á no
produção na educação, na sociedade e na cultura 2 — o primeiro grande
trabalho de Bourdieu dispon ível em inglês . A meu ver, aquele tratado sobre
Havens Center. Sendo assim, aquele deveria ser um di á logo amplo entre o as funções sociais da educação foi diminu ído pelo marxismo estruturalista
marxismo e Bourdieu . predominante na época, o qual emanava de Paris pelos trabalhos de Althusser,
As seis aulas reproduzidas neste livro , pela primeira vez em sua forma Balibar, Godelier e Poulantzas. Através do Canal da Mancha , a Escola de
escrita, provaram ser bastante animadas. Eu aprendi muito durante sua prepa-
ração e nas acaloradas discussões que se seguiram com estudantes de graduação
Edimburgo espalhava-se pela Inglaterra . Porém , quando comparados à an á -
lise da ideologia feita por Stuart Hall3, ao livro Educação para o trabalho
e com acadêmicos. Para quem quiser sentir um pouco daquele clima, as versões escrito por Paul Willis4 e, em especial, à an álise da linguagem e das classes
em áudio das sessões podem ser encontradas no site do Havens Center 1. Quan - sociais feita por Basil; Bernstein 5, Bourdieu e Passeron pareciam ao mesmo
do meu amigo Ruy Braga ficou sabendo dessas aulas, imediatamente pretendeu tempo ininteligíveis e inautênticos. Na verdade, eu considerava mais interes -
publicá-las no Brasil, onde, é claro, Bourdieu tem uma multidão de seguidores. santes os ent ão obscuros artigos de Bourdieu a respeito das estratégias de
Embora essas páginas estejam (e estão mesmo) em um estado ainda preliminar matrimónio no B éam, que hoje são parte do livro O baile do solteiro6. Nestes ,
e inacabado, eu n ão pude resistir a publicá -las em um país que possui uma
forte tradição sociológica radical . Em Fernando Rogério Jardim eu fui espe -
,

Bourdieu desenvolveu um funcionalismo mais din â mico din â mico no sen -
tido das estratégias de reprodu çã o , mostrando as sementes da sua pr ó pria
cialmente afortunado de ter os serviços de um tradutor dedicado e entusiasma- negação. Naquele tempo, eu ignorava a pujante arquitetura teó rica da qual
do, Visto que traduzir é uma tarefa tão complexa e delicada, ele mereceria ser aqueles artigos eram uma pequena amostra.
considerado o coautor deste livro! O ano era 1976. Eu n ão pensava em dedicar muita aten ção a Bourdieu
pelos próximos dez anos, muito embora sua fama se espalhasse pelo mundo
U] de língua inglesa e as tradu ções dos seus trabalhos jorrassem aos borbot ões.
Minha próxima conversa silenciosa com ele teria lugar em 1987 , na Hungria,
Pierre Bourdieu é o sociólogo mais representativo e influente do nosso tem - onde eu j á estava morando h á seis meses. Entre uma e outra empreitada como

po influente tanto no â mbito das ciências sociais como no das humanida- operador de alto-forno na Sider úrgica Lênin, eu me recolhia ao meu descon -
des; tanto no interior da academia como para além dela; e n ão apenas na fortável apartamento ide um cômodo em Miskolc , lendo o Esboço de uma
França, mas também no resto da Europa, no mundo oriental e, cada vez mais , teoria da prática1 e o tratado recentemente traduzido A distinção8. Com rela-
no hemisf ério sul. Em suma: Pierre Bourdieu tem se tornado parte integrante
do câ none sociológico. Mas lidar com Bourdieu n ão é nada f ácil, pois seus
ção ao primeiro , eu me senti instigado pela elaboração das duas ló gicas

ló gica da teoria e a l ó gica da prática ;
— a
mas eu n ã o achava isso tão original .
trabalhos abrangem temas muito variados: das artes às ciê ncias, da política Eu li aquela an álise da sociedade cabila na Argélia pelas lentes da Escola de
aos esportes, da família à educação, da economia à literatura. Aos n ão ini- Manchester de antropologia e especialmente através das ideias do meu pro-
ciados ( e mesmo aos bem iniciados) seus textos s ã o impenetrá veis e ina- fessor Jaap van Velsenique já me havia transmitido aquilo que se transformaria
cessíveis; suas frases entrecortadas e autoadjetivadas são enigmas dif íceis de em um dos argumentos fundamentais de Bourdieu , a saber, que as estruturas
decifrar; e seus livros estão parcialmente inacabados e repletos de digressões. da sociedade se reproduzem tanto através da manipulação das normas sociais
Apenas no final da vida, quando ele ingressou mais francamente na aren á como através da sua inculcação nos indiv íduos e da sua atualiza ção por estes.
pública, é que seus escritos se tornaram mais abertamente politizados e trans- Com efeito, Bourdieu fez men ção e validou em diversas notas de rodapé o
Ipâréntes. livro A política do parentesco, escrito por Jaap van Velsen 9. Se o Esboço de
IP* 1-Estas não foram as primeiras conversas que tive com Bourdieu. Eu come- uma teoria da prática era ( pelo menos para mim àquela é poca) interessante ,
glehã tecer meus diálogos imagin á rios com ele 30 anos antes, quando eu era
-
-
mas sem originalidade, A distinção pareceu me irritantemente longo e dif ícil .
§3Ímteâtudante de graduação na Universidade de Chicago. Em 1973, quando Eu n ão poderia imaginar que aquele livro marcaria o cl ássico ingresso de
&

12 13
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU PREF Á CIO

Bourdieu na sociologia estadunidense. Então, as classes sociais tinham um de Bourdieu


descortiyava-se diante dos meus olhos. Eu havia sido fisgado
conteú do cultural que obscurecia ou legitimava a dominação. Mas , ora, o que e dominado por uma verdadeira conversã o intelectual .
havia de tão novo ali ? Para mim , Gramsci fora muito mais sofisticado na Sorte a minha! Que melhor introdutor a Bourdieu eu poderia desejar sen ão
abordagem do tema. Por isso, Bourdieu n ão me causou grande impacto. seu maior herdeiro intelectual e propagandista transcontinental ? Costuma-se
Bourdieu voltaria a me assombrar nos anos 1990, porque mais e mais es - dizer que Wacquant conhecia Bourdieu melhor que ele pró prio; que Bourdieu
tudantes de graduação em Berkeley estavam desenvolvendo certa fascinação consultava Wacquant sobre aquilo que ele ( Bourdieu ) deveria ou n ão deveria
por ele, escolhendo-o como teórico social contemporâneo para seus exames de escrever. Wacquant reconhecia que havia apenas um inté rprete autorizado de
qualificação de pós-doutorado. Eu era o mais resistente a essa ideia, dizendo Bourdieu — e era ele! Com efeito , Wacquant foi o mais á gil e onisciente
que nem sonhando Bourdieu poderia ser considerado um sociólogo sério. Os defensor dos trabalhos de Bourdieu , n ã o admitindo reconhecer o menor

conceitos que eram sua marca registrada habitus, campo e capital —
vam alusivos, evasivos e costumavam ser desenvolvidos de uma forma muito
-
soa defeito nas obras do mestre . É claro que isso foi bom para mim

— —
eu obtive
a melhor defesa possível de Bourdieu ; embora isso també m fosse, no final
inconsistente. Além do mais , ele não possu ía nenhuma teoria da história. Como das contas, ruim para Bourdieu e pior para Wacquant . Se n ã o fosse por
é que alguém em sã consciência poderia comparar ou equiparar esse cidad ão a aquele semin á rio, eu nunca teria me arriscado a escrever estas conversações
Marx , a Weber ou a Durkheim ? Entretanto, a pressão continuava a aumentar; imagin á rias .
e, finalmente, eu acabei cedendo e aceitando ministrar um seminário sobre Como poderia alguém lidar com um autor de tamanha grandeza e ampli-
Bourdieu. Semana após semana, os alunos escreviam e apresentavam suas tude ? O próprio Bourdieu ensinava a localizar todo escritor no interior de um
observações em classe, brigando com os conceitos de Bourdieu e tentando me .
campo de produ ção e recepçã o intelectual No caso espec ífico de Bourdieu ,
convencer a levá-lo a sério. Eu começaria daí a vislumbrar a enormidade do seu essa tarefa estaria muito além das minhas capacidades e habilidades. Em vez
pensamento e me tornaria ainda mais intrigado, especialmente quando percebi disso , eu teria de empreender uma abordagem mais limitada, a saber, eu or-
qu ão similar e quão diferente ele foi de um Gramsci; e como suas ideias sobre questraria conversações entre Bourdieu e meus teóricos marxistas favoritos:
a estrutura da sociedade, operando como um jogo, eram paralelas às minhas o próprio Marx , Antonio Gramsci , Frantz Fanon e Simone de Beauvoir. Eu
próprias pesquisas. concluiria ent ão com Wright Mills, que adotou , dentro do contexto estadu-
Ent ã o, em 2005, três anos após o falecimento de Bourdieu , eu tomaria a nidense, a mesma postura crítica assumida por Bourdieu . Mas, ora, Bourdieu
atitude mais drástica em matéria de aulas de reforço. Perguntei ao professor era totalmente hostil àqueles teóricos marxistas — com exceção de Wright
Loic Wacquant se poderia comparecer a seus semin á rios de graduação so - Mills apenas . Por isso , minha proposta nestas conversas hipot é ticas seria
bre Bourdieu. Ele me disse que sim, mas apenas com a condiçã o de que eu imaginar como esses autores poderiam responder às alega ções de Bourdieu
fizesse todas as tarefas, tal como qualquer outro aluno da classe. Aquilo e , por meio desses di álogos , começ ar a tornar mais evidentes as v á rias faces
era um campo de trabalhos forçados ! Toda semana eu deveria redigir e do autor. Cada uma dessas conversas lan ç a luzes sobre uma dimens ã o dife-
apresentar detalhados coment á rios sobre textos longos e dif íceis. O profes - rente da erudi çã o de Bourdieu .
sor Wacquant passava os olhos sobre eles e tecia alguns coment á rios acer - Cada um de n ós tem seu Bourdieu predileto . O meu é aquele das Meditações
ca dessa ou daquela tarefa por e - maiL Eu n ão conseguia acompanhar o pascalianas10: o ápice!e a consumação de suas conquistas teóricas. Esse livro
pensamento á gil dos estudantes de graduaçã o , alguns dos quais estavam forneceu os alicerces para o meu primeiro encontro: o encontro entre Bourdieu
assistindo àquelas aulas pela segunda vez. Mesmo assim , consegui escrever e Marx, porque, tanto em seu argumento como em sua estrutura, as Meditaçõ es
alguns comentá rios interessantes. Estes se tornaram minha primeira tenta - pascalianas guardam alguns paralelos com A ideologia alemã11 de Marx e

tiva de desenvolver di álogos imagin á rios entre Bourdieu e o marxismo di- Engels. Ambos os escritos foram um acerto de contas com suas respectivas
álogos que, ao tomar conhecimento, o professor Wacquant submetia à hu - heranças filosóficas, sublinhando e denunciando as fal ácias escolásticas dos
milhante condenação perante os alunos . Conforme o curso transcorria e eu seus intelectuais associados , distanciados como estavam das relações e das
assistia às aulas geniais daquele francês maluco, um vastíssimo panorama práticas do mundo concreto. Mas é aqui que as semelhan ças acabam , pois Marx

14 15
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
PREF Á CIO

e Engels utilizaram essa plataforma como base para um estudo da histó


ria Enquanto preparava estas aulas, eu fiquei bastante surpreso ao saber que
humana como sucessão de sistemas de produ ção econ ó mica , ao passo que
minha própria pesquisa, apresentada conforme um quadro teó rico gramsciano,
Bourdieu se dedicou n ã o à sucessão, mas à coexistê ncia e interconexão de
tinha um forte viés bourdieusiano. Esta foi ent ão a base do meu terceiro en -
campos de produção científica e cultural relativamente autónomos. Ele elabo
rou o que Marx deixara sem elaborar, a saber, as chamadas superestruturas
- —
contro. Meu próprio estudo A fabricação do consentimento 12 (1979)
baseado em um ano de observações participantes em uma f á brica em Chicago,
— era
sociais, com uma an álise mais estrutural e funcional do que somente histórica
. entre 1974 e 1975. Essa pesquisa descrevia como a produ ção industrial con-
Nesse sentido, os trabalhos de Bourdieu constituem tanto uma revis ão como
tempor â nea se organizava com base na hegemonia, através da coordenaçã o
um complemento às obras de Marx.
concreta dos interesses do capital com os interesses do trabalho, o que misti -
Os paralelos com Gramsci eram ainda mais evidentes, tendo em vista que
ficava a exploração. Quando li Bourdieu , eu percebi que Gramsci n ã o enxer-
Gramsci foi o pensador marxista das superestruturas. Por isso, o encontro
gava a mistificação; para ele havia apenas o consentimento à dominação. Tudo
entre Bourdieu e Gramsci é a base da minha segunda aula. Quando li Bourdieu
indicava, portanto, que minha an á lise sobre o trabalho era o melhor exemplo
pela primeira vez, eu cheguei a duvidar que ele tivesse algo mais a
acrescentar da violência simbólica; descrita por Bourdieu. Com efeito, sua “dupla verdade
a Gramsci; mas eu rapidamente aprenderia que o conceito de violência sim
bólica em Bourdieu era bem diferente do conceito de hegemonia em Gramsci
- do trabalho” 13 pareciajnão ser outra coisa senão o meu “ ocultamento da ga-
. rantia da produção excedente”: o segredo escondido da produção capitalista.
O primeiro envolve o desconhecimento da dominação como tal, ao passo que
o Uma vez recobrado dó choque , eu comecei a pesquisar sobre o tema e, mais
segundo implica o consentimento consciente à dominação. Para Gramsci,
tia um cerne de bom senso dentro do senso comum da classe operária , ao
exis - tarde, descobri que as an álises de Bourdieu envolviam o reconhecimento de
uma conformidade psicológica ou subordinação dos indiv íduos ao capitalismo
passo que, para Bourdieu , o senso comum era sempre o mau senso no mau
que era bem mais profunda que minha aná lise de situação. Em minha opinião,
sentido. Os dominados jamais entenderiam as origens e a condição de sua
o fato de os trabalhadores cooperarem com a reprodução do capitalismo n ão
dominação. Apenas os intelectuais (ou pelo menos alguns deles) teriam aces
so aos segredos escondidos da sociedade e da dominação sobre a qual ela jaz ;
- se devia a um habitus iprofundo e enraizado que eles adquiriram por meio de
sucessivas camadas de socializaçã o, mas resultava das estruturas e instituições
ao passo que os indivíduos submetidos estariam cegos e surdos por sua sub
missão. Mas isso n ão implicava que os intelectuais devessem dar ordens ao
- do mundo do trabalho: tanto o processo de trabalho como aquilo que eu cha -
mei de regimes de produção.
povo. Pelo contrá rio: os intelectuais deveriam manter certa distância dos in
- Minha próxima surpresa veio quando eu examinei os trabalhos de Bourdieu
divíduos dominados; eles deveriam escapar à tentação da manipula o
çã auto-
ritá ria ou populista que é uma prática in ú til e perigosa ; deveriam ainda
ser contaminados pelo irremediável mau senso do povo.
evitar
sobre a Argélia
— n ão me refiro às reflex ões mais teóricas e abstratas (o Es
boço de uma teoria da prática14 e A lógica da prá tical 5, mas aos textos mais
-
Com frequ ê ncia, Bourdieu devotou desprezo ao conceito gramsciano de
antigos e mais concretos a respeito dos trabalhadores e do campesinato (Tra -
balho e trabalhadores na Arg élia 16 , Arg élia , 1960 1 e O desenraizamento' * , este
]

intelectual orgânico. Se para Gramsci a verdade jazia em um diálogo entre o escrito com Abdelmalek Sayad ). Ali, Bourdieu aparece defendendo a ortodoxia
saber científico dos intelectuais e o bom senso da classe operá ria, para Bour-
marxista segundo a qual a classe trabalhadora é revolucion á ria, contra a visão
dieu, a verdade era fundada no bom senso dos intelectuais na qualidade de
da FLN e Frantz Fanon , para quem o campesinato é que era a classe social
acadêmicos aconchegados no ambiente protegido da universidade. Ainda que
eminentemente revolucion ária. É claro que os clamores de Bourdieu sobre o

evitássemos certas falácias escolásticas em especial, considerando a parti-
cularidade das ciências sociais, a saber, sua produção dentro de um espaço
potencial revolucionário dos trabalhadores jamais se coadunaram com a reali
dade argelina, nem com sua pró pria visão da classe operá ria francesa, enreda -
-

acadêmico relativamente autónomo então, a ciência provida de reflexivida
de seria uma forma bastante superior de conhecimento. Sobre essas bases,
-
j

da pelas pressões da necessidade material imediata . Sua profunda hostilidade


aos trabalhos de Frantz Fanon, considerados especulativos, irrespons á veis e
e na prá tica. —
Bourdieu e Gramsci ergueram arquiteturas totalmente diferentes na teoria perigosos, deve ser vista não apenas em termos de veracidade cient ífica, mas
também na perspectiya do contexto político francês. O inimigo real aqui era

16 17
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU PREF Á CIO

Jean-Paul Sartre, que usava Fanon para fazer valer sua ideia de uma revolu ção ses onde o marxismo èra totalmente associado ao marxismo sovi ético. Os dois
no Terceiro Mundo, desconsiderando o peso de uma intelligentsia liberal que eram céticos quanto à figura do intelectual orgâ nico ; e ambos abra ç aram o
assumira uma postura mais cautelosa perante a guerra na Argélia. Já entre os engajamento pú blico e político de um tipo bem tradicional , distante dos agen -
inimigos p ú blicos de Sartre, vemos Raymond Aron, que utilizou as pesquisas tes , muito embora, no final da vida , Bourdieu tenha mantido contatos diretos
argelinas de Bourdieu para defender abordagens mais distanciadas e “objetivas” [ com o povo. Ambos encerraram suas vidas com uma forte guinada pol ítica ,
• das lutas pela independ ê ncia . Em sua
hostilidade contra Fanon, Bourdieu ex- expressa em trabalhos amplamente acessíveis e polêmicos: Bourdieu amaldi -
primia n ão somente sua oposiçã o a Sartre, mas igualmente e novamente sua
çoando o neoliberalismo; e Wright Mills atacando o imperialismo ianque e a
aversão à própria ideia de intelectual orgânico que substituiria suas teorizações Guerra Fria . Ainda mais curiosos s ão os paralelos entre seus programas de
de vanguarda (produtos de um habitus alienado) pelas exigências pragmá ticas
pesquisa em tomo das classes sociais e da estratificação. Mills abordou pri -
da vida e da luta camponesa. Bourdieu estava tão cego por sua hostilidade às
meiro a classe trabalhadora e o processo de cooptação dos seus líderes ; abordou
políticas de libertação nacional, que ele não conseguiu perceber as virtudes da
também as novas classes médias e, por fim , a elite do poder. Isso corresponde
análise feita por Fanon sobre os dilemas da África pós colonial. Essa é a base
- 21
exatamente às divisões sociais feitas por Bourdieu em A distinção , assim
do meu quarto encontro.
como suas inúmeras observações acerca do campo do poder e da “ nobreza de
A inimizade de Bourdieu em relação a Sartre responde pela maior surpresa Estado”. Enquanto Mills falava da elite militar como sendo a terceira coluna
que tive: o rebaixamento de Simone de Beauvoir como nada além de um apên-
da elite do poder ( as outras duas eram a elite política e a elite econ ó mica ) ,
dice da filosofia sartriana, estando ela aparentemente incapacitada de desen -
Bourdieu enfocava a maneira pela qual a cultura e a educação penetravam as
volver uma filosofia própria. Isso se tornou a melhor desculpa para Bourdieu
classes subalternas e exploradas e mistificavam sua exist ê ncia. Mills, por sua

ignorar totalmente O segundo sexo 19 a pedra angular do feminismo contem
porâneo, escrito 50 anos antes de A dominação masculina20 , de Bourdieu . Só
isso já seria suficientemente ruim , mas a omiss ã o é agravada pela simples
- vez, via a atomização, a massificaçã o e o consumo como mecanismos de pa
cificação dos insatisfeitos. Essas diferenças de abordagem refletem os diferen-
-
tes contextos nos quais cada autor escreveu , tornando suas convergências ain -
duplicação das ideias da autora. O argumento fundamental para Bourdieu é da mais surpreendentes.

que a dominação masculina é o protótipo da violência simbólica ideia que
é uma p álida reprise dos argumentos de O segundo sexo. Entretanto, A domi
-
Caso eu tivesse de inserir neste livro mais uma aula, ela certamente trataria

do diálogo de Bourdieu com Paulo Freire um di álogo especialmente apro-
nação masculina n ão faz qualquer men ção a esse livro; e a ú nica referência a priado para uma publicaçã o brasileira . Assim como Gramsci, Paulo Freire
Beauvoir é feita para apresentá-la como o exemplo da profundidade da domi- acreditava na possibilidade de as classes oprimidas desenvolverem seu bom
nação fundada no gê nero: a suposta subordinação inconsciente de Beauvoir ao i .
senso que jazia sepultado sob o senso comum e, como diria Fanon , estava
homem Sartre! E para pôr mais ofensa na injú ria , Bourdieu se mostrou muito submetido por uma opressão inculcada. Desvencilhar e desenvolver esse bom

à vontade para citar outras escritoras feministas especialmente as feministas
americanas: as herdeiras de Beauvoir. Uma vez mais, Bourdieu n ão era uma
exceção a seu próprio campo de análise: ele também estava lutando no interior
senso era tarefa que requereria uma interven ção elaborada por parte do educa -
dor na qualidade de intelectual orgâ nico. Era assim que Paulo Freire descrevia
sua pedagogia interativa que sempre partia das experi ências vivenciadas pelos
do campo acad êmico francês, mas n ão estava preparado para considerar fran
- grupos subalternos, elaboradas posteriormente em um contexto mais extenso .
camente suas lutas; nem para perceber como elas podiam manchar seu próprio Paulo Freire e Bourdieu lutaram contra a reprodu ção da dominação por meio
julgamento científico, com seu uso estratégico e seletivo das citações (para não da educação, mas , para isso, os dois pensadores ofereceram solu ções totalmen-
falar das referências a autores e artigos). te divergentes. Embora pareçam neutras, as escolas presumem a posse de um
Minha ú ltima an álise é mais conciliadora . Mas ela também surgiu daquilo capital prévio (tácito e herdado) que é um apanágio das classes médias e do-
que foi, para mim, outro choque: a fantástica convergência entre Bourdieu e minantes. Enquanto Bourdieu almejava garantir o acesso de todos a esse pre-
Wright Mills. Ambos tiveram uma relação bastante ambígua com o marxismo,
cioso capital cultural , Paulo Freire clamava por uma educação que cultivasse
tendo ambos crescido em épocas de ascensão do Partido Comunista e em paí- o bom senso alternativo dos dominados —
e que ele fosse crítico , embora

18 19
0 MARXISM O ENCONTR A BOURDIE U
PREF Á CIO

oprimido. Paulo Freire queria trazer a educação para o povo, ao passo


que relação a sua prática política: era como se um marxismo embrion á rio lutasse
Bourdieu queria levar o povo para a educação. Pelas m ãos de Paulo Freire
,. por se libertar do ú tero de sua sociologia . Mas, por outro lado, ele devotou
o Moderno Prí ncipe de Gramsci tornou -se mais um tipo especí
fico de edu
cação popular do que um tipo de partido pol ítico ; Bourdieu , por sua vez, - grandes esforços à criação de uma Internacional dos Intelectuais que desafias-
se o neoliberalismo e a violação dos direitos humanos em â mbito global . Ao
afirmava que o pin áculo da educação ainda jazia nas universidades
de pri- promover seus próprios interesses na universalidade (o chamado “corporati -
meira categoria.
vismo do universal” ), os intelectuais seriam ou deveriam ser os intelectuais
Todos esses teóricos marxistas
maneira — — e Wright Mills també m, à sua própria
endereçam as seguintes quest ões a Bourdieu: qual é a rela
ção
orgâ nicos da humanidade . Eis um resqu ício do soci ólogo comtiano em Bour-
dieu : a v ívida personificação de uma luta interna e externa entre certo marxis -
entre a teoria e a prática ? Qual é a relação entre a sociologia e o mundo
que mo subliminar e a sociologia crítica.
ela revela? Aqui , Bourdieu oferece-nos dois paradoxos. De um lado
sistia na autonomia da universidade, no desenvolvimento de uma ciência
, ele in -
para Michael Burawoy
cientistas. Ele fez um grande esforço para isolar a sociologia
do mundo social, Berkeley, 20 de janeiro de 2009
desprezando a sociologia “caritativa” e a sociologia espontâ
“ nea”. Ele defen -
deu sim as virtudes do conhecimento inacessível. Mas, por outro
lado, e aqui
está o primeiro paradoxo, Bourdieu foi sem d ú vida o maior soci
ólogo pú blico Nota s
do nosso tempo . V árias vezes, ele falou sobre a obrigação de os soci
ólogos se
dirigirem a pú blicos mais amplos — e ele certamente fez _
isso durante a sua 1 Ver < www.havenscenter.org/vsp/ michael burawoy > .
brilhante carreira. Como então reconciliar a autonomia e o 5 2 Bourdieu e Passeron , 1977 .
engajamento , a
ciência e a pol ítica ? 3 Hall , 1982.
Daí nós chegamos ao segundo paradoxo. Mesmo acreditando 4 Willis, 1981
na obrigação Bernstein , 1971 .
de os cientistas sociais levarem suas ideias à esfera pú blica , 5
Bourdieu n ão 6 Bourdieu , 2008a [1976].;
conseguia encontrar nenhum pú blico capacitado e desejoso de
classes dominantes que não possuem qualquer interesse em saber nada
-
ouvi los. H á 7 Idem , 1977.
sobre 8 Idem , 1984.
sua própria dominação simbólica (embora pudessem compreend ê ); Van Velsen , 1964.
-la e há 9
classes dominadas que não estão aptas a compreender sua submissão ( 10 Bourdieu, 2000.
embora
isso lhes pudesse interessar). Em seus enunciados teóricos, Bourdieu 11 Marx e Engels, 1970b. 1
falou |
12 Burawoy, 1979 .
sobre a profundidade da dominação simbólica que torna as classes
dominadas 13 Bourdieu , 2000.
totalmente surdas às revelações da sociologia. A esse respeito, Bourdie
u diver- 14 Idem, 1977.
gia dos marxistas ortodoxos que, em uma an álise final, consideravam
ses dominadas capazes de entender sua própria opress ão e as mensagens dos
as clas - 15
16
Idem , 1990c.
Bourdieu e outros, 1963;.
intelectuais. Por mais difícil que seja cruzar esse abismo, segundo os marxist 17 Idem, 1979.
as,
ele n ão era completamente intransponível. 18 Bourdieu e Sayad, 1964;
19 Beauvoir, 1989.
Mas o próprio Bourdieu nunca conseguiu suportar o absenteísmo político
20 Bourdieu , 2001a .
que sua teoria implicava. De um lado, ele podia ser encontrado denunc
iando o 21 Idem , 1984.
governo socialista e suas políticas neoliberais para o problema do desemp
rego
dos trabalhadores parisienses, agindo como se soubesse que aqueles trabalha
-
dores eram perfeitamente capazes de entender o lado perverso do
capitalismo.
Em certo sentido, nós podemos imaginar que sua teoria andava atrasada
em

20 21
NOTA DO TRADUTOR

A tradu çã o de um livro sobre sociologia , realizada por um tradutor que tam-


bé m é soció logo, traz consigo um bó nus e um ó nus . O b ó nus é a precisã o
conceituai e a procura pela correta dedu çã o , por assim dizer, das inten çõ es
do autor no texto. A tarefa torna -se ainda mais f ácil quando se conhece a
pessoa e o estilo do autor, graças a contatos e tradu ções anteriores. O ó nus
aparece quando o tradutor imagina, nesse caso , que o leitor deva saber o que
ele sabe, como profissional ou especialista. Daí surgem os jargões e a despreo-
cupação em se fazer compreens ível .
Portanto, com a inten ção de tornar esta obra acessível tanto a pesquisadores
como a estudantes de graduação e ao pú blico em geral , os “calejados” ou os
“curiosos” a respeito de Bourdieu , buscou -se agregar ao final do texto breves
notas, referentes à biografia de pessoas ou a eventos histó ricos citados pelo
autor. Além da bibliografia em língua inglesa e francesa utilizada no original ,
apresentamos uma bibliografia correspondente, com os títulos dispon íveis em
português. E, nas referências , ao lado das informações relativas à obra da bi-
bliografia original , també m inserimos aquelas relacionadas ao correspondente
título da edi ção brasileira.

Fernando Rog ério Jardim


S ão Paulo, 10 de fevereiro de 2009

23

m& ..
y
CAPÍTULO I

A ECONOMIA POL Í TICA DA SOCIOLOGIA!


MARX ENCONTRA BOURDIEU

A agenda dos encontros

Os tolos correm por onde até os anjos temem pisar. Ocupar- se criticamente
dos trabalhos de Pierre Bourdieu é dessas tarefas intimidantes ou , quem sabe,
temerárias. Pierre Bourdieu foi e é o maior soci ólogo de nossa época . Ele é
o ú nico a ser considerado o pai fundador contemporâ neo da sociologia, com
envergadura compará vel a Durkheim , Weber e Marx. Como estes , Bourdieu
era versado em filosofia, história e metodologia; e, como eles, Bourdieu possu ía
teoria própria e bastante desenvolvida sobre a sociedade contemporâ nea, sua
f
reprodu ção e sua din âmica. Al ém disso , assim como aqueles autores , seus
trabalhos são incansável e simultaneamente teó ricos e empíricos , estenden -
-
do se desde a obras sobre fotografia e literatura , pintura e esportes até à
an álise da estratificação social contempor â nea, da educaçã o, da linguagem
e do Estado. Seus escritos transpõem as fronteiras da sociologia e da antro-

í

pologia sobretudo com sua abordagem das estratégias sociais das fam ílias
camponesas do B é arn*, onde ele nasceu . Incluem -se aqui seus livros a res -
peito da Argélia, escritos durante o período das lutas anticoloniais, época em
que ele iniciava sua carreira de sociólogo. Os m é todos utilizados por Bourdieu
í

* Béarn. Região dos Pireneus a sudoeste da França, na fronteira com a Espanha, pertencente
ao departamento da Aquitâ nia. ( N. do T. )

25
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
.
A ECONOMIA POL Í T I C A DA SOCIOLOGIA ' MARX ENCONTRA BOURDIEU

vão desde sofisticadas an á lises estat ísticas até entrevistas aprofundadas


e que rompia com o senso comum , uma ciê ncia que se tornava frequentemente
observações participantes. Suas inovações metateó ricas, aplicadas
ra incansável a diferentes contextos histó ricos e a várias esferas da
de manei- —
inacessível , Bourdieu també m foi o maior soció logo p ú blico da nossa é po-

de , giram em torno do desenvolvimento da teoria dos campos


socieda- -
ca ; foi o porta voz de diversas questões importantes , tanto na França como no
sociais , da mundo afora. Ele se tornou mais e mais franco e direto à medida que sua car-
noção de capital e de habitus. Não houve outro sociólogo com sua
origina - reira e prestígio avançavam , desenvolvendo sua pr ópria revista, uma revista
lidade e amplitude; nem com sua influ ê ncia sobre tal variedade de
disciplimas europeia sobre livros e uma série de obras de alcance popular. Ele era visto
nas ciências sociais e humanidades.
com frequência na cena pública, muitas vezes, atacando a própria imprensa
Se existe alguma quest ão que perpasse toda a sua obra, esta é
o tema do que lhe dava esse acesso ao p ú blico. Ele se tornou um polemista contumaz
desmascaramento da dominação, sobretudo a an álise da dominação simbó
lica
— a dominação que n ão é reconhecida como tal. Porque , quando os
telectuais denunciam a violê ncia f ísica pelo mundo afora, eles n ã o percebem
-
in-
contra o fundamentalismo de mercado que invadia e distorcia a lógica dos
campos de produção intelectual e cultural. Embora grande parte da sua obra
seja dif ícil de acompanhar e de compreender, porque Bourdieu parecia com-
que são, també m eles próprios, os perpetradores de outra forma
a violê ncia simbólica que dissimula a dominação tomada como
de violência; -
prazer se em tomar-se dif ícil, seus escritos dos anos 1990, bastante politizados,
dada ( d óxica ) certamente empregaram a energia e o f ôlego da polêmica. Seu livro mais ven -
e incorporada aos corpos e à linguagem dos indiv íduos
cujo uso é monopolizado pelo Estado tanto quanto a forç a
.
Eis uma violência dido, A miséria do mundol , foi um enorme projeto cooperativo e transconti-
f ísica. Ao exami- nental que descreveu o sofrimento das classes dominadas na linguagem dos
nar os dominantes e os dominados, Bourdieu direcionou seus
holofotes n ão próprios sofredores. Tamanha foi sua celebridade, que seu falecimento em 2002
apenas para os camponeses e trabalhadores, mas també m para
diferentes ocupou a primeira pá gina do jornal Le Monde*. Ele havia ent ã o se tornado não
camadas da classe dominante e da pequena burguesia; e não apenas
para os apenas um sociólogo pú blico global, mas também um intelectual pú blico glo-
pintores e escritores , mas também para os acadê
micos que perpetuam essa bal por excelência.
-
violência simbólica. Bourdieu revela nos quem somos por
objetividade científica: ele aponta para as formas pelas
trás do biombo da É, pois, aqui, nos fundamentos da sociologia crítica e pú blica, que eu de-
quais nós enganamos sejo iniciar alguns di álogos com Bourdieu . Mas o que isso significará ou em
a n ós mesmos e às outras pessoas com nossas ilus ões.
Dessa forma, a socio- que contribuirá para a sociologia crítica e pú blica , se ( como tenho dito ) as
logia que aplicamos aos demais objetos precisa ser aplicada
— igualmente

e justamente a n ós mesmos. Sua insistência na
reflexividade foi incansá -
vel, afirmando que sua proposta não era denunciar ou incriminar
os colegas
classes dominadas não têm capacidade de compreender a sociologia feita sobre
sua própria opressão e as classes dominantes são t ão antipá ticas à mensagem
da violência simb ólica ? Como poderã o os pú blicos da sociologia cr ítica se
cientistas, mas libertá-los das ilusões escolásticas que surgem
das condições estender para além dos sociólogos e intelectuais aliados nessa nossa “Interna-
especiais nas quais eles produzem o conhecimento, a
rante as necessidades materiais imediatas. Para Bourdieu
saber, a liberdade pe-

cional dos Intelectuais” expressão que Bourdieu adorava. O paradoxo radi -

——
, conhecer melhor ca na contradição entre a teoria de Bourdieu que sugeria que a audiê ncia da
as condições de produção do conhecimento é a condição para
um conhecimento melhor.
a produção de sociologia fosse drasticamente reduzida e sua prática política engajada —
que coloca Bourdieu entre as principais lideran ças p ú blicas e críticas de nosso
Contudo, Bourdieu n ão se voltou apenas para dentro do mundo
acad êmico; tempo. Então, para nosso autor, qual seria a relação entre a teoria e a prá tica ,
ele també m se dirigiu para fora dele . Com efeito, o momento
da autoan álise entre os intelectuais e seus diferentes p ú blicos? Eis a questã o que dominará
acadêmica foi sua preparação para o momento da análise
social*. Ao mesmo todos os nossos encontros com Bourdieu .
tempo que defendia obstinadamente a sociologia
como ciência uma ciência —
* No original: Indeed. he turned inward in order to better turn
para dentro para melhor ir para fora.) (N. do T.)
outward . ( Com efeito, ele foi
* Bourdieu faleceu devido ao câncer em 23 de janeiro de 2002. ( N. do T. )

26
27
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
.
A ECONOMIA POL Í TICA DA SOCIOLOGIA ' MARX ENCONTRA BO URDI EU

Relendo Bourdieu com óculos marxistas falecidos poderia confrontar as alegações de Bourdieu . Por isso , eu trago-os
É simplesmente impossível abordar o trabalho de
de volta à vida para se encontrarem com ele e conosco .
Bourdieu diretamente. A Eu não desejo e não posso recriar aqui todo o campo dentro do qual Bour-
abordagem precisa começar pelas bordas*. Ele próprio sempre
defendeu que dieu estava inserido. Essa tarefa estaria muito alé m das minhas capacidades
ler um autor ou uma autora era, antes de tudo, localizá-lo ou
localizá -la dentro documentais, porque incluiria aí os filósofos , os linguistas , os cr íticos art ísti -

de um campo de produção intelectual com seus antagonista
e aliados que são assumidos como dados e que invisivelm
s, competidores
ente conformam as
cos e literários, assim como os sociólogos e os antropólogos, enfim , todo o
campo intelectual francês. Ali á s , a prova do estatuto ol ímpico atingido por
prá ticas dele ou dela. Em As regras da arte 2 , Bourdieu
mostra- nos como Gus- Bourdieu dentre os deuses da teoria social é que podemos escolher quase
tave Flaubert** possuía certa percepção misteriosa de um
incipiente. E claro que Bourdieu (secretamente ou
campo literário ainda —
qualquer grande pensador da sociologia a começar por Weber e Durkheim ,
mesmo de forma incons-
ciente) se identificava com Flaubert em seu próprio projeto de — -
Marx e Simmel e introduzi lo em um diálogo proveitoso com Bourdieu .


verdadeiro campo sociológico primeiro nacional e depois
Mas Bourdieu nunca se empenhou no exame daquele campo
ele talvez fosse o principal representante: o campo acadê
fazer nascer um
global.
dentro do qual
Por isso, eu escolhi um conjunto especial de teóricos da sociedade que peram -
bulam feito fantasmas por toda a obra do autor. Diferentes de Bourdieu , eles
acreditavam que os dominados (talvez alguma parte destes) pudessem sob
mico francês. O mais certas condições perceber e avaliar a natureza da sua própria opressão. Com
. próximo que ele chegou disso foi com seu Homo academicu 3
ele se propôs a fazer uma análise do campo acadê mico franc
s —
livro no qual
ês era bloco, quer
efeito, aqui eu me refiro à tradição marxista que Bourdieu empregava mesmo
sem admitir isso, chegando inclusive ao ponto de recusar à tradição marxista
dizer, ele examinou as relações entre as disciplinas acad
êmicas mas não exa- algum lugar no campo intelectual descrito por ele. Para iniciar nossos encon-
minou o próprio campo disciplinar. Não obstante sua
insistência na “heteroa- tros com Bourdieu , escolhi teó ricos marxistas com perspectivas diferenciadas
nálise” do campo e não obstante sua breve “autoan á lise”
do pró prio divórcio acerca do papel e do lugar dos intelectuais na teoria social e na vida p ú blica
com a filosofia, existem claros limites à reflexividade em
Bourdieu. Em sua e política, a saber, Antonio Gramsci, Frantz Fanon e Simone de Beauvoir. Eu
concepção do campo sociológico francês, ele pôs a si
mesmo no centro e todos começ arei então com Karl Marx , cujo calcanhar de aquiles é, sem d ú vida , a
os demais competidores foram simplesmente rejeitados ou
relegados a meras ausê ncia de uma teoria dos intelectuais; terminarei então com Wright Mills ,
notas de rodapé. Minha tarefa aqui é ressuscitar alguns
desses ídolos mortos e cuja arquitetura teórica é similar àquela erguida por Bourdieu.
restituir suas vozes para poderem responder a Bourdieu.
são uma reconstituição imaginária sobre como
Essas conversações Embora Marx nunca tenha devotado séria aten çã o à quest ão dos intelec-
essa série de teóricos sociais
— —
tuais o lugar deles na sociedade e seu processo de trabalho , sua teoria
do capitalismo como sistema de produção autorreprodutivo e autodestrutivo
está, todavia , inserida profundamente no tratamento que Bourdieu d á aos
* No original: The approach has to be circuitous. (A abordagem
.
( N do T. )
tem de ser perimetral). campos de produção intelectual e cultural. A estrutura subjacente em Bour -
** Gustave Flaubert (1821-1880), escritor francês da escola dieu é similar ao compromisso de Marx e de Engels com o pensamento he -
realista, famoso por sua objetivi-
dade e preciosismo estil ístico. O primeiro e mais lido
romance de Flaubert , Madame Bovary geliano, tal como esboç ado em A ideologia alemã4. Contudo, Bourdieu des-
(1857), foi baseado em fatos da vida
blica da é poca, por sua devastadora
cotidiana e provocou grande impacto na opini ã o pu
Segundo Flaubert, não devia haver tema proibido
-
cr ítica à s convenções hipócritas da sociedade burguesa
.
via isso para outra direção — mais rumo ao estudo dos campos culturais do
que no sentido do campo econ ómico. A partir de Marx , n ós iremos para
para a literatura, assim como nã o existia
para a ci ê ncia. Flaubert presenciou impassí vel os Gramsci e sua teoria sobre os intelectuais, que traz à tona a ideia da hegemo-
eventos políticos da França ( 1848 -1852),
sem tomar partido, como o faria mais tarde Émile Zola (
Flaubert foi descrita por Bourdieu como típica do campo -
1840 1902). Por isso, a postura de
literário em processo de autono-

ma esse conceito à primeira vista tão similar, porém, em uma análise final,
mia, em que a regra da arte pela arte se contrapõe à “ bastante diferente do conceito bourdieusiano de dominação simbó lica. O
da arte dita burguesa” (sensível às
pressões externas do mercado editorial) e à da segundo encontro é, portanto, a tentativa de “acertar as contas ” entre Bourdieu
“arte dita engajada” (comprometida com as
ideologias pol íticas). Ver Pierre Bourdieu, As regras
da arte: génese e estrutura do campo e Gramsci. Ali n ós examinaremos a ação estratégica dentro dos campos cul -
-
literário, 1996, pp. 63 132. ( N. do T.)
turais , concebida nos termos da metáfora do jogo — amplamente utilizada

28
29

-
ju~.
I
0 MARXISMO ENCONTRA BO URDI EU
A ECONOMIA POL ÍTICA DA SOCIOLOG IA : MARX ENCONTRA BOURDIEU

por Bourdieu . No terceiro encontro, eu evocarei minha pr


ópria experiência Bourd ieu e A ideolo gia alem ã
na an álise dos jogos em ambientes de trabalho no capitalismo t
e no socialis-
mo, a fim de me perguntar em que condições os trabalhad
ores poderiam No cora çã o do projeto te ó rico de Bourdieu encontraremos a tentativa de
à qual Bourdieu teve apenas uma remota suspeita .

enxergar através dos jogos e para alé m dos jogos possibilidade
em relação superação das falsas oposições e de caracterização de uma distinção em par-
Iremos daí para o quarto encontro e os primeiros trabalhos de ticular : aquela entre a l ógica da teoria e a l ógica da prática , ou , como ele
Bourdieu com frequ ência denominou referindo-se à cr ítica de Marx a Hegel , a distin ção
sobre a questão argelina, nos quais seu antagonista silencioso era
Frantz Fanon entre as “coisas da l ó gica ” e a “ l ógica das coisas ”. Concretamente, isso sig-
e sua teoria sobre o papel e o lugar dos intelectuais nas lutas
anticoloniais, em nifica que as condi ções socialmente necessá rias para a produ ção do conhe -
que estes podiam ser encontrados apoiando tanto a burguesia
nacional como o cimento científico ( a academia e suas liberdades de competi çã o) s ã o pro-
campesinato revolucionário. Curiosamente, em oposição a
Fanon, nós encon- fundamente diferentes das condi çõ es nas quais o conhecimento é
tramos Bourdieu sendo o mais ortodoxo marxista ,
proclamando o potencial
revolucion ário da classe trabalhadora argelina. Embora alguns cotidianamente produzido . Existe, assim, certa ruptura entre o conhecimen -
comentadores to do dia a dia, os saberes populares, e o conhecimento científico ou escol ás-
tenham traçado certa linha de continuidade ou de estabiliza
ção nos escritos de
Bourdieu da sua fase argelina em diante, o tratamento dado .
tico Com bastante frequê ncia, essa distinçã o se desfaz pelos dois lados e a
por ele às classes própria ruptura é novamente partida: de um lado, por aqueles que projetam
trabalhadoras argelinas parece ser bastante diferente do tratament
o dispensado
à classe trabalhadora francesa, como vemos em sua obra
máxima, A distinção. -
a ciê ncia sobre a vida cotidiana ( Lé vi Strauss, os economistas ) , como se as
É dif ícil relacionar aqui as duas abordagens. A partir de pessoas de alguma maneira seguissem np dia a dia os princípios descobertos
Fanon, n ós iremos ao na academia ; e, do outro lado, por aqueles que reduzem a ciência ao conhe-
quinto encontro, dessa feita , entre Bourdieu e Beauvoir
em torno da quest ão
da dominação baseada no gênero. Ali nós veremos cimento cotidiano (os interacionistas simbólicos , a etnometodologia ) , como
a espantosa convergência se nada existisse além das teorias populares e o conhecimento de si . Bourdieu
dos dois em torno da import â ncia do poder simbólico
opõe-se a Bourdieu ao conferir às mulheres intelectuais
. Contudo, Beauvoir retoma e aprofunda a distinção entre a teoria e a prá tica , a começar por seu
a capacidade de enxer-
gar atrav és da submissão de um gê nero a outro e de
lutar contra eia. Por fim, —
Esboço de uma teoria da prática5 obra revisada algumas vezes depois da
primeira edi ção francesa (1972) e antes da vers ã o em ingl ês ( 1977 )
nós encontraremos Wright Mills, cujas teorias da estratific pros-
ação, da política, seguindo com A lógica da prática , de 19806, e culminando nas Medita çõ es
dos pú blicos e dos intelectuais se aproximam infimame
nte daquelas propostas
por Bourdieu. Como o t ítulo do ú ltimo capítulo sugere,
Bourdieu estadunidense antes mesmo do Bourdieu original
Wright Mills foi um —
pascalianas, de 19977 sua última elaboração teó rica geral.
Essa distinção entre teoria e prática é a mesma feita por Marx e Engels n’A
. E, com efeito, nós ideologia alemã e seu op ú sculo acessó rio: As teses sobre Feuerbach . Com
podemos encontrar várias referências favoráveis e
elogiosas a Wright Mills nos
escritos de Bourdieu. efeito, a arquitetura das Meditações pascalianas de Bourdieu manté m certa
Tanto Mills como Bourdieu tiveram rela ções ambíguas semelhança misteriosa com esses primeiros trabalhos de Marx e de Engels,
com Marx e o em que ambos acertam as contas com sua consci ência filosófica anterior : o
marxismo . Assim como Mills, Bourdieu tomara muitos
empréstimos de Karl
Marx, tal como ele às vezes admitia ; mas n ão houve ali
nenhum di á logo
.
idealismo alemão Na tradi ção hegeliana , a Histó ria é a histó ria das ideias, é
aberto ou consistente com o marxismo. Além disso, a manifestação da consciência , é a autocelebração do intelecto do intelectual .
Bourdieu deixou para
tr ás um conceito que foi deveras central para Marx , Em relação a isso, Marx e Engels manifestam sua desaprova çã o:
a saber, o conceito de ex-
ploração. Ainda assim, como procurarei mostrar a
seguir, a estrutura do envol-
vimento de Bourdieu com o universo da filosofia e
das ci ê ncias sociais é
Como temos ouvido dos ideólogos alem ã es , a Alemanha nestes ú ltimos anos pas -
análoga à luta corpo a corpo [ wrestling ] travada por sou por uma revolução sem precedentes nem paralelos . A decomposi ção da filosofia
Marx e Engels contra os hegeliana [...] tem levado a certa fermentação universal dentro da qual todos os ‘‘ po-
jovens hegelianos . deres do passado” foram solapados [...]. Essa foi uma revolu ção diante da qual a
Revolução Francesa parecia brincadeira de criança ; foi uma batalha mundial diante

30
31
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POL Í TICA DA SOCIOLOGIA ! MARX ENCONTRA BOURDIEU

da qual as batalhas dos diádocos* pareceriam insignificantes. Os princípios desloca- Os paralelos com Bourdieu são assombrosos! Bourdieu enumera ent ão cer-
ram-se uns dos outros; os heróis do pensamento rebelaram -se uns contra os outros —
tas “ilusões escolásticas” visões do mundo que são a projeção das condi ções
com inaudita celeridade; e em um prazo de três anos (1842-1845) o passado alemão de existência privilegiadas dos intelectuais, a saber, sua vida despreocupada e
havia sido varrido para longe, o que [ noutras épocas] levaria três séculos para ocorrer. livre das necessidades materiais imediatas que ele denominou skholè: condição
Supõe-se porém que tudo isso tenha ocorrido no campo do pensamento puro8. que nada mais é sen ão o produto da divisão apontada por Marx entre o trabalho
intelectual e o trabalho manual. Ignorando as condi ções especiais da sua exis-
Bourdieu escreve de uma forma semelhante: “Essa é a ilus ão típica do tência, os intelectuais tendem a universalizar seu próprio ponto de vista esco-
lector, o qual é capaz de tomar um comentá rio acadêmico como se fosse um lástico tal como ocorre no ideal habermasiano da comunicação sem distor-

ataque político ou de tomar a crítica dos textos por uma façanha de resistência, ções, ou como se d á na teoria da escolha racional. O leitmotif * de toda a obra
experimentando assim revolu ções na ordem das palavras como se fossem re - de Bourdieu pode ser encontrado na primeira tese de Marx contra Feuerbach
voluções na ordem das coisas”9. i e que também é a epígrafe do seu Esboço de uma teoria da prática:
— —
O problema afirmavam Engels e Marx é que os filósofos alem ães se
haviam alienado do mundo e imaginado seus produtos como provenientes de O principal defeito de todo materialismo até aqui (inclusive o de Feuerbach ) é que
uma terra de avassaladora importâ ncia: “Não ocorreu a nenhum desses filósofos as coisas, a realidade e a sensibilidade são concebidas apenas sob a forma de objetos ou
indagar qual era a conexão entre a filosofia alemã e a realidade alem ã; e qual de intuição, n ão como atividade prática humana sensível , como práxis, n ão subjetiva -
era a relação entre sua cr ítica e seu próprio entorno material”10. A raiz desse mente. Por isso, em oposi ção ao materialismo, o aspecto ativo foi desenvolvido pelo
autoengano jazia na divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, idealismo apenas abstratamente , porque, como é claro, ele n ão conhece a atividade
após a qual “a consci ê ncia pôde realmente se imaginar como algo diferente humana sensível e real como tal . Feuerbach quer conceber os objetos sens íveis como
da consciência da prá xis humana, como se ela realmente representasse algo, realmente distintos dos objetos do pensamento , mas ele n ão concebe a atividade huma-
sem todavia representar algo de real” 11. Assim nasceu a teoria pura. Os jovens na como atividade objetivan .
hegelianos não eram, pois, diferentes do seu mestre Hegel, opondo punhados de
frases a outros punhados de frases , sem ao menos confrontá-las com “o mundo O materialismo feuerbachiano adota certa postura contemplativa perante
realmente existente”. Eles imaginavam ser tão radicais, trazendo Hegel do céu o mundo, tomando este como objeto externo, deixando a postura ativa para o
para a terra, enquanto simplesmente reproduziam a filosofia hegeliana. No lugar idealismo, mas apenas “ abstratamente ”, uma vez que o idealismo reconhece
í
do espírito etéreo, eles passaram simplesmente a venerar “o homem ” n á sua tã o somente as ideias e a consciê ncia, sem abordar a atividade pr á tica que
forma idealista — —
como entidade ou como espécie em vez do homem na Marx reduziu à atividade econ ómica, transformando a natureza em um meio
sua existê ncia empírica . Marx e Engels propuseram essa quebra epistemoló- para a existê ncia humana. Similarmente, a lógica da pr á tica que Bourdieu
gica real, demandando novos pontos de partida. Eles insistiram em partir das apresenta é expressamente redesenhada para transcender essa divis ão entre o
premissas reais da histó ria: para sobreviverem , homens e mulhères precisam
procriar e produzir os meios necessários à sua sobrevivê ncia; e ao realizarem
materialismo e o idealismo

uma divis ão que é ela pró pria uma fun çã o da
condição escolástica. Bourdieu faz isso ao conceber a “ pr á xis” como produ ção
tais atividades, eles entram em relações uns com os outros. É apenas a partir de bens —n ão apenas materiais , mas també m de bens culturais.
dessa existência prá tica que a consciência emerge.

* Leitmotif ou Leitmotiv (motivo condutor). No decurso de uma ópera, trata-se do tema musical
utilizado para caracterizar um sentimento, um acontecimento ou um personagem , evocando

.
-
* A guerra dos diádocos. Referência aos membros do Estado Maior que lideravam os exércitos sua lembrança. Esse recurso foi empregado com frequ ência por Georges Bizet (1838- 1875 ) e
de Alexandre da Macedô nia Com a morte prematura deste, os diádocos entraram em conflito -
Richard Wagner (1813 1883). O autor refere-se aqui à constâ ncia da noção de habitus em
interno pela disputa da soberania territorial das conquistas alexandrinas. A guerra durou qua- Bourdieu , através da qual ele pretendeu combater tanto o mecanicismo estruturalista ( a nega-
tro décadas (323 a 280 a.C.). O resultado foi a fragmentação em vários reinos do que era até ção da ação livre) como o individualismo metodológico (a negação das imposições do mundo
.
então o maior império do mundo amigo ( N. do T.) social). Ver: Pierre Bourdieu, Meditações pascalianas, 2001, p. 169. ( N . do T.)

32 33

. àv.. .
O MARXISMO ENCONTRA B0 URD1EU I
A ECONOMIA POL Í TICA DA SOCIOLOGIA : MARX ENCONTRA BOURDIEU

Em outras palavras, enquanto Marx reduz a atividade prá tica à atividade


econ ó mica e sobre essa base constrói a hist ória humana como sucessão de A domina çã o econ ó mica e cultural
modos de produ ção , Bourdieu estende a ideia da atividade prática às esferas
de produção intelectual . Eis o ponto em que Bourdieu se aproxima e se dis- Os estranhos paralelos continuam. Baseando-se no modelo de O capital de
tancia de Karl Marx. Em sua an álise da economia do ponto de vista da pro Marx para as esferas cultural e pol ítica , Bourdieu desenvolve outra seçã o de A
du ção, a teoria marxista do capitalismo torna-se um decalque, o modelo para
- —
ideologia alemã a famosa e muito debatida passagem das ideias dominantes


a an álise de Bourdieu da produ ção cultural a literatura, a pintura, o jor-
nalismo e as disciplinas acadê micas. O que Marx oferece é uma teoria do
como sendo as ideias da classe dominante13:

As ideias da classe dominante são em todas as épocas as ideias dominantes, quer


capitalismo como sistema que se reproduz , porém, ao fazê-lo, gera a dinâ mica
dizer, a classe que é a força material dominante de uma sociedade é ao mesmo tempo
responsá vel por conduzi-lo fatalmente à autodestruiçã o: gera um sistema que
sua for ça intelectual dominante. A classe que tem os meios de produ ção material à sua
se transforma igualmente em uma arena de lutas . Eis os mesmos elementos
disposição disporá também dos meios de produção intelectual. Por isso, geral mente, as
da teoria dos campos proposta por Bourdieu. Esta é focada nas relações so-
ideias daqueles que não possuem os elementos de produ ção intelectual estão sujeitos
ciais que precedem os indiv íduos, na ação estratégica desses atores procu -
rando maximizar seus lucros (material -simbólicos) ações que são confor-
à s ideias dessa classeH .

madas , primeiramente, pelo próprio campo com suas regras e, posteriormente,
Aqui, Marx e Engels sugerem que as classes dominadas , em vez de criarem
pela distribuição desigual do capital específico desse campo. Tanto em Marx
suas próprias “ideias” (“consciência”), estão sujeitas às ideias da classe domi -
como em Bourdieu , a ação estrat égica torna-se rapidamente uma luta para
conservar ou para subverter os poderes dominantes no interior do campo.
nante. O ponto nodal aqui está no significado da express ão “sujeitas a”
caso é saber se isso contradiz ou talvez impeç a Marx de descrever em outra

o
Enquanto Marx está interessado em uma sucessão hist órica dos campos
ocasiã o o desenvolvimento da consciê ncia de classe por meio das lutas de
económicos (os sistemas de produ ção) , Bourdieu est á interessado na coexis
- classe. Muito embora eu não possa apontar em Bourdieu referê ncias a essa

tência simultânea de diversos campos o econ ó mico , o cultural , o político
etc. Portanto, ele n ão vê lima ú nica forma de capital , mas uma s érie de capi-
passagem, ele frequentemente se referia à cultura da classe dominada como
uma cultura dominada. Al ém disso, aqui est á a origem da crítica feita por
tais t ípicos a cada campo. Da í ele levanta questões (embora raramente ofe
reça respostas ) acerca da conversibilidade de uma certa modalidade de capi -
- Bourdieu aos intelectuais marxistas, cujas condições de existência os levava a
deplorar as condições de existência da classe trabalhadora, visto que esta se
tal em outras. Há insinua ções pouco elaboradas conforme as quais o campo
encontra adaptada àquelas condições, fazendo da necessidade sua maior vir-
económico domina os outros campos, todavia, na maioria das ocasiões, Bour-
tude. Conforme Bourdieu , os intelectuais marxistas projetam falsamente seus
dieu examina as conex ões entre os campos atrav és dos efeitos sedimentados
próprios habitus sobre a classe trabalhadora; com isso , iludem -se ao imaginar
nos habitus dos indivíduos: as “ percepções e apreciações” inscritas em seus
que os trabalhadores tenham disposições e aspirações revolucion á rias.
corpos e almas. Visto que Marx está preocupado unicamente com a dinâ mi
- Tomando a tese da ideologia dominante como ponto de partida , somos le-
ca de apenas um dos campos , ele se concentra mais na l ógica interna desse
vados então a examinar a produção daquelas ideias dominantes da classe do-
campo e menos nos efeitos dos outros campos sobre os indiv íduos ( trabalha -
dores e capitalistas) partícipes dos demais campos. Por essa razão, Marx não —
minante eis precisamente o propósito de Bourdieu . Em A distinção, ele faz
uma diferenciação entre as v árias camadas da classe dominante que possui
necessita de um conceito t ão traiçoeiro como o habitus, porque a lógica
das certa estrutura vertebral [ chiliastic ] , dividindo-a entre aqueles que s ão ricos
relações econ ó micas domina a prá xis humana em sua globalidade.
em capital económico e aqueles que são ricos em capital cultural: em outras
palavras, eis aqui a distinção entre a acumulação econó mica e a produção da
ideologia. No pará grafo seguinte, a citação de Marx e de Engels refere-se
justamente ao mesmo aspecto:

34
35
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
i A E C O N O M I A P O L ÍT I C A D A S O C I O L O G I A : M A R X E N C O N T R A B O U R D I E U

A divisão do trabalho [...] manifesta-se também no seio da classe dominante como


vezes Bourdieu defendeu a autonomia desses campos como condi ção para a
divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho manual , de uma forma tal que, no inte-
:
realização cultural dos valores humanos universais. Contudo, ao mesmo tempo,
rior dessa mesma classe, parte dela aparece como os pensadores da classe (seus ideólo-
essa autonomia reproduz e mistifica a dominação simbó lica que ele pró prio
gos conceituais que fazem das ilusões que essa classe tem de si mesma sua principal i denunciou.
fonte de ganho) , enquanto a atitude dos demais perante tais ideias e ilusões é passiva e
receptiva, visto serem eles os membros mais ativos dessa classe e possu írem certamen
te menos tempo disponível para produzir ideias e ilusões acerca de si. Dentro dessa
-
classe, tal clivagem pode até gerar oposição e hostilidade entre as duas metades [.. 13. Para onde foi a explora çã o ?
J

Marx e Engels estão descrevendo exatamente aquilo que Bourdieu analisou -


Até aqui , tenho me concentrado na forma pela qual Bourdieu desenvolveu as
como sendo a luta entre a fração dominante da classe dominante (a burguesia) ideias de Marx. Contudo, em um aspecto fundamental , Bourdieu também se
e a fração dominada da classe dominante (os intelectuais). desviou do marxismo na apropriação que fez do modelo dos campos baseado
Se Marx e Engels nunca pesquisaram detidamente como é que os “ ideó- em O capital, em especial pela supress ão da categoria de exploração que —
logos conceituais criam as ilusões de uma classe sobre si mesma”, é esse o é tão central à an álise marxista do capitalismo. Central també m é a rela ção
âmago do projeto ao qual Bourdieu se dedicou: as formas pelas quais a cul- recíproca entre a exploração (relações de propriedade, de produção, de distri -
tura é produzida e a forma pela qual sua transmissão e seu consumo mascaram buição) e a própria produ ção (o processo de trabalho , a divisão do trabalho, as
a dominação da classe dominante. Aqui, ent ão, nós completamos todo o cir- relações produtivas). A análise feita por Bourdieu dos campos sociais tende a
cuito , voltando ao uso que Bourdieu fez de O capital como decalque ou colapsar essas duas relações, reduzindo a divisão do trabalho à simples posse
modelo para seu estudo da histó ria dos campos de produ ção artística e cul de um capital e, com isso, eclipsando a ideia da explora ção que, pelo menos
-

tural a literatura, a fotografia , o jornalismo, a pintura e da í por diante. Mas
aqui encontraremos o seguinte paradoxo: o poder simbó lico de um produto
no esquema marxiano, conduzia às lutas de classe .
N ós podemos verificar isso mais claramente na notá vel descrição que
cultural reside justamente na autonomia usufruída por seus campos de pro Bourdieu fez do sistema econ ó mico em As estruturas sociais da economial 6:
-
dução — autonomia necess á ria para que a distinção conferida por seu con
sumo seja vista como algo naturalizado e desconectado das precondiçõ es
-
sua análise das estruturas de produ çã o e consumo no mercado imobili á rio .
Aqui, o campo de produção é apresentado como a luta competitiva entre
econ ó micas e dos fundamentos de classe social. Bourdieu era um obstinado mercados nacionais e mercados regionais, entre a constru ção de mans ões e
defensor dessa autonomia contra sua distorçã o pela regulaçã o estatal e so- a constru ção de ind ústrias, apelando a um mercado socialmente estratificado.
bretudo pelas forças do mercado
—uma autonomia que, por sua vez, legiti - A maior parte do livro é dedicada à descrição do modo como o Estado estru -
ma a desigualdade tanto no consumo como na produçã o; uma autonomia que tura tanto a produ ção c ó mo o consumo e, assim , cria campos homó logos que
endossa a mentira segundo a qual a produ ção de ciê ncia e de cultura inde- .
se encaixam com relativa perfei ção Para Bourdieu , o capital ( tanto o econ ó -
pende de condições de existê ncia ; uma autonomia que engendra a falsa mico como o simbólico) determina a posi ção do agente no campo: o capital
ideia
de uma frui çã o estética pura e, portanto, mistifica a dominação. é possu ído e acumulado pelos agentes durante suas lutas competitivas . Con -
Então, como pôde Bourdieu defender, como projeto político, a mesmíssima tudo , Bourdieu n ão revela a relaçã o desse processo com nenhum conceito
autonomia que sustenta a dominação que ele abominava? Aqui , Bourdieu jus que evidencie a exploração . O capital é sim uma relação, porém , nesse caso,
tifica a proteção da autonomia dos campos baseando-se em uma crença utópi
- t é mais uma relaçã o entre capitalistas do que uma rela ção entre capitalistas e
- trabalhadores.
ca na universalização do acesso às condições da universalidade, reverenciada
em oposição à valorização da arte popular, tida por ele como arte falsa. Decer Claramente, a an álise que Bourdieu faz da economia é destinada a realçar
to, a cultura popular é com frequência o cavalo de troia das forças do
- sua dimensão cultural. Ora, que melhor objeto há para fazer isso sen ão as casas,
mercado
que subvertem a lógica do campo cultural. Como veremos ainda, por várias que são simultaneamente um objeto material e um objeto cultural ? Algu é m
poderia mesmo inserir novamente conceitos de exploração nos bastidores da

36 37
O MARXISMO ENCONTRA BO URDI EU : A ECONOMIA POL Í TICA DA SOCIOLOGIA : MARX ENCONTRA BO URDI EU
\

produção imobiliá ria ao considerar os detalhes do processo de trabalho; e, l O campo sociol ó gico
í
com efeito, h á ind ícios disso em As estruturas sociais da economia. Mais
interessante, porém , é o papel da exploração nos campos cultural e intelec - Consideremos agora o campo da sociologia estadunidense. Como então po -
tual. Ao escrever sobre a segunda dimens ão dos campos culturais, Bourdieu deríamos introduzir a distin ção marxista entre a divisão do trabalho ou a —
concentra- se nos desafios da vanguarda art ística ; ele n ão vê o relacionamento
entre os dominantes e os dominados em termos de exploração simbólica, mas
produ ção de diferentes modalidades de conhecimento


e as “ relações de
produção” ou a distribuição do capital acadêmico sobre a qual elas se de-
em termos de uma luta para dominar o campo e definir seus termos. senvolvem ? Nós podemos começar aqui com a distinçã o feita por Bourdieu
Como ent ã o poderíamos incorporar a dualidade marxiana às rela ções entre os polos autónomo e heterônomo do campo. Quer dizer: n ós precisamos
interiores aos campos culturais — com o reconhecimento tanto da domi
naçã o como da exploração? Aqui , eu preciso retornar à questão do campo
- diferenciar a sociologia que é produzida para nossos colegas soci ó logos ,
de um lado, da sociologia produzida para o consumo fora da academia , de
sociológico , do qual fal á vamos acima. Isso é importante porque, como dis-
se antes, malgrado toda a sua preocupação com a reflexividade , Bourdieu
outro — nossas audiê ncias acadêmica e extra -acadê mica, respectivamente.
Bourdieu era muitíssimo desconfiado desta ú ltima, por temer sua influência
nunca prestou muita aten çã o ao seu pró prio campo: o campo sociol ógico. corruptora sobre a autonomia do conhecimento. N ão obstante, ele reconhecia
Seu Homo academicus 11 compara disciplinas dentro do campo acad ê mico que, se a sociologia n ão possuísse nenhuma audiê ncia mais ampla, n ós bem
francês , indo desde aqueles campos mais heterô nomos , da advocacia e da que poderíamos arrumar nossas malas e partir. Ele mesmo jamais perdeu
engenharia, intimamente conectados a outros campos para al é m do uni - oportunidade de se comunicar com audi ê ncias mais amplas.
verso acad ê mico, até os campos das artes e das ci ências. Dentro destas , Isso nos leva à segunda dimens ã o da divisão do trabalho. Bourdieu era um
ele apresenta um ranking de prest ígio das disciplinas, que ele sugeriu ser crítico severo e mordaz dos sociólogos que ele considerava servos do poder e
hom ó logo ao prestígio e à reputa ção das credenciais educacionais
próprias ligadas às origens de classe dos estudantes e professores. Mesmo
— elas dos especialistas que viviam a serviço das elites e que produziam aquilo que
eu costumo chamar de sociologia para políticas p úblicas. Bourdieu , contudo,
dentro das humanidades e das ciê ncias sociais, h á algumas disciplinas que era favorável e simpático àqueles que se dirigiam aos p ú blicos mais amplos
são mais autónomas que outras. Esse é o caso da sociologia: como disciplina para tratar de temas de fundamental import â ncia para a sociedade, aquilo que
pá ria e dotada de posições políticas antagó nicas, ela é menos propensa a ser
eu costumo chamar de sociologia p ública. Trata - se aqui de uma diferen ç a
cortejada pelas classes dominantes.
Se Homo academicus oferece um quadro inicial para a observa çã o do
antiga — central para Weber e para os filósofos de Frankfurt *
um lado, o conhecimento instrumental , que toma como dados os fins e os
entre, de —
campo socioló gico , a an álise que Bourdieu fez do campo científico oferece - meios, preocupando-se simplesmente com os meios mais eficazes para atin -
nos um segundo quadro18. Aqui , ele advoga que a ciê ncia avan ça por meio
da competição pelo lucro simbólico dentro do campo. Em certo trecho das
* Escola de Frankfurt: movimento filosófico fundado em 1923 e vinculado à Universidade de
Meditações pascalianas19, Bourdieu compara a competi ção no campo cientí- Frankfurt. Seu primeiro expoente foi Max Horkheimer ( 1895 1973), cuja Teoria Cr í tica possu ía
-
fico com os combates de guerrilha. Porém, quando essa competir ão se inten- inspiração marxista e freudiana. Para essa escola , o marxismo , como qualquer outra teoria ,
sifica , ocorre a concentra çã o do capital específico nas m ãos de um n ú mero deveria se submeter à cr ítica . Seus membros admitiam que a revolução proletá ria que haveria
de libertar a humanidade não era inevit á vel como o postulavam os marxistas e que o próprio
cada vez menor de indivíduos dominantes . Contanto que o campo seja rela
- pensamento te órico n ão era completamente independente das for ças sociais. A fun ção da teoria
tivamente autó nomo, nenhum problema há nisso. Existem sempre renova ção -
critica seria analisar e revelar as origens dessas teorias , sem aceitá las de imediato, como o

— —
e inovação na academia , porque os pretendentes ao trono a juventude e
os sucessores certamente desafiarão os titulares do posto . Seja em Homo
academicus, seja na an álise do campo cient ífico, a problem á tica da explora
faziam os empiristas e os positivistas, pois isso implicaria se submeter à s condições opressoras
das quais o pensamento instrumental é a expressã o e a ferramenta . Em 1934 os nazistas fecha-
ram o instituto que abrigava esse movimento filosófico, por suas tendências esquerdistas e pela
origem judaica da maioria dos membros, muitos dos quais se exilaram . O instituto foi reaberto
- em Nova Iorque e só retornou a Frankfurt no início dos anos 1950. Dentre os filósofos de
çã o aparece em Bourdieu, no pior dos casos, como um fenô meno perifé rico.
- -
Frankfurt, destacam se Theodor Adorno (1903- 1969), Walter Benjamin (1892 1940 ) , Herbert
Marcuse (1898-1979) e Jurgen Habermas (1929 ). ( N. do T.)

38 39
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POLÍ TICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURDIEU

gir os fins, e, do outro lado , o conhecimento reflexivo , que se interroga sobre tem , contudo, algumas intersecções interessantes: com membros de departa-

aqueles mesmos fins e meios de uma maneira mais discursiva o que Weber
chamou de discussão valorativa. O conhecimento reflexivo coloca na berlin- I
mentos de primeira classe apoiando e participando ativamente da sociologia
p ú blica ; e com membros de departamentos de segunda classe advogando e
da os fundamentos do conhecimento instrumental: e a sociologia pú blica faz praticando ativamente a sociologia profissional . Esses dois lados desempenham
emergir questões que a sociologia para políticas p ú blicas costuma ignorar ou papéis-chave nas lutas do campo. Na tabela a seguir, vemos a distribuição do
-
rejeitar. A distinção reflexivo instrumental aplica-se nã o apenas à audiência capital acadê mico.
extra-acadêmica, mas também ao hermeticamente fechado mundo acadêmico.
Aqui , nós distinguimos, de um lado , a resolu ção de quebra-cabeças teóricos Tabela 2: A distribui ção do capital acadêmico
no interior de programas de pesquisas divergentes que tomam como dados os
Destino: departamentos Destino: departamentos
pressupostos morais, teóricos e técnicos da sociologia profissional, e, de outro
de primeira classe de segunda classe
lado, a sociologia crítica, que examina aqueles mesmos pressupostos morais,
Origem: departamentos Situacionistas Desclassificados
teóricos e técnicos, primordialmente, no interior da academia. Nesse quadrante,
de primeira classe
nós poderíamos encontrar a sociologia crítica de Gouldner, Wright Mills, So-
Origem: departamentos Aspirantes Explorados
rokin, Lind e outros, que foram decerto muito críticos dos pressupostos tácitos
de segunda classe
da sociologia profissional estadunidense . Na tabela a seguir, vemos a divisão
do trabalho sociológico20.
O segundo movimento do argumento marxiano contra Bourdieu é reco-
Tabela 1: A divisão do trabalho sociológico nhecer e denunciar a distribui çã o desigual do capital acad ê mico como sendo
a base para futuras relações de explora çã o. Quer dizer: as prerrogativas para
Audiência acadêmica Audiência extra-acadêmica
fazer pesquisa em departamentos de primeira classe ou para obter remune-
Conhecimento instrumental Profissional Para políticas públicas ração igualmente alta dependem de uma carga extra de trabalho intelectual
Conhecimento reflexivo Crítico Público com baixos salá rios naqueles departamentos de segunda classe, incluindo , é
claro, o emprego mal remunerado de trabalhadores tempor á rios e estudantes
O primeiro movimento do argumento marxiano contra Bourdieu consiste de graduação empregados como professores, inclusive em departamentos de
em distinguir e separar a divisão do trabalho socioló gico (como parte do cam- primeira classe. Essa desigualdade entre o trabalho realizado e o pagamento
po acadêmico) da distribuição do capital específico desse campo, nesse caso, recebido é justificada com base em uma meritocracia dos talentos: os melho -
o capital científico-acadêmico. Aquilo que está em disputa no jogo acadêmico res sociólogos estariam alocados nos melhores departamentos e os melhores
é o reconhecimento conferido pelos pares concorrentes e, nesse aspecto, o estudantes seriam contratados como estagi á rios . Mas tudo isso mascara as
capital acadêmico depende a) da posição do departamento onde se está empre
- relações de exploraçã o no interior do campo , assim como as vantagens dife-
gado atualmente e b) da posição do departamento onde se fora treinado antes. renciais oferecidas pelo departamento no qual se fora treinado antes. A desva-
É claro que cada agente possui seu próprio capital acadê mico individual , ba- —
lorização das sociologias crítica e p ú blica quer dizer, as sociologias asso -
seado em publicações, em distinções, em prémios; mas tudo isso está infima- —
ciadas aos departamentos perif é ricos , como se fossem sociologias
mente relacionado à afiliação desse agente a determinado departamento. Além inferiores, esconde as relações de exploração entre os departamentos de pri -
disso, estudos anteriores indicam que aqueles agentes especializados em co
- meira linha e os departamentos de segunda linha , bem como a exploração no
nhecimento instrumental (profissional e para políticas pú blicas) gerãlmente interior dos próprios departamentos centrais .
foram treinados em departamentos de primeira classe [ elite ] , enquanto aqueles O terceiro movimento contra Bourdieu consiste em questionar sua noção
agentes cujo foco se volta mais para o conhecimento reflexivo (cr ítico e p ú bli- de campo científico que ele circunscreve apenas à sociologia profissional . Sua
co) tendem a lecionar em departamentos de segunda classe [non-elite], Exis
- análise reduz as lutas no interior do campo à competição entre os pesquisado-

40 41
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POLlTICA .
DA SOCIOLOGIA * M A R X ENCONTRA BOURDIEU

res estabelecidos e às sucessivas batalhas entre estes e a nova geração. Bour- tando negativamente todos eles. Num esforço para manter o controle da disci -
dieu n ão vê que, para alé m do campo científico da sociologia profissional, plina, a sociologia profissional alega que já faz sociologia pú blica h á décadas ,
h á o campo disciplinar que inclui n ã o apenas as sociologias profissional e que já é por si mesma cr ítica e, sendo assim , n ão existiria necessidade alguma
para políticas p ú blicas , mas també m as sociologias cr ítica e p ú blica, dessa da divisão do trabalho. Outra estratégia deles consiste em argumentar que a
forma , incluindo tanto os departamentos de primeira classe como os depar- valorização da sociologia p ú blica levaria a polarização pol ítica para dentro da
tamentos de segunda classe. O que está em jogo aqui é a pró pria definição . academia, deslegitimando, com isso, a já insegura profissão de sociólogo e
,


de campo o científico versus o disciplinar. Bourdieu limita o campo à que- pondo em xeque suas pretensões científicas. Estas são as estratégias ( no sen -
les departamentos l íderes onde a pesquisa científica est á concentrada, diri- tido que Bourdieu confere ao conceito) que eles mobilizam, embora nunca o
gindo terríveis ataques aos colegas que vendem sua perícia técnica ao Estado façam expressamente ou cinicamente, pois tampouco eles as reconhecem como
e ao capital privado. Ele sequer cogita sobre o trabalho das sociologias p ú - as estratégias que são , mas apenas como o senso comum brotado das disposi-
blica e crítica , conduzido pelos departamentos perif éricos. Dada sua postura ções profundamente inculcadas no habitus profissional . Existem , todavia , es-
condenató ria às sociologias que são p ú blicas , orgânicas , ativistas, ele é mui - tratégias ofensivas e bastante conscientes de si , cujo objetivo é deslegitimar a
to crítico em relação aos departamentos onde estas são praticadas
mente os departamentos perif éricos .
— justa- sociologia p ú blica — patologizando-a ou partidarizando-a . Dizem que a so-
ciologia pú blica n ão é uma ci ê ncia genu ína, mas um projeto pol ítico de mar-
xistas frustrados e exclu ídos. Para comprovarem o “fato ”, eles apresentam
sociologias de m á qualidade e, por meio disso , tentam reduzir toda a sociologia
Das lutas por classifica çã o à s lutas de classe p ú blica e crítica a essas formas patológicas e desvirtuadas. No caso extremo,
os sociólogos p ú blicos tornam - se, para eles , os dissidentes traiçoeiros, os bá r-
O quarto movimento contra Bourdieu vem da expansão do escopo das lutas: baros batendo às portas do castelo: um perigo para a sociologia e para a huma-
das lutas sucessórias às lutas entre dominantes e dominados pela valorização de nidade! Há decerto aqueles que escorraçariam prazerosamente as sociologias
diferentes categorias de sociologia . Nos recentes debates acerca da sociologia p ú blica e cr ítica do universo disciplinar. As tropas de choque da sociologia
p ú blica, pudemos verificar o choque entre as estratégias de conservação e as profissional encontram-se geralmente em mobilidade descendente; e, embora

estratégias de subversão21. Os grupos dominantes os sociólogos treinados em tenham sido treinadas nos principais e melhores departamentos , acham- se elas

departamentos de elite e lecionando em departamentos de elite tê m resistido
a participar dos combates, contando com a continuidade de sua dominação sim-
com frequê ncia entre os leigos.
Por outro lado, h á estratégias de subversão que revelam a dominaçã o sim-
bólica: dominação que continua n ão sendo assumida como tal . Eles formariam bólica naquilo que ela esconde: a exploração. A luta pela sociologia p ú blica é
a aristocracia do talento e do mérito, produziriam a melhor sociologia científica a luta por um capital simbólico alternativo, o qual nós poderíamos denominar
dispon ível e, por isso, garantiriam legitimidade à disciplina . Sim! Eles são con- —
capital cívico o reconhecimento conferido pelos p ú blicos, quer sejam eles
sagrados em rituais de afirmação — índices de citação, ofertas de emprego... estudantes que reconhecem professores, jornais que reconhecem colunistas,
Para eles , ingressar em uma luta por classificação acabaria conferindo dema- leitores leigos que reconhecem trabalhos de sociologia , movimentos operá rios
siada importância a formas “ilegítimas” de conhecimento sociológico. Porém , que reconhecem a an álise das estratégias corporativas etc . A afirma çã o do
uns poucos sociólogos líderes têm rompido essas fileiras, entrando em uma capital científico -acad ê mico em nome apenas da sociologia profissional é a
luta por classificação e defendendo as sociologias profissional e para políticas tentativa de deslegitimar a sociologia p ú blica como uma sociologia inferior.
p ú blicas contra a invasão deletéria das sociologias pú blica e crítica. Então, para ser eficiente, nossa estratégia de subversão deve apresentar seu
Eles vê m adotando várias estratégias hegem ónicas, pelas quais apresentam pró prio projeto contra-hegemô nico. Assim , os soci ó logos p ú blicos t ê m recor-
os interesses dominantes como se fossem os interesses universais. Argumentam rido àquela imaginaçã o pú blica que inspirou nosso campo durante sua gé nese
que a sociologia n ão é ainda uma ciê ncia madura e, por isso , vir a pú blico com e que ainda inspira sua organiza ção e seu ressurgimento em outros países. Eles
seus resultados incipientes prejudicaria a legitimidade do campo inteiro, afe- têm recorrido também àquele ímpeto moral que motivou muitos soció logos a

42 43

a fegf .
;
O MARXISMO ENCONTRA BO URDI EU A ECONOMIA POL Í TICA DA SOCIOLOGIA: MARX ENCONTRA BOURD / EU

ingressar nesse campo. Outros ainda tê m buscado desenvolver concepções


í
' Conclus ã o : os paradoxos
alternativas de ciência— uma ciência mais reflexiva e mais colaborativa com
os diversos p ú blicos, tomando emprestados alguns desenvolvimentos das ci -
í
5
1
de Pierre Bourdieu
;

ências naturais . Em cada caso citado , as tentativas visam estabelecer a auten- Como Bourdieu poderia responder a essa descriçã o das lutas na sociologia
ticidade e a legitimidade da sociologia p ú blica como sendo boa sociologia. estadunidense ? Ele poderia concordar com a minha an álise , poré m, aquele
Mas, com respeito a isso, tal batalha é uma revolu ção autolimitada, uma vez Bourdieu que era firmemente comprometido com a autonomia do campo
que os sociólogos públicos também têm interesse na viabilidade e na legitimi- científico ficaria horrorizado com o estado de coisas descrito aqui ! Ele fica -
dade da sociologia como disciplina . ria bestificado com a interven ção dos soci ólogos críticos e p ú blicos, possui -
Os sociólogos críticos , com frequ ência , t ê m adotado uma postura mais i dores de um limitado capital cient ífico-acad êmico , tentando valorizar seu
agressiva, afirmando que a sociologia profissional impõe severos constrangi- capital simbólico alternativo: o capital cí vico. Sua concepção de sociologia
mentos à sociologia pú blica; que a sociologia profissional sofre de chauvinis- estava confinada ao campo cientifico, mas n ão ao campo disciplinar no in -
mo disciplinar ; que ela é viciada em coisas triviais, tomando-se um obst áculo terior do qual ela se encontra. Por isso, Bourdieu sonhava com a sociologia
às necessárias abordagens interdisciplinares e transdisciplinares; que ela tem
prejudicado sistematicamente as perspectivas minorit á rias e tem sido corrom-
como um campo autó nomo — assim como é a matem á tica
produtores teriam como ú nicos consumidores os seus concorrentes: “A au-

no qual os

pida pela sociologia para políticas pú blicas e suas conexões com o poder esta- tonomia é conquistada gra ças à constru ção de uma espécie de ‘ torre de mar-
tal. Em resposta à acusaçã o segundo a qual a sociologia p ú blica é simples fim’ na qual as pessoas avaliam, criticam e até mesmo lutam , poré m , usando
política, os sociólogos críticos invertem o argumento e sugerem que a socio- apenas as armas adequadas e permitidas : os instrumentos propriamente cien-
logia profissional também tem seu pró prio projeto político. Com efeito , os tíficos , os métodos e as técnicas ” 22 .
críticos mais radicais, como aqueles obstinados defensores da ciência pura, Mas eis aqui o primeiro paradoxo : poucos anos depois disso, Bourdieu
propõem que nossa disciplina seja dividida, caso a sociologia profissional n ão escreveu :
possa ser transformada.
Neste breve esquema das lutas pela sociologia p ú blica, baseando-me nas Eu corro o risco de chocar aqueles que, optando pelo cô modo virtuosismo do con-
evid ê ncias que venho coletando em debates nos últimos seis anos as estratégias
^
individuais podem ser explicadas com base no montante de capital acadê mico
finamento em suas torres de marfim , veem a interven ção externa à esfera acad ê mica
como uma perigosa deficiência daquela famosa “neutralidade axiológica” que é identi-
acumulado e nas trajet ó rias no interior do campo que influenciam juntos a ficada erroneamente com a objetividade científica [... ]. Mas estou convencido de que
posição dos agentes na divisão do trabalho e a disposição deles visando a outras nós precisamos a todo custo levar as conquistas da ciência e da academia para dentro
posições na divisão do trabalho. Nós então presenciamos lutas por classificação do debate pú blico, do qual elas estão tragicamente ausentes e afastadas23.
com respeito às fronteiras dos campos, com respeito aos capitais que podem
ser invocados dentro deles. São lutas por classificação e ao mesmo tempo lutas Como seria possível conciliar duas posições aparentemente t ã o antagóni-
de classe entre um grupo dominante , beneficiá rio da exploraçã o simbólica, cas? Teria o contexto mudado tanto nos poucos anos que separam esses dois
defendendo o atual estado de coisas, e um grupo explorado e insurgente que livros? Ou seria isso a reaçã o de Bourdieu contra duas situa ções bastante di -
afirma seu próprio projeto contra-hegemônico em torno das sociologias p ú bli- ferentes: de um lado, a defesa de uma ci ência autó noma contra sua vulgari-
ca e crítica. Eis a forma como eu imagino que Marx teria rebatido a apropria-
ção que Bourdieu fez de O capital
za ção por diletantes e amadores — —
os doxó sofos e, por outro lado , seu
agressivo contra-ataque p ú blico às mitologias do neoliberalismo ? Percebe- se
que o intervencionismo de Bourdieu é pensado precisamente visando defender
a autonomia da pr á tica cient ífica contra as ameaç as do mercado, do Estado e

da m ídia intervencionismo esse que o colocou em aliança com outros gru -
pos sociais que rechaç avam essas mesmas ameaças . Bourdieu certamente quis

44 45
;
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A ECONOMIA POL Í TICA DA SOCIOLOGIA / MARX ENCONTRA BOURD! EU
\

o bónus sem ter o ónus; ele quis uma autonomização intervencionista. Com ciologia da dominaçã o? E com quem Bourdieu estaria dialogando afinal ?
efeito , ele escreveu: Essa suposta audi ência seria mesmo capaz de ouvi- lo? E se ela pudesse ouvi -
lo , estaria apreciando e entendendo o que ele diz ? No pró ximo encontro ,
Essa descrição da génese da figura do intelectual mostra- nos que a síntese parado- discutiremos esse segundo paradoxo —
o paradoxo da aus ê ncia de p ú blicos
xal desses opostos — —
o recolhimento e o engajamento , que é t ão típica dos intelec-
tuais, n ão foi inventada de uma só vez nem institu ída de uma vez por todas. Tal síntese
para a sociologia —
ao imaginarmos um segundo di álogo, dessa feita, entre
Antonio Gramsci e Pierre Bourdieu .
é instá vel e incerta. Ela permite aos detentores do capital cultural “ regredir” a esta ou
àquela posição como algo garantido pelo pêndulo histórico, quer dizer, “ regredir” ao
papel de puros escritores, artistas, acadêmicos; ou “regredir” à função de simples agen-
tes pol íticos, polemistas , jornalistas etc. Tal síntese també m implica que o equilíbrio Notas
entre as duas atitudes possíveis com relaçã o à política poderá ser explicado pelo fato



de a demanda por autonomia demanda erguida graças à própria existê ncia do cam
po cultural precisar considerar a existência de poderes temporais que variam de um
- 1 Bourdieu , 1999a .
2 Idem, 1996.
3 Idem, 1988.
pa ís para outro e de acordo com o momento histó rico24. 4 Marx e Engels, 1970 b.
5 Bourdieu , 1977.
6 Idem , 1990c.
Mas n ão devemos esquecer que Bourdieu escrevia tudo isso a partir da
7 Idem , 2000.
Fran ç a; e precisamos evitar sermos anacrónicos e transportar sua perspectiva 8 Marx e Engels , 1970 b, p. 147. Ed. brasileira , 2004 , p. 38.
para o contexto estadunidense. Em primeiro lugar, ele próprio estava situado .
9 Bourdieu , 2000, p. 3 Ed . brasileira , 2001 b, p . 11 ,
nos p íncaros do mundo acad ê mico — t ão alto quanto pô de alcan ç ar
portanto , era de esperar que ele adotasse alguma postura elitista, isto é , que,
e, — 10 Idem , op. cit., p. 149. Ed . brasileira , op. cit., p . 43.

-
-
11 Idem , op. cit ., p . 159. Ed. brasileira , op . cit ., pp. 57 8.
12 Marx e Engels , 1970 b, pp. 117 8. Ed . brasileira , 2004, p. 28 .
com a acumulação de considerá vel capital acad êmico, viesse junto a obriga- 13 Outro conceito marxiano que é menos desenvolvido em Bourdieu é o conceito de ideologia ,
çã o de participar da pol ítica. Em segundo lugar, poré m , a sociologia nunca quer dizer, a forma como a participação dos indiv íduos no capitalismo mistifica a natureza
desse sistema. Nesse caso, o prot ótipo conceituai é o “fetichismo da mercadoria” segundo
chegou a ser tão profissionalizada na Fran ça como o é nos Estados Unidos.
Por isso, a sociologia francesa sempre foi mais vulnerá vel à invasão, à corrup-
Marx
— t ão brilhantemente elaborado por Luk á cs em Hist ó ria e consci ê ncia de classe
Bourdieu chega mais perto dessa noção de ideologia quando concebe a estrutura social como
.
çã o e à apropria ção. A defesa agressiva de Bourdieu da autonomia da socio- um jogo no qual o pr ó prio ato de jogá- io obscurece suas condi ções de existê ncia. Tal como
logia foi seu ataque contra dois tipos de forasteiros: trabalhadores braçais Marx , Bourdieu nunca conciliou essas duas formas do desconhecimento : a legitimação e a
mistificação.
inferiores e com pouco capital acadê mico e doxósofos da imprensa, assim 14 Marx e Engels,1970b, p. 172. Ed. brasileira, 2004, p. 78. Grifo nosso
como outros intelectuais p ú blicos que pensam saber demais. 15 Idem, op. cit. p. 173. Ed . brasileira , op. cit., p. 79 .
Entretanto, a autonomia n ão significa somente ter por finalidade a busca 16 Bourdieu , 2005.
17 Idem , 1988.

do conhecimento pelo conhecimento embora ela também signifique isso.
No caso específico da sociologia, a autonomia, caso fosse realmente alme -
18 Ver Bourdieu , 1975, pp. 19-47.
19 Bourdieu, 2000.
jada, garantiria o avan ç o da ciê ncia e , conforme Bourdieu , necessariamente 20 Bourdieu não faria tal distinçã o entre uma sociologia cr ítica e uina sociologia profissional ,
conduziria à desmistifica ção da domina çã o simbólica

se n ão dentro do
campo sociológico, pelo menos no mundo social mais amplo. No final das
visto que ele considerava a ciência sujeita à competi ção profissional entre pares e, portanto,
como algo necessariamente e simultaneamente cr ítico. Porém, seria dif ícil, se n ão impossível ,
jogar os jogos da ciência, resolver anomalias e contradições dentro de um programa de pes-
contas, a restriçã o do campo sociol ógico à queles que dispõem de tempo e quisas e, ao mesmo tempo , questionar os fundamentos desse jogo , quer dizer, praticar a
recursos necessá rios à condução de pesquisas respeit á veis seria algo justifi-
cá vel devido ao impacto subversivo da sociologia no mundo l á fora . Mas
mais irritante que possa ser sua presen ça !

crítica . Por isso, nós precisamos de indiv íduos especialistas em fazer a crítica da ciê ncia por

21 In ú meras publica ções de sociologia tê m levado adiante o debate . No mundo de l íngua inglesa ,
ent ão poderíamos nos perguntar, quem estaria prestando aten ção nessa so- entre esses jornais incluem -se: Current Sociology, Social Forces , Sociology, The British Jour-

46 47
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
)
l
nal of Sociology, Critical Sociology, Social Problems, The American Sociologist. Também h á
hoje [2008] pelo menos seis livros com artigos reunidos sobre o tema.
22 Bourdieu, 1999b, p. 61. Ed. brasileira, 1997, p. 89.
23 Idem, 2003, pp. 12~3. Ed. brasileira, 1998, pp. 7-8.
;

c
24 Idem, 1989, p. 101.

CAP Í TULO II

TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á VEL :


GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

Outro efeito da ilusã o escol á stica consiste em descrever a


resistê ncia à dominaçã o na linguagem da consciê ncia

como o fazem tanto a tradição marxista como algumas teó ricas
tal

do feminismo que, dando margem aos h á bitos de pensamento


e de linguagem , esperam que a libertação pol ítica provenha do
efeito autom á tico da “tomada de consciência “
—como resul -
tado da falta de uma teoria disposicional e situacional das
pr á ticas , ignorando a extraordin á ria in é rcia que resulta da
inscri ção das estruturas sociais nos corpos individuais. Embo-
ra tornar as coisas expl ícitas possa ajudar, apenas um detalha-
do processo de ífeídomesticaçã o, de c/escondicionamento,
envolvendo repetidos exerc ícios tal como o treinamento dos
atletas, pode transformar duravelmente o habitus* .
i
Pierre Bourdieu i

Eis o motivo adicional para fundamentarmos o corporativismo do universal no


i corporativismo comprometido com a defesa de interesses comuns , consensuais
e inequívocos. Dentre os maiores obstáculos a isso est á (ou talvez tenha estado)
r

o mito do “intelectual orgâ nico” t ão caro a Gramsci . Ao reduzir os inteiec -

* A última frase é omitida na tradução brasileira. ( N. do T. )

48 49
!
:
0 MARXISMO ENCONTRA BOUR D l EU
I
'

I
:
naí of Sociology Critical Sociology , Social Problems, The American Sociologist. Tamb
y

hoje [2008] pelo menos seis livros com artigos reunidos sobre o tema.
ém há
I
22 Bourdieu, 1999b, p. 61. Ed. brasileira, 1997 , p . 89.
.
23 Idem , 2003, pp. 12-3 Ed. brasileira , 1998, pp. 7-8.
24 Idem, 1989, p. 101.

CAP Í TULO II

TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á VEL !


GRAMSCIENCO NTRA BOURDIEU

Outro efeito da ilus ão escol á stica consiste em descrever a


resist ê ncia à domina ção na linguagem da consciê ncia —
como o fazem tanto a tradi ção marxista como algumas te ó ricas
tal

do feminismo que, dando margem aos h á bitos de pensamento


e de linguagem , esperam que a liberta çã o pol ítica provenha do
efeito autom á tico da “ tomada de consciê ncia”

como resul
tado da falta de uma teoria disposicional e situacional das
-
práticas, ignorando a extraordin á ria iné rcia que resulta da
inscriçã o das estruturas sociais nos corpos individuais . Embo-
ra tornar as coisas explícitas possa ajudar, apenas um detalha -
do processo de desdomestica çã o , de descondicionamento ,
envolvendo repetidos exercícios tal como o treinamento dos
atletas , pode transformar duravelmente o habitus*.

Pierre Bourdieu i

;
Eis o motivo adicional para fundamentarmos o corporativismo do universal no
í
i
corporativismo comprometido com a defesa de interesses comuns, consensuais
e inequívocos. Dentre os maiores obstáculos a isso está (ou talvez tenha estado)
T

o mito do “intelectual org â nico” tão caro a Gramsci. Ao reduzir os intelec -

* A última frase é omitida na tradução brasileira. (N. do T. )

!
48 49
!
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU I TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á VEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

I
tuais ao papel de “companheiros de viagem ” do proletariado, esse mito impe
diu que eles tomassem a frente na defesa dos próprios interesses e explorassem
- I isso superarem o que consideravam ser as falsas oposições entre o voluntarismo
e o determinismo, o subjetivismo e o objetivismo. Assim fazendo, ambos se
os meios mais eficazes nas lutas em prol das causas realmente universais 2.
” valeram das ideias primeiramente formuladas por Marx e Engels nas Teses
sobre Feuerbach.
Tanto Bourdieu como Gramsci foram bastante reflexivos quanto ao papel
Paralelos e contrastes E
i —
dos intelectuais na política o lugar destes na reprodução e na transformação
das ordens sociais. Malgrado a semelhan ça entre suas trajetó rias e disposições
Em seu Esboço de autoanálise 3, Bourdieu encarregou -se daquilo que ele mes e apesar dos interesses teóricos que tinham em comum , as divergências funda-
-
mo chamou de socioanálise do eu, substituindo a biografia egocentrada que
— mentais entre Bourdieu e Gramsci são muito mais interessantes: est ão total-

discorreria longamente sobre sua carreira triunfante pelo exame do campo
educacional no qual ele cresceu; pelo exame da sua própria imersão na guerra
civil argelina, enfim, pelo exame do campo universitá rio no qual ele ingressa
mente ligadas aos contextos hist óricos distintos em que atuaram . Sobretudo,
Gramsci, tendo continuado marxista, mantivera -se engajado nas questões do

ra. Ali, muito do seu foco recaiu sobre a quest ão do predom ínio acadêmico
- socialismo em uma época em que este ainda estava no centro da agenda pol í-
da tica; já Bourdieu se distanciara do marxismo, vivendo naquele que seria co -
filosofia encarada por ele na École Normale Superiéure, com a consequente nhecido como o mundo pós-socialista.
deprecia ção da sociologia na Fran ça e sua recusa em se aliar ao
marxismo Finalmente, Bourdieu depositava maior confiança na verdade escol ástica
entã o em voga. Por fim , ele explica seu interesse pela reflexividade e
suas ideias produzida na academia , ao passo que Gramsci fundamentava a verdade na
sobre o campo acadêmico por meio da pró pria trajetória intelectual
confins rurais do Béam a professor no Coll ège de France. Ele sempre se sen — dos
-
experiência dos trabalhadores no processo de produ ção e nos comité s de f á -
brica, abrindo caminho para aquilo que ele denominou o “ intelectual orgâ nico”
tira constrangido, como se fosse um impostor, no mundo acadêmico
francês , incrustado na classe trabalhadora. Para usarmos a terminologia gramsciana ,

por possuir aquele “habitus servil” efeito da “ discrep â ncia muito pronun
ciada entre a elevada consagração acadêmica e a baixa origem social 4. Por
” ém,
- l á onde Gramsci via o bom senso embutido no senso comum da classe oper á -
ria, Bourdieu via apenas o mau senso, o mau sentido. Bourdieu , por sua vez ,
a partir dessa perspectiva privilegiada, Bourdieu estaria apto a “objetivar
” todo punha grande f é no bom senso potencial da sociologia elaborada dentro de
o territó rio acad êmico.
campos acad êmicos relativamente autó nomos. Gramsci , por outro lado , era
Antonio Gramsci, caso ú nico entre os grandes teóricos marxistas por
ter cético quanto à possibilidade de os intelectuais universitários serem algo mais
vindo de uma origem rural bastante semelhante àquela de Bourdieu , sentia
igualmente desconfort á vel no ambiente acad êmico, muito
-se do que simples “ intelectuais tradicionais ” que , no final das contas, s ó re -
embora, para ele, produzem a domina çã o. Para ele, a sociologia confundiria a organiza çã o
isso resultasse no abandono da universidade rumo à atividade jornalí
milit â ncia política , antes que fosse lan çado no cárcere sem qualquer
stica e à
cerimonia
pol ítica do consentimento com o consenso ilus ó rio e espont â neo
podemos observar nos escritos de É mile Durkheim e nos primeiros
—tal como
trabalhos
pelo Estado fascista. Os paralelos entre suas perspectivas intelectuais

Gramsci e as de Bourdieu são impressionantes! Ambos repudiaram o — as de
deter-
de Talcott Parsons.
Cada autor estava preocupado com as ameaças da patologia — Bourdieu
minismo histórico do velho Marx ; ambos desenvolveram concepções
bastante com a invasão da ciê ncia social pelas pressões do mercado e por especialistas
sofisticadas acerca das lutas de classe; ambos focaram o mesmo aspecto
social , subservientes; e Gramsci com as experiê ncias da classe trabalhadora que esta-
aquilo que Gramsci chamou de superestruturas do capitalismo
e Bourdieu vam sendo mais distorcidas que elaboradas pelo partido pol ítico. Poré m , ao
chamou de campos de dominação simbólica . Ambos, portanto, deram
pouca atacarem as posições um do outro, cada qual tornou absoluta a autocrí tica
importância à economia para se concentrarem nos efeitos dela. Num
sentido alheia. Desse modo , Bourdieu transformou as observa ções cautelosas feitas
mais afirmativo, ambos se interessaram principalmente por questões ligadas à
por Gramsci em relação ao intelectual orgâ nico em uma pol ê mica cabal contra
dominação e à reprodução da dominação. Eles estavam preocupados
em com- esse intelectual orgânico. Já Gramsci, caso tivesse a mesma chance, teria trans-
preender a ação social dentro da lógica de coações e
de restri ções, para com formado as notas cr íticas de Bourdieu sobre as fal ácias escolásticas cometidas

50 51
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU Ê
'
i TORNANDO A DOMINA ç ã O DUR á VEL: CRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU
t

por jornalistas e acadêmicos em uma demonstração das limitações intr ínsecas


do intelectual tradicional. Essas visões opostas acerca do intelectual orgânico
I

sentido desse jogo uma criatividade definida por disposi ções acumuladas
e internalizadas a partir das estruturas sociais pré vias; uma criatividade ao
e do intelectual tradicional jazem sobre visões também divergentes acerca
da mesmo tempo canalizada e delimitada pela estrutura social realmente exis-
dominação: de um lado, a dominação simbólica em Bourdieu , na qual o domi
- tente. Nós podemos imaginar o habitus como sendo composto por camadas,
nado não reconhece sua submiss ão como tal ; de outro lado, a hegemonia em
Gramsci, na qual o dominado reconhece e consente sua submissão. A partir com as mais profundas delas sendo adquiridas logo cedo na inf â ncia. E as
biografias de Bourdieu e de Gramsci oferecem -nos uma sucessão paralela de
disso, emergem diferentes teorias acerca da dinâ mica da mudan ç a social.
quatro conjuntos de experiê ncias individuais : 1 ) a primeira inf â ncia e a edu -
À medida que nossa an álise compara as trajetórias sociais de Bourdieu e
de Gramsci, essas trajetórias trazem à tona suas respectivas concep cação escolar (da zona rural para a cidade); 2) as primeiras experi ê ncias
ções do políticas (a revolu ção argelina versus o movimento dos comités de f á brica ) ;
que são os intelectuais, com suas teorias divergentes da domina ção e
da trans- 3) o desenvolvimento teó rico ( a universidade versus o movimento comunis-
formação da sociedade. Sendo então coerente com o modo pelo qual eu orga
- ta ) ; 4) os redirecionamentos finais ( da universidade para a esfera p ú blica
nizei esses encontros, a saber, como minha resposta marxista a Bourdieu
, versus do partido para a prisão).
tentarei reconstituir a teoria deste último por meio da perspectiva gramsciana
. Ambos cresceram em sociedades agrá rias. Gramsci nasceu na Sardenha em
E imitando a avaliação comedida que Gramsci fazia dos seus antagonistas
, 1891; Bourdieu nasceu próximo aos Pireneus em 1930. Os dois foram filhos de
especialmente Benedetto Croce*, tentarei tornar Gramsci mais respeitoso
Bourdieu do que Bourdieu foi com Gramsci. Começaremos mobilizando
com
a

funcion á rios pú blicos locais Bourdieu , de um carteiro que se tornara escre-
vente no gabinete dos correios do povoado; e Gramsci , de um copista do car-
noção de habitus em Bourdieu, para então traçarmos a interseção da
biografia tório de registros fundi á rios que havia sido preso sob acusações de improbida-
com a história.
de administrativa . Bourdieu era filho ú nico, mas Gramsci tinha outros seis
irmãos que desempenharam grande papei no in ício da sua vida. Ambos foram

A interse ção entre a biografia e a hist ória


bastante apegados às mã es
social mais privilegiado

que
nos dois casos , estas eram esposas de status
seus maridos. Gramsci e Bourdieu foram ambos
alunos brilhantes na escola e , por meio de empenho e de vontade , saíram dos
Com a noção de habitus, Bourdieu transcendeu o subjetivismo da perspectiva
pobres povoados natais para grandes centros urbanos, cada qual com o apoio
centrada no ator sem, contudo, cair no objetivismo do cientista vindo
do nada, de seus devotados professores.
ao reconhecer a incorporação das estruturas sociais como conjunto de
dispo- Sem d ú vida, a vida de Gramsci foi muito mais dif ícil que a vida de Bour-
sições , de inclinações duráveis , porém , criativas e mutantes isso
de percepções e de apreciações do indivíduo. O habitus d á
na forma
conta do senso
— dieu . N ão apenas era sua fam ília muito mais pobre, como ele també m sofreria
da dor f ísica e moral de ser um deficiente ( corcunda ) . Foi apenas graç as a
pr á tico: é a capacidade adquirida de inovar, de jogar o jogo ,
de perceber o imensas reservas de determina ção , de autossacrif ício e com o apoio do irm ão
mais velho que pôde Gramsci fazer sua jornada em 1911 para o norte da It á lia
continental , dispondo de bolsa de aux ílio para estudar filosofia e lingu ística
* Benedetto Croce (1866-1952), principal historiador e fil ósofo italiano sé na Universit à di Torino. De forma parecida , Bourdieu iniciaria seus estudos
do culo XX. Criou em no liceu preparat ó rio e ingressaria na Ecole Normale Superi éure para gra-
1903 a revista La Critica, com a qual contribuiria por quatro
-
cargos pol íticos e se opôs ao regime fascista (1922 1943), após
décadas. Desempenhou vários
Partido Liberal. Seu pensamento, influenciado pelo idealismo hegeliano
o qual , fundou novamente o
da esté tica, da lógica , da ética e da filosofia da hist ória. Enquanto
, abrange os campos

duar-se em filosofia o á pice da pirâ mide intelectual francesa. Vir do cam -
— —
po para os grandes centros urbanos Turim ou Paris 1 era certamente algo
autodidata, sua filosofia foi intimidador. Ambos se sentiam como peixes fora d ’ á gua no meio das novas
.
guiada pela ideia do poder criativo do homem Entre suas obras,
-
destacam se História da
Europa no século XIX (1933), A História como narrativa da liberdade
(1941) e Croce , o rei e classes média e alta que circulavam no ambiente acadêmico. Embora os dois
.
os aliados (1951) Ver Gramsci, Cadernos do cárcere, vol. 1 Introdu
— ção ao estudo da filo - tenham se transformado em brilhantes intelectuais, al é m de figuras pol íticas ,
.
sofia , A filosofia de Benedetto Croce , 2004. ( N do )
T . nenhum deles perdeu contato com as origens da sua condição marginal: o

52
53
0 MARXISMO ENCONTRA B O U R D 1EU TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á VEL! G R A M S C l ENCONTRA IJOURDIEU

povoado e a fam ília. A devoção de Gramsci a sua família e seus h á bitos rurais foi forçado a deixar a Argélia em 1960. Dessa forma , nos anos de amadureci -
fica clara nas cartas escritas por ele do cá rcere; assim como Bourdieu perma -
.
mento após a universidade, tanto Gramsci como Bourdieu foram profundamen -
neceria igualmente apegado a seus pais durante toda a vida deles , retornando te transformados por lutas que transcorriam bem longe de seus lares . Mesmo
periodicamente ao lar para realizar pesquisas de campo. Suas formações rurais durante esses anos, poré m, Gramsci se manteve muito mais ligado politica -
jaziam profundamente incrustadas em seus habitus , suas disposições e seus ! mente aos protagonistas dos acontecimentos que Bourdieu , cujo engajamento
pensamentos
te nega çã .
o 5
—quer na forma da heran ç a latente, quer na forma da veemen - político manifestou em si um distanciamento epistemoló gico.
O mundo racialmente bipartido do colonialismo distanciara Bourdieu dos
Gramsci não concluiu a faculdade; ele mergulhou fundo na vida política da protagonistas da luta na Argélia , assim como a ordem d ç classes da nuova
classe oper á ria de Turim que se mantivera bastante agitada durante a Primeira It ália empurrara Gramsci para o furac ã o da pol ítica oper á ria , muito embora
Guerra Mundial . Gramsci começou sua carreira escrevendo para os jornais ele fosse só um emigrado da semifeudal Sardenha . Em conformidade com isso
socialistas Avanti! e II Grido. Após a guerra, ele se tornou editor da UOrdine e a partir desse ponto , essas duas biografias tomariam caminhos diferentes .

Nuovo a revista cultural da classe trabalhadora em Turim, designada para Após a derrocada dos comités de f á brica, Gramsci tornou - se líder do movi -
articular sua nova cultura e destinada a se tornar a revista mensal do movimen - mento dos trabalhadores, membro-fundador do Partido Comunista Italiano
to dos comités de f ábrica e das ocupações de ind ústrias entre 1919 e 1920*.
Bourdieu , por sua vez , após concluir a universidade e dar aulas em um liceu
em 1921 e seu secret á rio-geral em 1924 —
precisamente no ano em que o
fascismo começava a se consolidar. Ele passou alguns anos no Komintern*,
por dois semestres, foi convocado em 1955 para servir o Ex ército Francês na em Moscou , e no ex ílio em Viena. Ele també m viajaria pela It á lia após 1923,
Argélia. Ele seria mantido nesse posto por cinco anos , após os quais, condu - em uma época em que sua eleição para deputado lhe dera imunidade parla -
ziria ali pesquisas de campo, lecionando na universidade e registrando em mentar. Isso duraria até 1926, quando Gramsci foi detido com base no novo
v á rios escritos a cultura e as lutas do povo argelino colonizado tanto nas — código penal, e levado ajuri em 1928 . O tribunal decretaria que o intelecto de
cidades como nas aldeias . Com a fase de reocupação e de austeridade que se Gramsci deveria ser tolhido por 20 anos . Gramsci s ó deixaria a prisã o depois
seguiu ao recuo temporário do movimento anticolonial , após a Campanha dos de haver produzido, malgrado numerosas e finalmente mortais doen ças , a mais
Argelinos (1957-1958)**, a situação de Bourdieu tornou-se insustentável e ele criativa teoria marxista do século XX: seus famosos Cadernos do cárcere6.

* It á lia , 1919-1920. Nas eleições para o parlamento em 1919, o Partido Socialista Italiano
-
conquistou quase um ter ço dos votos, consolidando se como a maior força pol ítica da
It ália. Nesse mesmo ano, os protestos populares contra o custo de vida irromperam de um
conseguir a independência e a Constituiçã o . O aumento de atos de guerrilha e de terrorismo
provocou a reação da França , com ataques aos muçulmanos e o genocídio da população civil .
extremo ao outro do pa ís , sem que o governo conseguisse controlar a situaçã o . Nas cidades, Entre 1957 e 1958, com a intensifica ção da crise , o general Charles de Gaulle ( 1890- 1970 )
as lojas eram saqueadas ; nas zonas rurais, os camponeses invadiam os latif ú ndios impro- convocou um plebiscito, no qual os argelinos se pronunciariam pela independê ncia. Em julho
dutivos. Em 1920, os oper ários das grandes cidades industriais, dentre elas Turim , ocuparam de 1962, a Argé lia era declarada uma rep ú blica socialista independente. Come çaria da í a
um grande numero de f á bricas. Devido a essas agitações, os anos de 1919 1920 passaram
- evacuação maci ça dos colonos. Em seguida , eclode uma guerra aberta entre as v á rias facções
para a histó ria italiana como o biénio vermelho. Foi como reaçã o a essa efervescência dos da FLN no poder. Ahmed Ben Bella é eleito o primeiro presidente em 1962. Mas j á em 1965,
trabalhadores que apareceram os primeiros grupos fascistas. Ver Gramsci , Conselhos de o coronel Houari Boumedienne derrubaria o governo e assumiria o poder total. Estava cum -
.
fábrica, 1982. ( N doT.) prida a profecia de Frantz Fanon ! ( N . do T.)
** Argélia, 1957- 1958 . Com a tomada da capital Argel em 1830, a França anexou a Argélia em * Comintern ou Komintern (Terceira Internacional Comunista ). Em mar ço de 1919, Lênin ( 1870-
1834. Após vencer a prolongada resistência dos nó mades berberes, a metró pole transformou a 1924) criou a Terceira Internacional , comumente conhecida como Komintern , para organizar
Argélia em um departamento ultramarino, controlado pela minoria europeia
— —
les colons ,
que formava a elite privilegiada. Graças a grandes entradas de capital p ú blico e privado, desen-
as atividades dos partidos comunistas estrangeiros e impulsionar a revolu ção mundial con -
forme o modelo sovi é tico. Acreditava-se que a revolução russa jamais estaria segura a menos
-
volver se-ia ali uma economia moderna. O nacionalismo argelino surgiria logo após a Primei
- que os outros países se tornassem socialistas. Gramsci trabalhou para o Komintern em Viena
ra Guerra Mundial entre os grupos muç ulmanos ou islamizados . A resistência aos coloni
zadores conduziria à forma ção da militância antifrancesa. Os nacionalistas eram a favor da
- e Moscou . A Terceira Internacional foi a reação de Lê nin ao socialismo reformista da Segun -
da Internacional. Após a sua morte, Josef Stalin ( 1879- 1953 ) assumiu o Komintern e o dissol -
revolta armada . No início dos anos 1950, muitos deles fugiram ou se exilaram . Em 1954 foi veu em 1943, como concessão aos aliados americanos e brit â nicos durante a Segunda Guerra
formada a Frente pela Libera ção Nacional Argelina (FLN), que lançou v á rias ofensivas para .
Mundial ( N . do T.)

54 55
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á V E L: G R A M S C f ENCONTRA B O U R D f E U

Curiosamente, o cárcere manteria enjaulados também os detratores de Josef Bourdieu , ao contrário, só ingressou na atividade política perto do final da
Stálin . O estado de sa ú de de Gramsci agravou-se continuamente até sua mor
- vida, com sua teoria já bem elaborada sobre os mecanismos de reprodu çã o da
te em 1937 , devido às complicações da tuberculose, da arteriosclerose e do sociedade, baseada em an á lises da a ção estratégica no interior dos campos

mal de Pott doença que destrói pouco a pouco as vértebras. E isso aconte
cia justamente quando a mobilização internacional por sua libertaçã o ganha-
- sociais, com seu acessório conceituai costumeiro: o habitus. Este, lembremos,
é resultado da incorporação das estruturas da sociedade pelos corpos dos agen-
va terreno. tes, na forma de conjuntos de disposições. No final dos anos 1990, encontran -
A trajetória de Bourdieu pode não ter sido tão diversa. Depois da Argélia, do a esfera pública —
lugar onde os intelectuais tradicionais costumam pro-
ele ingressou na academia, galgando posições nos principais institutos de pes- clamar suas verdades cada vez mais distorcida e rarefeita pela m ídia ,
quisa franceses, escrevendo artigos sobre o papel da educação na reprodução Bourdieu adotaria a postura ofensiva, a ponto de apoiar abertamente aqueles
das relações de classe na França. Bourdieu foi admitido no prestigiado posto pú blicos que sofriam ataques an álogos por parte do Estado. A firme defesa da

de mestre [ professorship ] no Coll ège de France em 1982 cargo que faria dele
um proeminente intelectual pú blico e, nos ú ltimos anos de vida, um herdeiro
autonomia do intelectual e das atividades acadêmicas, com sua agressiva in-
vestida contra as mitologias neoliberais, fez dele uma das figuras p ú blicas mais
-
do cetro e do trono que fora de Jean Paul Sartre e de Michel Foucault. Desde célebres da Franç a, muito embora ele aí se mantivesse dentro dos velhos mol-
o in ício , seus trabalhos tinham impacto e postura política, todavia, eles ganha des do intelectual tradicional.
-

riam teor mais ativista e mais urgente s ó em meados dos anos 1990 em es-
pecial com o retomo dos socialistas à presidência em 1997. Desde então , Bour-
Se a teorização elaborada por Gramsci no cárcere avançou para alé m da
sua própria prática política, as teorias acadêmicas criadas por Bourdieu anda-
dieu defenderia publicamente os despossu ídos e combateria a emergente vam atrasadas em relação a sua avan çada postura pol ítica. Gramsci pôde es-
tecnocracia neoliberal ; atacaria também os jornalistas, repórteres e a mídia de crever a respeito do Moderno Príncipe* (o Partido Comunista ideal -t ípico ),
massa em seu livro Sobre a televisão (1999b)7. Bourdieu encarregou se de - mas n ão p ôde encontrá-lo na realidade. Já Bourdieu, como ainda veremos ,

inú meras iniciativas editoriais desde sua revista mais acadêmica, a Actes de
la Recherche en Sciences Sociales, até uma série de livros mais engajada e
irrompeu na cena pública sem qualquer justificativa teó rica . Faiando mais cla-
ramente, o primeiro (Gramsci ) tinha a teoria sem a prá tica, enquanto o segun-
militante, a Raison d’ Agir. Em seus últimos anos , ele tentaria organizar o do (Bourdieu) tinha a prá tica sem a teoria. Colocá-los em diálogo nos ajudará
“intelectual coletivo”
— empreendimento que transcenderia as fronteiras na-
cionais e disciplinares , colocando em diálogo as mentes mais progressistas
a desenvolver suas peculiaridades e pontos cegos, assim como esclarecer sua
import â ncia na compreens ã o da conjuntura pol í tica na qual vivemos .
para a reconstrução do debate p úblico.
Enquanto Gramsci se movera do engajamento partid ário para uma existên-
cia escolástica na prisão, onde refletiria sobre o fracasso da revolu ção socia-
lista no Ocidente, Bourdieu, por sua vez , tomaria o caminho inverso: iria da
Os intelectuais : tradicionais versus org â nicos
vida escol ástica na academia para uma oposição aberta e pú blica contra a maré
A formação decisiva do habitus político-intelectual desses autores deu -se na
montante do fundamentalismo do mercado , dirigindo-se inclusive a operários
maturidade: quando Bourdieu retornou à universidade em 1960 para dar senti -
grevistas e apoiando suas lutas. A ligação orgâ nica de Gramsci com o
mento dos trabalhadores mantida por meio do Partido Comunista fez com que
movi- do a sua expedição argelina; e quando Gramsci ingressou na organização do '

exagerasse o potencial revolucionário dessa classe. Assim, na prisão, ele dedi


-
cou-se a pesquisar o modo pelo qual as elaboradas superestruturas do capita
-

lismo avan çado as quais incluem tanto o Estado como as relações do apa -
* O Pr íncipe Moderno. Gramsci fazia referê ncia ao Pr í ncipe de Maquiavel . Assim como o
rato estatal com as trincheiras emergentes da sociedade civil
justificam e sustentam a dominação, como ainda conquistam o
— nã o somente
consentimento
l íder maquiaveliano seria o responsá vel pela unifica ção da It á lia contra os invasores inimi -
gos , o Partido Comunista Italiano seria o responsável pela unificação da classe trabalhado -
ra , transformando-a em uma classe em si e para si ao gui á- la na luta contra a burguesia
ativo dos indivíduos dominados.
industrial. (N . do T.)

56 57

-JL.
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
.
T O R N A N D O A D O M I N A Ç Ã O D U R Á V E L * C R A M S C1 E N C O N T R A B O U R D I E U

movimento dos trabalhadores e do Partido Comunista , assimilando o aprendi - sociologia tem sim esse potencial, mas ela necessita de proteçã o e elaboração
zado adquirido no movimento dos comités de f ábrica. Suas (di ) visões com cuidadosas.
relação à teoria e à política emergiram das posições ocupadas por eles na es-
trutura social.
Gramsci, ao contrário , baseava a verdade n ão na academia , mas nas expe -
riências produtivas das classes sociais. Se para Bourdieu algumas disciplinas
Segundo Bourdieu, a produ ção da verdade científica era um processo esco -
'

eram quiçá mais aptas a produzir ciência genu ína, para Gramsci, algumas
lástico cuja condição necessária é a skholè — a busca desinteressada do co - classes tinham melhor conhecimento do mundo real que outras! Nesse caso , ele
nhecimento, um ambiente autónomo e protegido para a contemplação e a in - seguia o marxismo ortodoxo, argumentando que era a transformaçã o prá tica e
i
vestigação da realidade em comunh ão com outros atores. Nos tempos coletiva do mundo real o que fundamentava o conhecimento mobilizado pelos
modernos, tal espaço é oferecido pela universidade: o quartel-general do cam - trabalhadores —conhecimento esse negado ao campesinato e à burguesia .
po científico. A competição e as disputas nesse campo (suas lutas armadas,
como Bourdieu as chama nas Meditações pascalianas ) são regidas pelas regras
do m étodo científico, o qual é indispens á vel para conseguir uma verdadeira

Esse cerne do saber o bom senso da classe trabalhadora encontrar- se-ia
enterrado sob in ú meras camadas de senso comum , o qual compõe o entulho

\ sedimentado das ideologias dominantes (existentes ou anteriores ):
compreensão do mundo8. Entre as ciências sociais, a sociologia desfruta de :
uma posição privilegiada, porque, diferente da filosofia ou da economia , ela
está apta a entender as condições especiais da sua própria produção. Quando
-
O homem massa ativo possui atividade prá tica, mas n ã o possui clara consciê ncia
teórica dessa atividade , a qual pressupõe, todavia, a compreensão do mundo enquan -
exercida com destreza, a sociologia transforma- se em uma disciplina reflexiva
to o transforma. Sua consciê ncia teórica poder á, historicamente, estar em contradiçã o
capaz de objetivar o sujeito da objetivação , isto é, produzir conhecimento a com sua atividade prá tica. Pode- se quase dizer que ele possuiria duas consciê ncias

respeito da pró pria produ ção do conhecimento façanha que n ão representa
sua defasagem, mas sim o seu valioso recurso para o avan ço da ciência social.
i
teó ricas ( ou só uma consciê ncia, mas contraditó ria consigo mesma ): a primeira , que
est á impl ícita em sua atividade pr á tica, ligando-o à realidade de seus colegas de tra -
Haja vista a sociologia estar comprometida com o mundo social , ela está, pela balho na transforma ção prá tica do mundo ; e a segunda, só superficialmente expl ícita
-
mesma razão, forçada a garantir se a si mesma e suas condições de existência . ou verbal e que ele herdou do passado e absorveu de forma acr ítica . Mas essa noção

O mesmo não acontece com a filosofia e a economia disciplinas que padecem
daquelas falácias escolásticas resultantes da equivocada e inadvertida projeção
verbal n ão é desprovida de consciência. Ela mantém unido aquele grupo social espe-
cífico ; ela influencia a conduta morai e a direçã o dos desejos, fazendo isso com efi -
de condições especiais de produção intelectual sobre o mundo que elas estudam. c ácia variá vel , porém , sendo com frequ ência poderosa o bastante para produzir situa-
Para elas , tudo se daria como se as pessoas comuns fossem guiadas por “estru
- ções nas quais o estado contradit ó rio da consci ê ncia n ã o permite nenhuma a çã o ,
turas elementares” (Lévi-Strauss) , por imperativos morais abstratos ( a comu
nicação sem distorções e sem obstáculos de Habermas) ou por modelos basea
- nenhuma decisão e nenhuma escolha . Isso produz um estado de grande passividade
- moral. O conhecimento cr ítico do pró prio eu tem lugar, portanto , em uma luta de
dos na ação racionai (os economistas e o behaviorismo ). Essas ciê ncias trocam
as coisas da lógica pela lógica das coisas!

“ hegemonias'* pol íticas e de direções opostas primeiro no campo da é tica e depois
no campo específico da política, a fim de chegar à decisão num alto n ível da própria
Outro é o perigo que afeta disciplinas como a medicina e o direito: elas consciê ncia da realidade9.
transformam -se em servas do Estado . Raptadas por políticos , tais ciê ncias
alienam sua autoridade científica e com isso perdem a capacidade de confec Em outras palavras, os trabalhadores industriais possuiriam duas consci ê n -
-
cionar conhecimento certificado. At é mesmo a sociologia pode sucumbir cias: uma parte é o bom senso que vem da transforma ção coletiva da natureza ;
àquelas falácias e ser abduzida pelo Estado — como Bourdieu deixou bem a outra parte é o senso comum que inclui també m a consci ência popular que
claro com sua devastadora condenação da sociologia estadunidense e com sedimenta as ideologias dominantes tomadas como dadas e sem critica. No
seus ataques aos colegas franceses . Em outras palavras , a universidade é o trecho acima, portanto, as lutas de classe manifestam se como lutas entre duas -
ú nico lugar seguro onde a ciência social poderá emergir; mas não h á quaisquer consciências que, por sua vez, quando devidamente elaboradas , se tornam duas
garantias de que a sociologia como disciplina reflexiva surja mesmo aí. A representações hegemó nicas e concorrentes do mundo10.

58
59

Jbu .
:
0 M A R X I S M O E N C O N T R A BOURDIEU TORNANDO /V D O M I N A Ç Ã O D U R Á V E L.* C R A M S C I E N C O N T R A BOURDIEU
:
f
í
Conforme o marxismo ortodoxo, o campesinato nunca conseguiria desen - preensão a respeito de sua própria posição no mundo 12. Portanto , nada h á aqui
volver o bom senso, pois ele n ão participa da transformação coletiva da natu - para os intelectuais elaborarem . Isso n ã o quer dizer que as pessoas sejam to-
reza por meio da divisão orgâ nica do trabalho. Seu conhecimento e sua com - ?
talmente ingénuas ( pelo menos n ão todas ). É que elas seguem uma l ógica
preensão do mundo não podem ser senão parciais, fragmentados e dependentes11.
A moderna burguesia, por sua vez, poderá sim alcançar a universalidade, porém,
sua universalidade também será algo parcial, porque a transformação do mun -
I

própria, uma l ógica prática. Porém , elas n ão possuem nem capacidade nem
condições de tomar essa lógica como objeto de an álise, para enfim transcen-
derem da lógica da prática em direçã o à ló gica da teoria . Segundo Bourdieu ,
do natural que ela empreende é indireta, mediada pela classe trabalhadora e ;
isso seria privilégio reservado apenas aos sociólogos na qualidade de cientistas
fundamentada em seu interesse mesquinho pelo lucro. Trata se de uma falsa - aconchegados na skholè universitária .
universalidade , visto que a burguesia nunca poderá abarcar os interesses legí- Bourdieu então desafoga sua cólera contra o que ele denominou “a mitolo -
timos de todas as classes sociais. gia do intelectual orgâ nico” ligado à classe social. Como fração dominada da

Para Gramsci, o intelectual orgânico algu é m organicamente vinculado

à determinada classe social possuiria duas atribuições: de um lado, comba- ,
classe dominante, os intelectuais intensificam suas lutas dentro dessa classe ao
unir forças com a classe operá ria . Com isso, eles desenvolvem uma identifica -
ter as ideologias e mitologias da classe dominante a fim de revelar o cará ter ção ilusória com os trabalhadores:
arbitrá rio daquelas ideias; de outro, elaborar o bom senso a partir do senso
comum da classe trabalhadora a fim de transformar esse bom senso em um N ão é nem questão de verdade nem de falsidade a insuport á vel representaçã o do
conhecimento te órico do mundo. O Partido Comunista o Moderno Príncipe,


o incansá vel elaborador, o intelectual coletivo seria o veículo do desenvol -
mundo da classe trabalhadora que os intelectuais produzem quando , ao se colocarem
na pele do trabalhador sem terem, poré m , o habitus do trabalhador, eles apreendem as
vimento da consciência da classe trabalhadora. Mas ele não elaboraria a cons- condições da classe trabalhadora atrav és de esquemas de percepção e de apreciação
ci ência dos trabalhadores a partir do nada ; em vez disso , o partido e a classe que n ão são aqueles que os pró prios membros dessa classe mobilizam na apreens ão do
deviam entrar em uma relação dialógica. O intelectual orgânico só poderia ser mundo social. Essa é a verdadeira experiência que o intelectual pode obter do mundo
eficaz por meio da relação íntima com a classe, o que, para algumas interpre- dos trabalhadores ao se colocar provisoriamente e deliberadamente nas condições des -
ta ções gramscianas , implicaria ter ele mesmo vindo da classe operá ria. O in - sa ciasse. E isso se torna mais e mais provável , porque, conforme vem ocorrendo , um
telectual orgâ nico n ão é nenhum indivíduo isolado; é sim algué m imerso em crescente n ú mero de pessoas est á sendo lanç ado na classe trabalhadora sem ter seu

universidade era para Bourdieu. —


uma organização específica : o partido político entidade an áloga ao que a habitus que é o produto dos condicionamentos “ normalmente” impostos à queles que
est ã o submetidos a tais condições. O populismo n ão é outra coisa sen ã o o etnocentris-
Nã o menos que a universidade, o partido político també m apresentaria for- -
mo de ponta cabeça 13.
mas patológicas que corromperiam a produção do conhecimento seja por
meio do vanguardismo que tende a impor sua verdade a partir do nada; seja
— Em suma: o intelectual , cujo habitus é formado pela skhol è , n ã o poderá
por meio da subserviência acrítica ao senso comum . Aqui, Bourdieu emprega avaliar corretamente a condição da classe operá ria , cujo habitus é conformado
a visão crítica de Gramsci sobre os partidos e a absolutiza de propósito. Desse pela eterna e precá ria busca pelos meios de subsistê ncia. O abismo ali é t ão
modo, para Bourdieu , aquelas duas patologias mencionadas (o vanguardismo grande que impediria qualquer di á logo e todo esclarecimento m ú tuo entre tra -
e a subserviência ) seriam inerentes à própria natureza do partido político, por- (
balhadores e intelectuais. Essa é, como podemos perceber, uma visão bastante
que a classe trabalhadora, ou mesmo qualquer outra “classe”, jamais poderia sombria em rela ção às possibilidades de engajamento dos intelectuais com
alcan ç ar a intuição científica , quer dizer, a verdadeira realidade. Na linguagem
í

quaisquer outros grupos alé m deles mesmos, naturalmente .
de Gramsci, Bourdieu nega que as classes sociais possuam algum n ú cleo de .. De um lado, manter um contato demasiado pr ó ximo com os trabalhadores
bom senso escondido debaixo do senso comum . O senso comum delas seria
I ou mesmo com qualquer outra classe social suporia arriscar- se a ser contami -
irrevogavelmente e inescapavelmente um senso comum , no mau sentido! Con - nado por suas concepções equivocadas . De outro , como seu habitus é bastante
forme Bourdieu , todas as classes padeceriam de uma fundamental incom- diferente do habitus dos trabalhadores , os intelectuais orgâ nicos , por n ão com-
í
s

60 61
.
í
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
! .
TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á VEL ’ GRAMSCI ENCONTRA BO URDI EU
I.

preenderem nem a si mesmos nem aqueles com quem se unem, sofrem a ten- tual tradicional n ão é tanto feita contra a incapacidade deste em concretizar a
tação de exercer um despotismo esclarecido e manipular os trabalhadores. Com autonomia, mas, antes , sua cr ítica é dirigida contra o projeto mesmo, a saber,
efeito, pretender elaborar a consciê ncia da classe trabalhadora e pretender a consolidação de uma dominação ideológica ao apresentar os interesses dos
falar em nome do povo já significaria substituir a si mesmo pelo povo. Bourdieu, dominantes como sendo os interesses universais. Para Gramsci, os intelectuais
inclusive, estende tal crítica aos líderes políticos em geral que são regidos pela da classe dominante precisam manter- se autó nomos para poderem se apresen -

lógica do campo pol ítico campo no qual os representantes das organizações
competem entre si, manipulando conforme seus interesses as representações
x
I
tar como portadores de uma (falsa) universalidade . Gramsci encararia a uni -
versalidade defendida por Bourdieu , com sua meta de torn á-la acessível a todos,
dos representados. Eis a visã o de Bourdieu sobre a lei pé trea da oligarquia como nada muito al ém do que o aperfeiçoamento da ideologia dominante do
intelectual. Ele era profundamente cético quanto à capacidade dos pol íticos e
<

capitalismo.
dos sindicatos de se mostrarem sensíveis às demandas daqueles que afirmavam Por isso, os intelectuais provenientes da classe dominante (latifundiária) da
representar 14. Caso os intelectuais se tornassem sensíveis às reivindicações dos Alemanha e da Inglaterra, ou aqueles vindos da ordem feudal da Itália, possu -
representados, eles igualmente virariam ref éns de noções erró neas, ao passo íam autonomia intrínseca somente em relação à classe dominante (industrial ),
que se eles se tornassem sensíveis às pressões do campo político, ent ão, prati- pois estavam assentados em suas conex ões com sistemas de produ ção anterio-
cariam a distorçã o contrária: trairiam seus aliados mesmo quando falassem em res ( mercantis) , o que os tornava especialmente aptos para criar certa repre-
nome deles. sentação do universalismo que às vezes se manifestava em um anticapitalismo
Gramsci era muito atento às ciladas à espreita do intelectual orgânico. Eis franco. Poré m, sua verdadeira função social era reproduzir o capitalismo, ao
porque ele frequentemente enfatizou a cegueira dos intelectuais às experiências protegê-lo n ão apenas dos grupos explorados e subjugados, mas també m da -
da classe trabalhadora. Com efeito, Bourdieu apoderou-se sorrateiramente des- queles capitalistas que não conseguiam enxergar nada além dos seus interesses
sas advertências gramscianas sobre as patologias da representaçã o e as trans- econ ómicos imediatos.
formou na rejeição da própria ideia do intelectual orgânico 15. Em outras pala- Bourdieu tinha duas respostas a tamanhas acusações. A primeira era que a
vras , enquanto Gramsci permanecia atento aos perigos à espreita dos agentes, universalidade burguesa , fundada nos campos culturais, foi a mais elevada
com o objetivo de reafirmar sua possibilidade de engajamento,- Bourdieu enfa- conquista da humanidade e, sendo assim , nossa meta era universalizar o aces-
tizava esses mesmos perigos para rejeitar pura e simplesmente o desafio do so àquela universalidade. Todo mundo devia ter a oportunidade de apreciar um
engajamento. A confiança gramsciana no intelectual orgânico era baseada no Flaubert, de admirar um Matisse. Em outras palavras, a autonomia intelectual
ceme de bom senso que Gramsci entendia existir no â mago da classe trabalha-
dora , ao passo que Bourdieu negava haver tal coisa. Para ele , esse diálogo

era realmente de interesse universal a ponto mesmo de se negar às classes
exploradas e subjugadas a percepção que elas mesmas podiam ter das próprias
seria artificial e, portanto , perigoso. culturas. Esse argumento parece-me bastante consistente com a noçã o grams-
Deixe-me agora virar a mesa sobre os intelectuais de Bourdieu , com sua ciana de intelectual tradicional, cuja função é reproduzir a dominaçã o por meio
empedernida preocupação com a autonomia do campo escolástico-acadê mico. da negação de qualquer cultura alternativa , Mais interessante, poré m , é a se-
Sem dú vida , Gramsci considerá-los-ia intelectuais “ tradicionais” — indivi - gunda estratégia de refutação de Bourdieu , a saber, que a autonomia dos inte-
dualidades que “experimentam, por meio do espirit de corps, sua ininterrupta lectuais cria, em condições ótimas e ideais, um saber crítico que desmascara a
continuidade histórica e qualificação especializada. Eles se põem ent ão à fren- dominação. Em outras palavras, a posição ocupada por Bourdieu no campo
te das classes sociais como sendo independentes e autónomos em relação ao científico permitir-lhe-ia demonstrar como a distinção cultural esconde a do-
grupo social dominante” 16. A preocupaçã o frequentemente manifestada por minação baseada nas relações de classes. Poré m, aqui também encontraremos
Bourdieu é que a autonomia dos campos cultural e intelectual se encontra o seguinte paradoxo: n ão apenas o desmascaramento, mas també m o mascara-
permanentemente ameaçada , quer pelo Estado, quer pelos mercados. Tal au- mento da dominaçã o depende da autonomia dos campos culturais e , sendo
sê ncia de autonomia é um fen ômeno amplamente denunciado em Homo aca - assim, defender essa autonomia implica defender a dominação baseada nas
demicus ] 1 e em A aristocracia de Estado18. J á a critica de Gramsci ao intelec- relações de classes.
:

62 63

L
I

O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU I TORNANDO A DOMINA ÇÃ O D U R Á V E L: G R A M S C l ENCONTRA DO URDI EU

Pondo à parte a questão da defesa da autonomia acadêmica em Bourdieu , distanciado de tudo e de todos) e aceitem trabalhar coletivamente pela defesa dos pró prios
a próxima quest ão é: para quem ele estaria falando ? Como ele mesmo disse \ interesses. Isso deveria lev á- los a se afirmar como poder internacional de cr ítica, de
em Sociologia em questão19 , as classes dominantes não têm qualquer interesse
.
vigilância ou mesmo de proteção social contra os tecnocratas; ou ainda —
com uma
na mensagem da sociologia e, muito embora os dominados tenham tal interes- f.
ambição ao mesmo tempo mais elevada e mais realista, portanto , limitada à sua pr ó pria
se, eles n ão têm capacidade de compreender a mensagem sociológica
profundamente enraizada é sua socialização no capitalismo. E eis o derradeiro

tão esfera — a se envolver em uma ação racionai em defesa das condições de autonomia
desses universos socialmente privilegiados, nos quais são produzidos e reproduzidos os
paradoxo em Bourdieu : sua insistê ncia em realizar a ruptura radical com o í - instrumentos materiais e intelectuais daquilo que n ós chamamos a razão. Essa Realpo -
senso comum e seu temor de que o engajamento dos intelectuais com os do- litik da razão, sem d ú vida, será suspeita ou acusada de corporativismo . Poré m, será
minados fosse algo perigoso estavam em desacordo com seu projeto de tornar
a dominação totalmente transparente. A profundidade do desconhecimento dos
:
;
parte da sua tarefa provar —pelos fins a serviço dos quais ela disporá os meios - que
este será o corporativismo do universal 21 .

5
indiv íduos dominados significaria que o desmascaramento da dominação n ão
podia ser realizado a dist â ncia. Na prá tica, Bourdieu parecia gostar dessa con- Seria esse “corporativismo do universal” , pelo qual os intelectuais apresen-
duta; eis por que ele foi o único dentre os aclamados intelectuais europeus a í tariam seus interesses particulares como sendo os interesses universais, algo
ser visto em piquetes dialogando com trabalhadores em greve nos anos 1990. além daquela ideologia típica da classe que Alvin Gouldner22 chamou de “clas-
O que ele estaria fazendo ent ão sen ão aspirando a ser um intelectual orgânico ?
Sua prá tica parecia desmentir sua teoria .
:
;
:

se universal imperfeita”. Que fins que visões e que divisões teria Bourdieu
reservado a esse intelectual orgâ nico da humanidade?23 Haveria algo mais para

Sendo assim, enquanto Bourdieu dirige sua dupla crítica ao intelectual esse Moderno Príncipe realizar, alé m da defesa da autonomia da ciê ncia e da
org â nico de Gramsci — quer sucumbindo à ignor â ncia popular , quer lhe cultura? Por que motivo deveríamos confiar nos intelectuais esses mensa— -

impondo seu desconhecimento autointeressado , Gramsci poderia retribuir a
“gentileza” com sua própria crítica dupla ao intelectual tradicional de Bourdieu:
:
geiros indiferenciados do neoliberalismo, do comunismo, do fascismo , do ra-
cismo — para serem os salvadores da humanidade ? Ao dissecar as fal ácias
5
ou o campo intelectual é permeado pelas forças sociais corruptoras e desvir- escol ásticas dos outros autores, teria Bourdieu omitido a maior ilus ã o de todas:
tuadas dos mercados e do Estado e, portanto, seus la ços com a classe domi-
;
o autoengano dos intelectuais, acreditando serem eles os potenciais mensagei -
nante seriam transparentes; ou o campo intelectual é autónomo e, dessa fei- ros de um universalismo bastante duvidoso? Bourdieu , portanto, substitui a
ta, como é mais prov á vel que aconteça , ele só promoveria a universalidade universalidade da classe trabalhadora , baseada na produ çã o e forjada pelo par-
dos dominantes. A crítica de Bourdieu à dominação é, pois, ela mesma ex- tido político, pela universalidade de intelectuais encastelados na academia que,
pressa nos termos da universalidade cultural e artística. Na total falta de um l segundo Gramsci, era a forma mais pura da hegemonia burguesa.
veículo que comunique semelhante crítica às classes que nela tê m interesse,
a universalidade transformar-se-ia simplesmente numa espécie de subsidiá ria
da domina ção. Domina çã o: hegemonia versus
No postscriptum de As regras da arte20 , Bourdieu não emprega a mesma
!
viol ê ncia simbó lica
ê nfase e se arrisca. Por não ter atribu ído qualquer papel histórico às classes •
:

dominadas e por ver as classes dominantes extenuadas por sua própria domi- s A valorização alternativa, ora do intelectual tradicional, ora do intelectual or-
naçã o, ele apontou para uma “internacional dos intelectuais ” como a salvação gâ nico , lança bases para teorias divergentes da dominação: de um lado, temos
da humanidade: Gramsci e sua hegemonia fundada no consentimento; do outro lado , temos
Bourdieu e sua violê ncia simbólica fundada no recalque da dominação. A he-
t
Os produtores de cultura e de ciência não encontrarão novamente no mundo social 5
gemonia é explícita e desabrida , portanto, pode ser subvertida pelo intelectual
nenhum lugar para si mesmos, a menos que sacrifiquem de uma vez por todas esse mito i orgânico; já a violência simbólica é sorrateira e inconsciente, sendo apenas
do ‘intelectual orgâ nico’ (sem caírem , poré m, na mitologia complementar do mandarim :
f

%

acessível aos soció logos como intelectuais tradicionais.
:

64 !
| 65
f
I
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU i TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á V E L: GRAM SCI ENCONTRA BOURDIEU

Bourdieu rejeitou as concepções marxistas de ideologia e de falsa consciên - cluindo aí os aparatos tanto ideoló gicos como repressivos . A organiza çã o do
cia alegando serem “fen ô menos de superf ície”, inadequadas , portanto, para
I
consentimento, por sua vez , seria totalmente dependente da inclusã o dos indi -
lidar com a inscri ção das estruturas sociais nos corpos dos agentes, na forma >
v íduos , com sua participação na sociedade civil sob a lideran ça dos intelectu-
do habitus que se sentiria à vontade sob a dominação e que tampouco se reco- ais tradicionais: professores, padres, líderes comunitários, advogados, médicos
nheceria como tal: e assistentes sociais.
O paralelo entre a hegemonia e o poder simbó lico é impressionante , mas a
Na ideia de falsa consciê ncia, evocada por alguns autores marxistas para explicar o diferen ça entre os dois conceitos é decisiva. Conforme Bourdieu , a domina ção
efeito da dominação simbólica, é a palavra “consciência” que é excessiva ; assim como
falar em “ideologia” equivale a colocar na ordem das representações —
capazes de
— seja a de classe, seja a de gê nero — é mantida graç as à existê ncia de um
universo simbólico que redefine categorias de distinção e , por meio delas ,
serem transformadas pela conversão intelectual que n ós chamamos de “ tomada de cons - mistifica a realidade social subjacente . Nós vemos isso funcionando claramen-

ciência” aquilo que está situado antes na ordem das crenças, quer dizer, no n ível mais
te em A distinção26, em que a dominação subjacente às relações entre classes
profundo das disposições incorporadas 24.
é transcrita na afirmação da superioridade cultural que os dominados aceitam
como sendo o atributo intrínseco dos dominantes. Alé m disso, o Estado con -
Em outras palavras, a submissão à dominação n ão é uma questão de cons- sagra tais distinções , definindo quem deve ser considerado um cidad ão, o que
ciência; seria antes uma questão de crença, uma questão de habitus aquelas
disposições e apreciações profundamente inculcadas e inacessíveis à consci-
— 1
*
é um grupo radical , uma ocupação, uma credencial educacional e por aí vai.
Lembremos que Bourdieu afirmou possuir o Estado n ão apenas o monopólio
ência . Gramsci , por sua vez , n ão seria menos antipá tico a essa sociologia da
legítimo da violência f ísica, mas també m o monopólio legítimo da viol ê ncia
submissão espontânea e inconsciente defendida por Bourdieu :
simbólica . Podemos perceber aqui uma expansão do Estado que é paralela à
inclus ão feita por Gramsci dos aparatos ideoló gicos estatais , porque é apenas
Se a ciência pol ítica é a ciência do Estado ; e se o Estado é todo esse complexo de
no universo simbólico que se pode operar tanto no nível da consci ê ncia como
atividades prá ticas e teóricas com as quais a classe dominante n ão apenas justifica e
mantém seu dom ínio, mas també m o gerencia para obter o consentimento dos domina-
- no nível do inconsciente.
dos, então, é óbvio que todas as questões da sociologia são na verdade questões de ci-
Se existem, portanto, paralelos entre os dois autores quanto à questã o da
ê ncia pol ítica. E se restar aí algum resíduo teórico, este deverá se constituir apenas por expansão do Estado , haveria també m algo parecido com a sociedade civil gra -
falsos problemas , ou seja, por questões frívolas25. msciana no quadro conceituai de Bourdieu ? Semelhante à descrição feita por
Weber da modernidade como correspondendo à emergê ncia de várias esferas
Desse modo, segundo Gramsci, a hegemonia n ão teria um fundamento in- valorativas , o espaço social descrito por Bourdieu é composto por v á rios cam -
consciente. Ela se distingue da ditadura, que é uma forma específica de domi- —
pos autó nomos e diferenciados o científico, o econ ómico, o burocrá tico, o
nação que combina coerção e consentimento, sem que o uso da forç a desapa- art ístico, o religioso, dentre outros . Temos aqui arenas de atividade humana
reça totalmente . Aqui , a força é objeto de consentimento , de concord â ncia. A que são definidas por metas, regras e capitais específicos , dando suporte a di -
hegemonia é o consentimento protegido pela armadura da coerçã o, da força . ferentes territó rios de competição e luta social . O campo do poder (an á logo à
O que é decisivamente original quanto à formulação gramsciana no contexto sociedade civil gramsciana ) abriga todos esses campos juntos ; j á o campo
do marxismo é sua mobilização da hegemonia para explicar a expans ã o da político , quer dizer, o Estado, é o lugar das lutas em torno das regras e limites
entre os campos , assim como das “ taxas de c â mbio” entre seus diferentes ca -

sociedade civil, como ocorrida no final do século xix com sua densa vida
associativa entre o Estado e o mercado , composta pela m ídia de massa , por pitais específicos. Há inclusive algumas evid ê ncias conforme as quais a emer-
igrejas , partidos , entidades sindicais, pela universalizaçã o do ensino básico e gência de campos sociais relativamente autó nomos, no final do século xix , tal
V

por uma infinidade de associações voluntárias. A sociedade civil está inteira- l como ilustrado por Bourdieu em sua descrição da génese dos campos artísticos,
mente conectada ao Estado, que passaria ele próprio por uma expansão, in- foi algo que coincidiu, de acordo com Gramsci , com a emergê ncia das socie-
dades civis. A articulação entre v á rios campos relativamente autó nomos no

66 67
O M A R X I S M O ENCONTRA BO URDI EU TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á VEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

l
interior do campo do poder, assim como a articulação entre diferentes Bourdieu apresenta -nos a pr á tica pol ítica na forma de um jogo no qual as
asso-
cia ções dentro da sociedade civil , é algo que n ão possui natureza ú
sendo, antes, objeto de lutas inclusive em relação às estruturas que
nica , f regras, as metas e as formas v álidas de capital são tomadas como dadas . Com
ram essas lutas.
estrutu - efeito, o ato de jogar o jogo já implica um investimento tácito nesse jogo — a
illusio. As lutas sã o concebidas como estratégias inconscientes e conduzidas
O que dizer então das lutas dentro da sociedade civil, isto é, no interior
do por uma percepção antecipada do jogo que absorve a aten ção e a criatividade
campo do poder ? Aqui n ós també m podemos destacar algumas converg
que esclarecem as discrepâncias. A centralidade da sociedade civil
ências dos jogadores. Para qualquer observador externo, o jogo poderia parecer in -
para a or- significante e sem significado, mas, para seus participantes , ele é a razão de
ganizaçã o da hegemonia tem uma importâ ncia fundamental na
compreensão viver, mistificando e mascarando as condições subjacentes à dominação que
gramsciana das revolu ções. O assalto direto contra o Estado, o
confisco do tornam possível o jogo. A luta pela articulaçã o entre os jogos, quer dizer, a
poder estatal, enfim, aquilo que Gramsci chamou de guerra
de movimento luta no campo político, tem lugar no campo do poder, que é totalmente imune
precisaria ser precedida pela guerra de posição: a transformaçã
o vagarosa e à influ ência das classes dominadas e subalternas.
paciente das instituições da sociedade civil, trazendo- a para
fora do Estado Como Gramsci poderia reagir a isso? Para Gramsci , a experi ência da clas-
e reorganizando este ú ltimo sob a direção do Partido
Comunista o Moderno
Príncipe, o inventor e o construtor da hegemonia alternativa
. A revolução em
— se trabalhadora é transcendente, por isso, a guerra de posição, quer dizer, a
transformação da sociedade, é a luta pela hegemonia de uma classe social
duas etapas de Lênin*, na qual o Estado capitalista é
destruído e substituído sobre as outras; luta na qual cada classe procura apresentar seus interesses
pela ditadura do proletariado que definhará e suprimirá
depois a si mesma, como sendo os interesses universais. No capitalismo avan ç ado, a hegemonia
pôde funcionar bem na Rússia, onde a sociedade
civil era fraca, mas não po
deria funcionar no Ocidente, onde a sociedade civil tem sua pr
ópria relação
- burguesa é especialmente poderosa. A descrição que Gramsci fez da emergê n -
cia da hegemonia burguesa també m serve de cen á rio para situar a luta pela
com o Estado. Na Rú ssia , a guerra de movimento chegou antes,
seguida pela emergência da hegemonia socialista . Assim , ele compara a formaçã o das clas-
guerra de posição, que foi a construçã o da hegemonia
socialista de cima para ses sociais à imagem de uma escada com três degraus: em primeiro lugar, vem
baixo. J á no Ocidente, a guerra de movimento significaria
apenas a tomada o est ágio econ ó mico e corporativo , no qual as frações de uma classe social
final do poder do Estado, depois que a muito mais difícil guerra
de posição perseguem seus interesses materiais imediatos (ind ústria têxtil versus minera-
fosse vitoriosa .
ção; capital industrial versus capital financeiro; trabalhadores gr á ficos versus
Para ser exato, Bourdieu acharia ridícula essa ideia de guerra
de posição. trabalhadores do setor automobilístico); em segundo lugar, vem a consolida ção
Muito embora ele nunca tivesse realizado nenhuma análise
coletiva das lutas da classe econ ómica ( industriais versus latifundi á rios, brigando pelo livre co-
que atravessam e ultrapassam os campos, ele fez
sim uma an álise muito mais mércio; assalariados versus agricultores , brigando por legislação trabalhista ).
detalhada das lutas dentro desses campos relativamente autó
que apenas realçou o qu ão dif ícil é conduzir aí qualquer
nomos análise
‘‘guerra de posição”.
— O ú ltimo degrau na escada da formação da classe é uma fase puramente etico-
pol ítica , na qual a classe superaria seus próprios interesses econ ó micos mes-
* Revolução em duas fases . No momento da revolução ( 1917 ) , a quinhos para representar os interesses de todas as classes, fazendo pequenos
R ússia era um imenso impé rio
feudal e agrário. Segundo Lênin (1870 1924), a passagem
- direta da oligarquia para a socieda-
sacrif ícios econó micos que ( todavia ) n ão alterariam a natureza essencial do
de comunista seria imposs í vel em tais condições. Al é m disso, sistema produtivo dominado por ela .
baseando-se em Karl Marx
-
( 1818 1883), ele postulou que, numa fase entre o
capitalismo e o socialismo, haveria um perío- Então, a burguesia fez concessões económicas ( melhoria das condições de
do de transição pol ítica liderado pelo Estado e sob a ditadura
do proletariado revolucioná rio.
Com isso, a revolu ção para Lênin dar-se-ia em duas etapas.
Na primeira
trabalho, salário mínimo, limitação da jornada de trabalho) sem, contudo, ame-
fase (socialista), a
propriedade privada seria coletivizada segundo um crité
rio de justiça ainda burguês e parcial. açar seus lucros. Na verdade, tais concessões a levaram a desenvolver novas
Já na segunda fase (comunista ), com o capitalismo
totalmente
as condições económicas para a extinção gradual do Estado dissolvido estariam reunidas
,
e das classes sociais. Essa fase r
estratégias de extração de mais-valia. Além disso, a burguesia controla o Esta -
seria plenamente democr á tica e regida pelo princípio:
de cada um , conforme suas capaci-
do que , por sua vez, impõe tais concessões até mesmo contra a vontade de alguns
dades; e para cada um, conforme suas necessidades. Ver:
-
2007 , pp. 104 20. ( N. do T.)
Lênin, O Estado e a Revolução , capitalistas retardatários— tudo em nome de “ universalismos nacionalistas”.

Gramsci também destaca a import ância da ideologia hegemó nica esse siste-

68 69
e:
I
O M A R X I S M O E N C O N T R A BOURDIEU .
TORNANDO A D O M I N A ÇÃ O D U R Á V E L * GRAMSCI E N C O N T R A BOURDIEU

ma relativamente autó nomo de ideologias que apresentam os interesses da bur - pio favorito e que foi inclusive sua inspira çã o para a noçã o de habitus é
guesia como sendo os interesses universais. A classe trabalhadora, por sua vez, aquele dos argelinos cujo habitus rural colidia com os campos económicos da
tem como missão quase impossível construir sua própria hegemonia alternativa. vida urbana. Seu próprio habitus, ali ás, moldado por sua origem agr á ria, per -
Chamo de missão quase impossível porque os operá rios n ão dispõem nem das mitiu a Bourdieu ver mais nitidamente a fisionomia do campo acadê mico com
E:
condições económicas para oferecer concessões, nem do poderio do Estado para
l
o qual suas disposi ções e apreciações estavam em conflito. Para nossa proposta
executar sua vontade coletiva. No melhor dos cen á rios, tudo o que a classe fc aqui, o conflito mais interessante entre o habitus e o campo surge n ão como
B
oper á ria possui é o Moderno Príncipe (o Partido Comunista) como seu ins - resultado da mobilidade individual entre os campos ( o que n ós poder íamos
trumento organizador eticopol ítico e reformador intelectual e moral, para r chamar de hysteresis situacional), mas como resultado da transformação temporal
poder cultivar sua pró pria ideologia pol ítica

“[...] expressa n ão na forma
de utopias vazias, não na forma de teorias ensinadas, mas antes pela criação de
£ do próprio campo (o que n ós poderíamos chamar de hysteresis processual ) .
Homo academicus28 descreve como a expansão do ensino superior provocou
uma fantasia concreta que aja sobre essas pessoas dispersas e desoladas, a desvalorização das credenciais educacionais e bloqueou a sucessão dos pro-
1
manifestando e organizando sua vontade coletiva ”27. Dado esse desequilíbrio fessores assistentes, gerando certa tensão entre as aspirações e as oportunida -
de forças, Gramsci só poderia ser pessimista quanto às possibilidades da des, entre as expectativas e as possibilidades de concretização, enfim , entre o
*

revolu ção no Ocidente . .


habitus de classe e o campo do ensino superior A hysteresis processual atingiu
Mas o pessimismo gramsciano parece decididamente otimista, quando com- vá rios campos acadêmicos ao mesmo tempo, até que as crises locais ou con-
parado à an álise da dominação simbólica feita por Bourdieu! Á li , a eficácia da junturais se combinassem e conduzissem à crise geral . As diferentes tempora -
dominação simbólica localiza-se n ão na apresentação dos interesses da classe lidades ( geralmente assíncronas) dos v á rios campos entraram em concordância
dominante como interesses universais, mas sim no ofuscamento e no encobri - originando a crise geral situada em um tempo publico singular e produzindo
mento da própria categoria sociológica da classe social. As categorias de dis- eventos históricos como a suspensão provisória do senso comum , com o des-
tin çã o que oferecem os padrões e modelos para nossas vidas são tomadas como mascaramento e o questionamento da doxa* de cada campo. Nesses momentos
-
algo dado; por isso, a própria dominação torna se imperceptível ou irreconhe- de polarização forçada e de inversão hierá rquica , tudo parece ser poss ível !
cível como tal. Assim, antes mesmo que possa haver lutas de classe pela con
- Bourdieu estava , é claro , referindo-se a maio de 1968**.
quista da hegemonia, deverá haver lutas pela afirma ção da exist ência e do
significado das classes sociais. Desse modo, as lutas por classificação precedem
as lutas por hegemonia. Bourdieu problematiza aquilo que Gramsci toma como * Doxa são pressupostos indistintamente cognitivos e avaliativos, a partir dos quais os objetos
e os agentes do campo são classificados e hierarquizados em bom e mau , em leg ítimo e
dado: o reconhecimento da dominação fundada na classe social como uma
condição pré via para a guerra de posição.
ileg ítimo, em belo e feio, em superior e inferior, em inovador e ordin á rio
diante esses pares de conceitos opostos da doxa correspondem empiricamente a pares de

assim por

Quem ingressaria nas lutas por classificação? Nas palavras de Bourdieu , a -


posições opostas no campo. Sua lei arbitr á ria e orto -doxa estabelece princípios de visõo e
di - visão que reforçam e legitimam sua estrutura , porque funcionam como princípio hier á r-
invisibilidade da dominação estaria baseada no encaixamento, na congruência quico suplementar à s desigualdades na posse do capital . Al é m disso, enquanto a estrutura
entre a estrutura social e o habitus inculcado por ela mesma . Por outro lado, a delimita o espaço dos possíveis , a doxa delimita també m o espaço dos pensá veis , definindo
durabilidade do habitus e a permanência das disposições inscritas nele, inevi o terreno leg í timo de discussão e de avaliaçã o , condenando e recusando como impensá vel
tavelmente, provocam algumas incongru ências ou desarmonias entre os habi -
- qualquer tentativa de estabelecer valorizações alternativas a ela . Ver Bourdieu , Medita ções
pascalianas , 2001 , p. 122. ( N . do T. )

tus e alguns campos aquilo que Bourdieu chamou de hysteresis*. Seu exem
- ** Maio de 1968. No começo de 1968 , surgiu entre os estudantes franceses uma progressiva in-
quietação, pela qual se criticava a incapacidade das universidades para introduzirem no mer -
cado de trabalho um n ú mero cada vez maior de bacharé is formados. Ao mesmo tempo, di -
* Hysteresis (histerese = atraso, deficit ). Termo que Bourdieu tomou da f ísica. Trata-se do fe versos grupos, inspirados pelo anarquismo e pelo marxismo, manifestaram sua oposiçã o à
nô meno no qual a resposta de um certo sistema se atrasa em relação ao estímulo externo,
-
sociedade capitalista e consumista . Os estudantes de sociologia da Nanterre ocuparam o
conforme o incremento ou a diminuição dessa solicitação. Também se refere à perda de po
- campus e provocaram o fechamento da universidade no final de abril , transferindo o movi-
tência em qualquer equipamento elétrico, quando a ação magnética constante que mento para a Sorbonne. Como os diretores temiam que houvesse l á confrontos entre grupos
o faz fun -
cionar é convertida em uma pulsação instável. (N. do T.) direitistas e marxistas, solicitaram a interven ção policial, violando assim a autonomia uni -

70 71
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
.
TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á VEL * GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU
\
A crise espalhara-se pela comunicação feita entre agentes situados em po \
sições hom ólogas, isto é , situados em posiçõ es subordinadas em diferentes
- Gramsci e Bourdieu lidam com problemas semelhantes — a durabilidade
da dominação —, mas suas diferenças de abordagem são profundas. Em pri-
campos. Bourdieu , todavia, advertia contra os perigos de construir alianç as
meiro lugar, a hegemonia se fundamenta no consentimento, enquanto a vio-
através das fronteiras dos campos
trabalhadores:

especialmente entre os intelectuais e os f
.
lência simbólica se fundamenta no desconhecimento. Em segundo lugar, em-
bora a sociedade civil envolva e absorva a discord ância dos subordinados , ela
também oferece uma arena de lutas ; já o campo do poder é reservado somente

As alianças baseadas nas homologias entre posições cito, como
las que são estabelecidas conjunturalmente entre agentes ocupando posi
exemplo , aque- aos líderes políticos engajados em jogos feitos entre si, à custa da exclusão dos
nadas no campo acadêmico e agentes ocupando posições subordinadas
ções subordi - dominados- representados . Em terceiro lugar, da mesma forma que o Estado
no campo social

como um todo s ã o deste tipo: a n ão ser que elas permaneçam restritas â
imagin ário, como são certos tipos de sonhados encontros entre os
ao mbito do
“intelectuais” e o
orquestra a hegemonia atrav és das conexões que tem com a sociedade civil , o
mesmo Estado també m deté m o monopólio da violência simbólica legítima,
“ proletariado” , elas têm maiores chances de se materializar por consagrar as classificações, os capitais e os objetivos dos campos relativa-
e perseverar se os parceiros
que elas congregam a distâ ncia em torno de slogans vazios , de mente autónomos que compõem o campo do poder. Em quarto lugar, enquan-
manifestos abstratos e
de programas formais tiverem oportunidades maiores de entrar em to a guerra de posição de Gramsci , assim como sua luta por hegemonia, con-
interação direta para
se verem e se falarem uns com os outros. Com efeito, tais
encontros colocam em con-
cebe as classes sociais como categorias concretas, Bourdieu assevera que antes
tato não indivíduos abstratos e definidos apenas em relação
a suas posições em uma de quaisquer lutas de classe, deve haver uma luta pela própria categoria classe.
determinada regi ão do espaço social , mas sim pessoas totais, cujas prá
ticas , discursos Finalmente, tanto para Gramsci como para Bourdieu , a transformação social
e até mesmo a simples aparência corporal expressam sistemas surge por meio da luta que traz à tona efeitos revolucionários em épocas de
de disposi ções ( habitus )
divergentes e , pelo menos , potencialmente antagónicos29. crise orgâ nica geral ; mas, enquanto Gramsci v ê isso em termos de um certo
equilíbrio de forças de classe, Bourdieu vê nisso a difusão acelerada e espon -
Essa visão sobre a crise está em completo desacordo tâ nea de crises locais provocadas por uma disfunção sistémica e processual
com o conceito
gramsciano de crise orgâ nica , que representa precisamente entre o habitus e o campo. Seus conceitos paralelos revelam profundas divisões .
um equilíbrio de

forças de classe seja entre as classes dominante e dominada,
própria classe dominante entre as diferentes frações que
seja dentro da Nós descobriremos os fundamentos empíricos dessas noções de dominação no
capítulo III . Por ora, ficaremos concentrados em suas complementaridades.
formam seu bloco no
-
poder. Pode se dizer então que Bourdieu ofereceu
as microfundações de um

catastrófico equilíbrio de forças de classe fen ô meno
que ocorreria simul-
taneamente em v ários campos. Gramsci, por sua vez, diria que
aquelas ligações Reconci lia çã o: a univers idade
atrav és dos campos n ão acontecem espontaneamente,
mas dependem do á rduo
trabalho da guerra de posição cultivada pelo verdadeiro como o Modern o Princip e
intelectual orgâ nico
coletivo e enraizada em um certo n ú mero de campos
sociais para que ent ão o
choque dos habitus possa ser prevenido, se n ão, silenciado. No Bourdieu e Gramsci são como espelhos opostos: Bourdieu vê a teoria de Gra-
final das contas,
o desenlace dos episódios de maio de 1968 sugeriu que msci como a express ão do mitoló gico intelectual orgâ nico , contaminado ou
aquela talvez não tenha
sido uma crise orgâ nica do capitalismo. manipulado pelas classes dominadas , ao passo que Gramsci decerto veria a
teoria de Bourdieu como a cristalização dos intelectuais tradicionais cuja bus-
ca por autonomia apenas reproduz a dominação que eles afirmam combater.
Enquanto Bourdieu funda o conhecimento na competição regida pelas regras
versit á ria. A rea çã o dos estudantes e professores foi
convocar uma greve geral. Após forte da ci ência , tendo lugar no espaço protegido da academia, Gramsci funda o
repressão ao movimento, os sindicatos operários,
liderados pela Confederação dos Trabalha-
dores (CGT) , também aderiram à greve geral em 13 de maio.
O conhecimento na transformação prá tica do mundo , sendo elaborado pelo par-
na França foi secundado por agitações em vários outros paí (movimento de maio de 1968
.
ses. N do X ) tido político em íntima ligação com a classe operária . Diante disso, essas duas

72
73
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á VEL: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU

perspectivas são irreconcili á veis, poré m , nos nossos dias, eu arriscaria sugerir Bourdieu dizia, a guerra precisa ser travada em duas frentes: contra o inimigo
que tanto o intelectual tradicional como o intelectual orgâ nico são igualmente interno e contra o inimigo externo.
necess á rios. No caso de Bourdieu, sua atividade pol ítica tardia sugere que \ Embora Bourdieu estivesse bastante confiante e otimista quanto à neutra -
podemos encontrar ambas as modalidades de intelectual em uma mesma pessoa,
embora sua teoria andasse atrasada em rela ção à sua prá tica. J á no caso de
lidade da universidade

—que serve ao capitalismo e ao Estado neoliberal de

diversas maneiras , sua pró pria sociologia e nós poderíamos aqui pergun-
Gramsci , sua prá tica comunista nunca trouxera consigo sua sólida teoria. Por tar quais s ão as condições socialmente necessá rias à sua existê ncia e ao seu
isso, hoje nós precisamos repensar o conceito de Moderno Príncipe . —
exercício ? desafiou as premissas da economia e da ciê ncia pol ítica ao des-
Bourdieu descreve o mundo contempor â neo como invadido e dominado mascarar as fun ções ideológicas dessas disciplinas. Com seu foco voltado para
pelas forças do mercado que ameaçam o mundo social
autonomia dos campos e dos valores que eles afirmam . Os

especialmente a
Estados nacionais
'
í

— —
os mecanismos de dominação a violência simbólica, os capitais, os campos
e o habitus , Bourdieu proveu farta munição para a sociologia crítica. Sem
e o crescente n ú mero de agê ncias e de organizações supranacionais j á n ão dú vida, a conquista mais importante de Bourdieu foi atrair essas disciplinas ( a
podem conter ou regular o mercado; pelo contrário: eles apoiam frequentemen-
! antropologia, a geografia humana, a sociologia) para contestarem a maior ilu-
te a transformação de todas as coisas em simples mercadorias —
desde a pri - : são coletiva da nossa é poca: a panaceia dos mercados. Sua maior fraqueza
vatização dos serviços p úblicos até o contrabando de órgãos humanos. Os in- residia, porém, na forma pela qual ele se achava pairar sobre a sociedade, em
-
telectuais não poderão esconder se atrás das barricadas da universidade; eles
precisam é lançar sua pró pria ofensiva contra as ideologias e panaceias do :
sua prosa muitas vezes impenetrá vel e inacessível às classes populares
grandes vítimas da mistificação neoliberal . Eis por que o intelectual orgâ nico
as —
mercado. Mas não podemos esquecer, todavia, que, especialmente nos Estados é tão necessá rio! Contudo, impelido pela urgência das questões do seu tempo,
Unidos, os apóstolos do neoliberalismo tamb ém se encontram firmemente o pró prio Bourdieu revogou seu an á tema ao intelectual orgâ nico como ele —
acampados atrás daquelas mesmas barricadas universitárias. O conluio do Es- mesmo reconheceu em Atos de resist ência30 e em seus Contrafogos31.
tado com os mercados tem sido justificado (quando n ão fomentado) pelas dis - Podemos manter a cr ítica feita por Bourdieu ao intelectual orgâ nico sem
ciplinas da economia e da ciência política. Não digo isso para desmerecer todos com isso abandonarmos o projeto mesmo. Podemos inclusive recompor as
os economistas e todos os cientistas políticos sem distin ção, porque , acima de energias no interior da universidade, fortalecendo e aperfeiçoando as ferramen-
tudo , aquelas ciências s ão elas mesmas campos de poder com tendências do- tas da crítica social ; mas também será preciso construir alianças de baixo para
minantes e correntes contrárias. Cito como exemplos e exceções: a economia cima, estabelecendo colaborações com órgãos da sociedade civil. Isso é espe-
pós-autista* e o movimento perestroika na ciência política**. Ainda assim, como cialmente importante hoje, quando os Estados e os mercados tramam ataques
conjuntos contra a sociedade civil . Embora hoje a fé de Gramsci no bom sen -
so da classe operária possa ser algo anacrónico, n ão o é a necessidade de uma
* Movimento pós-autista na economia. Movimento iniciado em 2001 por estudantes de econo - utopia real capaz de estimular e galvanizar as energias das classes exploradas
mia na Fran ça e nos Estados Unidos, o qual reivindica o ensino de uma economia mais plural
e menos formal, contra a ortodoxia neoclássica (chamada de “autista” ) e a excessiva forma - \ e subalternas.
\
lização matemá tica da disciplina . Esse movimento teve, no início deste século, ampla reper- A ciê ncia social precisa ser uma criatura com duas cabeças: de um lado,
cuss ão internacional. As petições multiplicaram -se e emergiu um estimulante debate pú blico
entre alguns dos principais economistas e professores da á rea. Uma abordagem mais plural dirigida contra as ideologias dominantes, desmistificando a naturalização do
das diferentes correntes teó ricas e uma maior confrontação entre teorias, métodos e atores arbitrário social*; de outro, destinada a inventar e elaborar alternativas sociais
sociais reais foram algumas das conquistas desse movimento. (N. doT. )
enraizadas nas experi ê ncias vividas e nos experimentos ví vidos das classes
** Movimento perestroika na ciência pol ítica. Movimento de dissid ê ncia na ciê ncia pol ítica,
criado com a meta de lutar por pluralismo metodol ógico na disciplina e por maior relev ância
dos temas da ciência pol ítica para o pú blico fora da academia. Seus integrantes lutam contra i
-
2000, com o e mail an ónimo do “Mr. Perestroika” ( referência ao programa de reformas na
R ú ssia pós-soviética ) à American Political Science Review. Entre seus maiores simpatizantes,

o predom ínio do formalismo te órico e dos métodos quantitativos e matem á ticos na ciência
política métodos que costumam ser importados da economia e são baseados na teoria da encontramos Theda Skocpol e Robert Putnam . (N . do T.)
escolha racional. Lutam ainda contra a falta de democracia e o paroquialismo nos procedi- * Terminologia de Bourdieu , significa os “ru ídos” que v ê m das demandas sociais arbitr á rias
mentos da APSA ( Associação Americana de Ciê ncia Pol ítica). O movimento iniciou-se em \
(irracionais) e, segundo Bourdieu , n ão deveriam perturbar a autonomia científica .

74 75
-
I
0 MARXISMO E N C O N T R A BOURDIEU TORNANDO A DOMINA ÇÃ O D U R Á V E L Ç R A M SCI ENCONTRA B O U R D l EU
í
&
&
subalternas. A busca por uma utopia real, como Erik Wright a chama, exige Poderiam os sociólogos da academia se aventurar nas trincheiras da sociedade
I
que façamos expedições etnográficas rumo ao solo fértil da vida social . civil sem sucumbirem às patologias descritas por Bourdieu —
o populismo e

Voltando à sociologia e Bourdieu acreditava que a sociologia desfrutava 5
o vanguardismo ? Da forma como é atualmente constitu ída, a universidade
de uma perspectiva privilegiada para o pensamento crítico , n ós podemos — '

\
orgulha-se de manter-se alheia aos p ú blicos, a menos , é claro , que tais pú blicos
distinguir entre dois tipos de sociologia pública: I ) uma sociologia pú blica t. calhem de ser as associações empresariais. Nã o obstante, mesmo atentos à
tradicional, enfrentando as ideologias dominantes que permeiam nossa esfar - f
necessidade de defenderem a universidade, seus professores e pesquisadores
rapada esfera pública e atacando suas raízes nas disciplinas acadê micas e 2) vê m repensando o ensino superior, destacando sua missão critica e endossan -
uma sociologia p ú blica orgânica, trabalhando nas trincheiras da sociedade ci - r
; do seu cará ter p ú blico. Nós podemos evidenciar isso no comprometimento
vil, energizando-a, fortalecendo a resistência ao Estado e aos mercados e de - desses educadores e cientistas com sua função de ensino. O desafio é tornar a
safiando a dominação n ão com desmistificação, mas com alternativas possíveis. universidade mais receptiva a trabalhos com grupos amplos e servidos por ela,
Finalmente, essas duas sociologias pú blicas, tanto a tradicional como a orgâ- sem que isso comprometa suas atribuições acadêmicas. Algumas universidades
nica, embora estejam baseadas em arcabou ços de conhecimento profissional \ se encontram em situação melhor para fazer isso do que outras; e algumas são
diferentes, mais se apoiam do que se anulam. mais “torres de marfim” do que outras.
Se ambas são necessá rias, seriam também igualmente possíveis? Tal como I Seja qual for a sociologia pú blica , orgânica ou tradicional , ela enfrenta guer -
Bourdieu se esforçou em destacar, a terceira onda da mercantilização* invadiu ras á rduas contra as forças que minam sua base. Nessa guerra, as sociologias
os meios de comunicação e de produ ção do conhecimento, inclusive a m ídia públicas (orgânica e tradicional ) precisam se ver como companheiras e n ão
de massa , tornando cada vez mais dif ícil difundir visões cr
íticas. Se isso j á era : como antagonistas. E, acima de tudo, elas devem procurar combater unidas em
difícil na França, que dirá nos Estados Unidos, onde aquela maré se vem es - ' auxílio daqueles públicos que vêm sofrendo ataques similares do Estado e dos
praiando pelo territó rio sagrado da própria academia, com sua crescente de - mercados. A universidade pode n ão ter sido preparada para virar o Moderno
pendê ncia perante os financiadores privados, com a industrializa ção da pes- Príncipe, mas esse papel provisório faz com que ela se incline nessa direção.
quisa científica, com a comercialização das admissões e aprovações, com as Isso significa que Gramsci deveria desistir do Partido Comunista, assim como
espantosas concessões feitas para atrair estudantes e com os níveis decrescen - ; Bourdieu deveria desistir da concepção tradicional da universidade, mantida à
tes de alfabetização —sem falar no generalizado desequil íbrio de poder entre
as disciplinas acadêmicas (exatas versus humanas ).
distâ ncia do mundo social feito uma torre de marfim. Como , então, a univer
sidade bem estabelecida poderia tornar-se o lugar de reencontro dos herdeiros
-
A situa çã o n ã o é melhor para o sociólogo p ú blico orgânico. O pró prio de Gramsci e de Bourdieu ? A resposta a essa pergunta varia de país para país,
Gramsci advertia sobre os perigos à espreita do intelectual orgâ nico; ele sabia pois precisamos considerar aí a articulação da universidade com a sociedade
que o engajamento pú blico deveria ser organizado como um projeto coletivo. civil e a forma pela qual essa articulação é (de)formada pelo Estado e pelos
mercados. A esse respeito, os Estados Unidos parecem bastante diferentes do
Brasil , da índia e da Africa do Sul , que, por sua vez , sã o bem diferentes da
* Baseado em Polanyi , Burawoy fala sobre três ondas de “mercantilização” ou de “mercadori
zação”, quer dizer, três etapas no avanço da irrefreável tendência capitalista de transformar
- R ússia e da China, da Fran ça e da Noruega.
todas as coisas em simples mercadorias. A primeira onda (1850 1920) marcou a transformação Tendo apontado para a possibilidade da reaproximação entre Bourdieu e
-
do trabalho em mercadoria , atacando a legislação trabalhista . Essa foi a é poca da sociologia Gramsci , entre o intelectual tradicional e o intelectual org â nico , resta ainda
utópica. Com a segunda onda (1920-1970), o próprio dinheiro foi transformado em mercadoria
a seguinte questão, que eu havia evitado até aqui: qu ão profunda é a domi -
pela especulação financeira , derrubando as trincheiras dos direitos sociais. Esse foi o per
íodo na çã o capitalista? O Bourdieu teó rico afirmou (contra sua pró pria prá tica
-
da sociologia para pol íticas publicas, aliada ao Estado. A terceira onda (1970 hoje), segundo
Burawoy, tem atacado igualmente a legislação trabalhista e os direitos sociais, em uma ten- pol ítica) que a submissão ao capitalismo é profunda e inconsciente, ao passo
I
dência de transformar a natureza em mercadoria . Para o autor, essa fase de terceira onda da que Gramsci afirmou que ela é consciente e deliberada , porém , dur á vel . Para
mercadorização exige a defesa da sociedade civil sob a égide dos direitos humanos. Essa seria
a época da sociologia pú blica. Ver: Polanyi, A grande transforma ção, 1980, e Burawoy, “A Bourdieu, o problema da “falsa consciência” n ão era sua falsidade, mas o seu
i
.
sociologia da terceira onda e o fim da ciência pura”, 2008a. ( N do T.)

cará ter consciente, ao passo que Gramsci defendia o contr á rio: o problema

76 - 77
;
£
Si
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU i TORNANDO A DOMINA ÇÃ O DUR Á V E L: GRAMSCI ENCONTRA BOURDIEU
è

da “falsa consciência” era sua falsidade , n ão sua inegá vel natureza conscien - ?
ciê ncia de classe corporativa , paroquial. Entretanto , a experi ê ncia do campesinato, precisa -
mênte por causa da sua relação coletiva com a terra, poderia oferecer os ingredientes para a
te. Muita coisa depende de qual deles está certo . No pró ximo cap ítulo, eu í
i compreensão revolucioná ria totalizadora, caso fosse apoiada pelos intelectuais radicais vindos
tentarei formar um ju ízo sobre a questão. G.
das cidades . !

:
;
12 Em seus estudos argelinos , especialmente em Arg élia , 1960 ( 1919 ), Bourdieu adotou realmen -
te uma visão marxista ortodoxa , conforme a qual a classe trabalhadora poderia alcan çar a
: compreensão totalizadora do mundo social devido a sua relativa seguran ça econó mica e seu
Notas
1 Bourdieu , 2000 , p. 172 . Ed . brasileira , 2001 b, pp. 208 9.
' horizonte temporal dilatado
— algo negado ao campesinato e ao lumpemproletariado. Mais
tarde, cito aqui como exemplo A distinção ( 1984), ele abandonar á essa perspectiva em favor
- ! de um suposto e profundo desconhecimento dos trabalhadores a respeito da estrutura social e
2 Idem , 1989, p. 109. de suas potencialidades,
3 Idem, 2007. 13 Bourdieu , 1984, p. 374. Ed . brasileira , 2007, p. 350.
.
4 Idem, 2007, p. 69 Ed. brasileira, 2005 b, p . 123.
- ;
14 Adam Przeworski ( 1986) analisou a maneira como a competi ção entre os partidos pol í ticos
5 Refletindo suas pr óprias posições e disposições intelectuais diferentes , os autores divergiam acaba dando forma às classes que eles supostamente representam . Eis um excelente exemplo
5
fundamentalmente na relaçã o que tinham com sua origem de classe. No filme A sociologia concreto do argumento de Bourdieu.

é um esporte de combate o retrato da vida acadêmica e pol ítica de Bourdieu
— h á uma ..
15 Bourdieu afirmou: “[ . ] A coisa mais interessante sobre Gramsci — a quem eu só li recente-
cena na qual Bourdieu descreve sua repugn â ncia pelo dialeto da região natal dos Pirineus ,
revelando o habitus de classe que ele adquirira no ambiente acadê mico. Gramsci, por sua
mente
— é a forma como ele nos oferece as bases de uma sociologia dos partidos comunistas
oficiais e das lideranças de seu tempo. Tudo aquilo estava longe da ideologia do ‘intelectual
vez, redigia cartas comoventes da prisão para sua irmã, implorando-lhe para que ela se '
orgânico * pela qual ele é bastante conhecido” ( 1990a , pp. 27-8). Ver também Bourdieu , 1990 b,
certificasse que seus filhos nunca perdessem a familiaridade com o dialeto próprio e as capítulo 10, e 1991, “Representação pol ítica” e “ Delegação de poderes e fetichismo pol ítico” ,
expressões vernaculares. capítulos 8 e 9.
6 Gramsci, 1971. 16 Gramsci , 1971, p. 7.
7 Bourdieu, 1999 b. 17 Bourdieu , 1988.


8 Bourdieu nunca enunciou e detalhou as regras do método cient ífico nem em sua abordagem
do campo científico, nem em A profissão de sociólogo: preliminares epistemológicas (1991 ) ,
18 Idem, 1998b.
19 Idem , 1995 a.
livro que trata, como o subt ítulo sugere, das suas preliminares epistemológicas. 20 Idem , 1996 .
9 Gramsci, 1971, p. 333. Embora exista a edi ção brasileira Cadernos do cárcere , que consta da 21 Idem , 1996, p. 348. Ed . brasileira , 1996 b, p. 378.
bibliografia em portugu ês, nã o há correspond ência entre esta edi ção e Selections from the 22 Gouldner, 1979 .
Prison Notebooks, pois nesses dois casos n ão foram utilizados os mesmos critérios para a
23 Até mesmo Bourdieu foi levado a se apropriar da ideia do intelectual orgâ nico. “ O etnossoci ó-
sele ção dos escritos de Gramsci.
logo é um tipo de intelectual org â nico da espécie humana , o qual , como um agente coletivo ,
10 Em uma passagem estranhamente semelhante, embora com uma ê nfase bastante diferente, pode contribuir para desnaturalizar e desfatalizar a existê ncia humana, ao p ô r sua compet ê ncia
Bourdieu escreveu: “a parte essencial da nossa experiência do mundo social, e o trabalho de a servi ço de um universalismo baseado na compreensão dos particularismos” (apud Wacquant,
constru ção que isso implica , tem seu lugar na prá tica, sem atingir o n ível da representa ção 2004, p. 388) . Mas o intelectual orgâ nico dessa entidade t ã o abstrata ( a humanidade ) seria a
explícita e da enunciação verbal ” ( “Espaço social e gé nese de classes”, in Linguagem e poder pró pria ant ítese do intelectual org â nico gramsciano e, desse modo , seria uma apoteose do
simbólico, p . 235 ) . Nesse artigo, Bourdieu estava se referindo a determinada “inconsciência intelectual tradicional criticado por Gramsci .
de classe” que prové m das “estruturas objetivas do mundo social”. Mas daí ele prossegue
24 Bourdieu, 2000, p. 177. Ed. brasileira, 2001 b, p . 215.
afirmando que existe algum espaço para lutas por classificação, as quais fariam nascer novas
25 Gramsci , 1971, p. 244.
categorias sociais e, portanto, novos grupos sociais. Então, pelo menos aqui , Bourdieu garante
vez e voz aos intelectuais na formação da consciência de classe , que não teria , entretanto, 26 Bourdieu , 1984.
nenhum fundamento objetivo na realidade. Gramsci, ao contrário, insistia que a consciê 27 Gramsci , 1971 , p, 126.
ncia
de classe tinha sua base na realidade associada à transformação objetiva da natureza; e que 28 Bourdieu, 1988.
:
o papel dos intelectuais era elaborar aquele n ú cleo do bom senso que jazia dentro do senso 29 Bourdieu , 1988, pp . 179-80.
comum: “ Elaborar e tomar coerentes os problemas colocados pelas massas (Gramsci)”. Aqui , í
30 Idem , 1999c
n ós flagramos Bourdieu dando sua guinada na direção idealista , soltando as rédeas do poder 31 Idem , 2003.
de
designar e de classificar. Mas esse poder é sobre quem ? Quem será persuadido pela designa
f

ção
— —
e pela classificação? Como far ão isso? Quais organizações partidos ou sindicatos levarão
a cabo esse projeto e superar ão a profunda in é rcia oriunda da assimilação da passividade?
11 Como ainda veremos no quarto capítulo, Frantz Fanon afirmava o contr ário disso. Na condi
1
'

i
:
ção i
colonial, nem a classe trabalhadora nem a burguesia poderiam desenvolver algo além da cons
- r

78
l 79
í-

5
;

CAP Í TULO III


t
A QUEM PERTENC E A FALSA CONSCI Ê NCIA ?
BURAWO YENCON TRA BOURDIE U

Na ideia de falsa consciê ncia , evocada por alguns marxistas


para explicar o efeito da dominação simbó lica , é a palavra
“consciê ncia" que é excessiva ; assim como falar em “ ideolo-
gia” equivale a colocar na ordem das representa ções —capa -
zes de se transformarem pela conversã o intelectual que nós

chamamos de “ tomada de consci ê ncia" aquilo que est á si -
tuado, antes, na ordem das cren ças , ou seja , no nível mais
profundo das disposi çõ es incorporadas 1 .
:

f Mais e mais , tenho come çado a me perguntar se as estruturas


sociais de hoje nã o seriam as estruturas simbólicas de ontem ;
e se, tomada como exemplo, a classe social tal como é obser -

- vada n ã o seria até certo ponto o produto dos efeitos teó ricos
da obra de Marx 2.

Pierre Bourdieu
l

O desencargo da consci ê ncia


I
: Seria a ideia da classe trabalhadora a simples projeçã o , com consequ ê ncias
>•
reais, da imaginação política e intelectual ? Uma vez definidos como classe
; social submetida à exploração, poderiam os trabalhadores compreender as con-
{

íí J
81
O M A R X I S M O E N C O N T R A BOURDIEU A QUEM PERTENCE A FALSA CONSCI ÊNCIA ? BURAWOY ENCONTRA BOURDIEU

dições da sua própria submissão? Que papel os intelectuais conseguiriam de


sempenhar para trazer à tona esse autoentendimento dos trabalhadores? Sobre
- -
n ão tendo outra audiê ncia ó bvia sen ã o eles mesmos. Como resultado temos
duas perspectivas críticas com relação às ciê ncias sociais: a primeira, favore-
tais questões, as quais atingem em cheio o coração do marxismo, o próprio cendo seu desenvolvimento por meio da colaboraçã o com grupos sociais
Marx era ambíguo. Sem dú vida nenhuma, Marx acreditava que a classe traba - dominados e dentro dos quadros do partido político; e a segunda , defenden -
• lhadora existia independentemente dos intelectuais ;
e que ela, através das lutas .
do aquele espaço neutro, s ão e puro — a liberdade e a autonomia da univer-
de classe, dissolveria toda a “falsa consciê ncia” e libertaria o resto da huma
nidade ao libertar a si mesma. Porém, aqueles mesmos escritos marxianos são
- sidade — a partir da qual seria poss í lan ç ar ataques contra as ideologias
vel
dominantes. No capítulo anterior, eu tentei mostrar como essas duas perspec-
temperados com d ú vidas acerca da capacidade dessa classe trabalhadora de tivas socioló gicas podem ser vistas como complementares , dado que n ós pre-

ver algo além da mistificação produzida pelo capitalismo quer isso signifi -
que o ocultamento da exploração na esfera da produ ção, o fetichismo da mer-
cisamos tanto dos intelectuais tradicionais como dos intelectuais orgâ nicos .
Agora, no presente capítulo, eu tentarei formular meu julgamento individual
cadoria na esfera da circulação, ou , indo mais além, a rendição da classe tra- sobre os dois tipos de intelectual, com base na minha própria pesquisa sobre
balhadora aos poderes da ideologia. as classes trabalhadoras nos Estados Unidos e na Hungria .
Dada essa indefiniçã o sobre a consci ência dos trabalhadores, a questão do Em uma análise final, Bourdieu oferece- nos poucas evid ê ncias emp íricas
papel dos intelectuais permanece sem resposta. De um lado, o Manifesto co
munista3 sabidamente descreve os intelectuais aderindo à classe trabalhadora
- que comprovem suas afirmações acerca da profundidade da dominaçã o, ao
passo que o conceito gramsciano de hegemonia é fraco demais para explicar
no momento decisivo*, quando a vitória do proletariado é iminente ou garan - a durabilidade da domina çã o capitalista . Nós precisamos , ent ão, transcender
tida. Por outro lado , os intelectuais podem travar guerras em favor da classe ambos .
trabalhadora e contra os intelectuais da classe dominante. Afinal, era isso o
que Marx e Engels
— eles próprios intelectuais

estavam fazendo quando
escreveram e divulgaram o Manifesto comunista e outros brilhantes trabalhos
Gramsci versus Bourdieu
e pol êmicas . Muito embora seus escritos tenham provocado aquele genu íno
“efeito teórico”, tal como Bourdieu o chamou, eles jamais refletiram seria - L
Embora Lênin tenha oferecido a inspiração, foi Gramsci quem desenvolveu
mente sobre o que faziam e quais “efeitos teóricos ” seriam aqueles .
a primeira teoria marxista sobre os intelectuais, baseada na ideia segundo a
Com relação à teoria dos intelectuais e da dominação baseada na classe
social, h á certamente dois caminhos a seguir a partir de Marx: de um lado,
qual a classe trabalhadora possui certo bom senso —
a imaginação revolu -

temos a teoria gramsciana da hegemonia, como sendo a organização social do


-

cion ária oculto no coraçã o do senso comum . E caberia somente aos inte
lectuais marxistas elaborarem esse bom senso. No final das contas, Gramsci
-
consentimento, política e economicamente contingente e que pode ser cons-
acreditava que o senso comum dos trabalhadores podia n ão ser tã o incompa -
tru ída ou desafiada pelos intelectuais; de outro, temos Bourdieu e sua teoria
tível com o marxismo :
da violência simbó lica, baseada na inculcação do desconhecimento virtual
mente intranspon ível e que levaria os intelectuais a patinar sobre a esfera
-
;
Neste momento , surge- nos a seguinte quest ã o: poderia a teoria moderna [o marxis-
p ú blica. Pelo primeiro caminho, os intelectuais (orgâ nicos) elaboram o bom :

mo] estar em contradição com os sentimentos “espont â neos” das massas? ( “espontâ ne-
senso dos trabalhadores, ao passo que, pelo segundo caminho, nenhum bom os” no sentido de que n ão são o resultado de nenhuma atividade educacional sistem á ti -
senso haveria para ser elaborado; e o melhor que os intelectuais (tradicionais) ca por parte de uma liderança coletiva consciente , mas foram antes formados peias
poderiam fazer seria desmistificar a dominação fundada na classe social, mas '
experiências do dia a dia e iluminados pelo “senso comum ” , isto é, pela visão tradicio-

* No original: see the writing on the .


tica de origem b í blica, cuja tradu ção possível para o português seria Sentir a batata
-
wall ( ver o cartaz sobre o muro ) Expressão idiom á j —
nal e popular do mundo que é trivialmente denominada instinto, muito embora este
també m seja , na verdade , alguma aquisição histórica primitiva e elementar ). A teoria

assando”. Usa -se para descrever situa ções em que se pressente que algo ruim está pres
,
moderna não pode estar em contradição com tais sentimentos espontâneos . Entre ambos
-
tes a ocorrer. ( N. do T. )
.
| existe alguma diferença “quantitativa” — não de qualidade, mas de n íveis e de graus.

82 83
í
O M A R X I S M O ENCONTRA B O U R D l E U i A Q U E M P E R T E N C E A FALSA C O N S C I Ê N C I A ? B U R A W O Y E N C O N T R A B O U R D I E U

Sua “redução” recíproca, a passagem desta para aqueles e vice- versa, precisa ser pos-
intelectuais. De qualquer maneira, faltariam os patamares comuns do diálogo;
sível . [...] Negligenciar ou (pior ainda) desprezar o assim chamado “elemento espon-
e, por isso, o intelectual na qualidade de cientista precisaria se manter distan-
tâneo”, ou seja, fracassar em garantir- lhe a liderança consciente que poderá elevá-lo a
te das classes dominadas e, ao mesmo tempo, provocar uma ruptura epistemo-
níveis mais altos ao inseri - lo na esfera pol ítica , pode frequentemente conduzir a con -
sequências extremamente graves”4.
lógica com seu senso (comum ) prático —
senso prá tico este que torna essas
classes tão cegas às condições da sua própria submissão.
Então, temos aqui duas noções de intelectual engajado: o intelectual tra-
Aqui, os intelectuais orgâ nicos elaboram e desenvolvem o bom senso por
dicional de Bourdieu, que desmascara a violê ncia simbólica exercida sobre a
meio do diá logo com a classe trabalhadora , ao mesmo tempo em que re-
classe trabalhadora , mas cuja açã o é realizada longe dessa classe; e o inte-
cha ç am as ideologias dominantes perpetradas e perpetuadas pelos intelec-
lectual orgâ nico de Gramsci, que emprega a teoria da hegemonia e do consen-
tuais tradicionais das classes dominantes e dirigentes. Auxiliados ou enco-
timento em íntima liga çã o com os trabalhadores . Como ent ã o eu poderia
rajados por condições estruturais específicas, em especial as crises orgânicas ,
combinar meus próprios estudos com essas duas teorias ? O que tentarei fazer
esses intelectuais orgânicos despedaçam o consentimento à dominação bur-
a seguir é reconstituir minhas próprias pesquisas etnográficas sobre a consciên-
guesa, transformando- a no suporte para a hegemonia alternativa : a hegemo-
cia dos trabalhadores. Em primeiro lugar, apresentarei a interpretação original
nia socialista.
sobre os locais de trabalho no sistema capitalista; em segundo lugar, mostra-
Em contraste, Bourdieu considerava perigosamente ilusória essa tradição
rei como minhas leituras posteriores de trabalhos de Bourdieu alteraram aque-
marxista que confundia a “classe no papel” com a “classe mobilizada” algo
personificado pelo intelectual orgâ nico, destinado a produzir tal conexão ilu-
— la interpretação original; em terceiro lugar, discutirei como os estudos sobre
sória. Ademais , isso representava para Bourdieu o maior dos obst áculos ao os locais de trabalho no sistema socialista, com sua posterior derrocada , ofe-
recem uma boa cr ítica à perspectiva de Bourdieu ; por fim, explicarei como a
avan ço da ciência social :
transição do socialismo para o capitalismo e a constru çã o de uma nova ordem
social podem ser lidas como a vingan ça de Bourdieu .
O sucesso histórico do marxismo, a primeira teoria social a reivindicar um estatuto
científico que tão completamente efetivou seu potencial no mundo social , contribui para
assegurar que essa teoria do mundo social, que é a menos capaz de admitir o efeito te -
— A fabricação do consentimento

ó rico que ela , mais do que qualquer outra teoria, produziu , é sem dú vida nenhuma
o mais poderoso obstáculo ao progresso de uma teoria adequada ao mundo social , para
o qual ela tem sabidamente contribuído nos tempos atuais5 . A originalidade gramsciana reside em sua periodização do sistema capitalista ,
n ão com base na infraestrutura econ ó mica , mas com base na superestrutura
Em outras palavras, o marxismo estendeu sua poderosa influ ência (o efeito político-cultural —
especialmente na ascendê ncia da interconexã o do Estado
teórico) sobre o mundo sem ter compreendido adequadamente como conseguiu com a sociedade civil que trouxe desafios ao sistema capitalista . Sua guinada
fazer isso , a saber, por intermédio dos representantes da classe trabalhadora, para a superestrutura refletiu a necessidade de combater os res íduos parasit á -
constituindo a coligação imaginária da “classe no papel ” com a “classe mo- rios das formações pré-capitalistas da sociedade europeia. Em “ O america-


bilizada” estratégia expressa pela mitologia do intelectual orgânico. Cale-
jada e acossada pelos imperativos da necessidade material e imediata, a classe
nismo e o fordismo”6, porém , Gramsci afirmou que tais res íduos n ã o existiam
nos Estados Unidos e, portanto, ali “a hegemonia nasce na f á brica ” , permi -
trabalhadora n ão possuiria o potencial transformador e revolucion á rio que cos- tindo que as forças produtivas sociais se expandissem e progredissem bem
-
-
tuma ser lhe atribu ído. Segundo Bourdieu, essa atribuição equivocada produz mais rápido que em outros lugares.
í
m á ciência. Sem haver qualquer bom senso para ser elaborado, os encontros A fabricação do consentimento1 ( n ão confundir com o mais novo e muito
entre trabalhadores e intelectuais ou contaminariam estes com as visões de mais famoso trabalho de Chomsky 8) pretendia esclarecer o que significava
mundo dos trabalhadores ou submeteriam aqueles à vontade iluminada dos dizer que nos Estados Unidos “a hegemonia nasce na f ábrica ”. O livro baseou -
í se em observações participantes que fiz em uma f ábrica em Chicago, onde fui

84 85
lh.
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A QUEM PERTENCE A FALSA CONSCI ÊNCIA ? BURAWOY E N C O N T R A B O U R D I E U


operador de m áquina por dez meses de julho de 1974 até maio de 1975. Lá,
eu fui trabalhador assalariado como qualquer outro, muito embora fosse evi- :
mudarem-se para outra firma significaria ser lan ç ados na base da escala do
tempo de firma.
\i
dente que eu tivesse outras origens sociais — e n ão apenas devido ao meu
sotaque brit â nico, que muitos colegas de trabalho consideravam indecifrá vel .
0 Estado interno e o mercado interno de trabalho eram as precondições da
terceira pilastra do consentimento: a constru ção do trabalho como um jogo.
:
Eu n ã o fiz segredo sobre meus reais objetivos estando l á, a saber, coletar '•
No meu caso , o jogo baseava - se em compreender o funcionamento desse
material para minha tese de doutorado. jogo, cujas regras eram conhecidas e admitidas igualmente por operadores ,
Influenciado pelo marxismo estruturalista francês dos anos 1970 e suas auxiliares e supervisores do chão de f ábrica. Ele se baseava em uma disputa de
apropriações gramscianas ( mostradas como rejei ções ), eu defendia que as 1 empreita cujo objetivo era “ bater a meta” [ make out ) , ou seja , atingir alguma
teorias do Estado desenvolvidas por Althusser, Poulantzas e o pr ó prio
Gramsci podiam ser aplicadas aos oper á rios no interior das f á bricas . O
percentagem aceitá vel dè produ ção — que n ã o devia ser superior a 140 % mas
n ão devia ser inferior a 125 %. Por ora, n ão devemos nos ater aos detalhes ; basta
Estado interno ( aquilo que eu també m chamaria de aparelhos pol íticos e dizer que conceber o trabalho como um jogo é algo muito comum em v á rios
ideológicos da produ çã o) transformava os trabalhadores em cidad ãos in - ambientes de produ ção , porque isso combate o des â nimo e o cansaço ; faz o
dustriais, indivíduos atomizados com direitos e deveres, reconhecidos como tempo passar mais rá pido ; dispõe os trabalhadores a enfrentarem tarefas que
tais nas reivindica ções contra a maquinaria e nos detalhes do contrato de .
de outra forma seriam sem sentido H á boas razões psicol ógicas , a “satisfa -
trabalho. Ali pod íamos ver a miniatura do Estado popular- nacional descri - ção residual” , por exemplo, para participar desses jogos, mas t ão importante
to por Poulantzas . Ao mesmo tempo, o Estado interno supervisionava efe- quanto isso é que a ordem social inteira obriga a todos a jogarem o mesmo
tivamente a coordenação dos interesses do capital e do trabalho , por meio jogo , com regras mais ou menos iguais . Frequentemente julg á vamos uns aos
da barganha coletiva. A mat é ria - prima dessa hegemonia podia ser vista outros conforme nosso desempenho nesse jogo . Seria dif ícil optar por ficar
diretamente nas concess ões econ ó micas feitas pelo capital ao trabalho
concess ões estas, como dizia Gramsci , que n ã o tocavam na essê ncia da
relação capital-trabalho. Por fim, novamente conforme Poulantzas, eu con -
— de fora, sem , com isso , ser condenado ao ostracismo.
Jogar o jogo tinha duas consequê ncias importantes . Em primeiro lugar, o
jogo limitava o ritmo da produ ção através do “corpo mole” ( permitindo retar -
cebia a gerê ncia como um bloco de poder composto por diferentes divisões, dar o trabalho quando a gerência impunha metas e cotas de produção dif íceis
sob a hegemonia da divisão fabril . de ser alcançadas) e atrav és da limitação dessas mesmas cotas e metas ( limi -
Assim como havia um Estado interno , havia també m um mercado interno tando a produção a 140% do normal , de forma a evitar a elevação dos índices) .
de trabalho que reforçava os efeitos atomizantes e alienantes do Estado inter- Mas o jogo també m induzia os funcion ários a trabalhar muito mais duro e ,
t
no. Ele oferecia aos trabalhadores a oportunidade de se candidatarem a outros frequentemente, com engenhosas improvisações. Esse jogo favorecia a apli -
postos ou outras fun ções no interior da f á brica, dependendo sua alocação do
tempo de firma e da experiê ncia profissional, o que dava aos trabalhadores
cação de um esforço extra que aumentava os lucros da chefia e isso com o
mínimo de concessões monetá rias. Em segundo lugar, ele contribu ía n ão ape-

certo poder e influ ê ncia sobre os gerentes . Caso os trabalhadores n ão gostas- nas para o aumento dos lucros, mas també m para a reprodu çã o da hegemonia.
sem de seu trabalho ou de seu supervisor, eles poderiam se candidatar e se O simples ato de jogar produzia simultaneamente o consentimento a suas
transferir para outro posto ou outra fun çã o. Aqueles que por alguma raz ão regras. Não se podia levar a sé rio esse jogo, poré m , o jogo ficava mesmo s é rio
fossem indispens á veis para seus encarregados podiam exercer considerá vel quando suas regras e metas eram questionadas ou desacatadas . “ Bater a meta”
poder sobre eles . Assim como o Estado interno , o mercado interno de trabalho não implicava apenas aceitar as regras , mas igualmente dissimulava as con -
constitu ía os trabalhadores como indiv íduos atomizados e, por meio de certos di ções da sua pró pria existê ncia : as relações entre capital e trabalho9 .
privilégios garantidos pelo tempo de firma , articulava concretamente seus í Se a organização do trabalho como um jogo era o terceiro vé rtice da he-
;
interesses aos interesses do capital. Isso significava que os trabalhadores n ão gemonia, ela só seria eficaz em gerar consentimento enquanto se mantivesse
!
apenas tinham interesse na acumulação capitalista, até mesmo à sua custa,
mas também buscavam manter-se na mesma empresa por muito tempo , pois
separada das armaduras da coerção violenta —
separação essa que só era
possível graças às limitações impostas à gerê ncia pelo Estado interno e pelo

86
! 87
í
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU QUEM P E R T E N C E A FALSA CONSCI Ê NCIA ? BURAWOY ENCONTRA BOURDIEU
^
h
mercado interno de trabalho. Esse tripé da hegemonia constituía a caracterís- A dupla verdade do trabalho
tica distintiva do capitalismo avançado, no qual os chefes n ão podem contra-
tar e despedir à vontade, como antes. Não sendo mais aptos a contarem com
no capitalismo avanç ado
a autoridade arbitrária de um regime despótico de produção, os gerentes devem l
Trinta anos depois , li nas Meditações pascalianas a descriçã o de Bourdieu
persuadir seus colaboradores a lhes entregar o excedente produtivo , isto é, a
acerca da verdade bifronte do trabalho, onde, para minha surpresa, o encontrei
gerência precisa fabricar o consentimento. Assim, o Estado interno e o mer-
defendendo um argumento muito semelhante ao meu:
cado interno de trabalho são os aparelhos de hegemonia, constituindo os tra-
balhadores como indiv íduos atomizados e coordenando seus interesses com
O ato objetivador que se faz necessá rio para constituir o trabalho assalariado em
base nos interesses da gerência, aplicando a coerção violenta apenas em con-
sua verdade objetiva esconde o fato de que essa verdade precisou ser conquistada
di ções bem definidas e restritas . Ao enfrentar uma crise, por exemplo , os
contra sua verdade subjetiva que, como o pró prio Marx apontou , só se torna verdade
gerentes , caso desejassem conservar sua hegemonia , n ã o poderiam virar a
mesa, parar o jogo ou mesmo violar suas regras .
objetiva sob certas condições excepcionais: o investimento no trabalho, logo, o des -
conhecimento da verdade objetiva do trabalho como exploração, que leva as pessoas
O jogo precisa ser incerto o bastante para seduzir e enganar os jogadores;
mas ele também precisa conferir-lhes controle suficiente sobre o resultado das
a encontrar algum lucro extrínseco ao trabalho —
algo irredutível a sua simples re -
muneração monet á ria. Isso faz parte das condições reais da execu çã o do trabalho e
jogadas. Regimes despóticos nos quais a gerência pode contratar e despedir sua exploração11.
à vontade criam no jogo arbitrariedades demais para que ele possa gerar con -
sentimento. Em poucas palavras , o ambiente hegemó nico cria um ambiente O que Bourdieu estaria dizendo ? Existe certa verdade objetiva do trabalho
de atividade relativamente autónomo , com um equil íbrio apropriado entre a que , conforme o marxismo, é sua exploração : a apropria çã o do excedente do
certeza e a incerteza, para que o jogo possa ser manipulado e o consentimento, trabalho realizado pelo produtor direto. Essa verdade objetiva , contudo, n ão
fabricado. No regime produtivo hegemó nico, a aplicação da força, da coerção é reconhecida como tal. A característica distintiva do capitalismo é que sua
• ( tendo sido banida recentemente do ambiente de trabalho)
— seja como pu -
nição pela violação das regras do jogo, seja como consequê ncia do fracasso
exploração é mascarada, ou , como eu disse, ela é obscurecida para ser revelada

de consentimento.

numa certa empreitada precisa ela mesma ser objeto de negociação, objeto
aos trabalhadores apenas em condições especiais. No feudalismo, ao contrá rio ,
a exploração era transparente: o trabalho necess á rio ao servo para manter sua
família e a si mesmo era algo separado ( tanto espacialmente como temporal -
Até aqui , tudo bem: o processo económico de produ ção, como já disse, era mente) do trabalho excedente que ele devia ao senhor feudal. Essa clara linha
ao mesmo tempo a) um processo pol ítico de reprodu ção das relações sociais divisória entre o trabalho necessá rio e o trabalho excedente tornou-se invis ível
com o auxílio do Estado interno e do mercado interno de trabalho e b) um no capitalismo. Por isso, os trabalhadores parecem ser pagos por todo o tem-
processo ideol ó gico de produ çã o de uma certa experiência sobre aquelas re- po em que trabalham para seus empregadores, ao passo que, na verdade, eles
lações , em especial por meio do jogo de “ bater a meta”. Eu havia avan çado são pagos apenas por uma fraçã o daquele tempo. Essa experi ência de aliena -
as teorias de Gramsci ao trazer sua an álise do Estado e da sociedade civil para ção n ã o percebida é a base da verdade subjetiva do trabalho.
dentro da f ábrica, aplicando-a à microf ísica do poder na firma e, além disso, Dado que o excedente é invis ível a todos e sua existê ncia só é conhecida
adicionando aqui a nova dimens ão da fabricação do consentimento: a ideia da por seus efeitos ocultos, a saber, o lucro realizado no mercado , os empregado-
estrutura da sociedade como um jogo10. res nunca sabem se seus “colaboradores” est ão trabalhando duro o suficiente
para garantir a mais- valia. O problema para os empregadores, ent ão, é a ga-
rantia do excedente, que eles transformam em um problema para os trabalha -
;
dores — seja por meio da dominação desp ó tica, seja por meio da amarra ção
dos interesses do trabalho aos interesses do capital . Em outras palavras, a ga-
. rantia do excedente através da organização hegemónica depende da ativa go -
\
88 89
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A QUEM PERTENCE A FALSA CONSCI Ê NCIA ? BURAWOY ENCONTRA BOURDIEU

;
vernan ça das atividades, nas quais os trabalhadores , como disse Bourdieu , em que o capitalismo aparentemente atravessava uma crise t ã o profunda
“ encontram certo estímulo extrínseco ao trabalho”

o que é o mesmo que
afirmar que eles jogam e procuram conquistar liberdades e recompensas que
que, ao final, daria origem ao fascismo em vez do socialismo . Todos esses
fatores sugerem que, àquela época , a sustentação do capitalismo era super-
efetivamente contribuem para a exploração e vantajosamente a mascaram. Es - ficial e mais frágil do que parece ser hoje, na nossa era pó s-socialista.
sas liberdades conquistadas à margem do sistema tornam-se centrais para sua A resposta mais espec ífica tem a ver com sua participação no movimento
sobrevida produtiva. Por intermédio de pequenos ê xitos e da satisfação residu - dos conselhos de f á brica e na ocupaçã o de empresas em Turim , entre 1919 e
al que eles alcanç am , o trabalho n ão apenas se torna aceitá vel, mas os traba- 1920. Por serem os trabalhadores daquela época mais qualificados —
muitos
lhadores até imaginam estar levando vantagem sobre os gerentes , mesmo à
custa de uma contribui ção desvantajosa à sua própria exploração. Bourdieu

eram mestres e artesã os , eles sofreram a expropriaçã o das habilidades
profissionais e dos meios de produ ção muito mais diretamente que os traba -
escreve: lhadores desqualificados da nossa é poca , que tomam como dada a proprie-
dade privada daqueles meios. Al ém disso , a ocupaçã o das f á bricas e a orga -
Todo esse processo de investimento, de comprometimento leva os trabalhadores a
niza ção espontâ nea e coletiva da produ ção por meio dos conselhos mostraram
contribuir com sua própria exploração atrav és do esfor ço para se apropriarem do tra-
que os trabalhadores compreendiam bem o verdadeiro significado da explo-
balho e das condições de trabalho, o qual os leva a se oferecer à “comercialização” por
ração capitalista! Para Gramsci, cuja experiê ncia com a classe trabalhadora
meio dos mesmos recursos da liberdade (que com frequê ncia é m ínima e quase sempre
vinha desses movimentos, a explora çã o capitalista dificilmente seria dissi -
“funcional ” ) dada a eles . [... ) Com efeito , desconsiderando as situações extremas e
mulá vel ; e os trabalhadores mostravam realmente seu bom senso dentro do
próximas ao trabalho escravo, pode-se notar que a realidade objetiva do trabalho assa-
senso comum. Aos olhos de Gramsci , a ocupaçã o fracassou porque os orga -
lariado, isto é, a exploração, se toma possível em parte graças ao fato de a realidade
subjetiva do trabalho n ão coincidir com sua realidade objetiva 12 .
nismos de representaçã o da classe operária — os sindicatos e o partido so-
cialista — estavam indissoluvelmente comprometidos com o capitalismo ;
seus interesses haviam sido coordenados com os interesses do capital . Para
Se o par formado pelo excedente obscurecido-assegurado nada mais é senão
a dupla verdade do trabalho, descrita por Bourdieu , então, como eu poderia
conciliar minha própria an á lise com a perspectiva teórica gramsciana, sobre a
Gramsci , tal traição deveria ser corrigida pelo Moderno Pr íncipe
do comunista —

o parti -
que “decifraria e devoraria ” a hegemonia capitalista . Não
qual ela supostamente estava assentada ? Eu parecia estar dizendo que os traba-
havia nada de inconsciente no consentimento que os sindicatos e os partidos
lhadores não tinham qualquer n ú cleo de bom senso dentro do senso comum; pol íticos devotaram ao capitalismo! 13
que eles n ão reconheciam as condições da sua própria submissão e, por isso, Bourdieu defendeu um argumento contrá rio pelo qual os artesãos e mestres
n ão eram os mais propensos, eram antes os menos capazes de perceberem ,
enquanto eles consentissem na dominação, a organiza çã o do consentimento
estaria baseada na mistificação da exploração ( no ocultamento do excedente). através da sua experiência subjetiva , a verdade objetiva da exploraçã o :
pode-se supor que a verdade subjetiva esteja tanto mais afastada da verdade ob-
Embora a ideia gramsciana de hegemonia envolvesse a naturaliza ção
jetiva quanto maior for o controle do trabalhador sobre seu pró prio trabalho” 14 .
da dominação, ela n ão sugeria sua mistificação e, nesse aspecto, Gramsci
desviou - se da tradi çã o da “ falsa consci ê ncia ” seguida desde Marx at é Curiosamente , Bourdieu atinge aqui o á pice do marxismo, ao defender que a
Luk ács e outros alé m deles . Ler Bourdieu tornou claro para mim o quanto verdade subjetiva converge para a verdade objetiva somente quando o trabalho
Gramsci era diferente n ã o apenas do pr ó prio Bourdieu , mas també m do '
é desqualificado. Nesses casos , conforme as barreiras à mobilidade laborai e
jovem Marx . Seria interessante perguntarmos como Gramsci pôde negli- í salarial são levantadas , os trabalhadores perdem sua adesão às tarefas e param
genciar a mistificação da exploraçã o capitalista e, no lugar dela, ter basea- —
de se empenhar para conquistar aquelas liberdades e concessões “ m ínimas
do sua teoria no consentimento consciente. A resposta mais gen é rica seria
a seguinte: Gramsci participara das lutas revolucion árias em uma época em
l

e quase sempre funcionais” que os amarram ao trabalho. Receando o predo-
mínio contemporâ neo do trabalhador desqualificado, a gerê ncia moderna tenta
que a revolu ção socialista ainda estava na agenda política; em uma é poca t recriar essas liberdades e privilégios por meio da governança participativa : “[...]
e enquanto tomam o m á ximo cuidado para manter sob controle os instrumen-

90 91
,
O MARXISMO ENCONTRA BOURD í EU A QUEM P E R T E N C E A FALSA
> CONSCI Ê NCIA ? BURAWOY ENCONTRA B O U R D I E U
í

tos do lucro , a governan ç a participativa deixa aos trabalhadores a liberdade Caímos, portanto, na tautologia funcionalista segundo a qual aquelas pes-
para organizarem seu próprio trabalho, contribuindo, dessa forma, tanto para soas que foram desde cedo socializadas no trabalho industrial ou que vieram
elevar o bem-estar deles como para desviar sua atenção dos lucros extr
1

ínsecos de condi ções de opress ã o acomodam -se a tudo isso; ao passo que aquelas
(o salá rio) em benef ício dos lucros intrínsecos (o jogo) do trabalho” 15, isto é, pessoas que vieram de uma origem social distinta ou que sofreram alguma
os lucros do controle ativo sobre a própria atividade. E com isso a verdade mobilidade social descendente a partir da classe média estão mais propensas
:

subjetiva (satisfaçã o) afasta -se novamente da verdade objetiva (exploração) a “ radicalizar suas reivindicações e seus ataques ao sistema”. Em A fabricação
do trabalho. do consentimento, porém, eu mostrei que as disposi ções adquiridas fazem pou -
Meu argumento era bem diferente. Contanto que houvesse o Estado interno ca diferença na forma pela qual as pessoas são inseridas na produ ção; tampou-
e o mercado interno de trabalho para criar tanto a adesão ao empregador como co modificam a intensidade com que elas são enredadas pelo jogo de “ bater a
os freios à intervenção deste, então, os trabalhadores estariam dispostos a se meta”. Minha experiê ncia no ch ão de f á brica foi mais ou menos a mesma , a
dedicar àqueles jogos que lhes ofereciam o sentimento subjetivo da liberdade. despeito do meu habitus acadêmico especial. Assim, eu fui envolvido e domi-
Isso significava dizer que os regimes hegemónicos eram a condição necessá ria nado por minha própria inserção no jogo de “ bater a meta” que encobriu aque-

e suficiente da mistificação da exploraçã o n ão importando qu ão desqualifi-
cado o trabalho pudesse vir a ser. Na verdade, quanto mais o trabalho fosse
las famosas relações de produção que doravante assumiriam para mim certa
característica mitológica no ambiente de trabalho — mesmo sendo elas tão
mesmo desqualificado tanto mais importantes seriam aqueles jogos, como com- . centrais às minhas concepções teóricas.
pensação ao esgotamento e à alienação do trabalho. Chegamos assim a minha divergê ncia fundamental com rela ção a Bourdieu.
Bourdieu , contudo, toma outro rumo. Em vez de pesquisar as condições Em contraste com Gramsci, nós dois reconhecemos a existência de um abis-

institucionais da mistificação os aparatos políticos e ideológicos da emprei- mo enorme entre a verdade objetiva e a verdade subjetiva do trabalho, mas...,

tada ele opta pelas condições disposicionais da dominação simbó lica: enquanto para Bourdieu tal abismo era visto como um desconhecimento que
provinha de um habitus individual profundo, para mim, ele provinha da mis-
Diferen ças nas disposições , assim como diferen ç as nas posições (à s quais aque- tifica ção derivada da natureza das instituições que organizam e gerenciam o
las est ão frequentemente relacionadas) , engendram verdadeiras diferen ç as de per-
cepçã o e de aprecia ção. Assim, as mudanç as recentes do trabalho industrial rumo —
trabalho mistificação essa que atua sobre todas as pessoas sem distin ção de
habitus, pouco importando as disposições herdadas por elas. A dominação sim-
àquele limite previsto por Marx com o desaparecimento da “satisfação com o traba
- bólica repousa na subjetivação da estrutura social nos corpos , com a formaçã o
lho ” , das “ responsabilidades ” e das “ habilidades profissionais ” ( com toda sua hie
rarquia correspondente ) s ão vistas e aceitas de diferentes maneiras por diferentes
- de um habitus arraigado e inconsciente, ao passo que a hegemonia no ambiente
de trabalho repousa sobre indivíduos inseridos em institui ções específicas que
categorias de operá rios. Aqueles cujas raízes est ão fincadas na classe trabalhadora
industrial e que possu íam habilidades profissionais e “ privilégios ” relativos s ã o
:

organizam o consentimento à domina çã o ela pró pria uma precondi çã o para
a mistificação da exploração. A dominação simbólica é marcada aferro efogo
propensos a defender suas antigas conquistas, isto é, a satisfação com o trabalho , as
habilidades profissionais , as hierarquias e, por essa razã o, defendem alguma forma sobre a psique individual, ao passo que a hegemonia é o efeito das relações
de ordem estabelecida, situacionista. J á aqueles que nada t êm a perder porque n ão sociais nas quais os indiv íduos estão inseridos.
possuem habilidade profissional s ã o até certo ponto os exemplos t ípicos da quime Se é essa a discord â ncia que nos opõe, ent ã o, examinar em diferentes com-
-
ra populista a respeito do proletariado
— tais como os jovens que permanecem na
escola por mais tempo que seus irm ãos mais velhos
— e est ã o mais inclinados a
plexos institucionais o par submissão versus consentimento serviria para con-
firmar ou contestar nossas teorias. O socialismo estatal transformou -se, ent ão,
radicalizar suas reivindicações e seus ataques contra o sistema . Outros trabalhadores, no supremo tribunal para a avaliação de nossas perspectivas sociol ógicas. De

mesmo sendo igualmente desfavorecidos tais como a primeira geração de traba - acordo com a teoria da hegemonia com mistificação, os trabalhadores sob o

râ ncia à exploração que até parece ter vindo de outra é poca 16.

lhadores industriais, as mulheres e especialmente os imigrantes , têm uma tole
- 5
l
socialismo estatal deveriam apresentar uma consciência diferente daqueles sob
o capitalismo avan çado; já conforme a teoria da domina ção simbólica com *

-
desconhecimento, esperar se- ia que a submissão à dominação fosse até mais

l
92 93
l
1'
0 M A R X I S M O ENCONTRA BOURDIEU I /1 QUEM P E R T E N C E A FALSA CONSCI Ê N C I A ? BURAWOY E N C O N T R A BOURDIEU
I;
í

profunda no socialismo real, tendo em vista que ali a coordenação do partido r. períodos trabalhando como operador de fornos na Sider ú rgica Lê nin . Basean -
estatal e seus aparelhos políticos e ideológicos conspiravam para a criação de do-me nessa pesquisa, eu conclu í que os regimes fabris no capitalismo avan -
um habitus totalmente dominado. Portanto, falemos agora sobre minhas pes- çado e no socialismo real eram bastante diferentes: o primeiro (capitalismo)
b:
quisas em f á bricas na Hungria. produzia consentimento, já o segundo (socialismo) produzia tanto o dissenso

l pessoal — a principal disposiçã o que arruinou o Solidariedade como a
mobilização coletiva que se viu na Alemanha Oriental em 1953*, na Hungria

A fr á gil hegemonia sob o socialismo estatal em 1956** e na Checoslov á quia em 1968***.
Meu argumento era bem simples: diferente do capitalismo, a apropriação
Houve duas boas razões pelas quais eu optei por pesquisar o trabalho industrial do excedente no socialismo real era um processo escancarado , transparente e
na Hungria. A primeira era que eu havia “perdido o bonde” do Movimento : reconhecido como tal por todos. O partido político, o sindicato e a gerê ncia da
Solidariedade* na Poló nia, entre 1980-1981, que tinha chamado minha atenção —
f ábrica eram extensões do Estado no n ível da produ ção extensões destinadas
exatamente por ser um movimento social de trabalhadores industriais ampla- a maximizar a apropriação do excedente para o cumprimento da fun ção social
mente revolucion á rio. O general Jaruzelski, contudo, acabou me nocauteando das firmas. Por ser transparente, a exploração era justificada como sendo do
e, por isso, eu fiz a segunda melhor coisa que podia fazer: comecei a estudar os t

f
operá rios h ú ngaros e a me perguntar por que motivo o Solidariedade eclodira na
* Alemanha , 1953. O período entre 1949 e 1953 foi marcado por grande agitação pol ítica na
Poló nia e n ão na Hungria, ou, mais genericamente: por que motivo ele surgira Alemanha Oriental. Prisões, expurgos e a “febre espia” eram frequentes no Partido Socia-
dentro do socialismo real e n ão no capitalismo avan çado? Quais eram então as I lista Alem ão . Ao mesmo tempo , o governo preparava-se para adotar a coletiviza ção da
possibilidades de um socialismo democrático emergir a partir do socialismo agricultura e a planificação econ ómica nos mesmos moldes da Uni ão Soviética , dando
prioridade à ind ú stria pesada sobre os bens de consumo. A redu ção do padr ão de vida fazia
real ? A segunda razão que me atraiu para o mundo socialista foi a especificidade com que milhares de operá rios deixassem o lado oriental rumo ao lado ocidental . A insa-
da minha experiência na f á brica de Chicago : aquilo tudo teria sido um produto tisfação dos trabalhadores que permaneceram explodiu em 1953, em uma onda de greves
específico do capitalismo ou o resultado do próprio processo de industrialização em v á rias cidades alem ã s, incluindo Berlim Oriental . O motim foi violentamente sufocado
pelas tropas soviéticas, vindas a convite do governo alem ã o em junho de 1953. ( N . do T.)
considerado genericamente? Nada havia nos escritos de Bourdieu que sugerisse ** Hungria, 1956 . Após a morte do dirigente sovi é tico Josef Stalin em 1953, o governo h ú nga-
que o desconhecimento fosse a característica inconfundível do capitalismo em ro pretendeu liberalizar seu regime. Com Imre Nagy ( 1896- 1958) iniciar-se-ia um per íodo
comparação com o socialismo estatal . .
de reformas pol í ticas e programas econ ó micos tendentes à distens ã o Em 1955, poré m ,
Maty as Rakosi (1892- 1971 ) voltou ao poder e reverteu o processo, pretendendo transformar
Entã o, entre 1982 e 1989 eu passei alguns verões e três semestres sabá ticos a Hungria em um Estado modelo e mantido sob a influ ência soviética . O governo Rakosi
estudando e trabalhando em f á bricas h ú ngaras. Primeiro trabalhei em uma tomou -se rapidamente impopular. Em 23 de outubro de 1956 irrompe uma violenta rebeli ão
f ábrica de champanhe que funcionava dentro de uma fazenda ; daí fui para uma em Budapeste contra os comunistas pr ó-soviéticos, exigindo e obtendo a volta de Nagy ao
í
tecelagem que funcionava em uma cooperativa agrícola

tudo isso antes de
me habilitar para o trabalho industrial em uma oficina bastante parecida com
;
poder, o qual encorajou o movimento que já assumia grandes propor ções . Incapazes de
controlar a rebelião, os dirigentes mais ortodoxos pediram aux ílio externo. Foi quando o
exército soviético invadiu a Hungria e sufocou a revolta em 4 de novembro de 1956 . Milha -
aquela de Chicago. Por fim , eu passaria cerca de 11 meses em três diferentes .
res de pessoas foram mortas e 200 mil fugiram do pa ís Nagy foi derrubado no mesmo ano
e executado em 1958. ( N. doT. )
Checoslov áquia, 1968. No início de 1968, em resposta à s demandas populares , o secretá rio-
* Movimento Solidariedade (Solidarnosc), federação de sindicatos fundada na Polónia em 1980.
Sob a lideran ça de Lech Walesa (1945 ) e com o apoio da Igreja Católica , tornou -se a principal -
geral comunista Alexander Dubcek ( 1921 1992) iniciou um processo de democratização na
Checoslov áquia, com o afastamento do país da influ ência soviética. Suas reformas pol íticas
organização pol ítica a liderar greves gerais e protestos contra o regime comunista polon ês. Já inclu íam a ampliação da liberdade de imprensa e a abertura da economia. Essa fase ficou
em 1981, o general Wojciech Jaruzelski ( 1923) foi nomeado primeiro- ministro e secret á rio
- I conhecida como a Primavera de Praga . A Uni ã o Soviética logo reagiu com violentos ataques
geral comunista, impondo a lei marcial . O Movimento Solidariedade foi posto na ilegalidade
na imprensa e manobras militares de dissuasão. Em agosto de 1968 , mais de 60 mil soldados
e milhares de ativistas foram presos. Houve também o afastamento de numerosos reformistas invadiram o país. Não houve resistê ncia violenta , sendo a interven ção amplamente conde-
do Partido Comunista Polon ês. O regime de Jaruzelski perdeu poder gradualmente e
suas )
nada pela opini ão p ú blica mundial. Em abril de 1969, Dubcek foi substitu ído pelo extremis-
reformas económicas fracassaram. Com a redemocratização em 1989, o Movimento Solida
riedade seria legalizado e faria parte do governo de coaliz ão. ( N. do T. )
- l ta Gustav Husák ( 1913- 1991), que anulou as reformas realizadas e recolocou a Checoslov á-
quia sob um governo autoritá rio . ( N . do T. )

94 i
i. 95
í
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A QUEM PERTENCE A FALSA CONSCI Ê NCIA ? BURAWOY ENCONTRA BOURDIEU
)
t
tr
.
interesse geral Poré m, como todo processo de legitimação, este também era
;
causa das contradições engendradas pelas pró prias a ções governamentais . O
pass ível de ser desafiado , de ser contradito em seus pró prios termos: o partido socialismo estatal assentava-se em uma hegemonia precá ria, sob o eterno pe -
estatal era sempre vulnerá vel às acusações de jamais cumprir com suas pro- í rigo de cair no despotismo escancarado apoiado na pol ícia secreta, nos blin -
messas ideológicas. Enquanto no capitalismo a ideologia de justifica ção é des- dados, nas prisões e nas execu ções p ú blicas. Em outras palavras , enquanto o
necessária (ela é até contraproducente ) em virtude do ocultamento da explo- capitalismo avançado organizara a mistificaçã o simultâ nea da exploração e do
raçã o , no socialismo real a ideologia era n ã o apenas um componente consentimento à dominação , a hegemonia no socialismo real —a tentativa
indispensá vel, como também seria a causa da sua ruína. de apresentar os interesses do partido estatal como sendo os interesses uni -
Entã o, o Estado organizava verdadeiros espetá culos no ch ã o de f á brica
que eu chamei de “socialismo de paisagem ” para celebrar suas eternas vir-

versais era percebida claramente como algo frá gil e sempre ameaçado pela
escandalosa transparê ncia da exploraçã o.
— —
tudes eficiê ncia, justiça, igualdade muito embora tudo o que os trabalha-
dores vissem em volta fosse ineficiência, injustiça e desigualdade. Os traba -

A viol ência simbólica e seus correlates o desconhecimento e o mascara-
mento , que Bourdieu simplesmente toma como dados, n ão explicariam a
lhadores, ent ão, voltavam a ideologia dominante contra os próprios burocratas instabilidade e a derrocada do socialismo real. Dentro do quadro teó rico de
- -
dominadores, fazendo os comprometerem se com sua propaganda socialista. Bourdieu, não há motivo para crer que a violência simbólica fosse menos pro-
O regime de produ ção burocrático desse socialismo real semeava mais as se - funda no socialismo real do que no capitalismo avanç ado. Muito pelo contrá rio:
mentes da discórdia que os fundamentos do consentimento. Com relação à
organização das atividades , a pauta dos jogos no ambiente de trabalho referia -
lá , a coordenação e a centralização dos diferentes campos sociais
mico, o educacional , o pol ítico , o cultural—
—o econ ó-
teriam criado um habitus muito
se mais ao cumprimento das cotas definidas pela gerê ncia que à quebra de mais coerente e submisso que sob o capitalismo, em que aqueles campos apre-
metas pelos trabalhadores individuais. Por isso, a exploração n ão era escondida; sentam uma autonomia maior. A an álise das instituições com seus efeitos ime-
ela mesma definia as próprias relações entre os atores. Alé m disso, dadas as diatos sobre os indiv íduos e suas experiê ncias coletivas se mostrou mais produ-
deficiências econ ómicas — -
falta de matérias primas, sua baixa qualidade, a tiva para a explicação das fragilidades da hegemonia no socialismo real .
quebra frequente das m áquinas e por aí vai, e isso tudo causado pela planifi -

cação burocratizada , os jogos no ambiente de trabalho ajudavam a enfrentar
Isso nos remete à concepção de Bourdieu sobre a mudan ça social
dan ça que depende da lacuna entre a estrutura social e o habitus, entre as
— mu -

tais problemas, desmentindo claramente as alegações ideol ógicas a respeito da possibilidades e as expectativas. Isso nos diz pouco sobre a teoria social , visto
eficiência do socialismo estatal. As adaptações às deficiê ncias na alocação de que n ós n ão ficamos sabendo quando ou se a lacuna entre o habitus e o campo
recursos exigiam dos trabalhadores muito mais autonomia do que lhes poderia será mesmo criada ; nem com que intensidade ela empurrará as pessoas para a
permitir a parafern á lia burocrá tica da regulação produtiva. Os jogos no am - organização revolucion á ria, ou para a acomodaçã o e a passividade . Como eu
biente de trabalho eram ent ão dirigidos contra o sistema burocrá tico, jogando havia adiantado no capítulo anterior, a grande quest ã o é se a lacuna entre o
o chão de f á brica contra o regime de produ ção e o partido estatal.
Nada vimos ali da estrutura social imprimindo-se indelevelmente sobre os
; habitus e o campo seria o resultado da “defasagem psicol ó gica ” —a colisão
de um habitus formado em um campo e a lógica de um campo distinto — ou
.
habitus dos trabalhadores e, com eles , assegurando a dominação da doxa Lon- se ela seria produzida em qualquer campo e pelo campo mesmo. No caso do
ge disso; o regime socialista produzia sistematicamente o oposto daquilo que socialismo real, conclu í que o pró prio regime produzia dissenso por conta das
pregava: criava mais discordância que consentimento; criava mesmo a organi- promessas n ão cumpridas pela burocracia. Ele anunciava ideais que não podia
zação contra -hegem ô nica dos trabalhadores ante os controles despóticos da atingir. E isso era experimentado n ão apenas pelos trabalhadores no ch ão de
produ ção. Com efeito, o socialismo estatal criou v á rios contramovim èiitos de l f á brica , mas também pela própria burocracia. Conforme a lacuna entre a ideo-
baixo para cima: o movimento cooperativista na Hungria, o Movimento Soli - logia e a realidade se ampliava e as tentativas para reduzi- la violavam aquela
dariedade na Poló nia e a defesa dos direitos civis durante a perestroika sovié -
tica. Desde o início, o socialismo real foi uma ordem social muito instável ; n ão
-

mesma ideologia (como nas reformas pró- mercado) , a burocracia transpas-
sada por contradições — perdia confian ça em sua pró pria capacidade de co-
porque suas instituições fossem fr ágeis demais
— —
longe disso , mas por ! mandar e, como resultado, a encenação da ideologia socialista tornava- se um

96 97

JL
O MARXISMO E N C O N T R A BOURDIEU
I
£ A Q U E M PERTENCE A FALSA CONSCI Ê NCIA ? BURAWOY ENCONTRA BOURDIEU
P
l

ritual sem sentido. Sem capacidade nem credibilidade, a hegemonia da elite :• se. Lá, embora continuasse um acadê mico, eu realmente havia encontrado
burocrática ruiu. Novamente aqui, n ão há nenhuma necessidade de recorrer à i
algum bom senso dentro do senso comum. Na Hungria, eu n ão realizei nenhu -
£
existência de um habitus profundamente inculcado que supostamente resistiria ma ruptura com o senso comum. Eu tomei a crítica imanente dos trabalhadores
à mudan ça. *l ao socialismo estatal como sendo o bom senso deles, elaborando-o por meio
do di á logo com os meus colegas de trabalho e colocando-o no contexto da
política econ ó mica e do socialismo real em crise.
O bom senso dos trabalhadores Na Hungria, a estrita oposição feita por Bourdieu entre a ciê ncia e o senso
comum foi substitu ída pela consideração gramsciana da consci ê ncia dual : uma •

sob o socialismo real -

consciência ideológica e outra consciê ncia prá tica , oriunda da produ çã o. Eu


Metodologicamente, havia diferenças relacionais nas abordagens que fiz da f estava obcecado pela consci ê ncia prática e “ impl ícita” à atividade dos meus
- colegas de trabalho que os unia “ na transformação prática do mundo real” , por
produção capitalista e da produção socialista, as quais refletiam algo de mais
profundo: a presença ou a ausência do bom senso. Em Chicago, eu precisei isso, dando menos atenção às ideologias “superficialmente explícitas ou verbais
romper com o senso comum dos trabalhadores para criar uma teoria social I
[...] herdadas do passado e tomadas sem crítica” —
incluindo a í sentimentos e
pensamentos racistas , sexistas, localistas e religiosos. No entanto, a verdade
baseada na ideia de uma verdade objetiva subjacente. Eu me impus determi-
nada ruptura epistemoló gica entre, de um lado, a ló gica da prática vigente no era que tais expressões verbais formavam poderosos elos entre os trabalhado-
ambiente de trabalho e, de outro, a lógica da teoria vigente no ambiente acadê- res,, sobrepujando frequentemente sua incipiente consciência de classe.
mico. Eu jamais busquei elaborar “ bom senso” algum entre meus colegas de Junto com J ános Luk ács 17, meu colaborador àquela época , dirigimos nosso
trabalho; no lugar disso, eu os provocava rumo à elaboração do “senso práti- foco para a capacidade e a necessidade de os trabalhadores organizarem a
produ ção, para poderem enfrentar os problemas de alocação de recursos . Re-

co” próprio ao perguntar-lhes por que motivo eles trabalhavam tão duro fato
que frequentemente nem eles reconheciam! Essa foi a primeira “revanche” de
;

solvemos apresentar essa ideia aos gerentes que tentavam impor controles bu -
Bourdieu: da verdade subjetiva de “ bater a meta” para a verdade objetiva da rocráticos à produ ção. Enfurecidos por nossas reivindicações , eles insistiram
exploração capitalista. Mas isso era insuficiente para nos mantermos no n ível que nós refizéssemos nosso estudo. Vê-se que aquela n ão era apenas uma guer-
da verdade objetiva; seria preciso explicar ainda como os agentes (os tra ra dentro da consciência dos trabalhadores, mas uma luta entre os operá rios e
balhadores) continuavam a reproduzir as condi ções daquela verdade obje-
- os gerentes e, uma vez mais, seria a consci ência expl ícita e verbal , perpetrada
e perpetuada pelos gerentes, o que finalmente prevaleceria ali . Naquela é poca,
tiva— a possibilidade da exploração —
sem que eles mesmos soubessem
o que estavam fazendo . Por isso, a segunda “ revanche” de Bourdieu seria
?
o socialismo estatal h ú ngaro entrava em seus dias finais; os trabalhadores ha-
fazer o caminho inverso: da verdade objetiva para a verdade subjetiva, quer viam perdido toda a confiança na pró pria concepção de socialismo e n ão vis-
dizer, explicar como o jogo do “ bater a meta” contribu ía para garantir e es lumbravam a possibilidade de um socialismo democrático alternativo , muito
conder o excedente da produção.
- embora ele estivesse manifesto na ló gica da sua prá tica. Inspirado pelo “ bom
Eu estava seguindo as regras metodológicas defendidas por Bourdieu; ã í senso” dos trabalhadores , no qual J á nos Lukács via um grande potencial para
n o i
sistemas de autogest ã o, ele tentou trabalhar com coletivos oper á rios para lan -
porque já tivesse lido seus livros , mas porque n ão acreditava que os trabalha
- % çar os fundamentos de uma alternativa ao capitalismo ; mas esse projeto mor-
dores compreendessem as condi ções de sua submissão. Mas teria sido minha

— —
condição de acadêmico comprometido com a superioridade do conhecimen
to científico que me impediu de encontrar algum bom senso no senso comum
- £
reria no nascedouro logo que a ideologia capitalista se impusesse .
Em poucas palavras, nosso estudo do socialismo estatal a forma como—
dos trabalhadores? Ou ser á que n ão havia bom senso algum e , por isso, os
9
.
ele instigou a oposição e por fim caiu —
n ão precisou teorizar a respeito de um
habitus inculcado, mas apenas analisar suas relações de produ ção. Esse siste-
trabalhadores realmente desconheciam as condições de sua submissão? Minha B
pesquisa empírica em fábricas da Hungria levou -me a crer na primeira hip te ma não conseguiria continuar sustentando sua d ébil hegemonia ; e qualquer
ó - £
m¥ tentativa nesse sentido só apressaria seu fim. Pela mesma razão, como dissemos

98 . 99
%
í
8
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
I A Q U E M PERTENCE A FALSA C O N S C I Ê NCIA ? BURAWOY ENCONTRA D O U R D I E U

antes , a reprodu ção de uma dominação durável no capitalismo avan çado dis I
pensa a inculcação da estrutura social nos corpos. Tal submissão ao existente
- habitus, n ão existindo na psique humana sedimentos cumulativos de campos
sociais. Já quando partimos da ruptura de uma ordem antiga em direção à
pode ser totalmente explicada pela configuração das instituições que asseguram
criação de novas ordens , eu penso que a ideia de habitus, com sua capacidade
o consentimento à dominação, baseada na mistificação da exploração. Sendo
de inovar e de improvisar, chega ao ápice. Estou pensando aqui no meu estudo
esse o caso, restaria ainda lugar para Bourdieu e sua ideia de habitus incons
ciente e entranhado ?
- sobre a crise da classe trabalhadora sovié tica e sua resposta às forças do mer-
cado desencadeadas por tal processo.
A pesquisa que conduzi nos anos 1990 entre as fam ílias da classe operá ria
no norte da R ú ssia demonstrou a inacredit á vel adaptabilidade das mulheres e
A dimensã o produtiva do habitus a empedernida inflexibilidade dos homens. A transiçã o russa para a economia
de mercado foi impulsionada pela destrui ção da economia burocratizada , o que
Meu foco na incipiente consciê ncia da classe trabalhadora foi dirigido para o
levou o mercado a assumir o controle das funções de produ çã o e distribuição.
interesse no passado, nas origens do Movimento Solidariedade: ora, por que
As esferas do comércio, das finan ç as, da especula ção financeira e dos servi ç os
uma revolução dos trabalhadores teve lugar justo no socialismo estatal ? Isso
banc ários tornaram-se as áreas mais din â micas da economia de transi çã o, ten -
me levou a antecipar erroneamente as possibilidades de um socialismo
demo- do, porém , como resultado a drenagem dos recursos da produção para as ope-
crático emergindo dos escombros do socialismo estatal, superestimando assim
a força daquela consci ê ncia incipiente da classe trabalhadora. A oposição des
-

rações cambiais processo que eu denominei involução económica. Isso tudo
levou ao desemprego e ao aumento da dependê ncia dos trabalhadores em re-
ta ao socialismo real havia levado (na melhor das hipóteses) a uma bil
dé de- lação a suas famílias, que se tornaram mais unidades de produção que unidades

inscrita nos corpos individuais


— —
manda por democracia no socialismo. A noção de habitus a estrutura social
pouco me ajudaria a entender essas trans-
de reprodução. Dentro desse contexto, foram as mulheres que demonstraram
a maior resiliência, organizando economias informais baseadas em círculos de
formações no n ível macro, ao passo que o foco nas dinâmicas e contradi
ções amizade e parentesco, trabalhando n ão apenas em dois turnos, mas à s vezes
do regime burocrá tico iria.
em três. Ao mesmo tempo, os homens tornaram-se com frequ ência mais os
Da mesma forma, a compreensão das transformações no capitalismo avan
- parasitas que os provedores dessa nova economia dom éstica, manifestando isso
çado não è auxiliada pela ideia de harmonia/desarmonia existente entre o
ha- em sua desmoralização, no crescimento do alcoolismo e na diminuição da
bitus e o campo. A fabricação do consentimento foi dedicada à explica o
surgimento dos regimes fabris hegemó nicos. Poré m, tanto ali como
çã do longevidade .
no caso da í Portanto, o seguinte argumento poderia ser defendido: sob o socialismo
Hungria, eu n ão percebi a fraqueza desses regimes , pois n ã o soube
avaliar estatal burocratizado, os homens da classe trabalhadora tinham seu papel e sua
corretamente como eles engendraram sua própria destruição. Ao constituir i
os função claramente definidos como provedores, ao passo que as mulheres tinham
trabalhadores como indiv íduos atomizados com interesses atados aos
interes- 8 de se virar em duas jornadas: uma em casa e outra na firma. O resultado foi um
ses da gerência, o Estado interno e o mercado interno de trabalho solaparam
a habitus rígido e unidimensional para os homens e um habitus flex ível e mul -
capacidade organizativa da classe trabalhadora, levando o regime hegem
ónico tidimensional para as mulheres. Com isso, as mulheres puderam ser mais cria-
que eu descrevi em A fabricação do consentimento a sucumbir
facilmente nas tivas e proativas diante das exigê ncias da involução econ ó mica enfrentada na
últimas três décadas à (inesperada) ofensiva das forç as gêmeas do
mercado era pós-soviética. Se tal argumento estiver correto, então , nós podemos afirmar
globalizado e do neoliberalismo. Novamente , o foco no habitus
n ã o nos con - que o habitus se torna mais determinante apenas quando o contexto social se
duziu a lugar algum na explicação da mudança social.
Se a ideia de hegemonia é mais ú til que a noção de dominação
simbólica
; —
torna menos estruturado mais em tempos de reconstru ção institucional que
em tempos de derrocada institucional .
para explicar a ruptura da ordem social, isso se deve ou ao fato
de as instituições
da sociedade se anteporem e substitu írem o poder do habitus I
ao ditar as prá ti-
cas aos agentes, ou ao fato de simplesmente n ão haver tal coisa chamada
de
t
100 I 101
8
£•

O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A QUEM PERTENCE A FALSA CONSCI Ê NCIA ? BURAWOY ENCONTRA BOURDIEU
%t
Conclus ã o ; a l ó gica da pr á tica para so habitus . Enquanto a mistificaçã o é o produto da estrutura social e nunca é
?
al ém de Gramsc i e de Bourdie u $•
ç
- tão profundamente inculcada que não possa ser também desfeita , o desconhe-
s cimento descrito por Bourdieu vem do interior dos próprios indiv íduos: da
l
Nós podemos resumir o argumento deste cap ítulo reportando- nos à noção de í harmonização do seu habitus com o campo .
É:

.
falsa consciência Para Gramsci, o problema da falsa consciência não era sua ii Por isso, Bourdieu n ão poderia explicar por que motivo a dominaçã o sim -
dimens ão consciente, mas sua suposta “falsidade” . Ou seja, Gramsci acredita bólica é t ão eficiente em algumas sociedades , mas n ão em outras ou em todas
-
va que os trabalhadores colaboravam ativamente, deliberadamente e conscien
- y
as demais. Nesses termos, por que motivo o socialismo real onde devíamos —
temente com a reprodução do capitalismo: eles consentiam com a domina o
aceita como hegemonia . Eles sabiam o que estavam fazendo; só tinham difi
çã
i
esperar que a dominação fosse mais profunda e mats inculcada sistemati -
camente produziu oposição ? Em outras palavras, Bourdieu é capaz de explicar

- i
a durabilidade da dominação, mas n ão sua transformação ou colapso. Então,
culdade de imaginar a exist ência de qualquer coisa além do capitalismo. A
dominação não era mistificada, mas sim naturalizada e eternizada. Mesmo como Bourdieu poderia explicar as transforma ções ocorridas no capitalismo,
assim , em virtude da posição que ocupavam na produ ção , os trabalhador
es
tais como as transições no regime de produçã o americano
hegemónico; e do hegemónico ao hegemónico despótico?* Sua teoria da mu -

do despó tico ao
possu íam a perspectiva crítica sobre o capitalismo, al ém de certa consciência

alternativa, ainda que embrionária consciência esta que poderia ser elabo
-
dança social é dependente das desarmonias entre o habitus e o campo; mas n ão
rada por meio do diálogo com os intelectuais .
Se para Gramsci o problema era a “ falsidade” da falsa consciê ncia, para
h á aí nenhuma teorização sobre como essa desarmonia é produzida
forma situacional ou se é de forma processual. Tampouco h á teorização sobre
se é de —
Bourdieu o problema seria outro, isto é, a concepção de consciência seria
su-
e ordem ou inconformismo e rebelião.

as consequ ê ncias dessa incompatibilidade se ela produz nova acomodação
perficial demais para abarcar todo o sentido da violê ncia simb
dominação que se aloja profundamente no inconsciente por meio dos
ó lica
— uma
sedimen -
Gramsci estava muito mais preocupado que Bourdieu com a questão da
mudan ça social . Ele a concebia como a ruptura da hegemonia dominante e a
tos cumulativos da estrutura social . Para Bourdieu, o consentime
noção demasiado tênue para expressar a submissã o à dominação e ,
dela, ele desenvolveu a ideia do desconhecimento inculcado profundam
nto era uma
no lugar
ente
criação da nova hegemonia oper á ria

quer ela viesse da crise orgâ nica ( o
reequilíbrio das forças de classe) , quer ela viesse da guerra de posiçã o encam -
no habitus. Dado que os dominados intemalizam as estruturas sociais em
que
vivem , eles aquiescem à dominação sem reconhecê-la como
tal . Apenas os * Em seu genial estudo junto a fá bricas nos Estados Unidos e na Inglaterra , Burawoy detectou
dominadores e particularmente os intelectuais poderiam distanciar a existência de três regimes sucessivos de produ ção: 1 ) O regime despótico é caracterizado
estrutura social e objetivar (analisar ) sua relação com ela . Apenas
-se dessa pela mecaniza ção e fragmentação das atividades e pela obriga çã o de o trabalhador vender sua
eles podem potência de trabalho em troca do salário. Nesse regime, a regulação despótica do processo de
ter acesso a seus segredos. Mas n ão todos os intelectuais,
para ser exato; ape - trabalho é estabelecida pela coaçã o econ ómica do mercado: é render-se ou morrer de inani ção.
nas aqueles que conseguem compreender a dominação , que são Aqui, a reprodu ção da potência de trabalho é vinculada à produ çã o capitalista . 2 ) O regime
, reflexivos à
sua condição especial no mundo e que usam tal reflexividade para hegemónico surge quando a criaçã o dos direitos sociais e da legisla çã o trabalhista pelo Estado
examinar a faz com que a gerência industrial não possa mais confiar na coa çã o do mercado para conseguir
vida dos outros. a obedi ê ncia do trabalhador. Assim , os oper á rios são “convidados a colaborar" com a ger ê ncia
Ao julgar essas duas posições, eu afirmei que ambas eram problem e a coordenar seus interesses aos interesses do capital privado. O consentimento substitui o
áticas, par coersã o- vioiê ncia . Aqui , a reprodu çã o da potê ncia de trabalho separa-se da produ çã o ca
insuficientes. A noção gramsciana de hegemonia n ão reconhece a mistifica
ção pitalista . 3) Conforme Burawoy, a forma atual dos regimes fabris é o despotismo hegemónico.
-
da explora ção sobre a qual se funda o consentimento à A mobilidade internacional do capital e a vulnerabilidade dos trabalhadores criam as condi ções
dominaçã o. Sim : a
\
“falsidade” caracteriza a consciência dos trabalhadores, mas essa “falsidade” do novo regime desp ó tico fundado na hegemonia, porque, se de um lado a gerê ncia continua
dependendo do consentimento dos trabalhadores ( regime hegem ó nico ) , por outro lado, o ne-
emana da pró pria estrutura social — eis onde eu me afasto de Bourdieu . À
medida que participamos das relações capitalistas de produ ção,
\
oliberalismo e a globalizaçã o impõem limites à proteçã o sindical e estatal, quebrando a resis-
todos n ós ex- i
tência da classe operá ria (regime desp ó tico) . E a tirania “ racional ” do capital mundial m ó vel
perimentamos o mascaramento do trabalho excedente
—pouco importa o nos- [
contra o oper á rio coletivo. Ver Burawoy, “A transformação dos regimes fabris no capitalismo
avan çado”, 1990. (N. do T.)

102 :
103
[
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU í A QUEM PERTENCE A FALSA C O N S C I Ê N C I A ? DURAWQY ENCONTRA BOURDIEU
i
-
pada desde baixo e sobre a base do bom senso. Minha pesquisa sugeriu haver i
\ Notas
muito mais coisas na hegemonia do que a simples coordenação cpncreta dos i
interesses ou amarras ligando a sociedade civil ao Estado. Havia certos funda - i 1 Bourdieu, 2000, p. 177. Ed . brasileira , 2001 b , p. 215 .
mentos n ão hegem ó nicos da hegemonia, a saber, a mistifica ção -da exploraçã o. 2 Idem , 1990 a , p . 18. Ed . brasileira , 1987 , p. 39 .
Eis o porquê de a hegemonia ser tão eficaz no capitalismo avan ç ado e tão frá- 3 Marx e Engels , 1970 a.
S 4 Gramsci, 1971 , pp. 198-9.
gil no socialismo estatal.
5 Bourdieu , 1991 , p . 251.
Por ser tão transparente no socialismo estatal, a exploração ofereceu mais
6 Gramsci, 1971 .
possibilidades para os intelectuais se engajarem com os trabalhadores na ela- 7 Burawoy, 1979.
boraçã o de “hegemonias alternativas” vindas de baixo —
os conselhos de ope- 8 Chomsky, 1988 .
rários na Hungria em 1956; a Primavera de Praga em 1968; o Movimento Soli- 9 Nã o faltam estudos sugerindo a ubiquidade desses jogos. Para citar alguns exemplos not á veis
dariedade na Poló nia em 1980- 1981; o socialismo de mercado durante o e recentes , há o estudo de Sharone ( 2004 ) sobre os programadores de software , o estudo de
Sallaz ( 2002) sobre os crupiês de cassino e o estudo de Sherman ( 2007 ) sobre os trabalhadores
período de reformas na Hungria, nos anos 1980; o florescimento da sociedade em hotelaria .
civil durante a perestroika na Uniã o Soviética. Esses movimentos contra-he- 10 Foi enquanto eu trabalhava e lecionava com Adam Przeworski (1973- 1976) que desenvolvi a
gemónicos foram formados por diferentes configurações de intelectuais e de ideia da estrutura social como jogo . Foi nessa mesma é poca que ele estava desenvolvendo sua
teoria gramsciana da pol í tica eleitoral , na qual a competi ção partid á ria pode ser pensada como
trabalhadores. Alguns deles foram eventualmente desbaratados, porém, outros jogo absorvente em que a luta gira em torno da distribui ção de recursos econ ó micos, perpas -
conseguiram gerar o embrião de uma ordem social alternativa ao socialismo sando e eclipsando a desigualdade fundamental sobre a qual esse jogo é jogado .
estatal burocratizado. 11 Bourdieu, 2000, p. 203. Ed . brasileira, 2001 b, p. 247.
Por fim, isso não implica negar a existência do habitus. As disposições são 12 Idem , 2000, pp. 314-5. Ed. brasileira , 2001 b, p . 207.
13 Com efeito, Adam Przeworski mostrou como era natural que os partidos socialistas lutassem
sim herdadas de um contexto anterior pela situação seguinte. OK. Mas ao invés
por objetivos materiais imediatos , para com isso atra írem os votos necessá rios, vencerem e
de serem tão determinantes e totalizantes como Bourdieu afirmava, as dispo- simplesmente se perpetuarem no poder.
sições herdadas são postas em segundo plano devido à s enfadonhas , repetitivas 14 Bourdieu , 2000, p . 203. Ed . brasileira , 2001 b , p . 248.
e incessantes relações sociais, nas quais tanto os dominantes como os domi- -
15 Idem , op . cit ., pp. 204 5. Ed. brasileira , op . cit ., p . 250.

nados entram juntos. Somente quando essas relações sociais perdem sua coesão 16 Idem , op . cit., p . 315.

e coerência o habitus assume o controle



como pudemos verificar na desin-
tegração econ ó mica pós-soviética. Em outras palavras , o habitus desempenha
17 Burawoy e Luk á cs , 1992.

papel coadjuvante na reprodução da dominação, poré m , pode desempenhar o


papel principal na criação de novas ordens sociais.
Vivemos uma época desesperadora e desalentadora na qual o enrijecimen-
to do capitalismo e a derrocada dos regimes burocratizados fortaleceram as
ideologias neoliberais dominantes. Nã o devemos reforçar o impulso e a in ércia problemas inerentes às teorias de Parsons ( omissões e contradi ções ) como a fen ô menos
da situação presente aceitando afirmações infundadas acerca do profundo en- f conjunturais da sociedade americana àquela é poca (conflitos e mudanças). Mas foi sobretu -


tranhamento das estruturas sociais reminiscê ncia do funcionalismo dos anos do o quadro pintado por Parsons —com institui ções exercendo fun ções de alocaçã o e de
integração para a estabilidade social ; com indiv íduos cooperando sob consenso normativo e
1950, com seu “indiv íduo mal socializado”. Lembremos: essas teorias foram —
cumprindo papéis dentro da estrutura pouco conflitiva que aos poucos ia sendo contradi -
tado pelos fatos. A visã o otimista da sociedade americana do pós -guerra , bastante presente
derrubadas por uma efervescência coletiva e crítica que o funcionalismo n ão
na sua síntese dos anos 1950, era desmentida por conflitos raciais, por lutas por direitos civis
quis ou não conseguiu antecipar*. dos negros e das mulheres, pela recessã o econ ó mica e pela turbul ê ncia dos anos 1960. Em
seu aspecto ideológico e em seu viés conservador e idealista , a sociologia parsoniana esteve .
implicitamente atada às consequências positivas da sociedade do pós-guerra. Se as esperan -
* Crise do funcionalismo. Nos anos 1960, a crise da sociologia parsoniana (o funcionalismo) ças depositadas nessa sociedade eram postas em d ú vida , o mesmo aconteceria com a adesão
foi vista por muitos como a crise da própria ciência social. Tal crise estava ligada tanto a ao funcionalismo. ( N. do T.)

104 105
i

í£
í
i

;
.
i

CAP Í TULO IV

COLONIALISMO E REVOLU ÇÃ O :
FANON ENCONTRA BOURDIEU

?
; Aquilo que Fanon diz n ã o corresponde à realidade. É at é pe -
i rigoso fazer os argelinos acreditarem nas coisas que ele afirma .
Isso só iria entretê- los com utopias e ilusões . Eu acho que
esses homens [Sartre e Fanon ] contribu íram para transformar
a Arg é lia naquilo que ela se tornou , porque eles contam est ó -
rias para cidad ãos argelinos que, muitas vezes , desconhecem
seu pró prio pa ís mais do que o francês que fala sobre ele ; e ,
com isso, os argelinos conservam ilus ões ut ó picas e comple-
tamente irrealistas acerca da Argé lia . Os textos de Fanon
;
e de Sartre s ã o assustadores por sua irresponsabilidade . É
preciso ser megaloman íaco para pensar que se pode dizer
tanta coisa sem sentido.

Pierre Bourdieu I

O espectro que rondava Bourdieu


A postura de Bourdieu perante o marxismo torna-se mais e mais hostil à me-
dida que vamos de Marx para Gramsci e de Gramsci para Fanon . Bourdieu
tinha profundo respeito pelo brilhantismo e discernimento de Karl Marx e,
decerto, como eu mesmo afirmei no capítulo I, sua sociologia pode ser vista
como a extensã o da economia pol ítica marxiana para dentro do campo da
cultura: ela foi uma economia política da çultura. E embora Bourdieu procu -

: 107
í. .
s
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU l COLONIALISMO E REVOLU ÇÃ O. FANON ENCONTRA B O U R D I E U
*

rasse se distanciar de Antonio Gramsci —


com suas noções de hegemonia, de
:
tudou nesses tratados densamente teó ricos vivia em um cosmo sem tempo nem
consentimento , de consci ê ncia, de ideologia e, sobretudo , sua concepção do contexto histórico. Em contraste, seus trabalhos menos conhecidos e redigidos

intelectual orgâ nico , pode-se detectar mesmo a í algum resqu ício de simpa - enquanto ele ainda estava na Argé lia ou logo após isso concentram o foco mais
tia e respeito —
como quando Bourdieu usa as ideias de Gramsci contra o
Partido Comunista Francês , por exemplo.
i
diretamente nos efeitos do colonialismo
7

como vemos em A sociologia da
Arg élia ( 1958) , Trabalho e trabalhadores na Arg élia8 e O desenraizamento9.
Já quando chegamos a Frantz Fanon , acabou-se a simpatia como pode — - Esses textos s ão menos teó ricos e, no lugar disso, lidam com a problem á tica
da moderniza ção no pró prio contexto da ordem colonial argelina . S ã o esses
mos ver pela citaçã o acima, retirada de uma entrevista com James Le Sueur2.
Bourdieu cita Fanon até mais raramente que Gramsci, mas, quando o faz, é primeiros trabalhos que n ós devemos comparar e contrastar com Os condena -
sempre com veneno na l íngua: “Eu desejava me desvencilhar, sobretudo, da dos da Terra 10 de Frantz Fanon . Porque, se o projeto de Bourdieu era a recons-
especulação. E àquela época [anos 1960], os trabalhos de Frantz Fanon , espe - tru ção da teoria da modernização, a meta de Fanon era a reconstrução do mar -
cialmente Os condenados da Terra3, eram a ú ltima palavra ; e eles só me im- xismo. A seguir, eu tentarei mostrar que a teoria de Fanon sobre o colonialismo
pressionaram por serem falsos e perigosos”4 . Desse modo, o di á logo que estou e a revolução pode ser vista como uma adaptaçã o gramsciana ao contexto
prestes a entabular aqui pode nunca ter ocorrido, entretanto, é importante re
constituí-lo. E devemos deixar que Fanon responda a Bourdieu .
- —
colonial esse Gramsci cujo trabalho ( at é onde se saiba ) Fanon jamais leu.



A antipatia de Bourdieu por Fanon embora n ão conste que Fanon tenha
sequer encontrado Bourdieu talvez seja profunda porque ambos viveram na Cruzando os mesmos caminhos
Argélia na mesma época, porém, frequentando universos separados: o primei -
ro, atuando como pesquisador distanciado e simpá tico à dif ícil situação colo- Fanon e Bourdieu estiveram na Argélia na mesma é poca, durante o agrava-
nial , procurou resgatar a dignidade do colonizado ao escavar a verdade da sua mento dos conflitos peia libertação nacional ( 1954- 1962). Bourdieu chegou à
vida; e o segundo, como psiquiatra da Martinica formado na França , lidou Argélia em 1954 para cumprir o serviço militar, após o qual, ele se viu envol -
diretamente com v ítimas de violência em ambos os lados da clivagem colonial. vido com os destinos daquele povo e daquele pa ís. Ele optou por permanecer,
O primeiro era ligado à universidade e aventurou -se nas comunidades argelinas lecionando na Universidade de Argel , indo da filosofia para a etnologia e a
tomadas como campos de pesquisa empírica, enquanto o segundo trabalhou sociologia, mergulhando em um programa de pesquisas sobre todas as facetas
em um hospital psiqui á trico antes de se comprometer com o movimento pela da vida popular argelina. Cruzando as zonas de guerra, ele se tornou cronista
libertação nacional. Para usar novamente os termos de Gramsci, como primei
-
ra aproxima ção , pode se dizer que Bourdieu foi um intelectual tradicional,
- e testemunha presencial das envolventes lutas anticoloniais

até que sua
presença ali se tornasse politicamente insustentá vel . Ele foi obrigado a deixar
enquanto Fanon foi um intelectual orgâ nico. Como ainda veremos , essas foram o pa ís em 1960 e, após isso, retornou à Fran ç a para ingressar na carreira de
as concepções de intelectual que cada qual defendeu em seus trabalhos , muito
embora, inevitavelmente, suas próprias pr áticas enquanto intelectuais fossem

sociólogo carreira marcada de maneira indelé vel por suas experiê ncias na
Argélia.
algo mais complexas. ; Vindo da Fran ç a , onde havia completado recentemente o bacharelado em

i

Os trabalhos mais conhecidos de Bourdieu sobre a Argélia Esboço de psiquiatria e medicina, Fanon chegou à Argélia em 1953 —
um ano antes que
uma teoria da prática (1972)5 e sua subsequente transformação n’A l ó gica da Bourdieu. Lá, ele seria nomeado diretor do hospital psiqui á trico Blida -Joinvil-
prática (1980)6 —foram escritos muito tempo depois de ele ter deixado a le; e foi por intermédio dos pacientes que ele conheceu os traumas e horrores
Argé lia e de o pa ís ter saído do contexto colonial. O povo cabila* que ele es- do colonialismo. Curiosamente, Fanon também fez viagens de campo aos ca-
bilas , explorando sua vida social e mental in loco. Envolvido na guerra pela
libertação nacional, Fanon foi expulso da Argélia em 1956, indo primeiramen -
* O povo cabila. Os berberes são povos n ómades que habitam extensas regi ões do Saara e do
norte da África (Marrocos, Argé lia , Tun ísia , L íbia e Egito). Dentre eles, encontram se os tu te para a Tun ísia, onde prosseguiu com seus trabalhos em psiquiatria ; e poste -
- -
aregues e os cabilas. ( N. do T.) : riormente para a capital de Gana, onde se tornou embaixador itinerante da FLN

108 109
k
0 MARXISMO ENCONTRA BO URDI EU
COLONIALISM O E REVOLU ÇÃ O : FANON ENCONTRA BOURDIEU
t
i
[Frente pela Libertação Nacional Argelina] em v á rios países do norte e
oeste [ quando consideramos o derradeiro veredicto de Bourdieu sobre as obras de
da Á frica. Fanon morreu de leucemia em 1961, pouco antes de a Argélia con
- i Fanon , como sendo “especulativas”, “irresponsá veis” , “ perigosíssimas” . Só se
quistar sua independência, mas não antes de ele mesmo concluir Os condena s
- pode ficar surpreso, portanto, com os incríveis paralelos entre suas abordagens

dos da Terra a bíblia das lutas pela libertação colonial ao redor do mundo.
Pode-se dizer que tanto Fanon como Bourdieu estavam bem preparados
í
r da estrutura do colonialismo, da guerra civil anticolonial e da queda da ordem
colonial. Para convencê-los da fantástica convergê ncia entre esses autores , eu
para desenvolver interpretações originais sobre seu período argelino. Bourdieu
procurarei citar largamente dois textos seus, ambos escritos em 1961 , ou seja ,
cresceu e se criou em um pequeno povoado no B éarn , onde seu pai se elevou
um ano antes da independ ência da Argélia, a saber, o artigo “Revolu ção dentro
de campon ês arrendatá rio a funcion á rio dos correios. Foi seu brilhantismo
da revolução” 13 escrito por Bourdieu e anexado ao livro Os argelinosH \ e Os
acadêmico o que lhe abriu as portas para a École Normale Superiéure. Fanon
condenados da Terra' 5 , escrito por Fanon .
cresceu e se criou na Martinica , no seio de uma fam ília crioula e aspirante à
Podemos então começar com o próprio significado do colonialismo que
classe média. Ele ingressou no Exército Voluntá rio Francês em 1943 e , depois
Bourdieu e Fanon viam como um sistema de dominação em que o que preva -
da guerra, estudou em Lyon. Ambos os autores tiveram amargas experiê
ncias lece é a violência. Sobre isso, Bourdieu escreveu :
de marginalização na Fran ça : o primeiro, com base na classe, que Bourdieu
alude em seu Esboço de autoanáliseu\ e o segundo, com base na ra ,
ça que Em poucas palavras, quando conduzido por sua pró pria l ógica interna , o sistema
Fanon expõe no seu célebre trabalho Pele negra, máscaras brancas 2 . Portanto,
eles estavam bem equipados para reconhecer as abomin áveis
' colonial tende a desenvolver todas as consequ ê ncias impl ícitas no momento da sua
exclusões e opres- formação: a completa separação das castas sociais. A revolu ção violenta e a repressão
sões que jaziam na essê ncia do colonialismo
—muito embora suas origens
é tnicas e nacionais fossem colocá- los em posições bastante diferentes
-
pela violê ncia ajustam se com perfeição à coerência l ógica do sistema . [... ] Com efei -
na ordem to , a guerra revelou com clareza o verdadeiro fundamento da ordem colonial: a rela ção
colonial. apoiada na força bruta que permite à casta dominante manter a casta dominada numa
Mesmo assim, a formação acadêmica deles devia se ajustar ao novo meio. posi ção inferior 16 .
Ambos convergiram para a sociologia: o primeiro a partir da filosofia, que
Bourdieu acusava de estar afastada demais do estudo das experiências A linguagem usada por Fanon é mais provocativa, poré m , seu sentido é o
da vida
real; e o segundo, a partir da psiquiatria, que Fanon dizia ter mesmo: “Seu primeiro encontro se deu sob o signo da violência; e sua coabi-
dificuldades para
compreender a natureza estrutural e sistémica da opressão colonial.
Além disso, tação — melhor dizendo, a exploração do colonizado pelo colonizador — foi
suas sociologias convergiram também na medida em que ambos levada a cabo com o grande aux ílio de bombas e baionetas” 17. Tanto para Fanon
mantiveram
certo interesse na psicologia como companheira necess á ria e como para Bourdieu , a situaçã o colonial significava n ão apenas domina *
insepará vel da ção,

pesquisa socioló gica fato expresso tanto na nebulosa noção de
Bourdieu como na influência da psiquiatria lacaniana em Fanon.
habitus em
£
mas também separação, ou , melhor dizendo, segregação uma segregação
que não admitia compromisso ou permissividade:

A converg ê ncia das teorias acerca do


A zona habitada pelos colonizados nunca é a mesma zona habitada pelos coloniza -
*
dores. Essas duas á reas se opõem , mas n ão em fun ção de uma unidade superior. Regi -
colonialismo e sua capitulação dos por uma lógica puramente aristotélica , elas obedecem ao princípio da exclusão
recíproca, em que n ã o h á conciliação possível : um dos lados é excessivo 18.
Dadas as distintas imersões desses autores no contexto da Argé
lia colonial , l

poder-se-ia esperar que Bourdieu


— o sociólogo francês que se manteve na
:

Os paralelos entre as duas descrições da situação colonial ecoam nas con-

——

i
Argélia depois do serviço militar e Fanon o psiquiatra martinicano que siderações feitas por eles da experiência subjetiva do colonizado. Ent ão , citan -
já havia sido v ítima de racismo na França adotassem posturas diferentes do como exemplo, Bourdieu escreve que “respeito e dignidade” são as primei-
\'
com respeito à situação colonial. Tal expectativa de divergê ncia é ras demandas dos indiv íduos dominados, porque eles tê m experimentado o
intensificada
\

110
111
I
í
O MARXISMO ENCONTRA B O U R D I EU COLONIALISMO E R E V O L U ÇÃ O: FANON ENCONTRA BOURDIEU

>
colonialismo na forma “da humilhação e da alienação” 19 . Da mesma maneira, I
A repressão e os conflitos conduziram diretamente ao acirramento das hostili -
dades e ao aprofundamento do cisma que dividia os dois lados. A guerra tor-
Sj
Fanon escreve que o colonialismo “desumaniza o nativo; ou falando sem ro-
-
deios : o colonialismo transforma o em um animal” 20. Contudo, o nativo “[...] nou-se um agente cultural, dissolvendo a resignação , substituindo a negaçã o


I
sabe que n ã o é nenhum animal ; e no instante mesmo em que redescobre sua 1

simbólica da dominação colonialista como no costume insistente do uso do


humanidade, ele começa a afiar as armas que o farão vencer” 21. E como Bour- vé u que Bourdieu chamou de “tradicionalismo tradicionalista ” pelas agres-—
dieu argumenta, ecoando Fanon : “[...] a situa ção colonial cria o indivíduo des- sivas demandas por direitos sociais e educação. O orgulho, diz ele, substituiu
prezado, ao mesmo tempo em que reproduz a atitude do indivíduo desprezador; a vergonha:
mas em compensaçã o, ela cria também a revolta contra tal desprezo. E assim
a tensão que ameaça dilacerar a sociedade continua a aumentar” 22. O sentimento de se encontrar engajado em uma mesma aventura, de estar sujeito
Embora a concepção em Bourdieu de um sistema de castas sugira certa ao mesmo destino, de confrontar a mesma adversidade, de compartilhar as mesmas
ordem social mais harmoniosa que a ordem racial vista por Fanon, ele concor- preocupações, os mesmos sofrimentos e as mesmas aspirações ampliam e aprofundam
dava, entretanto, que o sistema colonial espalhava as sementes da sua própria —
o sentimento de solidariedade sentimento que també m tem passado por uma ver -
destruição: daí “o grande levante” no qual “a grande massa do campesinato dadeira transformação , dado que a ideia de fraternidade tende a perder sua colora çã o
seria arrastada em um vendaval de violência que varreria até mesmo os vestígios religiosa e étnica para se tornar um sinó nimo de pertencimento nacional 28.
do passado”23. Mantido em coesão graças à violência, o sistema colonial s ó
poderia ser destru ído pela violê ncia24. Eis “a revolu çã o dentro da revolu ção”: a transformação revolucion á ria da
consci ência, a substituição da diferen ça ressentida pela solidariedade afirma-
Que apenas a revoluçã o possa abolir o sistema colonial ; que quaisquer mudanças, tiva . Qu ão diferente seria essa revolu ção dentro da revolu çã o, conforme a visão
para serem levadas a cabo , precisam ser submetidas à lei do tudo ou nada são agora

de Fanon sobre as lutas pela libertação nacional ?
fatos claramente percebidos, ainda que apenas de maneira confusa , tanto pelos membros
da sociedade dominante como pelos membros da sociedade dominada . [...] Então, deve
- Já dissemos que a violê ncia do colonizado unifica o povo. [ ...] A viol ê ncia é tota-
se reconhecer que o primeiro e decerto ú nico desafio radical ao sistema foi aquele que lizante na sua prá tica. Por isso, ela comporta na sua essê ncia a liquidaçã o do tribalis -
o próprio sistema gerou: a revolta contra os princípios sobre os quais ele se funda 25. mo e do regionalismo. [...] Para os indiv íduos, a violência é desopilante e desintoxica.
Ela liberta o nativo de seus complexos de inferioridade, de suas atitudes contempla-
De maneira semelhante, Fanon escreve acerca da necessidade da violência -
tivas ou desesperadas. Torna o intrépido e o reabilita perante si mesmo 29.
para a derrubada do colonialismo:
Fanon e Bourdieu também abordaram o fen ômeno da destruição do cam-
O nativo que resolver pôr em prá tica tal programa e tomar-se sua força motriz esta- pesinato pela expropriação das terras. Fanon escreveu: “para a população co-
rá sempre disposto à violência. Desde o seu nascimento, ele percebe com clareza que lonizada, o valor mais essencial, por ser o mais concreto, é em primeiro lugar
este mundo estreito e povoado de interdições e de injustiças não poderá ser questionado
e transformado sen ão pela violência absoluta 26.

sua terra a terra que deve assegurar o sustento e, evidentemente, a dignida-
de”30. E Bourdieu escreveu:

Alé m disso, ambos os autores sabiam dos efeitos catá rticos da violência . :
O campon ês só poderá existir enquanto estiver enraizado na terra , na terra onde
Nas palavras de Bourdieu, a guerra dissolve a “solicitude falsificada”. As ten
- nasceu , na terra que ele recebeu dos pais e à qual se encontra ligado pelos la ços do
tativas de conciliação e todas as formas de concessão e de pacificação eram costume e da mem ó ria. Uma vez desenraizado, h á grandes chances que ele deixe de
parte das estratégias que os dominantes utilizavam para se manter no poder: viver como camponês e que a paix ão instintiva e irracional que o une a sua existê ncia
“[...] as tentativas de enganação e os subterf ú gios são então revelados em sua campesina morra dentro dele31.
verdadeira luz. A guerra ajudou a trazer à tona a maioridade da consciência”27 .
?, .

112 \ 113

1
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU C O L O N I A L I S M O E REVOLU Ç Ã O : F A N O N E N C O N T R A B O U R D I E U

Embora a questão da terra fosse central para ambos, as an álisés de Bourdieu políticas viá veis , enquanto Fanon era um agente interno claramente identifica-
eram mais ricas, dado que eiç examinou mais detalhadamente os assentamen - do com as lutas pela libertação nacional, predizendo a cat ástrofe que atingiria
tos rurais criados durante a guerra civil argelina, assim como as desocupações a Argé lia caso ela trilhasse o caminho da burguesia nacional . Ou seria talvez
forç adas conduzidas em nome da proteção dos povos nativos ; desocupações o quadro teórico de Fanon o que Bourdieu mais condenava ? Porque, ao con-
que evidentemente ajudaram a afastar o exército de libertação nacional das tr ário de Bourdieu, que via o colonialismo pelas lentes da teoria da moderni -
— —
bases de apoio que tinha nas regi ões rurais.
Por fim, se Fanon for mesmo acusável de idealismo e de utopismo , Bourdieu
també m o seria. Ent ão ou çamos Fanon primeiro. Ele chegou a imaginar duas
vias políticas: a via da burguesia nacional e a via da libertação nacional . A
olhava pelas lentes do marxismo

zação 1 a transição da sociedade tradicional para a modernidade , Fanon o
como a transição do capitalismo para o
sistema socialista. Na seção a seguir, revelaremos primeiramente as divergê n
cias imbricadas nesses dois quadros teó ricos, para ent ã o avaliarmos as posturas
-
primeira alternativa conduziria fatalmente à ditadura e à repressão ; a segunda políticas distintas desses dois autores.
alternativa conduziria à democracia participativa.

Os líderes burgueses dos pa íses subdesenvolvidos encerram a consci ê ncia na -


Bourdieu : entre a tradi çã o e a modernidade
cional dentro de um formalismo esterilizante. Somente o emprego maciço de homens
e de mulheres em trabalhos esclarecidos e prol íficos conferiria conte ú do e densida -
Algu ém poderia (com certa razão) ter d ú vidas em incluir Bourdieu no grupo da
de a tal consci ê ncia. [ ...] O contr á rio disso é a anarquia , é a repressão , é o apareci -
mento de facções tribais , é o federalismo 32.

teoria da modernização tanto mais por seu reiterado interesse na dominaçã o e
na reflexividade, que s ão temas pouco usuais aos teóricos dessa corrente. Alé m
disso, o pouco que ele mostrava conhecer da teoria da hist ória era uma remi-
Bourdieu também chega ao mesmo dilema entre socialismo e barbárie:
niscência durkheimiana e, sobretudo , weberiana, isto é, o implacá vel avan ço
da diferenciação social e cultural, entendida em termos de campos relativa-
Essa sociedade que tem sido tão amplamente revolucionada precisa que solu ções
revolucion á rias sejam inventadas para solucionar seus respectivos problemas . Isso
obrigaria a que algum rumo fosse dado para mobilizar essas massas que vêm sendo
mente autó nomos (an álogos às esferas de valor em Weber) sem qualquer
consideraçã o mais séria sobre que tipo de sociedade emergiria da sociedade

presente . E também como Weber, Bourdieu n ão ofereceu nenhuma escapató ria
libertadas dos controles disciplinares tradicionais e lan çadas em um mundo desiludi-
do e ca ó tico, e congregá - las em um ideal coletivo: a cria çã o de uma ordem social
à dominação. Resignação ?
As raízes da teoria da modernização em Bourdieu podem ser encontradas
harmoniosa e o desenvolvimento de uma economia moderna capaz de assegurar em -
prego e n íveis de vida dignos a todos. A Argélia retém forç as sociais tão explosivas -
em suas obras sobre a Arg élia. Trata se de uma teoria com algumas diferen ças
que pode ser que n ão exista mais nenhuma alternativa entre o caos e alguma forma pontuais. Primeiramente e obviamente, Bourdieu referia -se frequentemente ao
original de socialismo que deveria ser cuidadosamente projetado para satisfazer às colonialismo como um choque de civilizações —
um choque de civilizações
necessidades da situação presente33. bastante desiguais quanto às forç as políticas e materiais que cada uma poderia
mobilizar 34 . Portanto , ele era muito cr ítico às interpretações culturalistas da
Malgrado suas diferen ças estilísticas e de retó rica, ambas as críticas ao sociedade argelina que tendiam a ignorar o contexto coercitivo da ordem co -
colonialismo se aproximam quanto à avaliação e à explicação que d ão à ordem lonial. Em Arg élia, I 960, Bourdieu critica explicitamente Daniel Lerner e seu
colonial. Qual seria então a origem daquele “ veneno” que Bourdieu destilava livro A passagem da sociedade tradicional35 por sua caracterização da moder -
contra Fanon? Não fica claro em que aspecto a abordagem de Bourdieu seria nidade como sendo a afirmação da alteridade, a expressã o da empatia e a ra -
menos especulativa ” e “irresponsável” que a visão de Fanon. Seria a postura cionalidade livremente escolhida e adotada . pelos povos . Bourdieu argumenta
engajada expressa por Fanon o que tanto irritava Bourdieu ? A esse respeito , que a tradição e a modernidade, como visões de mundo e direções de conduta ,
Bourdieu se apresentava como um observador estrangeiro avaliando as opções - n ão são livremente escolhidas ou adotadas , mas emergem de condições mate-
riais específicas.
\
:
114 !; 115
i
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
COLONIALISMO E REVOLU ÇÃ O: FANON ENCONTRA BOURDIEU

Inspirado pelo ensaio de Weber, A ética protestante e o espírito do capi


- racionalmente a transformação social na Argélia . Essa derradeira possibilida-
-
talismo , Bourdieu pergunta se sobre o que poder íamos reconjiecer como
de estaria reservada à classe trabalhadora:
sendo o ethos tradicional e o ethos moderno. Sem d ú vida, é aqui que Bourdieu
se mostra mais original. Baseando-se em Bertrand Husserl , argumenta que a
Aqueles que t êm o “privilégio” da experimenta çã o permanente e da exploração
modernidade envolve a orienta ção rumo ao tempo futuro, sendo esse futuro
racional, com o desfrute das vantagens daí oriundas, també m possuem o privilégio de
racionalmente planificado , ao passo que o tradicionalismo supõe uma ante-
uma autê ntica consciência revolucion á ria . Essa mirada realista em um outro porvir só
cipaçã o do tempo futuro no presente, sendo esse futuro a repetição do pre-
é acessível àqueles que têm os meios para enfrentar o presente e procurar maneiras de
sente. E Bourdieu relacionou a modernidade e a tradição a diferentes classes
concretizar suas esperan ç as, em vez de abrirem caminho à rendiçã o resignada ou à
no interior do contexto colonial: a classe trabalhadora urbana desfrutava da
seguran ça necessá ria àqueles que devem pensar com criatividade e raciona-

impaciê ncia supersticiosa própria daqueles que são tão oprimidos pelo presente que
n ão conseguem vislumbrar outra coisa alé m do futuro utó pico, da negação m á gica e
lidade , enquanto o campesinato estava preso a um eterno retomo do presen- imediata do presente37.
te . Poré m , tanto o “subproletariado” das cidades
— —
inseguro , marginalizado,
desenraizado, semiempregado como o proletariado rural deslocado da — Percebe-se aí claramente o contraste dessa classe trabalhadora com aquela

sua propriedade para á reas de assentamento viviam “da m ão para a boca”.
Eles exibiam certo “tradicionalismo desesperado” e orientado para o aqui e
descrita em A distinção** : classe que passa a ser incapaz de perceber e de com-
bater sua pró pria submiss ão às hierarquias, sendo ent ão tolhida em sua imagi-
agora, conscientes da possibilidade do tempo futuro que eles conheciam , e nação revolucion á ria e acorrentada à necessidade. Até aqui , na vis ã o da classe
do qual , poré m, abdicavam. Esse tradicionalismo era bem diferente do “tradi
- trabalhadora que lemos acima, n ão se faz nenhuma referê ncia a quais peculia-
cionalismo tradicionalista” que n ão via outro futuro além da continuidade ridades da classe operá ria colonial a tornariam eminentemente revolucion ária ;
do momento presente . ent ão, continua o mistério de como reconciliarmos essas duas perspectivas .
Curiosamente, tal consideração conduz Bourdieu às posições do marxismo Talvez possamos atribuir isso à sociologia “especulativa” da juventude de Bour-
ortodoxo , segundo o qual a classe trabalhadora argelina seria naturalmente dieu , na qual ele ainda n ão havia desenvolvido completamente a ideia da domi-
revolucion á ria por viver enraizada em um emprego estável, enquanto o cam- nação simbólica. Como veremos mais adiante, na verdade, Bourdieu estava
pesinato desenraizado e o subproletariado das cidades poderiam (quando mui
to) irromper em uma rebeli ão espont ânea e inconsciente:
- ;
combatendo outros inimigos: na França, seus inimigos eram os trotskistas , os

stalinistas, os maoistas enfim, os comunistas que acreditavam em uma clas-
se trabalhadora eminentemente revolucion á ria ; j á na Argé lia , seus inimigos
De um lado, há a revolta das emoções, expressão indefinida e inconsciente de uma eram Fanon e a FLN que afirmavam que os camponeses formavam a classe
condição caracterizada pela indefinição e pela incoerência; do outro lado, há o radicalis- : revolucionária por excelência39.
mo que emerge da avaliação sistemá tica da realidade. Essas duas atitudes correspondem a
Sendo esse o caso, sua an álise até o momento limitou-se à questão da cons -
dois tipos de condições materiais de existê ncia: de um lado, n ós temos o subproletariado
ciência individual , estando, portanto, mais próxima da tradição weberiana, em
das cidades e o campesinato desenraizado, cuja existência é marcada por constrangi
- que se procura demarcar a fronteira entre a disposição para a conduta tradicio-
mentos e arbitrariedades; do outro lado, n ós vemos os trabalhadores formais dos setores
nal e a disposi çã o para a conduta moderna. A habilidade de Bourdieu é focar
modernos desfrutando daquele mínimo de garantias e de seguran ças que possibilitam
que as aspirações e opini ões estejam sempre no horizonte da possibilidade. A desorga
os horizontes temporais. Quando ele compara a sociedade tradicional com a
- sociedade moderna, ele se aproxima da velha divisã o durkheimiana e mani-
nização da conduta diária impede a formação de projetos e de previsões,
dentre as quais,
a consci ência revolucion ária é apenas um aspecto36. que ísta entre a solidariedade orgânica e a solidariedade mecâ nica. Em um caso
i extremo, Bourdieu reconstró i aquela ordem social harmoniosa e autorrepro-
í duzida pelos rituais , trocas de d ádivas e relações de parentesco , tais como
O desenraizado conseguiria até ser uma “força para a revolução”, mas n ão i

uma “força da revolução”, ou seja, ele não conseguiria promover consciente e expressas pela organiza çã o da sociedade cabila. Essa ordem social , deixada
incólume pelo colonialismo, era dominada por uma poderosa consciência co -
:
1J6
117
3
O MARXISMO ENCONTRA B O U R D / EU í COLONIALISMO E REVOLU ÇÃ O : FANON ENCONTRA DO UR D l E U
r

letiva
— reminiscência da solidariedade mec â nica de Durkheim . Essa reden -
çã o rom â ntica foi defendida por Bourdieu e seus disc ípulos como sendo a
emancipação do colonizado n ão implicaria a libertaçã o automá tica do sistema
colonial. Encurralados entre o velho e o novo , os argelinos continuariam car-
possível reversão do desprezo que a ordem colonial fazia pesar sobre seus regando dentro de si as contradições do colonialismo. Tais ideias també m
s ú ditos, restituindo-lhes assim a dignidade inerente à cultura aut ó noma. Sil- estavam no cerne da teoria da moderniza ção dos anos 1960 , tais como ex -
verstein40 referiu-se a isso como uma nostalgia estrutural que poderia trans - pressas por figuras como Clifford Geertz 42, Alex Inkeles 43 e Edward Shils44,
formar- se em uma arma na luta anticolonial , citando como exemplo a defesa Para explicar o impasse das “ novas na ções” e os impedimentos ao flores-
do uso do v é u .
-
1
cimento da modernidade , eles evocaram a pesada carga da heran ça hist ó ri
Noutro extremo , vemos a Argélia moderna, assediada pelo colonialismo ca e da tradi çã o . Bourdieu ofereceu - nos poucas evid ê ncias valiosas a res-
que produzira uma classe trabalhadora relativamente est á vel , poré m , distan
- peito dessa defasagem cultural , da desorienta çã o e aprisionamento do
ciada de um subproletariado urbano instável, de um campesinato despossuído colonizado entre dois mundos por seu habitus tradicional . O ú nico exemplo
e enxotado para os assentamentos e de um proletariado rural dependente dos que ele apresenta é de um cozinheiro cabila que demonstra justamente o
latifundiários colonizadores. Eis a visão da sociedade regida pelas formas pa
tológicas da divis ão do trabalho. De um lado, haveria a divis ão forç ada do
- contrário: um homem que se desloca com grande arrojo e desenvoltura de
um emprego para o outro. H á , portanto , poucas evid ê ncias acerca da estag -
trabalho, com a imposi ção daquelas condições desiguais cuja síntese era a nação por in é rcia devido ao habitus tradicional .
própria dominação colonial ; de outro, haveria a divisão econó mica do trabalho , No caso do cozinheiro cabila , Bourdieu empregou o que constitu ía o
causada pela transiçã o da Argélia à modernidade. Com frequ ê ncia , Bourdieu “conhecimento convencional ” da é poca : a suposta passagem do tradiciona -
descrevia os argelinos — especialmente os intelectuais, mas també m os cam- lismo à modernidade , resultando em anomia para os indiv íduos submetidos
poneses e os trabalhadores — como indiv íduos encurralados entre mundos
opostos. Tentando emendar um habitus partido, eles se viam em um estado de
a tal processo. Quando Bourdieu prestava aten ção à s classes sociais , era
para com isso observar a maneira pela qual o destino delas se expressava
confusã o, de desnorteio que frequentemente irrompia em explosões de irracio
- em termos de consci ê ncia individual , com a internaliza çã o da domina çã o
nalidade magnetizadas por sonhos utópicos: sob o colonialismo. Ele n ão estava tão interessado na formação das classes
e nas alian ç as e lutas de classe quanto estava nas ordens raciais . Portanto ,
Todas essas contradições afetam a natureza interna do “ homem entre dois mun
- Bourdieu n ão via o destino da col ó nia ou da ex -col ô nia em termos de a çã o
— —
dos” o intelectual, o homem que já trabalhou na Fran ça , o habitante das cidades ex
posto aos conflitos criados pelo enfraquecimento dos sistemas de conduta tradicionais
- —
das forças sociais isto é, atores coletivos operando dentro dos limites da
economia política colonial . É por causa dessa limitação em Bourdieu que
e pelo surgimento de um conjunto ambíguo de padrões eticomorais. [..í] [Este]
homem , n ós devemos retornar a Frantz Fanon .
posto entre dois mundos e rejeitado por ambos , vive um tipo de vida dupla :
ele é
presa f ácil das frustrações e dos conflitos internos, e como consequê ncia ele é cons
-
tantemente tentado a adotar ora uma dif ícil atitude de identificaçã o com o dominador,
ora uma postura de rebeliã o negadora41 . Fanon: entre o capitalismo e o socialismo
Enquanto Bourdieu via a dominaçã o colonial por meio das categorias mani -
Tais antinomias envolvendo a modernidade e a tradição nos conduz àquilo
queístas de modernidade versus tradicionalismo , Fanon preferiu vê-la pelas
que Bourdieu mais tarde chamou de hysteresis, isto é, a situação na qual os
lentes bifocais do capitalismo e do socialismo . Afinal , a Arg élia e sua revo-
comportamentos adquiridos em um certo campo ( rural -tradicional ) impediriam
a adaptação satisfatória do indiv íduo a outro campo ( urbano moderno). Com
lu ção anticolonial dariam lugar ao capitalismo ou ao socialismo ? Melhor
- dizendo, o que Fanon tentava mostrar era a alternativa entre socialismo e
seu fracasso em se adaptar à economia capitalista moderna, a Argélia mostrar
nos-ia qu ã o dif ícil é adquirir as disposições necessá rias ao capitalismo. Essa
- barbárie. E se Bourdieu , assim como Weber, estava mais interessado na li -
ideia de defasagem cultural baseada no habitus també m explica por que
í bertação em relação ao passado, Fanon , assim como Marx , estava mais inte-
a í
í
ressado na direção do futuro .

118 119
l
O M A R X I S M O ENCONTRA BO U R D l EU ir
C O L O N I A L I S M O E REVOLU ÇÃ O : FANON ENCONTRA B O U R D J E U
l
*
Para Fanon , o colonialismo era uma arena de lutas; e , sendo assim, tratava- $
contasse apenas consigo mesmo, só conseguiria irromper numa espontaneida-
se menos da libertação em relação ao passado (daquilo que Bourdieu chamava de indisciplinada. Por isso, seria necess á rio que os intelectuais direcionassem
de tradicionalismo tradicionalista) e mais de uma guerra pelos rumos do futu -
ro. A independência nacional envolvia a guerra contra o colonialismo (o que

e organizassem a energia telú rica dos camponeses e esses intelectuais radi-
cais viriam das cidades . Ao mostrarem a venalidade das elites nativas e se
Gramsci chamaria de guerra de movimento ) e envolvia també m a luta pela oporem à alternativa burguesa, os intelectuais dissidentes seriam expulsos das
forma que a futura sociedade assumiria: uma guerra de posi ção entre aqueles
que lançavam combates para substituir os colonizadores com negros suce-
-
zonas urbanas e juntar se-iam às fileiras do campo. Juntos , intelectuais radicais
— e camponeses rebeldes provocariam a potente igni ção da luta pela libertação
dendo brancos — sob a hegemonia da burguesia nacional e aqueles que bus-
cavam transformar a estrutura das classes sociais sob a hegemonia do movi
' nacional. Bourdieu , por sua vez, era cético ou quem sabe fosse totalmente
- hostil à pró pria ideia desse intelectual “org â nico” , temendo que ele impusesse
mento por libertação nacional . A violenta guerra contra a antiga ordem colonial seus interesses ou fosse sugado por aquelas pessoas que supostamente imagi -
ocorria lado a lado à s lutas pela futura ordem nacional

fosse ela a transição
para um capitalismo perif érico dependente, fosse ela a transição para um so-
nasse representar. Segundo Bourdieu , o intelectual engajado e politicamente
comprometido deveria se manter à dist ância de todas as classes.
cialismo democrático. Enquanto Gramsci vacilava, ora dizendo que as guerras
de posição precediam as guerras de movimento (como no Ocidente, onde havia
Sendo assim , para Fanon, havia dois projetos rivais competindo pela he -
gemonia dentro das classes colonizadas: o primeiro era centrado na burgue-

— —
sociedades civis poderosas e aut ó nomas) , ora dizendo que elas sucediam as sia nacional e levado adiante por seus pró prios intelectuais professores,
guerras de movimento (como no Oriente e na R ússia , onde o socialismo foi burocratas e profissionais frustrados de todo tipo com a classe trabalha -
implantado de cima e após a revolução ) , para Fanon , as duas guerras seriam dora vindo a reboque ; e o segundo era centrado nos camponeses unidos em
simultâneas — o que as tornava mais complexas , difíceis e incertas. Então
seria mats f ácil fazer as lutas anticoloniais assumir a dianteira, deixando a
um abraço simbólico com seus intelectuais orgâ nicos. Cada bloco procurava
assegurar para si o apoio das outras classes sociais indecisas : as lideran ças
derrocada do colonialismo seguir-se naturalmente a elas. Porém , sendo esse o tradicionais e o subproletariado (lumpemproletariado) das zonas urbanas,
caso , o socialismo democrá tico poderia n ã o ser vitorioso. recentemente desenraizados da zona rural . Os condenados da Terra 45 ofere-
A base de apoio da alternativa burguesa nacional era uma incipiente bur- ce- nos uma avaliaçã o do equil íbrio entre essas duas for ç as antagó nicas no
guesia argelina (com comerciantes, mercadores, pequenos capitalistas , frações seio da luta anticolonial . E os colonos podiam desempenhar seu pró prio pa -
do capital internacional ) e seus intelectuais orgâ nicos ( recrutados entre os pro- pel , dando forma ao equil íbrio entre essas tend ê ncias antagó nicas; mas , no
fessores, o serviço pú blico, os advogados e outros profissionais liberais). A momento decisivo, eles mobilizariam todas as suas forç as em apoio à bur-
alternativa burguesa nacional també m era apoiada pela classe operária, a qual guesia nacional .
Fanon dizia ser superestimada no contexto colonial. Porque, quando compa- Caso a burguesia nacional vencesse a luta pelo controle do movimento de
rada ao profundo empobrecimento do campesinato, os trabalhadores assalaria-
dos eram , para usar outros termos , uma “ aristocracia operá ria” que teria mui-
independ ência , ent ão , declara Fanon , a elite nativa que sucedesse à estran -
geira jamais conseguiria criar uma verdadeira hegemonia, pois isso deman -
to a perder na eventualidade de uma transformação da estrutura de classes daria recursos econ ómicos que ela n ão tinha . Ora, ela era uma burguesia do-
sociais. E aqui que Fanon e Bourdieu divergem dramaticamente e inevitavel -

J

mente . Enquanto Bourdieu afirmava que o ímpeto revolucion á rio vinha do fato
minada dominada, aliás, pela burguesia internacional e capaz apenas
de se tornar uma classe imitadora e parasitária. Sob sua liderança, a demo-

de se estar integrado ao capitalismo, visto que isso era o que garantia a mínima cracia pluripartid á ria que emergisse logo após a independê ncia degeneraria
segurança para imaginar e planejar um futuro melhor, Fanon via tal exploração em um Estado de partido ú nico e da í na ditadura de um homem s ó: o racismo,
como a marca de um privilégio que conduzia os trabalhadores a apoiar a via I
o tribalismo e o nacionalismo tacanhos ressurgiriam . Fanon expressou com
reformista da burguesia nacional . í vivacidade o que realmente predominava no subcontinente da Á frica pós-
Para Fanon , a luta revolucioná ria começaria com o campesinato despossuído
que nada tinha a perder. Na verdade, Fanon reconhecia que o campesinato, se
colonial. Aquilo n ão era especulação sem fundamento nem profetismo irres -
pons á vel ; era sim como as coisas realmente aconteciam !

120
121
í
O MARXISMO E N C O N T R A BOURDIEU C O L O N I A L I S M O E R E V O L U Ç Ã O. F A N O N E N C O N T R A B O U R D I E U
*

Ao pintar a alternativa da burguesia nacional com cores t ã o sombrias e concessões materiais à classe trabalhadora50, mascarando o racismo com “ de-
terríveis, Fanon esperava convencer-nos de que a ú nica alternativa realmente i clarações a respeito da inegável dignidade do ser humano”51. Por outro lado,
progressista era a da libertação nacional , com a transformação da estrutura I
í:
havia a burguesia “subdesenvolvida” do capitalismo periférico que n ão detinha
social rumo ao socialismo democrático. Mas até que ponto isso seria viável ? *
os recursos económicos necessários para assegurar sua dominação, mas com -
Mesmo que o equilíbrio entre forças de classe favorecesse a hegemonia revo - pensava seu atraso por meio do consumo suntuoso e do apeio aberto ao triba-
lucion ária, conseguiriam os colonizados fazer surgir daí um socialismo demo- l lismo e ao racismo:
crá tico? De forma mais otimista, Fanon dizia que a Á frica negra podia n ã o
apenas almejar, mas também exigir reparações do Ocidente capitalista, pois Visto que n ão possui ideias próprias, visto que está encerrada em si mesma , separa -
este necessitava dos mercados africanos —
tanto de seus recursos naturais da do povo e frustrada com sua incapacidade congénita de pensar em termos do conjun -
como de seu poder de consumo. Talvez Fanon fosse ingénuo demais quanto às to dos problemas nacionais, a burguesia colonial nada far á sen ão assumir o papel
possibilidades do socialismo democrá tico, mas tal ingenuidade se originava de gerente das empresas ocidentais ; e praticamente transformará seu pró prio país em
do desespero, ao ver preparadas as armadilhas da burguesia nacional. um bordel da Europa52.
Fanon contrastou as diferenças entre a metrópole e a coló nia. Como se se
baseasse em Gramsci, cujas obras ele aparentemente nunca leu, Fanon dife - Em poucas palavras, a hegemonia burguesa não poderia constituir- se ou se
renciava 'a coló nia da metró pole pela presen ç a , nesta ú ltima, de uma sólida -
sustentar numa ex colô nia. Isso inevitavelmente descambaria em um despotis-
sociedade civil situada entre o Estado e as classes subalternas: mo político fundado em bases econ ó micas ainda mais grosseiras . Ela iria co -
meçar copiando as institui ções ocidentais —
sua constituição e as manifesta -
Nos países capitalistas, entre os explorados e os ocupantes do poder central , inter - —
ções superficiais da economia mas logo degeneraria em ditadura de partido
-
põe se uma multid ão de professores de moralidade , de “conselheiros” , de desnortea
- ú nico ou de um ú nico homem. O destino da África foi profeticamente imorta-
dores. Já nas regiões coloniais, o soldado e o policial, por sua intervenção frequente e lizado na linguagem v ívida de Frantz Fanon .

direta seja na base da coronhada, seja com explosões de bomba napalm* acon
selham os colonizados a n ão se rebelar46.
— -

Ora, isso nada mais é que a distinção feita por Gramsci entre a hegemonia
O di á logo reprimido entre Bourdieu e Fanon
e a ditadura. Portanto, Fanon assume a perspectiva gramsciana da união da
A Guerra da Argélia caiu feito bomba sobre a França, atiç ando paix ões pro-
classe operária ocidental que “ nada tinha a perder” e que, “ no final das contas,
fundas e criando profundas divisões. Ela pôs em perigo a tranquilidade dom és-

tinha tudo a ganhar”47 ao contrário de uma superestimada classe trabalha - tica e enfraqueceu o regime político. Em seu pref ácio ao livro Os argelinos de
dora colonial, que “ tinha tudo a perder” devido “à posição privilegiada que
Pierre Bourdieu, Raymond Aron disse que “aqueles que se preocupam com os
ocupava no sistema colonial” , do qual “ também fazia parte a fração burguesa
destinos da Fran ç a e do Ocidente n ão podem permanecer indiferentes à Argé-
da população colonizada ”48.
lia; e eles encontrarão neste livro os dados necessá rios à sua pr ó pria reflex ão
Da mesma forma, o contraste entre a burguesia ocidental e a burguesia ex-
e julgamento”53. Contra os “dados”, a “reflexão” e o “julgamento” de Bourdieu ,
colonial era patente. De um lado, havia o poder económico e a liderança moral
erguia-se um adversário n ão declarado: a “especulação” , a “irresponsabilidade”
da verdadeira burguesia ( metropolitana ) que acumulava riquezas49 e distribuía
e a “megalomania ” de Frantz Fanon.
A maior parte de Os argelinos consiste em ser uma superficial etnografia
de segunda mão feita sobre os v ários grupos que formavam a população arge-
* Napalm, bomba incendi ária feita com gasolina gelatinosa e compostos de pó de alumínio e
sais de ácido naftênico e palm ítico. Atinge altas temperaturas , impregnando-se nos corpos dos lina. Ao reconhecer suas culturas distintas, Bourdieu afirmava ter restitu ído a
inimigos e espalhando-se pela área ao redor. Algumas eram equipadas com paraquedas: ex
plodiam antes de chegar ao solo e iluminavam todo o acampamento à noite. ( N . do T.)
- —
dignidade dos argelinos dignidade recusada n ão apenas pelo regime colonial ,
mas, conforme Bourdieu, recusada também por Fanon e pela FLN . Porque, ao

122 123
\
0 MARXISMO E N C O N T R A BOURDIEU COLONIALISMO E REVOLU ÇÃ O : FANON ENCONTRA BOURDIEU

reivindicar uma revolu ção que rompesse com o passado , uma revolu ção que aparece aí é a postura do intelectual tradicional que se manté m distante das
separasse a cultura em raças ou classes , Fanon estaria despindo o colonizado lutas da massa, sendo abertamente hostil à pró pria concepçã o de intelectual
dos seus direitos humanos naturais. Mas tal afirmação era bem diferente do orgânico engajado.
discurso do Bourdieu tardio, que, assim como Fanon, via a cultura do dominado -
Fanon n ão somente destacou o papel chave dos intelectuais nas guerras
como uma cultura dominada acrescida de alguns valores compensatórios. Sen- anticoloniais como se tornou ele pró prio o porta -voz do movimento pela in -
do assim , qual seria a diferença entre o tradicionalismo do indivíduo coloni- depend ê ncia60. A esse respeito, sua raça podia ser vista como sua vantagem
zado e o tradicionalismo da classe operá ria francesa? comparativa, muito embora ela n ão fosse nenhuma vantagem inequ í voca, por
O alvo visado pelo áspero ataque de Bourdieu contra Fanon era sua visã o ele ter vindo da Martinica atrav é s da Fran ça. Sua an á lise visava examinar jus-
“maoista" da revolução , cuja locomotiva seria o campesinato. Tendo sido ex - tamente o equilíbrio entre forças de classe dentro da luta anticolonial, assim
propriados das terras que possu íam , dizia Fanon , os camponeses nada tinham como as possibilidades estratégicas da constru ção de um bloco hegem ó nico
a perder. Bourdieu ficava furioso com essa “imbecilidade pretensiosa"54. O para fazer prevalecer a via da liberta ção nacional contra a via da burguesia
campesinato estava sendo “dominado e acossado pela guerra, pela concentra- nacional. Seu contraste com Bourdieu radica no proselitismo comprometido
ção latifundiá ria e pelo ê xodo em massa" e, portanto, afirmar que ele era revo- da sua postura política. Ent ão, até certo ponto, escrevendo com Sayad em 1964,
lucion ário pela própria natureza era uma “completa idiotice"55. Bourdieu ten- Bourdieu concebia a revolu ção como algo inevitável e especulava mesmo sobre
tara pintar outro quadro com seus dois livros: Os desenraizados36 (escrito com a possibilidade do socialismo, ao passo que Fanon estava mais preocupado com
Sayad e que abordava a crise da agricultura tradicional ) e Trabalho e trabalha - o equilíbrio dos interesses sociais expressos no conflito e com o tipo de ordem
dores na Arg élia51 (o qual tratava do contexto urbano argelino) . Bourdieu sim- social que daí viria. Essa n ão era a perspectiva de um acad ê mico distanciado,
plesmente desconsiderou as experiências vivenciadas por Fanon em sua pr á ti
ca como psiquiatra e em seu trabalho com a FLN. Com efeito, Fanon estava
- nem mesmo de um acadêmico engajado; essa era a visão que se tinha a partir
das frentes de batalha de uma guerra violenta.
muito atento à discrimina ção contra o campesinato argelino, tendo inclusive
feito trabalho de campo com seus pró prios recursos entre os cabilas 58. Ele
considerava que a rebelião instintiva dos camponeses advinha precisamente da Separa çã o : trajet ó rias invertidas

expropriação de suas terras o que o próprio Bourdieu reconhecia como algo
que provocaria “milenarismos revolucion á rios e utopias mágicas".

Como era de esperar, Pele negra, máscaras brancas61 livro de Fanon escri-
Mas o ponto em que Fanon e Bourdieu realmente divergiam não era quan-
to à caracterização do campesinato, mas quanto ao papel dos intelectuais na —
- to em 1952 quando ele ainda estava na França é o mais próximo de Bourdieu.
Oriundo de uma família aspirante à classe m édia da Martinica , a visã o que
revolu ção. Na ótica de Fanon, os intelectuais exerceriam papel chave na dis
-
ciplina, doutrinação e canalização das erupções espont â neas do campesinato.
- Fanon tinha de si mesmo como cidadão francês era totalmente frustrada pelo
racismo sofrido na metrópole . Pele negra, máscaras brancas é a an álise psi-
Como vimos nos capítulos anteriores, Bourdieu condenou ao desprezo a ideia cológica e sociológica da natureza cotidiana do racismo, do entrelaçamento do
do intelectual orgâ nico. Para ele, os intelectuais enganavam a si mesmos e racismo com a sexualidade, das estratégias frustradas de superar o racismo ,
àqueles que pretendiam representar quando imaginavam poder cruzar o pro
fundo abismo que separa seu habitus do habitus dos indiv íduos dominados.
- enfim, das mulheres e dos homens negros rejeitados pela sociedade branca da
qual eles, entretanto, desejavam participar. O livro termina com uma observa-
Quer admitam isso ou n ão, os intelectuais que se autoproclamam os represen- çã o universalista, buscando a superação do racismo , mas n ão apresentando
tantes dos interesses do povo estão, na verdade, manipulando o povo e advo caminhos para atingir isso. Transferindo-se para a Argélia, Fanon encontrou
-
gando em causa própria — enquanto mera fração dominada da classe domi-
nante. Esse di álogo entre intelectuais radicais vindos das cidades “com a
na luta pela libertação nacional a possibilidade de alcançar aquele objetivo. Eis
a luta revolucionária dos marginalizados; uma luta com aspirações humanitá-
pol ícia no encalço deles" e o campesinato
—“essas massas h ábeis do povo rias bem diferentes das ambições da burguesia negra incipiente que só alme-

que sã o rebeldes por instinto"59 seria pura fantasia para Bourdieu ! O que java substituir a classe dominante branca —aspirações que reproduziam as

124 125
O MARXISMO ENCONTRA B O U R D I E U v .
C O L O N I A L I S M O B R E V O L U ÇÃ O * F A N O N E N C O N T R A B O U R D I E U
:
\ I
\
mesmas patologias descritas por ele no livro. Em outras palavras, Os conde -
i ç a histórica ocorreria então por meio da inexplicá vel metaf ísica da diferen -
nados da Terra apresenta a solu ção para aqueles problemas aparentemente
insol ú veis descritos em Pele negra, máscaras brancas. £
V

I

ciação o protótipo da teoria da modernização. Fanon , por outro lado, par-
tiu do mecanismo psicossocial que reproduzia a ordem racial para terminar
Curiosamente, esse último livro guarda determinada semelhan ça com propondo um projeto de transformação social por meio da derrubada do ra-
Bourdieu, no que se refere à incompatibilidade do habitus formado na Mar- cismo e do colonialismo.
tinica com a ordem racial da França. Fanon analisou as solu ções frustradas Talvez possamos afirmar em tom de reconciliação que o pessimismo críti -
I
por essa incompatibilidade: a populaçã o negra procurava ser mais francesa I co expresso por Bourdieu corresponde melhor ao nosso mundo pós-socialista
que os pró prios franceses por sua identificaçã o exagerada com o opressor; que eclipsa todas as alternativas ao capitalismo, ao passo que o otimismo re-
a busca pela superação dos “estigmas raciais’' por meio de vínculos sexuais volucionário representado por Fanon se encaixava melhor naquele mundo pós-
com parceiros tomados do grupo racial dominante , com as rejei ções e os colonialista em que todas as alternativas ainda estavam abertas. Mas, em um
conflitos que tais estrat égias provocavam dentro do grupo racial dominado n ível mais profundo, os dois autores sustentaram concepções opostas acerca
etc. A m á conexã o do habitus com o campo era o ponto chave da an álise de
-
Bourdieu sobre a mudan ç a social , ao passo que, para Fanon , o abismo entre
I
do intelectual ( tradicional versus orgânico)
personificaram de in ú meras maneiras.
concepções que eles mesmos—
as expectativas e as oportunidades , entre as aspirações e as possibilidades
í
conduziriam n ão à transforma ção social, mas à alienaçã o e à reprodu ção da
domina ção. Apenas uma violenta dominaçã o colonialista desencadearia as
Notas
lutas raciais e as lutas de classe necessá rias à transformação social. Fanon com
sua psicologia lacaniana ia muito mais fundo na psique racial que Bourdieu , 1 Apud Le Sueur, 2001 , p . 252.
com sua mecâ nica formaçã o do habitus pelo obscuro processo de inculcação 2 Idem , op. cit., 2001.
das estruturas da sociedade62. Ironicamente, o relato de Fanon sobre a opres- 3 Fanon , 1963.

sã o racial como domina ção simbólica é muito mais rico que o oferecido pelo I .
4 Bourdieu , 1990a , p. 7 Ed . brasileira , 1987, pp. 15 6. -
pró prio Bourdieu — que foi quem , afinal , cunhou aquele conceito.
A obra de Fanon desloca-se da reprodu ção da dominação para a transfor-
í
5 Idem , 1977.
6 Idem , 1990c .

mação da sociedade, ao passo que Bourdieu toma o caminho inverso. Seus


! 7 Idem, 2001 b.
8 Bourdieu e outros, 1963.
primeiros estudos da Argé lia discorrem sobre a dominação colonial e suas 9 Bourdieu e Sayad , 1964. As tradu ções em ingl ês às quais eu me refiro são dos livros Os arge -
consequ ê ncias para os diferentes grupos sociais, enquanto seus ú ltimos tra linos (1962) e Argélia, 1960 (1979) (edição reduzida da versão francesa Trabalho e trabalha -
- dores na Arg élia de 1963).
balhos são devotados à recriação de uma sociedade cabila m ítica
porque separada de qualquer contexto histórico. Os principais conceitos usa
— m ítica
-
10 Fanon , 1963.
11 Bourdieu , 2007.


dos por Bourdieu para analisar o capitalismo francês habitus, capital, poder 12 Fanon, 1967 .
simbólico, desconhecimento, classificaçã o e mesmo campo foram primei -

ramente desenvolvidos no estudo funcionalista sobre as trocas de dádivas e
13 Bourdieu , 1961.
14 Idem , 1962.
15 Fanon , 1963.
sobre a organização da casa cabila63. Dessa forma , foi sua concepção rom â n-
16 Bourdieu , 1961 , p. 146.
tica da Argélia o que forneceu a Bourdieu os conceitos para a abordagem do 17 Fanon, 1963 , p. 36. Ed . brasileira , 1979, p . 26.


capitalismo avançado sem querer saber como isso se aplicaria à reprodução
das estruturas da sociedade. Portanto, Bourdieu começou com o estudo da
18 Idem , 1963, pp. 38-9. Ed. brasileira , 1979 , p. 28.
19 Bourdieu , 1961, p. 151.

— —
transformação social o temperamento revolucion á rio da classe trabalhado-
ra e das lutas anticoloniais mas terminou com uma an á lise meramente
t
I
í
20 Fanon , 1963, p. 42. Ed. brasileira , 1979, p . 31.
21 Idem , op. cit., p. 43. Ed. brasileira, op. cit., p. 32.
22 Bourdieu, 1962, p. 134.
funcionalista e cética sobre as possibilidades dessa transformação. A mudan- l
23 Idem , op. cit ., p. 188.
I
126 127
m
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU .
COLONIALISMO £ REVOLU ÇÃ O * MA/ OW ENCONTRA BOURDIEU

i
24 Nas Meditações pascalianas (2000), Bourdieu fala da dificuldade de modificar o habitus,
I
-.
59 Fanon, 1963, p . 127. Ed . brasileira, 1979, pp. 104 5
exigindo a incorporação de in ú meras práticas sociais. Aqui , Fanon está dizendo a mesma 60 Eis uma questão intrigante que nos levaria para muito alé m dessa discussão: saber se Fanon
coisa: a intemalização da opressão é tão profunda, que o colonizado só pode transformá-la 5
í -
como porta voz da FLN era realmente um intelectual “org â nico”.
por meio da viol ência. 61 Fanon , 1967.
25 Bourdieu, 1961, p. 146. 62 Quando o habitus est á em oposi ção ao campo, ou ele se adapta e faz da necessidade a sua
26 Fanon, 1963, p . 37. Ed. brasileira , 1979, p, 27 . maior virtude , ou ele n ão se adapta e o campo é desafiado . H á pouca consideração , muito
27 Bourdieu , 1961, p. 153. P menos teoria , sobre a din â mica interna da psique nesses casos. Trata-se aqui de uma caixa-
.
28 Idem, op cit., p. 162. preta evocada para explicar os comportamentos discrepantes ou desviantes.
29 Fanon, 1963, p. 94. Ed. brasileira, 1979 , pp. 73-4. 63 Aqui, é claro , o modelo vem de As formas elementares da vida religiosa , em que Durkheim
.
30 Idem , op cit ., p. 44. Ed . brasileira , op. cit ., p. 33. afirma que os fen ô menos simples revelam a fisionomia subjacente dos fen ô menos com -
31 Bourdieu , 1961, p. 172. plexos.
32 Fanon , 1963, pp. 204-5. Ed. brasileira , 1979, p. 167.
33 Bourdieu , 1961, pp. 192-3. í-

Escrevendo com Sayad em 1964, Bourdieu analisou as possibilidades do socialismo em termos


muito mais familiares a Durkheim. Eles lançaram d ú vidas acerca da viabilidade do socialismo
auto-organizado, descentralizado e baseado na organização autónoma e camponesa das fazen -
das abandonadas pelos colonizadores , assim como temiam a hipótese do socialismo centrali
zado e autoritário, imposto de cima para baixo. Tal como Fanon , eles esperavam por uma li-
-
deran ça pedagógica e receptiva às necessidades vindas de baixo. Porém, os autores
facilmente recorreram à heran ça cultural da tradição para explicar a regressão econ ómica e
pol ítica argelina.
34 Idem , 1962, pp. 117 e 119-20. t
35 Lemer, 1958 .
36 Bourdieu, 1979, p. 62.
37 Idem, op. cit., p. 63.
38 Idem , 1984.
39 Ver Bourdieu, 1979, p. 62.
40 Silverstein , 2004.
-
41 Bourdieu, 1962, pp. 142 4.
42 Geertz, 1973.
43 Inkeles , 1974.
44 Shils, 1981.
45 Fanon , 1963.
46 Idem, 1963, p. 38. Ed. brasileira, 1979, p. 28. í
47 Idem, op. cit ., pp. 108-9. Ed. brasileira, op. cit., p. 90.
48 Idem , op. cit., p . 109. Ed. brasileira, op. cit., p. 91.
49 Idem, op. cit., p. 175. Ed. brasileira, op. cit ., p. 147.

-
50 Idem , op. cit., p. 165. Ed. brasileira, op. cit ., pp . 136 7.
51 Idem , op . cit ., p. 163. Ed . brasileira , op. cit ., p. 135 .
52 Idem, op. cit., p. 154. Ed. brasileira , op. cit., p. 128.
53 Bourdieu, 1962, p. V.
54 Apud Le Sueur, 2001, p. 284.
55 Ibidem .
56 Bourdieu e Sayad , 1964.
57 Bourdieu e outros, 1963.
58 Ver Macey, 2000, pp. 134-6.
!

128 129

JL
#
;c

í.
.

f-
:
-
í
i
:?

CAP í TULO v
AS ANTINOMIAS DO FEMINISMO :
BEAUVOIR ENCONTRA BOURDIEU

Se o princ ípio acad ê mico da sua “ voca çã o” liter á ria , das suas
“ escolhas” emocionais e mesmo da rela ção delas com sua
pr ó pria condi çã o feminina , tais como apresentadas a n ós por
Toril Moi , teve poucas chances de aparecer em Simone de
Beauvoir , é porque ela foi privada disso tudo pela filosofia
de Jean -Paul Sartre , para quem ela delegou , por assim dizer ,
sua capacidade de produzir filosofia pr ó pria. Eis que n ã o
h á melhor exemplo da viol ê ncia simbó lica constitutiva do
relacionamento tradicional ( patriarcal ) entre os sexos que o
fato de ela ter fracassado em aplicar sua an á lise das rela ções
entre homem e mulher a seu pr ó prio relacionamento com
Jean - Paul Sartre .

!
Pierre Bourdieu i

Simone silenciada

Como vimos nos capítulos anteriores sobre Fanon e Gramsci, Bourdieu rara-
mente mencionava , ainda mais raramente endossava e decerto jamais exami-

nava os trabalhos daqueles que tinha por antagonistas pelo menos nunca em
p ú blico. Conceder-lhes espaço e dedicar-lhes atenção , é claro, s ó serviria para
i

reconhecer e legitimar as contribuições desses antagonistas. Com relação àque-

131
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU AS ANTINOMIAS DO FEMINISMO : BEAUVOIR E N C O N T R A BOURDIEU

les que admirava ou reconhecia, tais como Sartre e Foucault, Bourdieu os lo- Beauvoir jamais cometia o equ ívoco de universalizar ou de generalizar sua
calizava dentro do campo acadêmico e, dessa forma, reduzia suas contribuições própria situação como intelectual; ela reconhecia qu ã o diferente e pesado era
a conjuntos particulares de interesses ou à inconsciente illusio do campo tudo
isso tomando o má ximo de cuidado para n ão se comprometer e n ão se identi-
— o fardo das outras mulheres, acorrentadas à domesticidade. Em outras pala -
vras , Bourdieu evoca Beauvoir como v ítima da dominação simb ólica sartria-
ficar ele mesmo com tal campo. Essas s ão tá ticas de distin ção pelas quais al- na . Daí em diante isso se transforma em uma perfeita desculpa para que
gu é m silencia seu inimigo, torna-o invisível e, quando isso não é possível,
transforma o antagonista em um outro sem valor e indigno de atenção.
também Bourdieu silencie Beauvoir — *
tampouco se referindo às obras dela
como cl ássicos fundamentais do feminismo contemporâ neo. Sendo assim ,

Essas estratégias de silenciamento e de reconhecimento que, sem d ú vi
da, não eram totalmente conscientes , mas estavam profundamente incrustadas
- Bourdieu sancionou conscientemente e deliberadamente a mesma dominação
simbólica que ele denunciou .
no habitus acadêmico de Bourdieu
—ganham total destaque em seu tratamen -
to da dominaçã o masculina e especificamente no silenciamento que ele impõe
É claro que Bourdieu não estava sozinho nesse processo de banimento,
como o pró prio Toril Moi7 mostra - nos bem . Quando O segundo sexo foi

a Simone de Beauvoir. Em A dominação masculina 2 livro que é cheio de publicado pela primeira vez em 1949 , ele se tornou um escâ ndalo nacional
referê ncias às in ú meras correntes do feminismo da segunda geração Bour-
— —
imediato tanto entre as feministas como entre os conservadores. O p ú bli-
dieu só reservou uma nota de rodapé a Beauvoir:

co sentiu-se ultrajado pela franqueza com que Beauvoir a principal inte-
Pode-se retirar desta evocação que as formas específicas da dominação masculina
lectual da França àquela época
—tratou da domina ção masculina e da cum-
plicidade feminina . Todo mundo parecia incriminado naquela implac á vel
assumem na estrutura escolar o que ela pode ter da sua aparê ncia abstrata , segundo
acusação da opressã o sobre as mulheres . Com frequ ê ncia, as feministas tê m
Toril Moi, na sua an álise das representações e das classificações escolares, por meio das
quais a influ ência de Sartre se impôs a Simone de Beauvoir 3.
demonstrado desagrado ao se referir aos trabalhos de Beauvoir
importando o quanto o feminismo deve a eles. O segundo sexo tornou - se um

pouco

trabalho sacrílego, com indesejá veis revelações , cuja leitura só se fazia de-
Partindo dessa nota insignificante que descreve Beauvoir como v ítima
baixo do cobertor. Plagiá -lo, tudo bem ; mas consider á -lo seriamente signi -
inconsciente da dominação simbólica exercida por Sartre, e indo para a tra-
ficaria manchar sua própria reputação como intelectual e/ou feminista . Por
dução francesa do livro The making of an intellectual woman4 de Toril Moi ,
mais influente que tenha sido para o feminismo da segunda geração , frequen-
n ós encontramos um pref ácio escrito por Bourdieu com o seguinte t ítulo ,
temente, as homenagens a Beauvoir foram feitas em surdina .
acompanhado de complacê ncia : “Apologia para uma mulher obediente ”. Ali
Bourdieu resumia os dois primeiros capítulos do livro de Toril Moi, nos quais —
Por que ent ão Bourdieu o advogado da sociologia reflexiva compac- —
tuaria com essa amnésia coletiva? O fato é especiaímente surpreendente, visto
Beauvoir é situada em sua relaçã o com Sartre e dentro do campo intelectual
que o silenciamento das mulheres é justamente a principal estratégia da domi -
francês. Como vimos na epígrafe anterior, Bourdieu n ã o estava interessado
nação que ele esclareceu e , pelo visto, condenou em A dominação masculina.
em O segundo sexo5 ou na interpreta çã o de O segundo sexo feita por Toril
Na seção intitulada “A masculinidade como nobreza”, Bourdieu falava da “ vir-
Moi; ele estava interessado no comportamento “obediente” de Beauvoir em
tual negação da existência (feminina)” pela qual “o mais bem -intencionado
relaçã o a Sartre. Bourdieu afirma que ela n ão analisou sua pró pria relação
dos homens (dado que a violência simbólica nunca opera no n ível das intenções
com seu cô njuge fil ósofo. Porém , quando lemos O segundo sexo, seja o ca-
conscientes) pratica atos discriminató rids que excluem as mulheres, sem nem
p ítulo sobre o amor, seja o capítulo sobre a independ ê ncia feminina, vemos
se colocar o problema de posições de autoridade [...]”8. Ele, portanto, denuncia
que ali Beauvoir estava analisando precisamente seu relacionamento ( verda-
o silenciamento das mulheres, mas n ão hesita em evocar a suposta dominação
deiro ou imaginado) com Sartre . Seu premiado romance Os mandarins6 é a
sartriana sobre a filosofia de Beauvoir para justificar a supressão que ele pró prio
dissecação quase expl ícita dos dois principais relacionamentos vividos pela
empreende da visão beauvoiriana da domina ção masculina . Bourdieu conspi-
autora : o primeiro com Sartre e o segundo com o poeta americano Nelson
ra com Sartre para dominarem simbolicamente Beauvoir; e, com isso, ele mes-
Algren. Além disso, mesmo nos momentos em que empreendia tais análises ,
mo se vê enredado por sua dominação simbólica.

132
133

.
-A
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU AS ANTINOMIAS DO F E M I N I S M O / BEAUVOIR ENCONTRA BOURDIEU

Isso já seria bem ruim, poré m, Bourdieu estaria ao menos seguindo a mul
tid ão ao expurgar os trabalhos de Beauvoir do campo intelectual reconhecido.
- Eis a paródia da concepçã o de Beauvoir de liberdade
que, como mostrarei adiante , perpassa todo O segundo sexo ;

uma concepção
uma concepção
Mas ali Bourdieu foi duplamente conden ável , pois Beauvoir não somente an - baseada no reconhecimento mú tuo do outro .
tecipou bastante o feminismo da segunda gera ção , como também antecipou Neste capítulo, portanto, eu desejo restaurar e restituir a originalidade a
muito daquilo que o pró prio Bourdieu diria sobre a dominaçã o masculina 50 Simone de Beauvoir, mostrando que as categorias e argumentos de Bourdieu
anos mais tarde. E mais ainda: ela fez isso dando detalhes mais ricos, sutis, n ão só já existiam antes, como também foram elaborados com profundidade
complexos e, como veremos adiante, sempre buscando os caminhos para a muito maior por ela. Eu pretendo mostrar ainda o quanto Beauvoir o ultrapas-
superação da dominação masculina . Nenhuma citação de O segundo sexo de sa e o transcende, ao ter acenado para a liberdade que est á além daquela rela-
Beauvoir é encontrada em A dominação masculina de Bourdieu, embora exis - cionada à dominaçã o masculina . B tudo isso a despeito de o livro dela ter
tam ali numerosas referências ao feminismo da segunda geração —
especial- precedido o dele em 50 anos11.

mente o feminismo estadunidense que tanto deveu a Beauvoir.
Em poucas palavras, o argumento deste capítulo é que A dominação mas-
culina constitui uma pálida reprise das ideias já contidas em O segundo sexo9 . A dominaçã o simb ólica tem sexo ?
Essa convergência n ão deveria causar surpresa. Acima de tudo, tanto Bourdieu
como Beauvoir foram inimigos implacáveis da dominação, sempre buscando Excetuando-se a importância estratégica de realizar uma incursão em um tema
revelar seus contornos escondidos ou manifestos . Ambos foram intransigen - tão central ao pensamento social contempor â neo, por que outro motivo teria
tes na den ú ncia das mitologias que naturalizavam e eternizavam a dominação. Bourdieu se interessado pela problem á tica da dominação masculina ? Ele via
Os dois se diziam inimigos declarados das identidades partid á rias , de todas na “dominaçã o masculina, do modo como é imposta e vivenciada, o exemplo
as modalidades de essencialismo e, por isso, da ê nfase na diferença homem- por excelência dessa domina ção paradoxal e resultante daquilo que eu chamo
mulher proposta pelas feministas. Ambo$ denunciaram todas as tentativas de de dominação simbólica: a viol ê ncia invis í vel , insens ível e suave a suas pró-
romantizar a resistência dos dominados ou da cultura dominada, porque res- prias v ítimas, a qual se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas
gatar e celebrar as peculiaridades irredut íveis das mulheres ou de quaisquer da comunicação, do conhecimento e do reconhecimento ( mais precisamente
outros grupos oprimidos a partir do â mbito da sua dominaçã o significaria do desconhecimento) , ou , em ú ltima inst â ncia, pelas vias do sentimento” 12.
apenas reafirmar a domina ção . Em vez disso , os dois insistiram que a domi- A dominação simbólica n ão é quest ão de combinar violê ncia e consentimen -
nação so seria superada quando se conferisse aos dominados o acesso ao to. Ela opera em uma instâ ncia mais profunda por meio da sintonia da estru -
universal. tura social com aqueles “esquemas de percepçã o e de aprecia ção” que Bour-
Essa busca do universal colocou Beauvoir em rota de colisão com as femi-
nistas que afirmavam que seu universalismo era “masculinista”. Isso também
dieu chamou de habitus — eles mesmos sendo o produto da inscri çã o das
estruturas sociais nos corpos individuais:
ofereceu bastante munição a Bourdieu que se apropriou dessa condenação das
-
feministas sem sequer analisá-la melhor. Referindo se à atração de Beauvoir N ão se pode , portanto, pensar essa forma particular de dominaçã o sen ão ultrapas-
pela filosofia, Bourdieu escreveu: sando a alternativa da press ão ( pelas forças) e do consentimento (às raz ões), da coerção
mecâ nica e da submiss ão volunt á ria, livre, deliberada ou at é mesmo calculada . O
Ela ama esse destino, tal como ela amaria quem personificasse a concretiza ção efeito da dominação simbólica (seja ela é tnica , de gê nero, de cultura , de l íngua etc . )
daquilo que ela almeja ser. Normalmente — institu ído pelo rito da competição um
super-homem socialmente autorizado a desprezar as castas inferiores [... ] um fil ósofo
se exerce não pela lógica pura das consciê ncias cognoscentes , mas por meio dos es -
quemas de percepção, de avaliação e de açã o que são constitutivos dos habitus e que

seguro de se achar ú nico seguro a ponto de destruir pelo simples prazer de encan-
tar ou de seduzir (o que dá na mesma ) o projeto de Simone de Beauvoir 10.
fundamentam , para alé m das decisões da consci ê ncia e dos controles da vontade , uma
relação de conhecimento profundamente obscura a si mesma. Assim , a lógica parado -
xal da dominação masculina e da submiss ão feminina, da qual se pode dizer ao mesmo

134 135
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU A S ANTINOMIAS D O FEMINISMO: BEAUVOIR ENCONTRA BOURDIEU

tempo e sem contradi ção que é espontâ nea e extorquidat s ó pode ser compreendida cesso totalmente consciente? Mas, por outro lado , pode-se dizer que tal cons-
se nos mantivermos atentos aos efeitos duráveis que a ordem social exerce sobre as ciência não haveria de alterar sua prá tica como mulher. Beauvoir n ão conseguia
mulheres (e os homens). Ou seja , às disposições espontaneamente harmonizadas com escapar do dilema de servir de cú mplice da dominação masculina, tal como o
essa ordem que se impõe 13. livro Os mandarins15 — o romance sobre sua vida dupla: uma junto aos inte-

O peixe está tão acostumado à água na qual ele nada e sem a qual ele sequer
lectuais parisienses e outra junto ao amante estadunidense, Nelson Algren —
tornara evidente .
poderia existir que n ão consegue reconhecer sua existê ncia e a toma como algo Beauvoir era bem consciente da profundidade da inculcação de seu habitus
dado , natural e eterno. Sendo assim , como algu é m poderia romper com tal feminino. O segundo sexo enfatizou justamente o qu ão profundo e poderoso
ilus ão ? Como Bourdieu conseguia enxergar as estruturas da dominação que ele era : “As amarras que unem uma mulher a seus opressores n ão s ão compa -
são invisíveis às outras pessoas comuns? E o que dizer da revelação da domi- ráveis a nenhuma outra cadeia. A divisão dos sexos é um fen ômeno biológico;
na çã o masculina feita pela tradiçã o feminista —
da qual Bourdieu tomara n ão é um evento histó rico” 16. Portanto , a dominação masculina é facilmente
empréstimos t ão livremente? apresentada como natural , inevitá vel e eterna: “Elas n ão tê m passado , n ão t ê m
Ainda retornaremos a essas questões mais tarde. Por ora, seria interessante histó ria, n ão têm religião própria; e elas n ão possuem aquela solidariedade no
ler o próprio relato de Simone de Beauvoir sobre como ela descobriu a domi- trabalho e nos interesses que une o proletariado ” 17 . Elas n ão tê m uma imagem
nação masculina. Redigindo suas memórias em 1963, ela relembra o momento de si mesmas como uma coletividade subjugada: “Quando o homem faz da
da revelação. Isso foi em 1946 , enquanto travava uma conversa com Sartre mulher o seu outro , ele pode esperar ent ão que ela manifeste tendê ncias pro-
sobre suas mem órias: fundamente enraizadas à cumplicidade” 18. Quer dizer, Beauvoir via a domina-
ção masculina como uma modalidade específica de dominação , diferente da
Eu percebi que a primeira questão que surgia era: o que significava ser mulher para dominação fundada na classe social, ao passo que Bourdieu a via como o pro-
mim ? A princípio, eu pensava que podia dispor disso à vontade. Eu jamais experimen - tótipo que guardava o segredo escondido da dominação fundada na ciasse
tara sentimentos de inferioridade; nunca ningu é m havia me dito: “ Você pensa dessa
forma porque é mulher” . Minha feminilidade nunca fora incómoda para mim de ne
,

-
social, como sendo dominação simbó lica. Contudo, para ambos

—e este é o
ponto principal aqui , a dominação masculina era a forma extrema da domi -
nhuma maneira. “Para mim” — disse eu para Sartre — “ você pode até dizer que isso nação: dominação n ão reconhecida como tal ou , pelo menos , n ão reconhecida
. nada conta ”. “Mantidas as condições , se você fosse criada da mesma forma que um
em sua profundidade.
garoto, que um homem teria sido , você examinaria isso mais detidamente”. Eu prestei
Por fim, pode-se supor que a repugn â ncia desencadeada pelo livro O se -
aten ção naquilo e foi revelador: essa linguagem é a linguagem masculina. Minha in -
gundo sexo , bem como o subsequente silenciamento em relação a ele , diz
f â ncia havia sido embalada por mitos criados por homens perante os quais eu n ão
muito sobre as camadas do inconsciente que ele remexeu e perturbou , e a
reagia da mesma forma que teria feito se fosse um garoto , um homem. Eu estava tão
interessada nessa descoberta que abandonei meu projeto de uma confissão pessoal
resistência — tanto entre os dominantes como entre as dominadas —ofere -
para devotar todas as minhas atenções à pesquisa da condiçã o das mulheres em sen - cida para reconhecer suas disposições profundamente internalizadas. Assim ,
tido amplo . Eu fui à Biblioth èque Nationale e o que eu pesquisei l á foi a mitologia da como ainda veremos em detalhes, o tratamento dado por Beauvoir à domi-
feminilidade14. na ção masculina inclui a ideia de domina ção simbólica em Bourdieu , mas
ela també m procura transcend ê-la. Para demonstrar meu argumento principal ,
Certamente, por esse ato consciente de vontade, Beauvoir apontava para as segundo o qual n ão h á nada em A domina ção masculina que j á n ã o estivesse
origens do poder dos homens. Tudo isso estava posto na forma de esboço em descrito de uma forma mais elaborada em O segundo sexo , eu estruturei as
O segundo sexo , no qual ela procurou desmascarar a arquitetura e a arqueolo- seções seguintes acompanhando as mesmas linhas traçadas pelo livro A do -
gia da dominação masculina. Ora, seria possível afirmar que esse confronto minação masculina.
com aquilo que deveria ser o n ão conhecido e o mal-entendido fosse um pro-

136 137
O MARXISMO ENCONTRA B O U R D I E U AS ANTINOMIAS DO FEMINISMO : BEAUVOIR E N C O N T R A BOURDIEU
í

A naturaliza çã o ou a invers ão 1 A psican álise foi o maior avanço sobre os argumentos puramente biológicos
que afirmavam que determinadas partes do nosso corpo, a saber, nossos ó rgãos
da rela çã o entre causa e efeito
genitais, definem nosso destino. Pois o corpo nunca existe em si mesmo, mas
\
como algo que vive através de um sujeito que é o repositório de experiências.
No coração da dominação masculina pulsa sua naturalização e a invers ão da
Em um lampejo subjetivista, Beauvoir escreveu: “ N ão é a natureza que define
relação entre causa e efeito que a acompanha . Se as diferen ç as entre homens !
a mulher; é ela que se define sozinha , ao lidar com a natureza por conta própria
e mulheres fossem inerentes às diversas espécies, então, n ós poderíamos afir-
em sua vida emocional” 20. Embora a psican á lise ofereç a um quadro teó rico
mar que a divisão sexual do trabalho reflete as diferen ç as nas habilidades e
dentro do qual se pode situar a din â mica entre os sexos , ela n ão explica nem
talentos naturais. Poderíamos afirmar ai.nda que as mulheres s ão naturalmente
emotivas e que os homens s ão naturalmente racionais. Mas o que se presume —
as origens nem a persistê ncia da dominaçã o masculina porque est á baseada
na hipótese de um provedor patriarcal . É por isso que no cap ítulo seguinte

ser ali a causa as diferenças naturais entre homens e mulheres é, na rea —
lidade, o efeito da ação de forças históricas de socialização. Por isso, Bourdieu
- Beauvoir recorre ao materialismo histórico , pois a forma da dominação mas-
culina e sua possível superação n ão poder ão nunca ser entendidas fora de um
escreve:
certo contexto econ ómico que, por sua vez, oferece oportunidades e possibili -
As aparências biol ógicas e os efeitos bem reais que esse longo trabalho coletivo
dades distintas para homens e mulheres. Mas Beauvoir rejeitou també m a te -
de socialização do biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nas oria engelsiana segundo a qual a propriedade privada situava se na raiz da -
dominação masculina , pois , segundo a autora, essa teoria falha ao lidar com a
mentes conjugam-se para inverter a relaçã o entre as causas e os efeitos , o que nos faz
ver a constru çã o social naturalizada ( os “g ê neros ” como habitus sexuais ) como o
-
fundamento in natura da divis ã o arbitr á ria que est á no princípio n ão apenas da reali

formação dos pró prios indiv íduos homens e mulheres
fazer com que a divis ão sexual do trabalho funcionasse como algo

responsá veis por
hierá rquico.
dade , mas também da representação da realidade — coisa que por vezes se impõe à Portanto, Beauvoir rejeitou tanto o “ monismo sexual ” de Freud como o “mo-
própria pesquisa 19. nismo econ ó mico” de Engels , tendo reivindicado a integração dessas teorias
às demais conquistas da biologia:
Beauvoir revela detalhes ainda mais sutis. Com efeito, a parte I de O
segundo sexo, intitulada de “Destino”, dedica sucessivos capítulos aos fun - Na nossa tentativa de desvendar a mulher, n ós n ã o rejeitaremos determinadas
contribuições da biologia, da psican álise e do materialismo hist ó rico . Poré m , n ós
damentos biol ógicos, psicológicos e materialista -hist ó ricos da dominação
masculina . Embora houvesse aqueles que fundassem a dominação masculina sustentamos que o corpo , a vida sexual e os recursos da tecnologia só existem concre-
tamente , para muitas pessoas, na medida em que são captados na perspectiva total da
nas diferen ças biológicas entre homens e mulheres, apó s examinar as evidê n - sua existê ncia 21 .
cias da biologia com requinte de detalhe, a autora considerou essa perspectiva
insuficiente. É claro que as diferen ças biológicas existem e que as mulheres
experimentam seu corpo de uma forma muito diversa da que o fazem os ho- Portanto, Beauvoir desprezava os fundamentos cient íficos da perspectiva

mens experiê ncias essas, poré m , que n ão vê m à tona automaticamente, mas
s ão influenciadas pela sociedade e pela educação. Para a mulher, seu corpo
segundo a qual as mulheres estavam destinadas a ser o outro dos homens ,
mostrando que tais fundamentos eram falaciosos. Mas ela també m recorria a
é a entidade alien ígena que está alé m do seu pró prio controle , ao passo que essas teorias para investigar as maneiras pelas quais homens e mulheres se
o homem se sente em casa em seu corpo. No final das contas, as diferen ças produziam reciprocamente em uma relação hierá rquica de dominação; e como
existem, mas elas não conseguem esclarecer a submissã o das mulheres, a qual essa relação possuía determinantes tanto histó ricos como biol ógicos.
é o produto cumulativo das forças econó micas e sociais, sobretudo das forças e
relações de produ ção e de reprodu ção. A biologia n ão cria a submissão, mas a
submiss ão , pelo menos em parte, produz a biologia. E biologia n ã o significa
profecia!

138 139
í
E
0 MARXISMO ENCONTRA BO UR O / EU AS ANTINOMIAS D O FEMINISMO : BEAUVOIR E N C O N T R A BOURD / EU
$
'

1
O hist ó rico trabalho da nega çã o da hist ó ria Para justificar sua própria incursão nos estudos de gênero, Bourdieu reivindicou
como sendo sua contribuição a ênfase na reprodução da estrutura da dominação
1 masculina fora do âmbito doméstico e em instituições outras como a Igreja,
Para Bourdieu , a naturalização da dominação masculina devia-se ao encaixe ,

,

à congru ência das estruturas objetivas com as estruturas subjetivas, à inculca- o sistema escolar e o Estado ( ele poderia ter inclu ído o mercado) como
ção de um habitus pelas estruturas da sociedade e à harmonização daí resul- se as feministas nunca tivessem explorado essas á reas antes. Por é m , mes-
tante, de forma que a dominação não pudesse ser reconhecida como tal22. Con- mo nesse ponto, O segundo sexo reconhecia muito mais a importâ ncia dessas
tudo , essa congruê ncia e essa harmonia do subjetivo com o objetivo nunca são —
esferas tanto no capítulo “O trabalho e o voto desde a Revolu ção Francesa” ,
espontâ neas, sendo antes o resultado de um longo processo histórico por meio como na parte V do livro, em que Beauvoir descreve a condição feminina.
do qual se produz o efeito da etemização, da naturalização: Tendo narrado a histó ria da domina çã o masculina, a hist ó ria na qual o
homem define a mulher como o outro, Beauvoir pergunta -se então como teria
Isso significa que, para escaparmos totalmente do essencialismo, o importante n ão o homem imaginado a mulher em seus sonhos íntimos ; pois aquilo que as
é negar os invariá veis que fazem parte , incontestavelmente , da realidade histórica: é mulheres parecem ser aos olhos dos homens é um dos componentes constitu-
preciso antes reconstruir a hist ória do trabalho hist órico de negação da hist ória, quer tivos da situação real delas. A parte III de O segundo sexo é intitulada de “ Mi-
dizer, a história da cont ínua (re )criação das estruturas objetivas e subjetivas da domina- tos” e é dedicada à exploração das fantasias que os homens nutrem sobre as
ção masculina que se realiza permanentemente desde que existam homens e mulheres mulheres — fantasias que justificam sua subordinação. Ali s ão descritas as
e peia qual a ordem masculina se v ê continuamente reproduzida através dos tempos. Em —
batalhas travadas pelos homens para realizar conjuntamente, por meio das
outras palavras, estamos falando aqui de uma “histó ria das mulheres” que consiga fazer
aparecer, mesmo à sua revelia, um alto grau de constâ ncia, de perenidade. Se ela quiser

mulheres e contra elas as mulheres , as fantasias que eles permanentemente
criam sobre as mulheres como natureza, carne e poesia . A mulher constitui - se
ser consistente consigo mesma, terá que dar lugar (e sem d ú vida o primeiro lugar ) à ali em um outro, um escravo, uma companheira dos desejos caprichosos dos
histó ria dos agentes e das instituições que concorreram continuamente para garantir homens em busca de sua autorrealização egoísta, um ídolo de culto , uma sim -
aquelas perman ências, ou seja, a Igreja, o Estado, a Escola etc.; cujo peso relativo e ples distração ou recompensa pelas ansiedades provocadas pelo envolvimento
fun ções podem variar conforme as diferentes é pocas23.
deles em uma competição ( nobre ou cruel ) com os demais homens. As mulhe-
res prestam-se a diversas funções aos homens em suas projeções de si mesmos ,
Essa historiografia que Bourdieu recomenda em termos program áticos , Be- em suas limitações e esperanças. Os homens não podem viver sem a mitologia
auvoir já havia tentado escrever nos cinco capítulos da parte II de O segundoc e a realidade femininas. Beauvoir encontra as mais v ívidas expressões dessa
sexo. Ela sabia bem que uma história da mulher devia ser uma histó ria da pro- imaginação masculina na literatura. Ali , ela também sinaliza a possibilidade
dução social da dominação masculina, com sua “naturalização”, “petrificação”
ou aquilo que Bourdieu denominou “desistorização”. O terceiro capítulo de A
de o homem, vendo a mulher como necessá ria à sua existência, definir se pelo -
espelho dela, vislumbrando, també m , na mulher outro ser humano dotado de
dominação masculina , intitulado “ Permanê ncia e mudan ças”, nem se compara vontade própria, com o qual o homem poderá dividir a existê ncia , a iman ência ,
com as ambições, amplitude e realizações de Beauvoir, já em 1949 fortemen- —
te influenciada, para ser exato, pela historiografia problemá tica de Engels, mas
a transcendê ncia.
Com a exceção de sua an á lise da casa cabila, n ã o h á em Bourdieu nada
representando uma enorme conquista, mesmo assim. Podemos adicionar aqui comparável a essa dissecação dos arroubos da criatividade literá ria masculina
uma apropriação feminista das ideias do antropólogo Claude Lévi-Strauss sobre realizada por Beauvoir. Embora o conceito de violência simbólica em Bourdieu
as mulheres como objetos de troca entre homens na persecu ção dos interesses demonstre como os dominados aplicam contra si mesmos as categorias dos
políticos masculinos, bem como a sofisticada an álise sobre como a inversão dominantes, ele n ão explora essa perspectiva dos dominantes em maiores de-
dessa troca mais reproduziria que enfraqueceria a dominação masculina. Be-
auvoir antecipou os trabalhos de Gayle Rubin24 e de Arlie Hochschild 25, cujas
talhes— detalhes que Bourdieu irá simplesmente desconsiderar como sendo
mera ênfase no superficial, na “consci ência”. Mas Beauvoir n ão somente des-
ideias Bourdieu assumiu como se tivessem provindo da mente original deles.
vela os mitos que ratificam e eternizam a dominação, como també m vislumbra

140 141

A
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU AS ANTINOMIAS DO FEMINISMO : BEAUVOIR ENCONTRA B OUR D l EU

aí a possibilidade de sua superação: no momento em que os homens, presos no duz essa criatura intermedi á ria entre o macho e o eunuco que é descrita como fê mea .
laço da sua própria dependência em relação às mulheres, reconhecem que sua Somente a interven ção de uma outra pessoa pode definir o indiv íduo como o outro21.
verdadeira liberdade só poderá ser conquistada com a libertação feminina. A
pesquisa incansável dos fundamentos da dominação masculina nunca chegou Chega a ser doloroso ler a forma como Beauvoir descreve o processo que
a ocultar de Beauvoir as possibilidades da emancipação feminina. Raramente pode ter sido bastante parecido ao da sua própria educação. Ela recorre a v á rias
encontraremos vestígios dessas saídas em Bourdieu. Mas toda vez que a imagi - literaturas para desenvolver uma perspectiva psicodin â mica da maneira pela
nação emancipadora retorna ao terreno do vivido, Beauvoir reencontra a mulher qual a feminilidade é imposta às meninas, as fantasias e ansiedades da segre-
confinada à iman ê ncia. E sua convergência com Bourdieu é restaurada . gaçã o compulsó ria na adolescê ncia e, por fim , os traumas da iniciação sexual .
A partir daí, a mulher é formada. Ela é dolorosamente disciplinada para ser
mulher e feminina .
A produ çã o do habitus sexual Bom ... mas nem sempre... Beauvoir insistia que o processo de socialização
poderia “fracassar ” . Antecipando em 30 anos o trabalho realizado por Nancy
A arqueologia da inconsciência, afirma Bourdieu, precisaria ser completada Chodorow28, ela sugeriu que as mulheres, desde cedo tuteladas por pessoas do
pela compreensão do inconsciente individual, quer dizer, n ós precisamos pro- mesmo gênero, poderiam acalentar lado a lado às predisposi ções heterossexuais
duzir tanto uma ontogenia como uma filogenia* . Também nesse caso, Bourdieu fortes laços com outra mulher que poderiam redundar em relações homosse-
oferece-nos apenas formulações genéricas: xuais. Ela dedica um capítulo inteiro “ À lésbica”: um cap í tulo torturado e

O trabalho ao mesmo tempo sexualmente diferenciado e sexualmente diferenciador


tortuoso — refletindo talvez a pró pria ambivalência da autora —
oscila entre , de um lado, ver a homossexualidade como uma segunda e melhor
no qual ela

de transformação dos corpos, o qual se realiza em parte por meio de sugestão mimética , heterossexualidade, quer dizer, como uma consequ ência inesperada da domi-
em parte por meio de injun ções explícitas e, enfim, em parte por meio de toda a cons- nação masculina e, de outro, ver o lesbianismo como uma sexualidade eman-
tru çã o simbólica da visã o do corpo biol ógico (em especial do ato sexual , concebido cipada e dotada de reconhecimento m ú tuo entre os pares. É claro que na Fran-
como ato dominador, ato possessivo), produz habitus automaticamente diferenciados ça de 1949 nós n ão podemos esquecer que o lesbianismo era uma prática sexual
e diferenciadores. A masculinização do corpo masculino e a feminiza çã o do corpo “proibida”. Até mesmo abordar a questão era um ato de extraordin á ria coragem
feminino — tarefas enormes e até certo ponto intermin á veis , que, hoje mais do que e ousadia; que dirá declarar sua pertin ência ! Poré m , como a época mudou ,
nunca, exigem quase sempre gastos consideráveis de tempo e de esforço determinam
— também Bourdieu se sentiu forçado a incluir, ao que tudo indica, um apê ndice
a somatização das relações de dominação que são, desse modo, naturalizadas26. necessá rio ao seu livro — “Algumas questões sobre o movimento de gays e
Beauvoir dedica a parte IV de seu O segundo sexo aos anos de forma ção da

lésbicas” no qual ele també m oscila entre considerar o movimento GLS ora
como subversivo à dominaçã o masculina , ora como reprodutor das classifica-
mulher: a inf â ncia, a adolescência e a iniciação sexual . Essa parte começa com ções dominantes. Mas Bourdieu simplesmente toma a homossexualidade fe-
a célebre frase pela qual Beauvoir se tornou famosa (e muito mal compreen- minina ou masculina como algo dado , enquanto Beauvoir ao menos nos ofe-
dida): “Ninguém nasce mulher; nós antes nos tomamos mulheres” . receu alguma teorização rudimentar sobre seu surgimento e sua emergência.
Em Bourdieu , os conceitos de socializa çã o e de habitus — a impress ão das
Nenhum determinante biológico, psicológico ou econó mico condiciona a figura
que a mulher humana assumirá na sociedade ; é a civilização no seu conjunto que pro- —
estruturas sociais nos corpos individuais deixam passar todas as ambiguida-
des , contradi ções e resist ê ncias que são tão centrais à an á lise de Beauvoir — e
que eram mais abertas e mais incertas. Em A dominação masculina, as limita -
ções da no ção de habitus tornam-se particularmente claras .
* Ontogenia é o estudo da evolu ção do indivíduo; filogenia é o estudo da evolu ção do grupo ou
da classe. ( N. do T.)

142 143
i\
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU AS ANTINOMIAS DO FEMINISMO: BEAUVOIR ENCONTRA BOURDIEU

A domina çã o e suas adapta çõ es macho. Quase como a l íder de torcida do marido, ela é a esposa pacífica e
protetora de seu homem contra os demais homens , buscando aliviar sua ansie-
Quando a menina se torna mulher e ingressa como adulta na sociedade patriar- dade, tentando compreender a aspereza da ditadura doméstica como a medida
cal , ela enfrenta as estruturas do matrimonio , da maternidade e, com isso, de seu carinho paternal , ou como a reação aos desafios que ele enfrenta. Poré m ,
começa a transição da maturidade para a velhice. A narrativa é sempre deso- acima de tudo, as mulheres amam os homens devido ao poder que eles brandem,
ladora: é a história do enfado, do cansaço, do aborrecimento e do confinamen- devido a esse poder que é negado a elas:
to domésticos. Isolada nesse “ tumulo vivente”, a mulher serve apenas para
“assegurar a mon ótona continuidade da vida em toda a sua contingência” 29. A A socialização diferencial dispõe os homens a amar os jogos de poder, e dispõe as
criança transforma -se no obsessivo centro das aten ções maternas, servindo de mulheres a amar os homens que os jogam ; o carisma masculino é , até certo ponto, o
fonte de ressentimentos e de compensaçõ es para as amarras da sua m ãe30. charme do poder, a sedu ção que a posse do poder exerce por si mesma sobre os corpos

Operando sempre com uma concepção definida da família nuclear e do prove- cujas pró prias pulsões e cujos pró prios desejos são politicamente socializados . A do-
dor masculino, Beauvoir descrevia o escapismo da mulher por meio do adul- minação masculina encontra seus melhores suportes no desconhecimento que favorece
ao dominante a aplicação das categorias de pensamento engendradas pela pró pria re-
tério, das amizades e da comunidade como sendo vias doentias de evasão, cada
qual pavimentada por hipocrisia e falsidade. Eis o quadro da mulher america- -
lação de dominação, o que pode conduzir àquela forma limite do amor faii [amor aos
fatos ] , que é o amor do dominante e sua dominação, a libido dominans ( o desejo do
na dos anos 1960, o qual Betty Friedan retrataria mais tarde no livro A m ística
dominante) que implica a ren ú ncia de exercer em primeira pessoa a libido dominandi
feminina31 — -
um destino contra o qual o movimento feminista rebelar se-ia.
(o desejo de dominar)33.
Beauvoir sabia que a vida doméstica n ão era necessariamente o destino das
mulheres . Embora a escapatória do confinamento e a entrada no mercado de
Beauvoir também já havia dito isso antes , no incr ível segundo cap ítulo da
trabalho fossem a precondição para a libertação, a opressão continuaria seguin-
parte IV de O segundo sexo, intitulado “Mulheres apaixonadas ”, em que ela
.
do as mulheres també m no ambiente de trabalho Ela agora estaria atada à
descreve como as mulheres divinizam os homens, pondo os em um pedestal-
servidão pelo patriarca e empregador. Mas nem pensem que esse era o paraíso
de adoração. O homem torna -se entã o o representante da mulher no mundo
dos homens! Pois , com efeito , assim como Bourdieu assegurava que os domi-
nadores eram dominados por sua domina ção, Beauvoir també m descrevia a exterior: suas vit órias també m são vitó rias dela; suas derrotas també m s ã o
forma como os homens eram oprimidos por sua opressão e acorrentados à -
derrotas dela. Mas ela o idolatra somente para rebaixá lo e conduzi - lo a sua
soberania que tinham que exercer. toca, exigindo all a eterna aten ção do marido. Embora a mulher se realize
Refletindo as mudanças que ocorreram nos 50 anos seguintes, pelas quais atrav és do homem , esse amor por algu ém t ã o poderoso est á fadado ao fracas-
as mulheres tornaram -se mais livres e m ó veis e menos prisioneiras da vida —
so seja porque o homem nã o poderá corresponder às expectativas dela , seja
doméstica, Bourdieu preferiu concentrar- se nos corpos em movimento e na i
porque os desejos dele são caprichosos e inconstantes:
forma pela qual o corpo da mulher se tomou um corpo para os outros, bisbi -
lhotado e autovigiado, gerando ansiedade e insegurança. As mulheres tomaram- Silenciada na esfera do parentesco , destinada ao homem desde a inf â ncia , habituada
se objetos no mercado dos bens simbó licos. N ão é à toa que Bourdieu insistia a ver nele o ser supremo com o qual talvez nunca possa igualar-se , a mulher que n ã o
que a dominação masculina era desprovida de centro e antes se difundia pela puder conter suas reivindicações à humanidade sonhará em fundir-se àqueles indiv íduos
soberanos , em transcender seu próprio ser rumo a algu ém dentre aqueles seres superio-
sociedade toda. Ainda assim, a mulher não era apenas um objeto, porque, i
res. N ão restará outro caminho para fora de si mesma sen ã o se deixar perder de corpo e
mesmo na concepção de Bourdieu , se esconde aí a visão típica do homem. Ele
alma naquele homem que representa para ela o absoluto , o essencial. Visto que ela es-
se inspirou no livro de Virginia Woolf , To the lighthouse 32, para captar as di- 1
tará de qualquer maneira condenada à dependê ncia, ela preferir á servir à quele Deus que
versas maneiras pelas quais a dependência das mulheres em relação aos homens
obedecer a outros tiranos: os pais, o marido, o tutor. Ela acaba por desejar sua escravid ão
as reduz ao papel de coadjuvantes, participando maliciosamente dos jogos do
de forma tão ardente, que essa escravidão aparecerá a ela como se fosse sua verdadeira

144 145

A
m
O MARXISMO ENCONTRA BO U R Dl EU 3 .
A S ANTINOMIAS DO FEMINISMO “ BEAUVOIR ENCONTRA DOURDIEU
1
I
liberdade: ela tentará n ão se abater por sua situação, vendo-a como causa
essencial, para [...] Essa “ilha encantada” do amor, esse mundo fechado e totalmente aut á rquico
aceitá-la sem restrições. Com seu corpo, seus sentimentos e seu comportamento
, ela onde ocorre toda uma série contínua de milagres: o milagre da não violência, que torna
entronizará o homem como valor e realidade supremos; ela n ão se humilhar
á a ningu ém possível a vivência de relações baseadas na total reciprocidade, autorizando o abandono
.
senão a ele O amor tornar-se-á para ela uma religião34.
e a retomada de si mesmo; o milagre do reconhecimento m ú tuo que permite, como dizia
Sartre, “sentir justificada a própria existência” o milagre do desinteresse, tornando

— —
Tais são as tentativas das mulheres à salvação a idolatria amorosa lado possíveis relações desinteressadas, geradas pela felicidade de se fazer feliz, de se en -
a lado com o narcisismo e o misticismo , tentativas para “ transformar contrar no encantamento do outro e sobretudo no encantamento que ele suscita, razões
sua
pris ão em um paraíso de glórias e sua escravid ão em uma liberdade soberana”35 - 39
. inesgotá veis para maravilhar se .
Hoje, essa ideia da mulher enclausurada na vida doméstica soa bem ultrapas
-
sada. E a pró pria Beauvoir reconhecia que “atualmente , o combate d Isso foi exatamente o que Beauvoir elaborou no ú ltimo capítulo á' 0 segun -
á- se de
maneira diferente; ao invés de se pretender pôr o homem em uma prisão, a do sexo:
mulher esforça-se por escapar ela mesma da sua prisão; ela não pretende
re-
baixar e arrastar os homens para os â mbitos da iman ê ncia, mas emergir Emancipar a mulher implica se recusar a confin á - la à s rela çõ es que ela tem
ela
própria rumo à luz da transcendência”36. Ela imaginava ver aí sua -
com o homem , mas n ã o para negar lhe isso ; deixem - na antes ter uma exist ê ncia
transcendên-
cia, mas esta se reverteria no agravamento da submiss ão com
-
— a “submissão
no ambiente dom éstico somando se à submissão no ambiente de trabalho 37
independente e da í ela continuará a existir também para o homem: quando ambos
se reconhecerem mutuamente como sujeitos , cada qual continuar á sendo o outro
” .
Com efeito, todas essas estratégias para se autorrealizar, para se para o outro”40.
tornar um
sujeito, são ilusórias e malfadadas. Elas constituem aquilo que
Beauvoir cha-
mava de “justificações” e Bourdieu chamava de “fazer da necessidade sua Até as expressões usadas por Bourdieu e Beauvoir s ã o as mesmas: nao
maior
virtude”: são estratégias adaptativas que os dominados mobilizam sob apenas a noção do reconhecimento, mas até a ideia da “doação do eu ” . Beauvoir
nação. Ambos os autores pintam um quadro sombrio no qual as mulheres
a domi -
pro- escreve sobre o amor genu íno vivido por meio do reconhecimento m ú tuo, como
jetam tais adaptações como caminhos para a libertação, quando, sendo “a revelação do eu pela doação de si e pelo enriquecimento geral ” . J á
41
na verdade,
isso só intensifica sua submissão. Nem Bourdieu nem Beauvoir (em Bourdieu fala do amor verdadeiro como reconhecimento m ú tuo que pode ser
especial
Beauvoir) podiam deixar as mulheres duplamente aprisionadas
mente e subjetivamente. Ambos procuraram por uma escapat

objetiva-
ó ria possível da
encontrado “[...] na economia das trocas simbólicas, cuja forma suprema é a
doação de si e do próprio corpo como corpo sagrado e exclu ído da circulaçã o
imanê ncia, da cumplicidade , da dominação simbólica. comercial42.

Mas os contrastes també m são evidentes . Para Bourdieu , a emancipa çã o


A emancipa ção era recebida e discutida como reflexã o posterior, obrigató ria e desconexa , en -
quanto para Beauvoir ela era o tema central, ela era a corrente subterrâ nea que,
Uma vez mais, Beauvoir e Bourdieu mostram incríveis convergências após percorrer todo seu livro, jorrava em um resplandecente chafariz de espe-
em suas
abordagens do processo de emancipação. Bourdieu geralmente rança. Não pode haver dominação sem a expectativa de emancipaçã o. Ela n ã o
resistia à ten-
tação de formular utopias, mas em seu pós escrito ao livro A imaginava uma dissolução das diferen ças entre homens e mulheres, mas , no
- dominação mas-
culina, ele baixa a guarda, valendo-se de uma pálida réplica a lugar disso, imaginava sim uma pluralidade dessas relações com “diferenças
Beauvoir. O
-
pós escrito começ a reafirmando que “o amor é a dominação
consentida, não
na igualdade”: “Emergir ã o, entre os sexos , novas relações entre alma e corpo,
percebida como tal e praticamente reconhecida em relações matéria e sentimento, das quais n ós hoje nem temos ideia”43. Enquanto Bour-
felizes ou infeli-
zes”38. Daí então ele prossegue imaginando a possibilidade da supera dieu nada nos diz acerca das condições desse “ puro amor”, dessa “ busca do
ção da
dominação em favor do reconhecimento m ú tuo: amor como arte pela arte” , Beauvoir insistia que o amor autê ntico precisaria

146 147
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
AS ANTINOMIAS DO FEMINISMO; BEAUVOIR ENCONTRA BOURDIEU

da igualdade estrutural que, por sua vez, exigiria não apenas o


to, aos m étodos contra a gravidez, o direito ao voto (
acesso ao abor - O proletariado tem concretizado sua revolu çã o na R ú ssia , os negros tê m feito o
lembremos que estamos mesmo no Haiti, os indochineses vêm batalhando por isso na Indochina; mas os esforços
na França de 1949), mas incluía também ideias mais radicais, i das mulheres n ão têm passado de simples agitação simbólica . Elas têm conquistado
como a copater- m
-
nidade44. Beauvoir mostrava se desconfiada dessa “igualdade na
diferença ” , i- tão somente o que os homens estão dispostos a conceder- lhes; elas nada têm conquis-
algo meio esp ú rio— uma igualdade de oportunidade que logo se torna sem
sentido, em condições desiguais. Em vez disso, ela afirmava que
tado; somente recebido45.
a igualdade
socialista, que ainda n ão existia, era uma condição necessá ria ( Ent ã o, o movimento feminista que Beauvoir testemunhou no final da vida
mas n ão sufi -
ciente) para a libertação feminina. Embora Beauvoir fosse muito teria sido outro movimento , que n ão aquele limitado pelos interesses dos
consciente i
dos problemas da União Soviética com respeito à questã i
o da emancipação homens? Estaria esse movimento sendo desviado para o território da domina-
feminina, n ão obstante, ela aplaudia sua promessa de igualdade, sua çã o masculina, ou será que ele seria capaz de desafiar essa dominação ? Assim
prefigu -
ração da igualdade. Para Beauvoir, a emancipação feminina não era
uma utopia como Beauvoir, Bourdieu també m era sens ível aos dilemas de desafiar a do-
vazia, era sim uma utopia real baseada naquilo que ela via minação simbólica a partir de baixo. Escrevendo sobre o movimento dos gays
ao seu redor e na-
quilo que poderia realmente acontecer. -
e das lésbicas, ele analisou os perigos da luta bem sucedida pelo reconheci-
Estava claro para Beauvoir que indiv íduos atomizados não poderiam
com mento da sexualidade alternativa porque, uma vez reconhecida , ela tornar -se-
sucesso lutar por transcend ência na sociedade capitalista. A independ ia novamente invisí vel e sujeita a muitas das velhas formas de opressão.
ência
econó mica da mulher era uma condição necessária mas n ão suficiente, Questionando-se em que medida o movimento feminista havia erodido a
tal como
ela deixou bem claro no penúltimo capítulo do livro, sobre dominação masculina , Bourdieu entrou em uma polê mica contra a ideia da

com tanta frequ ência na pesquisa sociológica contemporâ nea .
os dilemas da pro-

fissionalização as pressões contraditórias e os papéis duplos que aparecem
Para Beauvoir,

emergência da consciência consciência que nunca poderá ser o que ela diz
.
ser A própria linguagem da consci ência , segundo Bourdieu , era inadequada
a libertação feminina só se poderia efetivar como
projeto coletivo e em certas para compreender uma dominação masculina que é profunda e invariavelmen -
condições econ ómicas de possibilidade . Mesmo assim, ela n te inscrita em um habitus durá vel. “Se é t ã o ilusó rio acreditar que a violê ncia
ão via como as
mulheres poderiam lutar juntas
— —
coletivamente para transformar as con-
dições nas quais elas existiam socialmente. Com
efeito, pode-se dizer que a
simbólica possa ser vencida só com as armas da consciência e da vontade, isso
ocorre porque os resultados e as condições para sua eficácia estão durá vel e
ideia central do seu livro era a especificidade da dominação profundamente inscritos nos corpos na forma de disposições, de inclinações” 46.
masculina, quan-
do comparada a outras formas de dominação baseadas na E ele prossegue:
classe ou na raça.
Enquanto os operários ou os negros podem forjar entre
gâ nica de oposição ao grupo dominante, o mesmo
si alguma unidade or -
não costuma ocorrer com Se a verdade é que, embora pareça se apoiar na força bruta das armas ou do di -
as mulheres que orbitam ao redor de homens nheiro, o reconhecimento da dominaçã o supõe sempre um ato de conhecimento, isso
individualizados, que são c ú m-
plices da sua própria submissão, que se contentam n ã o implica que estejamos igualmente autorizados a descrev ê- la na linguagem da
em procurar pelo melhor
parceiro possível no mercado matrimonial, que sã
o subjugadas de corpo e de consciência, com o “ viés” intelectualista e escol ástico que , como em Marx (e sobre -
alma à dominação masculina. A ú nica esperança para as
mulheres seria esperar tudo naqueles que, depois de Lukács, falam de uma “falsa consciência” ), tende a es -
que a classe operária realizasse primeiro sua revolu , perar a libertação das mulheres como efeito autom á tico da “ tomada de consciê ncia ” ,

então elas pudessem se emancipar.
ção para que então só — ignorando, por falta de uma teoria tendencial das pr á ticas, a opacidade e a inércia que
Por isso, seria dif ícil para Beauvoir compreender o
movimento feminista ,
-
resultam da inscrição das estruturas sociais nos corpos 47.
para o qual seu livro certamente contribuiu. Porque
jamais houve movimen-
tos feministas que expressassem o verdadeiro interesse
das mulheres: O fundamento da dominação simb ólica , portanto , n ão repousa na “cons-
ciê ncia mistificada ” , mas em “ disposições sintonizadas com a estrutura da
dominação”; “e o relacionamento de cumplicidade” que o dominado “concede”

148 149
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU í AS ANTINOMIAS DO FEMINISMO: BEAUVOIR ENCONTRA BOURDIEU

ao dominante só pode ser rompido por meio da “transformação radical das con
dições sociais de produção daquelas disposições que conduzem os dominados
- sustentam a hegemonia racial branca, assim como das reações inautênticas
à dominação, a saber, as tentativas de assimilação à branquitude, fadadas ao
a tomar para si a perspectiva dos dominantes sobre os dominados e sobre fracasso. Ora, uma análise bastante parecida sobre a situação, a justificação
si
mesmos»48. Mas n ão h á pistas sobre como tal ruptura poderia acontecer. e as mitologias referentes à domina çã o masculina é o que n ó s encontramos
Seria isso tão diferente da afirmação de Beauvoir, que negava que as mu
- em O segundo sexo52. Mais do que Beauvoir fez no caso das mulheres, Fanon
lheres pudessem pensar em outros termos que n ão aqueles oferecidos pela
dominação masculina ? Bourdieu dizia que seus trabalhos estavam imbu ídos
enfatizou as virtudes da cultura dominada
Negritude* —

especialmente o Movimento
como algo necessá rio para garantir dignidade aos negros . Po-
de uma “filosofia da consciência”, mas, quando Beauvoir escrevia que ela [ ré m, assim como Beauvoir e decerto como Bourdieu , seu objetivo era sempre
“ a
mulher] n ão entende , tampouco em pensamento, a realidade que a cerca, pois transcender o racismo em direção ao universalismo, no qual existiriam raças ,
esta é opaca a seus olhos”49, não estaria ela falando também da dominação mas não como instrumentos de hierarquização .
simbólica ? As faculdades críticas da mulher estariam seriamente comprome
tidas: “Não possuindo nenhum domínio independente, ela n ão consegue opor
- Pele negra, má scaras brancas54 termina sem esperan ça, sem qualquer rota
clara que leve ao universalismo que Fanon tanto queria ; assim como Beauvoir
nenhuma verdade ou valores positivos e pró prios àqueles afirmados pelos ho
- também conclui O segundo sexo com uma esperan ç a igualmente v ã na liber-
-
mens; ela pode apenas negá los”50. Para ser exato, poder-se-ia chamar esse tação feminina. Mas enquanto Fanon logo iria para a Argélia, onde mergulha -
problema feminino de um “ contrauniverso” com “falsa consciência” ; mas ria no movimento pela independ ê ncia e onde encontraria finalmente sua chave
isso
também é alimentado durante o curso da vida. Com efeito, todas as páginas para o universalismo , Beauvoir precisou esperar v á rios anos pelo movimento
de
O segundo sexo s ão testemunhas do qu ão profundas e do qu ão elaboradas feminista e, mesmo a í, ela precisou superar seus pró prios preconceitos antife-
sã o
as formas pelas quais a dominaçã o é inculcada e reproduzida . Ali á s , isso
quer ministas para declarar-lhe apoio em 1972. Beauvoir sempre se mantivera dis -
dizer que Beauvoir n ão era devota da emergê ncia da consciê ncia ; nem que tanciada do feminismo, por considerar que a questão das mulheres estava su -
a
mulher oprimida pudesse começar a afirmar seu pró prio ponto de vista. Beau bordinada ao projeto socialista. Poré m, assim que ela percebeu que a esquerda
voir era bastante pessimista quanto às possibilidades de qualquer bom senso
- tinha muito pouco interesse na libertação feminina, e quando ela se deu conta
emergir do senso comum. Tal como Bourdieu , ela s ó via aí o mau senso, da opressã o das mulheres na Franç a , especialmente em torno do direito ao
no
mau sentido. aborto, ela jogou todo o seu peso intelectual e pol ítico em prol de um feminis -
mo autó nomo e radical55.
Para Fanon , teoria e prá tica caminharam lado a lado durante sua catarse
revolucion ária, enquanto para Beauvoir, teoria e pr ática sempre guardaram
Teoria e prá tica
alguma tensão. Com respeito à dissecação da dominação masculina , a posi çã o
Vimos até aqui qu ão diferentes Bourdieu e Beauvoir eram de Frantz Fanon que

defendia o engajamento dos intelectuais na ação revolucion á ria . Esse foi, é
.
claro, o tema de Os condenados da Terra5 [ Poré m, dez anos antes, Fanon havia
escrito Pele negra, máscaras brancas ( 1952)52
— obra cuja postura ê muito
mais parecida àquela presente em O segundo sexo. Naquele trabalho, Fanon
* Movimento Negritude , movimento liter á rio e cultural de artistas e intelectuais afro-ameri -
canos e afro-europeus que afirmaram suas tradi ções africanas e ra ízes negras. No in ício do
século XX, o governo colonial francês tentou assimilar os povos dominados substituindo
dissecou as sequelas psíquicas deixadas pela dominaçã o racial , ao notar que, *
sua cultura nativa pela cultura nacional francesa. Os jovens da Africa que conclu íam seus
quando emigrou da Martinica para a França, ele mesmo passara a se estudos na França , notando que n ã o poderiam abandonar suas origens étnicas , passaram a
encarar exprimir em literatura seus sentimentos de raiva e de perda . Assim , criado em 1930 em Paris,
n ão como um negro colonial , mas como um cidad ão francês . O choque com o
o Movimento Negritude surgiu como uma reação aos processos de aculturação colonialista ,
racismo , assim como o choque com o sexismo, levou Fanon a considera denunciando suas estratégias e inten ções. Entre seus primeiros expoentes est ã o: Ferdnand
ções -
devastadoras acerca da situação dos oprimidos pela raça, das mitologias que Aime Cesaire ( Martinica ) , Leopold Sedar Senghor (Senegal ) , Jean -Joseph Rabearivelo
( Madag áscar), David Diop (Senegal ) e Tchicaya U Tam’si ( Congo ). ( N . do T.)

150 151
O MARXISMO ENCONTRA BO UR Dl EU 1 A S ANTINOMIAS DO FEMINISMO : BEAUVOIR ENCONTRA BOURDIEU

da autora era bem contraditória; além disso, na própria vida pessoal, ela foi
, ;
Conclus ã o : a abordagem a partir das bordas*
vítima das mesmas armadilhas que denunciava como sendo inautênticas. En-
quanto escrevia O segundo sexo, Beauvoir vivia seu romance com Nelson
Algren — relaçã o que trazia em si todas as marcas da an álise feita por ela
Se o habitus da dominação masculina j az tão fundo, como poderia alguém

incluindo Beauvoir e Bourdieu o reconhecer pelo que ele é? Se a dominaçã o

sobre “As mulheres apaixonadas” — sabendo bem que sua devoção amorosa
era uma reaçã o inautêntica e fracassada à dominação masculina. Mais bem -
masculina é opaca e est á além da compreensão dos homens e das mulheres,
como é que Bourdieu e Beauvoir conseguiram desenvolver seu entendimento
sucedida, embora n ão sem tensões, foi sua “irmandade” com Sartre. Durante sobre ela (e , além disso, como é que n ós poderíamos reconhecê-lo como sendo
sua vida, Beauvoir iria manifestar e experimentar as contradições e, lutas entre o entendimento) ? Aqui também n ós encontraríamos convergê ncias. Bourdieu
sua teoria e sua prática.
argumenta que a dominação masculina possui maior “ magnitude” nas socie-
Bourdieu, por sua vez, parecia menos consciente das contradições entre, de dades tradicionais como a cabila e, embora ela n ão seja reconhecida como tal
um lado , as implica ções morais da sua teoria da domina ção masculina e ,
pelos próprios partícipes, um etn ólogo estrangeiro (como ele mesmo) poderia
de outro,.sua prá tica como homem, enfim, entre a lógica da teoria e a l ógica
encarregar-se da “socioan álise do inconsciente antropocê ntrico capaz de ob-
-
da própria prá tica. Ele reconhecia que mesmo os homens mais bem intencio-
jetivar as categorias daquele pensamento”56 . Bourdieu , portanto, transplantou
nados podiam cair vítimas das estruturas cognitivas arraigadas e, inadvertida - sua avaliação do inconsciente antropocêntrico dos cabilas para a an álise das
mente, reproduzi -las enquanto pensavam que as estavam desafiando. Ele su-
estruturas mais complexas e diferenciadas da dominação masculina, encontra -
geriu que foi esse o caso de Kant, de Sartre, de Freud e mesmo de Lacan ; mas
das nas sociedades modernas.
ele não sugeriu sua própria cumplicidade com a dominação masculina. J á vimos
Assim como a “conexão distante” que Bourdieu mantivera com a socieda-
-
acima como Bourdieu desprezava Beauvoir, baseando se no argumento de que
de cabila oferecera a ele a possibilidade de compreender seu inconsciente
ela foi simplesmente um penduricalho de Jean-Paul Sartre. Porém, como venho
antropocêntrico , Beauvoir afirmava que foi sua especial condição de intelec-
tentando mostrar, o trabalho de Bourdieu não é sen ão a pálida imitaçã o dos
tual-mulher-independente o que lhe permitira o distanciamento indispensá vel
trabalhos de Beauvoir. Ele praticou sexismo no próprio ato de denunciá-lo, de
-
condená lo. As disposições da dominação masculina jazem fundo no incons- —
ao entendimento da opress ão das mulheres uma compreensã o inacess í vel
tanto aos intelectuais homens como às mulheres dependentes :
ciente tanto dos homens como das mulheres. Mas talvez as mulheres , na qua-
lidade de v ítimas diretas dessa opressão, estejam em condições melhores de
Como então podemos colocar a questão? Antes de mais nada , quem somos n ós para
trazê-la à baila . Até mesmo Bourdieu reconhecia que a capacidade perceptiva
colocá-la ? Os homens são parte e juiz ; as mulheres també m o são. Onde encontrar um
das mulheres acerca da vida dos homens é algo inacessível aos próprios homens. anjo? Na verdade, um anjo seria mal indicado para julgar aqui: ele ignoraria todos os
Elas entendem os jogos masculinos , dos quais são o móvel e a aposta. Elas são dados do problema [...]. Creio que para elucidar a situação da mulher, algumas mulheres
mais conscientes das armadilhas da dominação e dos modos pelos quais essas ainda são as mais indicadas Muitas mulheres, que tiveram hoje a sorte de terem-lhes
armadilhas as conduzem a comportamentos contraditó rios, inautênticos e fra- restitu ídos todos os privilégios de ser humano, podem dar-se ao luxo da imparcialidade;
cassados. Malgrado o quadro teórico comum a ambos os autores, ao se con- sentimos até a necessidade desse luxo [...]. Muitos outros problemas parecem mais
centrar na elucidação das estruturas da dominação, a an álise de Beauvoir foi essenciais que aqueles que nos dizem respeito diretamente ; e esse mesmo desinteresse
incomparavelmente mais aprofundada e sofisticada que a an álise de Bourdieu: permite- nos esperar que nossa atitude seja objetiva . Entretanto, conhecemos mais í nti -
mais aproveitando que dissimulando as ambiguidades e contradições da liber- mamente do que os homens o mundo feminino, porque nele temos nossas ra ízes ; e
dade que é vivida dentro das jaulas da dominação. apreendemos mais imediatamente o que significa para o ser humano pertencer ao sexo
feminino e nos preocupamos mais em conhecê lo57. -

* No original: The insight of the outsider (a percepção das pessoas externas). Trata-se de um
jogo de palavras cuja reprodução exata é dif ícil recuperar em portugu ês. ( N . do T.)

152 153
m
O MARXISMO E N C O N T R A B O U R D I E U AS ANTINOMIAS D O FEMINISMO : BEAUVOIR ENCONTRA BOURDIEU

A objetividade, tanto para Beauvoir como para Bourdieu, vem das seguin - * posições amb íguas e, por isso, n ão conseguem enxergar através do nevoeiro da
tes condições: ser algu ém oriundo do “exterior”, estar localizado em um espa- I
dominação. Patricia Hill Collins, portanto, endossa a perspectiva do intelectu -
ço relativamente autónomo e ser alguém no “interior” conectado com os sujei- r
& al orgânico intimamente comprometido com as comunidades de mulheres ne-
tos em questão. gras e pobres, elaborando seus pontos de vista e sua cultura para transmiti -los

—-
Enquanto a conexão de Bourdieu com a sociedade cabila era do tipo “o a pú blicos mais amplos. Coerente com essa perspectiva, Collins é hostil aos
í
estranho que veio de fora”, a conexão de Beauvoir com as experiências das intelectuais negros tradicionais Louis Gates* , CÍomel West** e mesmo W. E.
mulheres era do tipo “a estranha que veio de dentro”. Não obstante, ambos os
autores possu íam certa visão da objetividade como algo assegurado por algum l
)

B . Du Bois*** por seu elitismo pretensioso, manifestado nas representações
que têm da dominação racial e sexual .
campo intelectual segregado e autónomo. Para Bourdieu , esse campo seria a Existem decerto poderosas tradições do feminismo muito diferentes daque -
academia, definida pela skholè e pela luta competitiva pela verdade científica; la representada por Simone de Beauvoir, mas que igualmente deitaram profun-
já para Beauvoir, esse campo seria a esfera pú blica , cujo coroamento eram os
das raízes nos pú blicos femininos. Beauvoir foi a intelectual tradicional que
encontros de intelectuais nos cafés parisienses e nos grandes jornais como Les deu voz e visão ao movimento e, com isso, estabeleceu a pr ópria possibilidade
Temps Modernes. Tal distanciamento seria indispensável para evitar ser cons
-
trangido pelo desconhecimento que acompanha a dominação simbólica com
as mulheres se vendo através do prisma de categorias machistas. Por isso, — * -
Henry Louis Gates ( 1950) , um dos mais prestigiados e influentes intelectuais afro americanos.
Louis Gates é mais conhecido por sua extensa pesquisa sobre a história e a influê ncia da
ambos.os autores desconfiavam dos movimentos baseados na romantização da literatura negra nos Estados Unidos e por desenvolver um programa de estudos negros em
opressão e que conduziria ao triunfo do desconhecimento. No fundo, eles con-
.
Harvard Em seu trabalho acadê mico, ele tem dedicado um grande esforço para levar a
cultura afro-americana ao pú blico, criando , como coautor ou coeditor, a mais abrangente
cordariam que, salvo raras exceções (tais como eles mesmos), quando homens bibliografia de referência sobre o tema em seu país, tendo feito pelos negros dos Estados
e mulheres se aventuram a esquadrinhar os fundamentos da dominação mas - Unidos o que Tocqueville fez pelos europeus. Louis Gates foi o primeiro negro a receber o
grau PhD pela Cambridge University e é autor de in ú meros livros, artigos e ensaios. Para
culina, eles só conseguem atingir o “mau senso” e nunca o “ bom senso” ; e as ele, “ a mais sutil e perniciosa modalidade de racismo contra os negros é duvidar da sua ca -
mulheres em particular seriam aí c ú mplices da própria opressão. pacidade intelectual ”. Entre seus livros est ão Black literature and literary theory ( 1984 ), The
Sendo assim , Bourdieu e Beauvoir foram ambos intelectuais tradicionais, signifying monkey: towards a theory of Afro' American literary criticism ( 1989 ) e The civitas
anthology of African American slave narratives ( 1999). ( N . do T.)
desmascarando a dominação masculina sem saírem do elevado pedestal onde
. estavam. Nisso , eles diferem n ão apenas de Fanon , que na Argé
-
** Cornel West (1953) , filósofo, escritor e ativista negro norte americano. Conhecido por seus
lia esteve pro- discursos cá usticos e celebrado por seus estudos a respeito da condi çã o social do negro nos
fundamente comprometido com a luta revolucionária, mas também de Grams Estados Unidos, West formou -se em literatura por Harvard e Princeton, lecionando em uni -
ci, que, tal como Bourdieu e Beauvoir, se viu por fim imerso em um contexto
- versidades americanas e europeias. O ú nico livro de West a atingir ampla repercussão foi
Race matters ( 1993), composto por oito ensaios em que atacou o mito racista segundo o qual
que se mostrou ser não revolucionário. Diferentemente daqueles, contudo, os problemas da população negra e latina se devem às atitudes das pessoas que a compõe.
Gramsci acreditava no bom senso dos indivíduos oprimidos pelo menos no

bom senso da classe operá ria . Dada essa hip ótese do bom senso , existiria,
West também abordou temas como o machismo e a homofobia , atitudes que os negros nor
-
te-americanos també m deveriam combater. Destacam se ainda as obras The American evasion
of philosophy (1989) , The ethical dimensions of marxist thought ( 1991 ) e Breaking bread :
-
portanto, lugar para que os intelectuais org â nicos pudessem aprimorá-lo ( insurgent black intellectual life ( 1991 ). ( N . doT.)
ata-
cando també m o mau senso), desenvolvendo uma guerra de posição. De
ma- *** William Edward Burghardt Du Bois ( 1868-1963) , historiador, sociólogo e editor negro norte -
neira an áloga, n ós encontramos hoje intelectuais feministas que consideram o .
americano Foi l íder desde 1905 das lutas por direitos civis para os negros. Ajudou a fundar
em 1910 a NAACP ( Associação Nacional pela Promoção de Pessoas de Cor). Recebeu seu
bom senso e o entendimento provenientes dos dominados. Patricia Hill PhD em Harvard e lecionou em diversas universidades americanas. Segundo ele, a profunda
Collins,
por exemplo , argumenta que a maioria dos oprimidos tem uma percepção ignorância dos brancos a respeito dos negros era a origem da desvantagem social destes. Em
tante clara das estruturas sociais e da posi çã o que ocupam no esquema
-
bas
seus últimos anos de vida , oscilando entre a segregaçã o e a integração do negro , Du Bois
de acreditava que os Estados Unidos jamais resolveriam seus conflitos raciais e que o ú nico
dominação; e que eles desenvolvem espontaneamente culturas de resistê ncia. poder mundial em oposição ao racismo era a Uni ão Soviética. Du Bois uniu - se ao Partido
Aqui , ela está se referindo especificamente às mulheres pobres e negras Comunista Americano em 1961 e emigrou para Gana , onde morreu em 1963. Entre seus
dos
Estados Unidos. As mulheres brancas e os homens negros est ão situados em livros estão Philadelphia negro ( 1899), The souls of black folk ( 1903 ) , Black reconstruction
.
(1935) e Dusk of dawn (1940 ) ( N . do T.)

154 155
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
A S ANTINOMIA S DO FEMINISM O ' BEAUVOIR ENCONTRA BOURDIEU

do surgimento de intelectuais feministas orgânicas


i 6
'

e engajadas. Resta saber se 29 Beauvoir, 1989, p. 604. Ed . brasileira, vol . 2, p. 370


o papel crítico cumprido por Bourdieu , como
intelectual tradicional, também 30 Beauvoir dedica um capítulo inteiro à prostituição como alternativa ao casamento. Assim como
contribuiu para a conex ão orgânica da sociologia
que ele mesmo adotou no final da vida, malgrado
com seus públicos posição
seu desprezo pelos intelec-
— F
m
o lesbianismo seria um afastamento da sexualidade normal, a prostituiçã o sçria um caminho
igualmente alternativo ao casamento, cujo significado e avaliação diferem conforme a socie-
tuais orgânicos. %ir dade.
I 31 Friedan , 1963.
32 Woolf, 1996.
w. 33 Bourdieu , 2001a , pp. 79-80. Ed . brasileira, 1999, p . 98.

Notas I 34 Beauvoir, 1989 , p. 643. Ed . brasileira, vol. 2, p. 412.


E
.
35 Idem , op. cit., p. 628. Ed . brasileira, vol 2, p. 393.
1Ver Bourdieu, 1995, p. VIII . I 36 Idem , 1989, p . 717. Ed . brasileira , 1970, p. 486 .
2 Idem, 2001 a. I .
37 Idem, op. cit., pp 680- 1. Ed. brasileira, op. cit., p. 451.
3 Idem, 2001a, nota 11, p. 86. Ed. brasileira , r . .
38 Bourdieu, 2001 a, p. 109 Ed brasileira , 1999 , p. 129 .
4 Moi, 1994.
1999, nota 10, p. 104 . .
39 Idem, 2001a , p. 110 . Ed. brasileira , 1999, pp . 130- 1
5 Beauvoir, 1989.
I 40 Beauvoir, 1989, p. 731. Ed. brasileira, vol . 2, p. 500.
6 Idem, 1956. I 41 Idem , op. cit ., p . 667. Ed. brasileira , vol . 2, p. 436.
7 Moi , 1994, cap ítulo 7. -
42 Bourdieu , 2001a, pp. 110 1. Ed. brasileira , 1999, p. 131.
8 Bourdieu, 2001a, p. 59. Ed. brasileira, 43 Beauvoir, 1989, p. 730. Ed. brasileira, vol. 2, p. 499.
1999, p. 74.
9 Estou me baseando na tradução inglesa
de O segundo sexo, a despeito dos seus
.
44 Idem , op. cit , p. 726. Ed. brasileira , vol. 2, p . 495.
problemas. Ver Moi, 2002 , pp . 1.005 35.
- conhecidos .
45 Idem , op. cit , p. XXV ; ver também p. 125 . Ed . brasileira, vol. 1 , p. 13; ver també m p . 168.
10 Bourdieu, 1995b, p. VIII. 46 Bourdieu , 2001a , p. 39 . Ed . brasileira , 1999, p. 51 .
11 Toril Moi fala muito mais sobre ela
em seu ensaio ‘‘Appropriating Bourdieu : .
47 Idem , op. cit , p. 40. Ed. brasileira , op. cit . , p . 53.
and Pierre Bourdieu’s sociology of culture”. feminist theory .
48 Idem , op . cit., pp. 42-3 Ed. brasileira , op. cit., p. 54.
Ver Moi, 1999, nota 21, p . 283. Não há nada
original nesse gê nero de an á lise, poré m, de
conforme Toril argumenta, seus conceitos são, 49 Beauvoir, 1989, p. 598. Ed . brasileira , vol. 2, p. 364.
mo assim, muito ú teis ao feminismo. Esse mes-
também é o sentido geral da coleção
Feminism 50 Idem, op. cit., p. 611. Ed. brasileira , vol . 2, p. 377 .
after Bourdieu (2005), editada por Lisa
Adkins e Beverly Skeggs . 51 Fanon, 1963.
12 Bourdieu , 2001 a, p. 2. Ed . brasileira ,
13 Idem, op. cit., pp. 37-8. Ed. brasileira,
-
1999, pp. 7 8. 52 Idem , 1967 .
op. cit., pp . 49-50. 53 A mesma estrutura pode ser vista em O antissemita e o judeu (1965) escrito por Sartre em 1946

15 Idem , 1956.
-
14 Beauvoir, 1992, pp. 94 5.
e publicado na mesma é poca em que Beauvoir iniciaria seu trabalho com O segundo sexo .
54 Fanon , 1967.
16 Idem, 1989, p. XXV. Ed. brasileira,
1970, vol. 1, p. 13. 55 Cf . as entrevistas reunidas em Schwarzer, 1984 .
17 Ibidem .
56 Bourdieu , 2001 a, p . 5. Ed . brasileira , 1999 , p. 13.
18 Idem, op. cit., p. XXVII. Ed . brasileira,
19 Bourdieu , 2001 a, p. 3 , ver
vol. 1, p. 15.
també m pp. 22-3. Ed. brasileira, 1999, p
-
57 Beauvoir, 1989, pp . XXXIII XXXIV . Ed . brasileira, vol. 1 , pp. 21-2.
Isso é o que Patricia Hill Collins, 40 anos mais tarde, denominaria a perspectiva do “estran-
pp. 33- 4. -
11, ver també m
geiro do interior”, embora ela tra çasse sua genealogia n ã o a partir de Simone de Beauvoir,
20 Beauvoir, 1989, p. 38. Ed. brasileira
, 1970, vol. 1, p. 59 mas a partir de Georg Simmel.
21 Idem , 1989, p. 66. Ed. brasileira, 1970,
vol. 1, p. 23
22 Bourdieu, 2001a, p. 33. Ed. brasileira
, 1999, p . 45.

24 Rubin , 1975.
-
23 Idem , 2001a, pp. 82 3. Ed. brasileira
, 1999, pp. 100- 1.

25 Hochschild, 1979; 1983 .


26 Bourdieu, 2001a, pp. 55-6. Ed.
brasileira, 1999, pp. 70-1.
27 Beauvoir, 1989, p. 267. Ed.
brasileira , vol. 2, p. 9.
28 Chorodow, 1978.

156
157
- •

1
i-
(:

í=
r

CAP Í TULO VI

OS INTELE CTUAIS E SEUS P Ú BLICOS :


BOURDI EU HERDA WRIGHT MILLS

O Bourdieu estadunidense

Até aqui , os cap ítulos anteriores discorreram sobre conversações hipotéticas


entre Bourdieu e o marxismo; sobre como Bourdieu aproximou - se muito de
Marx , mas o fez em uma direçã o jamais prevista por aquele, isto é , rumo à
economia pol ítica dos bens simbólicos; sobre o modo como Gramsci e Bourdieu
estavam em absoluto desacordo quanto às origens da durabilidade e profundi -
dade da dominação; sobre como meu próprio trabalho também sugeriu que a
submissã o pode ser mais estrutural e situacional do que Bourdieu supunha com
!
t

sua noção de habitus; sobre como , a despeito de algumas perspectivas seme -


lhantes acerca do colonialismo, Fanon e Bourdieu discordavam quanto aos
meios para transcendê- lo (e aqui, ironicamente, vimos como a domina ção co -
lonialista era mais profunda para Fanon que para Bourdieu ) ; e, por fim , vimos
as notá veis convergências entre o feminismo intelectual de Beauvoir e a domi -
nação simbólica de Bourdieu . Concluiremos este livro com outra convergê ncia,
desta vez , entre Bourdieu e Wright Mills. Ambos dividiram projetos pú blicos
i e socioló gicos comuns, malgrado terem vivido em continentes diferentes e
meio século distantes. Com efeito, eu diria que Wright Mills foi o Bourdieu
estadunidense .

159
O MARXISMO ENCONTRA
BOURDIE V
OS INTELECTU AIS E SEUS P Ú BLICOS .' B Q U R D l E U HERDA WRIGHT MILLS
f
I
m
Converg ê ncias impressionantes i relação à sociologia dominante , opondo-se ao estrutural- funcionalismo e às
I
Ataques de Bourdieu contra o profissionalismo,
m
m —
pesquisas de mercado assim como Bourdieu reagiria às pretensões intelec -
e o empirismo da sociologia estadunidense
o provincianismo, o formalismo
podem ser achados em A profissão
-
tuais de Jean Paul Sartre e seu círculo e à reforma da sociologia francesa . Mills
chegou tardiamente ao marxismo e, tal como Bourdieu , embora tivesse tomado
de sociólogo , assim como em outros livros que
' ecoam A imaginação socio- emprestadas in ú meras ideias de Marx , ele nunca se identificou com o projeto
lógica2 de Wright Mills. Com efeito, Mills
foi quase o ú nico autor do panteão político marxista, a n ão ser bem no final da vida . Além disso, cada vez mais
sociológico estadunidense a receber a aprovação de
Bourdieu . Dado que suas •
I parecido com Bourdieu , Mills sentia-se permanentemente desconfort á vel com
perspectivas eram bem semelhantes, a compara
ção entre os dois autores não seu quadro teó rico. Ambos foram hostis ao Partido Comunista, do qual nunca
apenas enfatizaria o enorme alcance da erudi
ção de Bourdieu , como também foram partid á rios ou integrantes , muito embora ambos exibissem simpatias
mostraria o quanto o mundo mudou desde os
anos 1950 até hoje (embora tenha, (ora encobertas, ora explícitas) pelas variantes democráticas do socialismo. Os
em alguns aspectos, retornado àquela época ),
destacando as diferen ças abis- dois autores foram bastante influenciados por Weber, com quem dividiram a
sais entre os Estados Unidos e a
França. Os anos imediatamente posteriores à preocupação constante com a dominação , sua reprodu ção e suas repercussões.
Segunda Guerra Mundial testemunharam o
ressurgimento do radicalismo que Tal como Weber, eles jamais definiram em detalhes nenhuma utopia futura .
havia nascido nos anos 1930; porém, este só 1
forma do macarthismo*, com as perseguições, o
duraria até a reação impor se na - i Ambos tinham apenas uma teoria da história parcamente desenvolvida: Mills
anticomunismo, o triunfalismo deteve-se na transição da ordem aristocr á tica do século XIX (feita lado a lado
imperialista e o “fim da ideologia ”. Assim
como Mills confrontara-se com a com pú blicos pretensamente democrá ticos) rumo ao novo regime das elites do
reviravolta do contexto político do New Deal ** , a
maior parte dos trabalhos de poder com a sociedade de massas , ao passo que Bourdieu subscrevia a teoria da
Bourdieu pode ser vista pelas lentes da exaust ã
da guinada direitista dos anos 1980 e 1990.
o da herança dos anos 1960 e -
modernização , tal como mostrei no capítulo IV, baseando se na diferenciação
Biograficamente, Bourdieu e Mills tiveram
origens
progressiva dos campos sociais relativamente autónomos análogos àquilo
que Weber chamou de esferas valorativas.

como já vimos, era filho de um agente dos correios diferentes: o primeiro,
em um povoado dos Pi- Mills e Bourdieu foram sociólogos reflexivos, escrevendo sobre os campos
rené us franceses; o segundo foi criado em uma
média do Texas. O mais interessante é que
fam ília procedente da classe político e acad êmico nos quais atuaram. Por isso, ambos eram versados em
ambos iniciaram sua carreira como sociologia do conhecimento e sociologia da ciência. A dissertação de mestra-
estudantes de filosofia, mas logo deixariam o
formalismo filosófico abstrato do de Mills tratava do desenvolvimento do pragmatismo: a secularização e a
para se engajarem mais diretamente nas
questões do mundo . Com relação a profissionaliza ção da filosofia acad ê mica . Seguindo os passos trilhados por
Mills, seu interesse no pragmatismo colocou
-
o em uma posição particular em Veblen , Mills mostrou -se sempre crítico do sistema universitário estaduniden -
se, muito embora, novamente como Bourdieu , ele cultivasse certa afeição pe-
* Macarthismo. No período da Guerra Fria, los aspectos elitistas da academia. Al ém disso, ambos se sentiam alienígenas
tanto nos Estados Unidos como na Uniã
os suspeitos de simpatizar com a ideologia o Soviética, OU estrangeiros no ambiente acadê mico e, a partir de uma perspectiva privile-
adversária eram perseguidos e duramente
midos . O macarthismo, movimento que repri-
giada, escreveram ácidas críticas à ordem estabelecida , provocando a hostili-
recebeu esse nome por ter sido liderado pelo
-
Joseph McCarthy (1908 1957), acusou e
e agentes do governo, destruindo reputaçõ
levou à prisão in úmeros cientistas, escritores,
senador
artistas dade dos colegas e a adoraçã o das novas gerações de soci ó logos .
es e carreiras. Essa campanha anticomunista
entre 1950 e 1954, per
íodo em que McCarthy dirigiu o Subcomitê de ocorreu Mills e Bourdieu também foram grandes sociólogos e intelectuais p ú bli -
Subversivas. Suas acusações de comunismo eram
virtude do clima de paranoia e de ansiedade
Investiga ção de Atividades
rapidamente aceitas, mesmo sem provas,
criado na época. (N. do T.)
em —
cos não apenas em seus próprios países, mas també m pelo mundo afora.
Ambos cumpriram seus estágios acadê micos como soci ólogos profissionais ,
** New Deal (Novo Acordo), pol
ítica social aplicada nos Estados Unidos pelo
Roosevelt , entre 1933 e 1938. Esse conjunto de presidente Franklin
medidas visava a reduzir os efeitos da Grande
porém, logo atingiriam audiências mais amplas . Nenhum deles hesitou em
Depressão (1929). Foram criados novos ingressar na arena política como intelectuais ; e suas carreiras mostraram um
mecanismos e organismos federais para minimizar
desemprego e restabelecer o crescimento econ o
frentes de trabalho. ( N . do T. )
ómico, mediante subsídios, assistência social
e progressivo movimento a partir da academia rumo à esfera p ú blica. Mills
escreveu em uma época marcada pelo conformismo e pela passividade: seu

160
161

BAGBRNMAA
*
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU
m
If OS INTELECTUAIS E SEUS P Ú BLICOSBOURDIEU HERDA WRIGHT MILLS

*mf
conceito de sociedade de massas reflete bem isso. Assim como Beauvoir, ele I social , enquanto Bourdieu tomara o caminho inverso , partindo das classes do-
inspirou movimentos que jamais previra, como a Nova Esquerda dos anos ¥ minantes e descendo até a pequena burguesia e, por fim, até a classe trabalha-
1960. Resta saber se Bourdieu també m inspirará tais movimentos. O que se
dora. Ambos estudaram as formas pelas quais as classes dominantes impõem
sabe é que seus escritos e discursos políticos desempenharam importante
suas vontades à sociedade como um todo; mas, enquanto Mills enfatizava a
papel no debate público francês.
concentração de recursos e a tomada de decisões pela elite do poder, Bourdieu
tomou como dada essa concentração de riqueza e de poder e enfatizou as for-
mas pelas quais a dominação é ocultada ou legitimada pelas categorias simbó-
Classes sociais e dominação licas dos dominantes.
O enfoque de Bourdieu , portanto, é na dominação simbólica: o exerc ício
Bourdieu passou a ser conhecido na sociologia por seu referencial metateó - da dominação através da sua mistificaçã o e de seu ocultamento. Em outras
rico— — centrado nos campos, habitus, capital e, sobretudo, na violência
simbólica referencial que transcendeu seu próprio projeto empírico: um
palavras, a classe dominante distingue-se por suas preferências em matéria de
cultura . Seja nas artes, na música, na literatura, na arquitetura etc., a classe
quadro teó rico que vem sendo apropriado e utilizado por outros autores . Por
dominante apresenta-se como mais refinada e mais à vontade com seu consumo
sua vez, o livro escrito com Hans Gerth (1954) e que resume a ú nica aventura cultural do que a pequena burguesia (cujos gostos são direcionados pela emu -
de Wright Mills em questões teó ricas mais amplas, Caráter e estrutura
laçã o esté tica ) e do que a classe trabalhadora ( cujas prefer ê ncias sã o con -
social , nunca chegou a ser acolhido pelos soci ó logos . Mas a sua men çã o
dicionadas pela necessidade económica). Na realidade, a distin ção da classe
crítica às estruturas sociais da época e seu apelo à imaginação sociológica
dominante provém do seu acesso f ácil à riqueza e à educação, mas tal distinção
tê m inspirado sucessivas gerações de estudantes . H á paralelos especí
ficos aparece como sendo inata, justificando-se , com isso, seu domínio em todas as
no corpus teó rico de Bourdieu , porque este ú ltimo, assim como Mills , rara
mente fazia incursões em teoria pura , muito embora sua pesquisa empí
- esferas da vida social. A estética popular da classe trabalhadora com sua—
rica preocupação com a função em vez da forma, com o que é representado em vez
sempre tivesse mais consistê ncia teó rica. O impacto de Mills ultrapassou
a sociologia — n ão apenas por atingir o â mbito p ú blico , mas també m por
da representação em si
crítico aut ntico
ê . A

inova çã
é a esté tica dominada , desprovida de um impulso
o de Bourdieu , portanto, está em conceber as clas-
ter se difundido por muitas outras disciplinas além da sociologia,
rumo às ses n ão somente como formações político-econ ômico-sociais , mas também
ci ê ncias sociais e às humanidades.
como formações culturais. Os integrantes de uma certa classe possuem n ão
As três maiores obras de Mills referentes à sociedade estadunidense dos
apenas capital económico , mas também o que Bourdieu chamou de capital
— —
anos 1950 lidam sequencialmente e respectivamente com a quest ão do
trabalho e seus líderes sindicais ( Os novos homens do poder , 1948 ) , com a
questão das novas classes médias (A nova classe média, 1951) e
cultural. Eis então que a estrutura das classes sociais é um espaço bidimensio-
nal definido hierarquicamente pelo volume total do capital que elas detêm e
com a questão horizontalmente (entre as classes) pela composição relativa dos diversos capi-
das classes dominantes (A elite do poder, 1956). O quadro teórico usado por
tais (as combinações específicas entre o capital-dinheiro e o capital-cultura).
Mills para estudar a sociedade estadunidense foi desenvolvido por ele no de
- Bourdieu mostrou como essa estrutura aparece espelhada na distribuiçã o esta-
correr da mesma década, porém, pode-se encontrar uma clara continuidade na
tística das prá ticas culturais e dos padrões de consumo das classes .
sua abordagem sobre o tema: o problema da crescente concentração do poder
É interessante compararmos essa visã o da estrutura das classes sociais
por uma coesa elite econômico- pol ítico-militar; a emergência da nova
classe em Bourdieu com A elite do poder de Mills, em que este descreve a classe
média aburguesada, composta por profissionais autó nomos, administradores ,
dominante como sendo composta por três conjuntos de institui ções interli -
comerciantes e burocratas; e, por fim, a existência da classe trabalhadora sobre
gadas: as económicas , as políticas e as militares. Ele deu a isso o nome de
a qual , no final das contas, Mills tinha pouco a dizer. Essas também eram as
“domínios”, mas bem que podia ter dado o nome de “campos”. Mills també m
três classes sociais tratadas por Bourdieu em sua monumental obra- prima A
escreveu sobre as diferen ças entre os dom ínios e os habitus das classes neles
distinção3. Mills fizera sua análise seguindo o caminho ascendente da hierarquiz

reinantes habitus herdados das fam ílias , adquiridos em escolas e colégios

162 163

l
O M A R X I S M O E N C O N T R A BOURDIEU
O S INTELECTUAIS E SEUS PÚ B L I C O S : BOURDIEU H E R D A V/ R I G H T MILLS

elitistas e desenvolvidos em redes de aux ílio mú tuo. Mills até menos densa, dado que a preocupação de Os novos homens do
devotou um dora em si é
capítulo especial às “celebridades” que tiram a atenção pú
blica da problemá- poder6 recai sobre os líderes operários e não sobre seus liderados . Entretan -
to, o argumento é bastante similar àquele que Bourdieu defende em Lingua-
tica concentração do poder. Para ele, os símbolos de prest
ígio escondem o
poder da elite dos olhos do povo. Tudo isso faz lembrar
Bourdieu, porém , no gem e poder simbólico 7 . Lá, os representantes dos dominados ingressam no
final das contas, o enfoque é bastante diferente . Mills n ão estava mm
interessado i campo do poder, onde se envolvem em um jogo competitivo entre si mesmos;
I
na relação entre a elite cultural e a elite político-econ ô
dizer, entre as frações dominada e dominante no interior
-
mico militar quer
da mesma classe
— £ e a l ógica do poder sobrepuja sua obrigação de prestar contas aos dominados
que representam , Mills descreve como os líderes da classe trabalhadora são
cooptados pela classe empresarial por meio das negociações que promovem .
dominante , como diria Bourdieu . Na verdade, Mills interessava
lações mutantes entre os três pilares da elite do
se pelas re--
poder, em especial pela as- Eles buscam então se aliar aos níveis inferiores da elite do poder. Por isso,
cend ência da fração militar (os senhores da guerra) í
sobre as demais. Seria tanto Mills como Bourdieu veem as lideranças dos trabalhadores manipulando
f ácil sugerir que suas diferentes ê nfases refletiam as
diferentes posições ocu - í e controlando seus liderados ; e a ideia da representação n ão passa de figura
padas pelos Estados Unidos e pela França na ordem
uma potê ncia militar; a segunda, uma nobreza cultural.
global —
o primeiro, retórica usada como recurso para, simultaneamente, perseguir e esconder os
jogos que ocorrem nas altas rodas do poder. Os ensaios “A opinião p ú blica
Se h á alguma divergê ncia na conceituaçã o da classe
n ão existe” 8 e “Os usos da ideia de ' povo’” escritos por Bourdieu , seguem
9
dominante, h á mais
convergência em suas respectivas abordagens da classe
média. O tema que o mesmo ceticismo manifesto por Mills quanto à sociedade de massas.
perpassa ambos os autores é a instabilidade da classe m é ,
dia tentando manter Mas , lado a lado a esse ceticismo expresso por Mills , sempre havia
sua posição na hierarquia da sociedade. Conforme diminui
certa vis ã o pol ítica alternativa , embora ela se tornasse mais e mais ut ó pica

classe operá ria e as classes médias em especial em rela
médias, sujeitas à desqualificação profissional, mas
o abismo entre a
ção às velhas classes
també m em relação às
com o passar do tempo. Os novos homens do poder descreve os líderes
oper á rios absorvidos pela elite do poder como c ú mplices da “corrente do-
novas classes médias, sujeitas à ascendê ncia à burocracia ,
destas quanto à perda do status social. A educa ção , —
cresce o pâ nico
como forma de capital,
minante ” ; mas o livro mapeou també m o campo político do período logo
apó s a Segunda Guerra Mundial , como sendo um conjunto de p ú blicos que
-
torria se mais importante que a propriedade económica para
afirmar a distinção inclu ía a Extrema Esquerda (a esquerda leninista), a Esquerda Independen-
da classe m édia. Muito de A nova classe média é
dedicado à crescente impor- te ( mais crítica que a ala intervencionista ) , o Centro Liberal ( que podia
tâ ncia da educação na distin ção, mas també m ao
papel da m ídia de massa e do inclusive apoiar os sindicatos ), os Comunistas (que ele via como a quinta-
mundo ilusório que ela cria. Mills devotou grande espaço
nesse livro ao desti- coluna antidemocrática), a Direita Pragm á tica (que apoiava as lutas de
no dos intelectuais , com sua perda de independ ência e de
autonomia pela bu- classe contra os sindicatos e a esquerda ) e, por fim, os Conservadores So-
rocratização, tornando-se mera tecnocracia serva do poder
e sem compromis- fisticados ( empresá rios liberais ligados ao complexo industrial - militar que
so com os p ú blicos da sociedade. Em termos diretamente des-
análogos àqueles viam os sindicatos como uma força estabilizadora que controlaria os
usados por Bourdieu , Mills mostrou como o campo acad ê esperava que
mico se estava tor- contentes). Como tantos outros cronistas do seu tempo , Mills
nando mais e mais parecido com o campo econ ó mico,
colonizado pela ló gica o capitalismo sofresse outro “ percalço” , o que faria com que os Conserva -
do capital privado.
dores Sofisticados mostrassem o peso de sua m ão . Isso també m atrairia
Quanto à questão da classe trabalhadora ,
tanto Bourdieu como Mills ti - apoio popular ao autêntico Partido Operá rio ( Mills apoiou em 1948 a ten-
nham pouco a dizer. A miséria do mundo4 o livro
Bourdieu — —
foi uma interessante exploração (embora sem
mais etnogr áfico de
teorias) da vida
tativa de Norman Thomas como candidato à presid ê ncia pelo Partido So-
cialista ) movimento que organizaria o controle da produ çã o pelos traba -

da classe trabalhadora, ao passo que A distinçã 5
o foi amplamente dependen- lhadores e a planifica ção democrá tica . O socialismo , dizia Mills , havia sido
te da pesquisa quantitativa ( survey ) . A
cultura da classe trabalhadora é a tirado dos trilhos pela social - democracia , pelo sindicalismo mi ú do e pelo
cultura dominada , sens ível às necessidades econ ó
tígio da cultura dominante. A análise feita por
micas prementes e ao pres- comunismo autorit á rio . Inevitavelmente, Mills esperava por uma nova mo-
Mills sobre a classe trabalha- —
dalidade de intelectual: o “intelectual operá rio” ao mesmo tempo inde-

164 165
O MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU .
O S INTELECTUAIS E SEUS P Ú BLICOS * BOURDIEU HERDA WRIGHT M I L L S

pendente e comprometido com a classe trabalhadora, capaz


de forjar uma m burocratização da sociologia e, de forma mais geral, mostra quanto os intelec-
nova visão e uma nova vontade coletiva . * tuais estão cada vez mais subservientes ao mundo corporativo , atuando como
Esse otimismo expresso por Mills não duraria muito tempo. A reação I
logo consultores especialistas ou como analistas da opinião pú blica . A grande teo-
varreria o país inteiro e, enquanto escrevia A nova classe média , o m
autor se ria, por sua vez, referia-se ao predom ínio do estrutural-funcionalismo dentro
deparava com outro cenário bem mais sombrio. Ali ele se
referiu às classes 9 do mundo teó rico: uma teoria formal, misteriosa e inacessível , a n ão ser à
m édias como uma retaguarda sem projeto político nem vontade pró pria, %
to- elite dos iniciados que gravitava em torno de Talcott Parsons. A grande teoria
mando partido das forças dominantes na sociedade, as quais, *iff
na hipótese de l ergueu sua elaborada (embora vazia ) arquitetura com pretensões certamente
uma crise, desabariam juntamente com as elites do poder. Já quando 9
escreve £
í
mundanas, poré m , carentes de conteú do. Contra o empirismo alienado e a
A elite do poder, Mills está dominado pelo desespero. Denunciando
o “cresci - i grande teoria, Mills celebrava o sociólogo enquanto artesão, o qual desenvol -
mento da imoralidade” e a “irresponsabilidade organizada” das ff
classes e elites via a teoria sociológica através do envolvimento com os dados empíricos so-
dominantes, sua imaginação política refugia-se do futuro sombrio em
um pas - ciais. Ele decerto pintou o quadro rom â ntico do soci ólogo isolado e ainda n ão
sado radiante. Ele contrapõe a sociedade de massas que via a
seu redor com a
democracia dos pú blicos: a aspiração fundante e a prá tica original
contaminado e n ão corrompido pelo ambiente acadê mico o retrato do seu—
de estadunidense. Mills nunca se reconciliaria com seu
da socieda - próprio isolamento e afastamento da universidade . Essa imagem era uma con -
contexto presente ; cepção totalmente antissociol ógica a respeito da sociologia profissional esta-
nunca capitularia na batalha intelectual por outro mundo. Assim
dieu, os acontecimentos contemporâ neos e sua trajetória
como Bour-
biográfica empurra -

dunidense, como uma luta maniqueísta entre o bem e o mal o que justificou
sua pró pria retirada daquele mundo.
ram-no mais e mais para dentro da arena pú blica.
Se o personagem principal de A imagina ção sociol ógica é o “ soci ólogo
como artesão”, seu personagem coadjuvante é o “intelectual independente” ,
olhando mais para fora ( a esfera p ú blica ) que para dentro ( a academia ). Aqui
A imaginação sociol ógica também haveria dois pecados a evitar, a saber, de um lado , o sociólogo como
conselheiro dos príncipes , o tecnocrata , o consultor; e , por outro lado, o soci ó-
Mas n ã o antes do adeus à sociologia! A imaginação sociológica 10 logo como rei -filósofo que aspiraria a dominar o mundo . O conselheiro dos
foi o presen-
te de despedida dado por Mills à sociologia

obra que figura entre as mais
amplamente lidas e que representa uma das inspiradoras t
príncipes e o rei-filósofo são os correspondentes, no dom ínio político , do em *

introduções ao pen- pirista abstraído e do grande teórico, no dom ínio acadê mico; já o intelectual
sarnento sociol ógico. Publicada em 1959, apenas três independente, por sua vez, é a imagem-espelho do sociólogo como artesão. O
anos antes da sua morte
em 1962, esse livro aponta para duas direções: para tr intelectual independente dirige-se igualmente aos pú blicos e aos l íderes, manten-
ás, para a sociologia; e
para frente, para a política. A mirada para trás foi
uma devastadora e memorá- do, entretanto, certa distâ ncia de ambos . Aqui , com efeito, a imagem que Mills
vel condenação da sociologia profissional
estadunidense, dos pecados do em- esboçara do sociólogo pú blico — um conceito que ele descreveu , mas n ão
pirismo alienado e da grande teoria*. O empirismo
alienado referia -se às pes-
quisas quantitativas divorciadas de quaisquer contextos

nomeou é mais a do intelectual tradicional que a do intelectual orgâ nico.
A conex ão entre o soci ólogo como artesã o e o intelectual independente
teóricos ou históricos;
pesquisas tipificadas, na visão de Mills, pelo trabalho

chefe titular com quem tivera um relacionamento
de Lazarsfeld
bem tempestuoso. O em -
seu — seria feita pela noção de imaginação sociológica que, como sabemos, transfor-
ma problemas privados em questões pú blicas. Mas se vê aqui certo lapso entre,
pirismo alienado, ao aproximar-se das pesquisas de
mercado, exemplifica a de um lado, a sempre citada imaginação sociol ógica, a conexão entre o am -
biente social e a estrutura social , o micro e o macro; e, por outro lado , a jamais
* Grande teoria. Termo depreciativo cunhado por Wright Mills ’ descrita imaginação política que conectaria os tais problemas privados às ques-
n A imaginação sociol ógica para
se referir a formas de teoriza ção altamente abstratas,
em que a ordem e o arranjo formal dos tões pú blicas. Isso serviria para demonstrar ( citemos como exemplo ) que o
conceitos ganham prioridade sobre o verdadeiro entendimento desemprego n ão é um problema de indolê ncia individual , mas um problema
dos fenômenos da sociedade.
Seu principal alvo ali era Talcott Parsons. Cf. Parsons,
The social systems , 1951 . ( N . do T.) da economia capitalista. E isso seria outra forma de transformar aquele conhe-

166 167
O MARXISM O ENCONT RA
BOURDI EU
OS INTELEC TUAIS E SEUS P ú BLICOS : BOURDI EU HERDA WRIGHT MILLS

cimento sociológico em uma demanda


p ú blica ou em um movimento
cunhagem de conceitos esotéricos . Pois, para que a “ nova ciência” fosse
52
Entretanto, explicitar os determinantes social ,
estruturais que d ão origem aos proble
mas individuais é algo que tenderi - aceita no panteão acad êmico francês, era necessário que ela adotasse o estilo
a a provocar mais a apatia e a rendi -
indivíduos que propriamente o seu ção dos de escrita da disciplina com o maior prestígio no campo erudito, a saber, a fi
engajamento. Os novos homens
A nova classe média e A elite do do poder, losofia. E , enquanto denunciava o distanciamento da filosofia perante a reali-
poder, cada qual a seu modo, s
tentam cruzar o abismo que separa a ão livros que dade cotidiana, Bourdieu , por outro lado, imitava o estilo retórico dos filósofos
sociologia da prática política e, ao
isso, mostram como é dif ícil erguer fazerem para, com isso, garantir prestígio à sociologia. Por isso, ele se privou do aces-
e cruzai essa ponte.
so aos pú blicos mais amplos que tanto buscou atingir. Mills sofreu do proble-
*

Mas haveria mesmo alguma audiê


ncia para a qual os sociólogos pú
segundo Mills poderiam dirigir
-se? Todas as obras dele apontam para blicos ma contrário: ao tornar seus livros mais acess íveis aos pú blicos e ao resistir
parecimento dos pú blicos , o desa- aos jargões da ciência e da grande teoria, ele acabou perdendo credibilidade
devido à ascens ão da sociedade de
assim , com quem os sociólogos ú
lemas também perpassam os trabalho
p blicos poderiam dialogar?
massas. Sendo
Os mesmos di -

dentro do universo acadêmico. Reagindo a desafios opostos Bourdieu abra-
ç ando a ciência contra o senso comum e Mills abraçando o senso comum
prias facetas. A profissão de
s de Bourdieu , embora com
sociólogoll, escrito em 1968 em
Chamboredon e Passeron, como o próprio colabor
suas pró
ação com
- —
contra a ultraciência , ambos convergiram no entendimento acerca da meto-
dologia , entendimento representado pela ideia do artesanato como unidade
título sugere, dialoga diretam
com Mills e sua noção de sociólogo ente interativa da teoria com a pesquisa empírica.
como artesão. O livro critica tanto o exis
tencialismo (o correspondente sartrian
o do estrutural funcionalismo
-
- Assim como Mills, Bourdieu também era comprometido com a ideia do
no) como a reação a ele, na forma -
parsonia . intelectual independente. Além disso, seus alvos eram os mesmos. De um lado,
.
estadunidense Como Mills, o trabalho
da importação irresponsá vel do

teoria com a pesquisa empírica: a primeira


de Bourdieu é o contínuo di
empirismo
álogo da

ele denunciava o rei- filósofo o chamado “intelectual total” encarnado por
Jean -Paul Sartre e também por Beauvoir e Foucault e, por outro lado , ele
Muito raramente Bourdieu se deixa
n ão poderia subsistir sem a
levar pelos voos da fantasia teó
segunda , condenava o conselheiro do í pr ncipe, os tecnocra tas , os especialistas, os con -
afirmações teóricas eram sempre
empiricamente fundamentadas
rica; suas -
sultores do Estado nação , todos servos do poder. O rei - ósofo , quer dizer, o
fil
lado, ele seguia textualmente . Por outro intelectual p ú blico como intelectual total , dizia mais respeito à realidade da
Bachelard o fil ósofo francês da ci
insistir na ruptura entre a ciência e
o senso comum, o qual ele
“sociologia espontânea”. No caso particular denom

ê ncia ao
inava
França, e n ão tinha sua contracópia nos Estados Unidos. Entretanto, a despei-
to do maior prestígio que os intelectuais desfrutavam na Franç a, Bourdieu
da sociologia, tal ruptura torna
especialmente importante, pois
os problemas corriqueiros a respeito -se enfrentava os mesmos dilemas que Mills. Nenhum dos dois percebeu qualquer
qualquer pessoa tem algo a dizer
são sua matéria-prima. No
dos quais pú blico externo com quem pudesse dialogar ou se engajar. Mills falava da
vida acadêmica, Bourdieu decorrer da sua sociedade de massas atomizada, afastada, alienada da prática política e do
travou diversas lutas contra os

amadorismo os “dox ósofos” como
os problemas cotidianos mais que —
coment
ele dizia que reivindicavam
adores por
conhecer
debate pú blico, ao passo que, para Bourdieu , o problema era (se é que era)
muito mais sério. O habitus é tão inculcado, que os dominados são insensíveis
os sociólogos.
Muito embora a França fosse o berç às críticas ou ataques à dominação , Alé m do mais, os intelectuais independen -
o da sociologia, sempre houve
dificuldade em desenvolver uma sociolo lá certa tes, em ambas as visões, enfrentam o poder da mídia e dos próprios mediado-
gia profissional autónoma,
dente da reforma social e do discurs indepen - res . Tanto Mills como Bourdieu jamais deixaram de atacar o poder da m ídia
o p ú blico. Nesse sentido, o
dêmico de Bourdieu era bem
diferente daquele vivido por Mills:
contexto aca- em determinar a mensagem e mesmo em distorcer a pesquisa que se transfor-
13
primeiro travava imensas
batalhas para criar uma ciência contra
enquanto o ma na mensagem . Mills nunca escreveu nenhum livro como Sobre a televisão
o segundo vivia sufocado pelo profissio o senso comum, de Bourdieu , mas ele bem que poderia ter escrito .
nalismo e lutava para
mente ao senso comum. Pelo conectá-lo nova- Quer tenham buscado isso ou n ão, ambos os autores (embora Bourdieu mais
menos em parte, isso contribuiu para
seus estilos de escrita quase opostos
: Mills era sempre simples e
conformar que Mills) se tomaram celebridades em suas respectivas épocas, graç as à feroz
Bourdieu era dominado por constru acessível; e oposição política que fizeram . Eles se tornaram espetáculos midi á ticos por
ções sintáticas compridas, complexas e pela
direito próprio; e, quanto mais brandiam e ralhavam contra a mídia , mais cé -
168
169
O MARXISM O ENCONT RA BOURDIE
I
U
05 INTELEC TUAIS E SEUS PÚ BLICOS: BOURDI EU HERDA WRIGHT MILLS

lebres se tornavam! No entanto, ambos se


opuseram à ideia do intelectual or
gâ nico capaz de driblar a mídia e
se engajar diretamente com seus pú blicos
- cuta , ianque!15 apontava para um contexto alternativo —
um socialismo que
não seria nem capitalista nem comunista . A revolução cubana serviu para tor-
Em teoria, os autores eram contra a figura
na tese de que ele comprometeria sua
do intelectual orgânico, com
independ ência; mas, na prática, suas
atitudes foram outras. Wright Mills nunca particip
base
.

%
í -
nar essa alternativa algo real. Escuta, ianque! foi baseado em uma curta visita
de Mills a Cuba em 1960. Lá, ele passou “longos” três dias e meio com Fidel
protesto coletivo; raramente assinav
ou de nenhuma passeata ou I Castro e o dobro do tempo com o chefe do Instituto para a Reforma Agrária.
a petições e evitava ao m á ximo lidar
o povo, o qual ele desdenhosamente com Nesse relato da revolução cubana atrav és das lentes dos seus l íderes, Mills
denominava a massa. Ele foi o intelectual
tradicional puro e típico, dirigindo-se ao povo aI apontou os notáveis experimentos em planejamento económico , a expansão do
a partir das alturas , do p ú lpito .
Bourdieu , entretanto, era bem diferente: ensino básico, o fornecimento de serviços sociais e a reforma agrária então em
*
assinar petições; estava sempre pronto
de audiê ncia ; podia ser visto com
estava sempre pronto a iniciar ou
a dialogar com todo tipo de público e —
curso políticas que seriam reconhecidas como uma das principais marcas
do socialismo cubano. Ele se dispôs a analisar as classes e as forças sociais que
frequência discursando para operários
piquetes . Ele n ão tinha alergia ao povo em conduziam as transformações na ilha, bem como as forças reacionárias que se
em nome do qual falava ; muito pelo
contr ário: nutria grande simpatia por aqueles
que jaziam na base das hierarquiias ! —
opunham a elas e esse apoio à contrarrevolução não vinha senão dos Estados
da sociedadef
;J
— simpatia que foi expressa com ênfase
em que narra o sofrimento das classes em A miséria do mundo,
subalternas e dos imigrantes no capita
Unidos! Ele narrou os desafios enfrentados por Cuba tanto nacionalmente como
mundialmente. A aberta hostilidade manifesta pelos americanos, disse Mills,
lismo contemporâneo. E aqui jaz o seguinte
paradoxo: conforme sua pr ópria
- estava empurrando Cuba para as mãos da União Soviética, que intensificava
teoria, tal engajamento sem intermedi
ários era uma atividade n ão apenas in
as ameaças militares aos Estados Unidos. Escuta, ianque! foi dirigido àquele
til, mas também perigosa. Mills foi ú- pú blico estadunidense aturdido pela imprensa chauvinista , com respeito à tra-
sempre mais fiel à ideia do intelectual
tradicional, mas mesmo ele, nos últimos três jetória destrutiva do imperialismo “ ianque” na América Latina (em especial
anos de vida, comprometeria sua
independência em uma desesperada
militância partidária. I
i

quanto a Cuba) imperialismo justificado pela Doutrina Monroe* . A revolu -
ção cubana , disse Mills, deveria ser vista como uma reação ao império, como

uma experiência verdadeiramente democrática experiência com a qual todos
os povos conscientes poderiam aprender e que deveriam defender.
Da sociologia à prática pol ítica
A imaginação sociológica, o mais
Ii< Foi apenas dois anos antes do fim dos seus 46 anos de vida que Mills des-
cobriu o potencial das revoluções do Terceiro Mundo. Ele estava muito à fren-
conhecido trabalho de Mills a resistir à !
prova do tempo, foi com certeza seu te do seu tempo. Nessa classe de análise, por sua compreensão do imperialismo
adeus à sociologia. Em seus últimos
anos de vida, Mills tornou-se um intelectual três e do colonialismo, por sua concepção da democracia socialista, Escuta, ianque!
I
livros polêmicos que pretendiam capturar
ro deles foi As causas da Terceira
público, escrevendo dois pequenos
a imaginação dos leitores. O primei
Guerra Mundial 14, em que dava sequência
-
f
de Mills16 foi o precursor de Os condenados da Terra de Fanon livro que
viria a pú blico no ano seguinte, o mesmo da morte do seu autor aos 35 anos.

aos argumentos já desenvolvidos em A elite
do poder, condenando o “realismo
Essas duas vidas — —
a de Mills e a de Fanon findaram com três meses de
ensandecido” e a “irresponsabilidade organiza
Unidos, mas também da União Soviética
estariam anunciando a Terceira Guerra
da”

não apenas dos Estados
. Juntas, essas duas potências mundiais
diferença , inspirando, cada qual a seu modo, in ú meros movimentos sociais ao

* Doutrina Monroe, declaraçã o que re ú ne os princípios da pol ítica externa dos Estados Unidos
Mundial. Ele conclui o livro com um
apelo aos intelectuais para lutarem com relação aos direitos e às atividades das pot ê ncias europeias no continente americano. Foi
juntos contra a insanidade da “ elaborada pelo presidente James Monroe (1758-1831) em 1823 e alçada à categoria de princípio
de sem raz ão”. racionalida-
em 1845, embora sem ser respaldada por nenhuma legisla çã o explícita . Por meio dela, Monroe
O segundo livro apresentava uma afirmou que as potências europeias não poderiam continuar mantendo colónias na Amé rica e
natureza bem distinta. Se em As causas
da Terceira Guerra Mundial, Mills frisou que não deveriam intervir nos assuntos das recentemente emancipadas rep ú blicas lati-
diagnosticou o modo pelo qual no-americanas . A Doutrina Monroe foi utilizada durante a Guerra Fria para legitimar o inter-
poder das superpotências encabe as elites no
çavam a aniquilação da espécie vencionismo estadunidense na Am é rica Latina , com a alega ção de afastar a suposta “amea ça
humana, Es- .
soviética”. (N do T.)

170
171

1
O AMKX /SAÍ O ENCONTRA BOURD1EU
I -
.
OS INTELECT UAIS E SEUS P Ú BLICOS * BOVRDiEU HERDA WRIGHT MILLS
í
£
redor do globo. Ambos perceberam que o papel
-chave do intelectual era dar à Nós não deveríamos nos comprometer com tomadas de posi ção pú blicas se não
luz a revolução; entretanto, Mills chegaria a
essa ideia só mais tarde, quando ¥ tivermos, em cada ocasi ão dada, o sentimento ( talvez ilusório) de sermos forçados a
começou a viajar para o exterior e para a Amé I:
rica Latina em especial, onde I isso por algum tipo de irritação legítima , às vezes parecida com algo como o dever.
descobriria a importância da teoria revolucion á ria que
anteriormente ele des- [ . ..] Eu tenho feito isso sempre na esperança de, se não desencadear a mobilizaçã o ou
prezava como sendo enganação marxista. 6
alguns daqueles debates sem objetivo nem conte ú do que periodicamente tomam a
Da mesma maneira que Mills se tornara ainda m,
mais franco e radical nos mídia, ao menos estilhaçar a aparê ncia de unanimidade , de aquiescência que constitui
ú ltimos três anos de vida , Bourdieu , na ú t:
ltima década de atividade intelectual , i a maior parte da forç a simbó lica do discurso dominante20.
também se tornaria mais agressivo, mais
acusatório , mais pú blico e mais po-
lítico. Ele sempre havia considerado a sociologi
a (pelo menos a sua sociologia) Evidencia-se aqui certa tensão entre a lógica da teoria e a lógica da prá tica.
como algo com potencial político intrínseco,
no sentido que ela revelaria os Sua teoria dizia que tais intervenções eram in ú teis e nocivas ; mas ele poderia
alicerces escondidos da dominação. Não obstante,
ocorria uma guinada con- I faz ê-las com base na suposição de que elas desbloqueariam o debate p ú blico,
servadora da política na França e no mundo, o
que o deixaria cada vez com estilha çando a violência simbólica. Em uma an álise final , ele fazia crer que
mais desgosto e irritação. Em Sobre a televis
ão, de 199617, e, logo depois, nas seus próprios ataques à ideologia e à consciê ncia eram fracos demais para
duas pequenas coleções de ensaios Atos de
resistê ncia, de 1998 l 8, e Contrafo- atingir a profundidade da dominação. No fim , a despeito do que ele mesmo
gos , de 200119, Bourdieu bradou abertame
nte contra o neoliberalismo e as ti - dissera na teoria , Bourdieu n ão podia sen ão adotar a ideia tanto do intelectual
ranias do mercado. Ele fundou sua própria
para publicar livros politicamente motivado
editora
— Liber Raison d ’ Agir — i
orgâ nico , engajado diretamente com seus públicos, como a ideia do intelec-
tual tradicional, falando a partir da tribuna e dirigindo-se à humanidade.

revista Actes de la Recherche em Sciences
de audiê ncia acad êmica . Ele se tornou
s e publicamente acessíveis . Sua

Sociales sempre obteve gran-
ainda o porta -voz da frente ampla de
esquerda na França e também se empenhar
ia em desenvolver o que ele deno-
minava “a internacional dos intelectuais ”. Ele Conclus ão : para al ém de Mills e Bourdieu
podia ser encontrado em pique-
tes com operários, bem como escrevendo
cartas abertas a líderes proeminentes, \ Com seus trabalhos, Bourdieu defendeu a academia como o ref ú gio da ver-
protestando contra violações dos direitos i
humanos . Ele comprometeu se com
- dade ; mas ele também nos advertiu sobre os riscos de certas “ ilus õ es ou falá -
a ideia dos intelectuais como força coletiva
: os “intelectuais orgânicos da hu

manidade” como dizia. Wright Mills tinha concep
ção semelhante dos inte-
- cias escolásticas” que impediriam o reconhecimento da situação particular da


lectuais como “ terceira coluna” ideia que
Segunda Guerra Mundial , quando lecionav
ele havia formulado já durante a
a na Universidade de Maryland ;
academia. Quer dizer, o perigo é que os intelectuais não compreendam a po-
sição e a condição a partir da qual escrevem e discursam e, com isso, univer-
ideia, aliás, que o acompanhou até seus ú salizem indevidamente o conhecimento que produzem ali . Eles falsamente
ltimos dias. reduziriam a lógica das coisas à s coisas da lógica e cairiam na armadilha in-
Mas aqui encontraremos o seguinte paradoxo
: Bourdieu reconhecia que telectual de admitirem que todas as pessoas comuns pensam como eles, veem
o papel das ideias podia ter efeito apenas
limitado nas mudanç as da socieda - o mundo por suas lentes e conforme seus modelos . Pelo menos a princ í pio,
de. Os dominados até poderiam
manifestar interesse na mensagem das so-
ciologias crítica e p ú blica, porém , jamais os sociólogos conseguem evitar de forma mais eficiente essas fal ácias. Dado
conseguiriam compreender seu seu engajamento com o mundo ( mesmo à distâ ncia ) , os soci ólogos est ão em
significado , tendo em vista que seus
habitus submissos são demasiado pro-
fundos; já aqueles que conseguiriam compreender melhores condições de criticar tais falácias, reconhecendo as diferenças entre
o significado da sociologia a lógica da teoria e a lógica da prática.
não teriam nenhum interesse na mensagem
transmitida. Então, afinal, o que Mas algu ém poderia afirmar que Bourdieu padecia de uma fal ácia escol á s-
Bourdieu pretendia quando discursava para
trabalhadores, escrevia polêmicos tica invertida , com sua suposi çã o conforme a qual a academia seria o ú nico
artigos e discutia a televis ão ? No pref ácio
aos Atos de resistência, ele parece
dar a resposta: lugar de produção de verdades legítimas e que a ciê ncia leiga seria necessaria -
mente equivocada21 . Para ele, o saber leigo não seria senão a matéria- prima a

172
173
%
E
O MARXISMO ENCONTRA B O U R D I E U
I .
O S INTELECTUAIS E S E U S PÚ B L I C O S ’ BOURDIEU H E R O A W R I G H T M I L L S
SS

partir da qual o conhecimento científico seria criado. Portanto, Bourdieu pre


sume que os acadêmicos detêm o monopólio da verdade; e eis por que ele
- %
W
I

i
representariam os interesses da humanidade por meio da ci ê ncia assim como
Comte os imaginara. Há, porém, outra concepção desse intelectual coletivo,

defende a academia tão vigorosamente contra as forças políticas e económicas
l tendente a basear-se em uma solidariedade orgânica especializada em conhe-
que ameaçam sua autonomia . Mills cometera a mesma fal ácia escol ástica , í
cimentos diferenciados mais interdependentes que dariam origem à divisão
\
afirmando que os intelectuais deteriam o monopólio da verdade cient ífica
— disciplinar do trabalho acad êmico. Fundamentando essa solidariedade e justi -
contanto que não sucumbissem a determinadas patologias, tais como o empi- fí
ficando sua especialização, estariam concepções de liberdade, de igualdade e
rismo alienado e a teorização grandiosa . Como Bourdieu , Mills pronunciou -se .

de racionalidade que todos nós partilharíamos. Esse sociólogo coletivo , unido


acerca das coisas do mundo com absoluta confiança na clareza da sua posição, então pela solidariedade orgânica, olharia para duas direções: para frente, rumo
desprezando ou desacreditando as perspectivas alternativas . ao desenvolvimento do conhecimento profissional e sua cr ítica, e para trás,
Entretanto, as abordagens contemporâneas sobre a ciê ncia pensam a pro
- transformando aqueles famosos problemas privados em questões públicas. Para
du ção do saber como uma atividade em conjunto , como uma colaboração entre os sociólogos coletivos de hoje , enfrentando a industrialização da universida-
cientistas e leigos. Tal como observei no final do capítulo II sobre Gramsci , há :
de e a mercantilização do conhecimento, já n ão bastaria expandir a imaginação
lugar no mundo tanto para os intelectuais tradicionais como para os intelectuais sociol ógica, esperando que ela magicamente se impregnasse no mundo l á fora ;

orgâ nicos respectivamente, aqueles que insistem na separação perante a
sociedade que estudam e aqueles que estã o profundamente comprometidos
o sociólogo coletivo também precisaria hoje da imaginação política que levas-
se aquelas ideias para o diálogo com diversos públicos. Devemos considerar
com ela. Ao invés de serem mutuamente excludentes, esses dois tipos de inte nao apenas a produ ção da ci ê ncia social , mas també m sua distribui çã o e seu
-

lectuais sã o reciprocamente interdependentes o que nos leva à segunda fa
lácia escolástica de Bourdieu e Wright Mills . Se a primeira fal ácia
reside na
- consumo. Finalmente, o holofote reflexivo que fora voltado contra Marx , acu -
sando-o de ser incapaz de entender os efeitos da sua pró pria teoria , poderia ser
visão elitista do conhecimento como saber produzido tão somente pelo
inte- direcionado igualmente contra Mills e Bourdieu, por terem fracassado em de-
lectual refugiado na cidadela acadêmica, a segunda falácia baseia se em redu
-
zir o soci ólogo ao simples artesão, ao indiv íduo isolado como fonte pura do
- senvolver teorias acerca da própria contribuição ao debate p ú blico.
>

conhecimento sociológico, ao intelectual renascentista que é ao mesmo tempo


crítico , pesquisador, especialista e comentarista. Para ser exato, h á
certamente Notas

tais indivíduos no mundo como Mills e Bourdieu o provaram. Entretanto,
a maior parte dentre n ós tem uma posição mais modesta na academia, especia
- 1 Bourdieu , 1991.
lizando-se em determinados conhecimentos: o profissional, o crítico, o pú
bli- 2 Mills, 1959a.
co e o aplicado às políticas p ú blicas . 3 Bourdieu , 1984.
O intelectual coletivo que Mills e Bourdieu almejavam quando 4 Idem , 1999a.
falavam em 5 Idem , 1984.
Terceira Coluna ou em uma Internacional dos Intelectuais estaria ligado por
6 Mills, 1948.
uma solidariedade mecânica* . Esta seria a elite dos intelectuais eminentes e
7 Bourdieu, 1991.
un â nimes, pairando sobre a sociedade. Eles seriam pessoas cosmopolitas que 8 Idem , 1995a.
9 Idem , 1990b.
10 Mills, 1959a.
* Durkheim postulou a existência de dois tipos de solidariedade: a primeira Bourdieu, 1991.
( mecânica ) deri- 11
va das semelhan ças entre os agentes sociais e liga diretamente o indiví
duo à sua comunida- 12 Obviamente, Bourdieu e Wright Mills també m foram afetados por estilos de reflex ão e de
de tradicional, criando crenças comuns que são, ao mesmo tempo, a
condição e o resultado redação que prevaleciam em seus próprios campos intelectuais nacionais.
dessa solidariedade. A segunda ( org â nica ) deriva das diferen ças e liga
indivíduos às instituições que compõem as sociedades modernas,
indiretamente os 13 Bourdieu , 1999b.
criando fun ções especia- 14 Mills, 1959b.
lizadas e interdepend ência como condi ções e resultados dessa solidariedade. Cf .
Durkheim , 15 Idem, 1960.
Da divisão do trabalho social, 1995. ( N . do T. )

174 175
o MARXISMO ENCONTRA BOURD / EU

&
16 Idem , 1960.
17 Bourdieu, 1999b.

18 Idem , 1999c.
19 Idem, 2003. I'
-
20 Idem, 1999c, pp. VII VIII. I
m
j;
21 Mesmo A miséria do mundo (1999a), sua v
mais detalhada compilação da vida
nados, trata-se do relato empírico cuja proposta
povo pobre, mas sem entrar em um diá
entre os domi-
era revelar a perspectiva dos imigrantes e do
r
l
logo com eles . Os entrevistadores precisariam i
cautelosos se desejassem elucidar a percepção e a compreens ser 5
ão do povo, para, mais tarde, 7
conseguirem efetuar aquela ruptura com o
senso comum.
BIBLIOGRA FIA
B
I

ADKINS, Lisa e SKEGGS , Beverley (eds.). Feminism after Bourdieu. Cambridge: Blackwell
F
Publishers, 2005.
t
BEAUVOIR , Simone de. The mandarins. Nova Iorque : The World Publishing Company,
&
1956 .
j The second sex. Nova Iorque: Vintage, 1989.
Force of circumstance. Nova Iorque: Paragon House , 1992, voi . I
.
1944 - 1952; vol 2 — -
Hard times, 1952 1962.
— After the war,

BERNSTEIN, Basil. Class , codes and control. Londres e Boston : Routledge & Kegan Paul ,
1971, vol. I —Theoretical studies towards a sociology of language .
. Class, codes and control. Londres e Boston: Routledge & Kegan Paul, 1973, vol . 1
—Applied studies towards a sociology of language.
.
BOURDIEU , Pierre. “R é volution dans la revolution ”, Esprit , nc 1 , jan , 1961 .
The Algerians. Boston : Beacon Press, 1962.
s . “The berber house or the world reversed”, Social Science Information, vol. 9, nfl 1 ,
1970.
! ___ . “The specificity of the scientific field and the social conditions of the progress of
reason ” , Social Science Information, vol. 14, n° 6, 1975 .
“Marriage strategies as strategies of social reproduction ” , in Robert Forster e Orest
Ranum (eds.), Family and society. Baltimore: John Hopkins University Press, 1976.
Outline of a theory of practice . Cambridge: Cambridge University Press, 1977.
. Algeria, I 960 . Cambridge : Cambridge University Press, 1979.
“Men and machines”, in K. Knorr-Cetina e A. Cicourel (eds.), Advances in social
theory and methodology. Boston: Routledge & Kegan Paul , 1981.
Distinction: a social critique of the judgment of taste. Cambridge: Harvard Univer -
sity Press, 1984.
Homo academicus. Cambridge: Polity Press, 1988 .

176 •
177
0 MARXISMO ENCONTRA BOURDIEU Is Ip

16 Idem, 1960.
17 Bourdieu, 1999b. :

18 Idem, 1999c.
19 Idem, 2003 . A
. -
20 Idem, 1999c, pp VII VIII.
21 Mesmo A miséria do mundo (1999a), sua mais
detalhada compilação da vida entre os domi
nados, trata-se do relato empírico cuja
povo pobre, mas sem entrar em
proposta era revelar a perspectiva -
dos imigrantes e do
um diálogo com eles. Os %
cautelosos se desejassem elucidar a percepçã entrevistadores precisariam ser
o e a compreensão do povo, para,
conseguirem efetuar aquela ruptura mais tarde,
com o senso comum . fr

BIBLIOGRAFIA

¥
$
\
ADKINS , Lisa e SKEGGS, Beverley ( eds. ) . Feminism after Bourdieu. Cambridge: Blackwell
Publishers , 2005 .
BEAUVOIR , Simone de . The mandarins. Nova Iorque : The World Publishing Company,
1956.
The second sex. Nova Iorque: Vintage, 1989.
Force of circumstance. Nova Iorque: Paragon House, 1992, vol . I — After the war,

5
l
-
} 944 1952\ vol. 2
— -
Hard times, 1952 1962.
BERNSTEIN, Basil . Class, codes and control. Londres e Boston: Routledge & Kegan Paul ,

1971, vol. 1 Theoretical studies towards a sociology of language .
. Class, codes and control. Londres e Boston: Routledge & Kegan Paul , 1973, vol . 1
— Applied studies towards a sociology of language .
BOURDIEU, Pierre. “Révolution dans la ré volution ”, Esprit , nc 1 , jan . , 1961.
The Algerians. Boston: Beacon Press, 1962.
. “The berber house or the world reversed”, Social Science Information, vol. 9 , na 1 ,
1970.
. “The specificity of the scientific field and the social conditions of the progress of
reason” , Social Science Information, vol . 14, nc 6, 1975.
!•
. “Marriage strategies as strategies of social reproduction ”, in Robert Forster e Orest
Ranum ( eds.), Family and society. Baltimore: John Hopkins University Press, 1976.
.
Outline of a theory of practice Cambridge : Cambridge University Press , 1977 .
Algeria, I 960 . Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
“Men and machines”, in K. Knorr- Cetina e A. Cicourel (eds. ), Advances in social
theory and methodology. Boston: Routledge & Kegan Paul , 1981.
Distinction: a social critique of the judgment of taste. Cambridge: Harvard Univer-
sity Press, 1984.
Homo academicus. Cambridge: Polity Press, 1988.

176
177
o MARXISM O ENCONTR A BO URDI EU m
í
.

BIBLIOG RAFIA
I
BOURDIEU, Pierre. “The corporatism of the í í
universal: the role of intellectuals in the
world ”, Telos nQ 81, inverno de 1989. modem 5
BURAWOY, Michael. “Two methods in search of science: Skocpol versus Trotsky” , Theory
. “Fieldwork in philosophy ” , in In other words ; and Society, vol. 18, nc 6, 1989.
essays towards a reflexive sociology.
Cambridge: Polity Press, 1990a. “For a sociological marxism: the complementary convergence of Antonio Gramsci
. “The uses of the ‘people’”, in In other and Karl Polanyi ” , Politics and Society , vol. 31, n2 2, 2003 .
words essays towards a reflexive
Cambridge: Polity Press, 1990b. sociology. :

The extended case method: Four countries, four decades, four great transformations
Í
The logic of practice . Cambridge: Polity and one theoretical tradition. Los Angeles: University of California Press, 2009.
Press, 1990c. I
Language and symbolic power. Cambrid
ge: Polity Press, 1991.
l BURAWOY, Michael; FAIRBROTHER, Peter; KROTOV, Pavel e CLARKE, Simon . What about
“Public opinion does not exist”, in Sociology the workers? Workers and transition to capitalism in Russia. Nova Iorque: Verso,
— . “Apologie pour une femme rangée”, in Toril in question. Londres: Sage, 1995a.
.
d’ une intellectuelle Paris: Diderot
É diteur, 1995 b.
Moi , Simone de Beauvoir: conflicts I
l
1996.
BURAWOY, Michael e LUK ÁCS, Janós. “Mythologies of work: a comparison of firms in
Rules of art: genesis and structure of i state socialism and advanced capitalism ” , American Sociological Review ,
the literary field. Stanford : Stanford
sity Press, 1996. Univer- I n 9 50, 1985.
Practical reasons: on ,the theory of action.

“What is socialist about socialist production? Autonomy and control in a Hungarian
Cambridge: Polity Press, 1998a. steel mill ”, in Sephen Wood (org .), The transformation of work ? Londres : Unwin Hyman ,
State nobility: elite schools in the field
of power . Cambridge: Polity Press,
Weight of the world: social suffering in 1998b. 1989
_
Press, 1999a.
_ . On television. Nova Iorque:
contemporary society. Cambridge: Polity

New Press, 1999b.


The radiant past: ideology and reality in hungary’s road to capitalism. Chicago:
University of Chicago, 1992 .
— . Acts of resistance: against the tyranny
1999c . .
of the market Nova Iorque:
New Press,
BURAWOY, Michael e WRIGHT , Erik Olin. “Sociological marxism” , in Jonathan Turner,
Handbook of sociological theory . Nova Iorque : Plenun , 2002 .
. Pascalian meditations. Cambridge: Polity CHODOROW , Nancy. The production of mothering: psychoanalysis and the sociology of
, 2000.
. Male domination. Cambridge: Polity PressPress gender. Berkeley: University of California Press , 1978.
. Sociologie de VAlgérie. Paris: PUF, 2001
b.
, 2001 a.
Femininities, masculinities, sexualities: Freud and beyond . Londres: Free Associa -
. Counterfire: against the tyranny of the tion Books, 1994.
. Science of science and reflexivity . Cambrid market . Londres: Verso, 2003.
ge: Polity Press, 2004.
.
CHOMSKY , Noam e HERMAN, Edward Manufacturing consent: the political economy of
. The social structures of the economy the mass media. Nova Iorque: Pantheon Books, 1988.
. Cambridge: Polity Press, 2005.
. Sketch for a self -analysis. Chicago: Universit DU BOIS , William Edward Burghardt . The souls of black folk . Nova Iorque: A.C. McClurg,
. The bachelors ball. Chicago: University of y of Chicago Press, 2007.
1 1903.
. Political interventions: social science and Chicago Press, 2008a. The Philadelphia negro. Filad élfia : University of Pennsylvania Press , 1996.
BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain; RIVET
political action. Londres:
Verso, 2008b. DURKHEIM , Émile. The elementary forms of religious life. Nova Iorque: The Free Press,
, Jean-Pierre e SEIBEL, Claude
vailleurs enAlg érie . Paris: Mouton , 1963. . Travail et tra - 1965.
BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean FANON, Frantz. The wretched of the earth . Nova Torque: Grove Press, 1963.
-Claude. Reproduction in education, society and cul . Black skin, white masks. Nova Iorque: Grove Press, 1967.
ture. Londres: Sage, 1977. -
BOURDIEU , Pierre; PASSERON, Jean FRIEDAN , Betty. The feminine mystique . Nova Iorque: Norton , 1963.
-Claude e CHAMBOREDON, Jean-Claude. The craft of
sociology: epistemological preliminaries FUNG, Archon e WRIGHT, Erik (eds.). Deepening democracy: institutional innovations in
BOURDIEU, Pierre e SAYAD, Adbelmalek
. Nova Iorque: Aldine de Gruyter, 1991. empowered participatory governance. Londres: Verso, 2003.
. Le déracinernent: la crise de Vagriculture GEERTZ, Clifford. The interpretation of culture. Nova Iorque: Basic Books, 1973.
tionnelle enAlg érie. Paris: Editions de tradi -
Minuit, 1964.
BOURDIEU , Pierre e WACQUANT, Lo'ic. An GERTH, Hans e MILLS, Charles Wright. Character and social structure: the psychology of
invitation to reflexive sociology. Chicago: social institutions. Londres: Routledge & Keagan Paul , 1954.
versity of Chicago Press; Cambridge
: Polity Press, 1992. -
Uni
BURAWOY, Michael. The colour of GERTH , Hans e MILLS, Charles Wright , (eds . ) . From Max Weber: essays in sociology. Lon -
class on the copper mines: from African
zambianization. Lusaka: University of Zambia advancement to dres: Routledge & Kegan Paul , 1948.
Press, 1972. GOULDNER , Alvin. The coming crisis of western sociology. Nova Iorque: Basic Books,
. Manufacturing consent: changes in
the labor process under monopoly capitalism 1970 .
Chicago: University of Chicago Press,
1979.
.
The politics of production: factory . The future of the intellectuals and the rise of the new class. Nova Iorque: Seabury
regimes under capitalism and
Verso, 1985. socialism. Londres: Press, 1979.
GRAMSCI, Antonio. Selections from the Prison Notebooks. Nova Iorque : International Pu -
blishers, 1971.

178
179
O MARXISM O ENCONTR A BO 3
URDI EU
BIBLIOGR AFIA

GRAMSCI, Antonio. “The americanism and the


tebooks. Nova Iorque: International
fordism”, in Selections from the Prison No
Publishers, 1971. - .
MOI, Toril “Appropriating Botirdieu : feminist theory and Pierre Bourdieu ’s sociology of
Selections from Political Writings , 1910 culture” in What is a woman ? End other essays . Oxford : Oxford University Press ,
1977.
-1920. Londres: Lawrence and Wishart , I 1999 .
HABERMAS, Jurgen. The theory of commun “ While we wait: the english translation of The second sex" , Signs , vol. 27,
icative action , 2 vols. Boston: Beacon, 1984. i
HALL, Stuart. “The rediscovery of ‘ ideology n2 4, verão de 2002.
’: return on
M. Gurevitch, T. Bunnett, J. Curran e S. Wollacot ( the repressed in media studies”, in PARSONS,Talcott. The structure of social action. Nova Iorque : McGraw Hill , 1937 .
t eds.), Culture, society and the media
Londres: Methuen , 1982. . The social system. Nova Iorque: Free Press, 1951.
.
HILL COLLINS , Patricia “Learning from Tt POULANTZAS, Nicos. Political power and social classes. Londres: New Left Books, 1973.
the outsider within: the sociological significan
black feminist thought”, Social Problems, vol
. 33, ce of .
PRZEWORSKI, Adam. Capitalism and social democracy Cambridge : Cambridge University
-
. Black feminist thought: knowledge, consciou na 6, out. dez., 1986. i
i
Press , 1985.
sness, and the politics of empowerment.
Londres: Routledge, 1991. PRZEWORSKI , Adam e SPRANGE, John . Paper stones: a history of electoral socialism.
. Fighting words: black women and the search for h- Chicago: University of Chicago Press, 1986.
justice. Minneapolis: University
of Minnesota, 1998. .
RUBIN, Gayle “The traffic in women : notes on the ‘ political economy ’ of sex” , in Rayna
HOCHSCHILD, A. R. “Emotion work , feeling
rufes, and social structure”, American . .
Reiter (ed.) Toward an anthropology of women Nova Iorque: Monthly Review Press,
of Sociology , vol. 85, n2 3, 1979. Journal 1975 .
Managed heart. Berkeley: University SALLAZ, Jeffrey. “The house rules: autonomy and interests among contemporary casino
of California Press, 1983.
INKELES , Alex e SMITH, David H. Becomin croupiers” , Work and Occupations, vol. 29, n2 4, 2002.
g modern: individual change in six
countries. Cambridge: Harvard University
Press, 1974.
developing -
SARTRE, Jean - Paul. Anti semite and Jew. Nova Iorque: Shocken Books, 1965.
LE SUEUR , James. “The politics of
othering: Jacques Berque, Levinas , SCHWARZER , Alice. Simone de Beauvoir today: conversations, 1972 - 1982. Londres: Hogarth
Uncivil war: intellectuals and identity politics Frantz Fanon”, in Press, 1984.
during the decolonization of Algeria .
Filadélfia: University of Pennsylvania
Press, 2001. -
SHARONE, Ofer. “Engineering overwork: bell -curve management at a high tech firm” , in
Uncivil war: intellectuals and identity politics
during the decolonization of Algeria.
.
Cynthia Epstein and Arne Kalleberg (eds.) Fighting for time: shifting boundaries of
Filadélfia: University of Pennsylvania work and social life. Nova Iorque: Russell Sage Foundation . 2004.
Press , 2001.
LERNER, Daniel. The passing of tradition
al society: modernizing the Middle SHERMAN , Rachel. Class acts: service and inequality in luxury hotels. Berkeley : Univer-
Free Press, .1958 . East. Glencoe: sity of California Press, 2007.
LÉVI-STRAUSS, Claude. The elementa
ry structures of kinship. Boston: SHILS , Edward. Tradition. Chicago: The University of Chicago Press, 1981.
LYND, Robert. Knowledge for what?
The place of social sciences in America
Beacon, 1969. .
SILVERSTEIN , Paul . Algeria in France: transpolitics , race , and nation Indiana : Indiana
eton: Princeton University Press, 1939 n culture. Princ- University Press, 2004.
.
MACEY, D. Frantz Fanon: a life.
Londres: Granta , 2000. THERBORN , Goran. From marxism to post -marxism? Nova Iorque: Verso, 2008.
MARX, Karl. The capital: critic of political VAN VELSEN, Jaap. The politics of kinship: a study in social manipulation among the Lake
economy. Moscou: International
1970. Publishers, side Tonga of Nyasaland. Manchester: Manchester University Press, 1964 .
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich . The
communist manifesto. Moscou: International VEBLEN, Thorstein . The theory of the leisure class. Nova Iorque : New American Library,
ers, 1970a. Publish- 1953.
The German ideology . Moscou : WACQUANT, Loi'c. “Following Pierre Bourdieu into the Field ” , Ethnography , vol. 5, nu 4,
International Publishers, 1970 b.
MILLS, Charles Wright. New men of power 2004.
'

: America’s labor leader. Nova


1948. Iorq ue: Harcourt , WEBER , Max . “ Religious rejections of the world and their directions” , in Hans Gerth e
. White collar: the American middle classes Wright Mills (eds.), From Max Weber. Nova Iorque: Oxford University Press, 1946.
. Nova Iorque: Oxford University Press,
I 951l . The protestant ethic and the spirit of capitalism. Londres: Allen & Unwin , 1970.
. The power elite. Nova Iorque: Oxford University .
WILLIS, Paul . Learning to labor: how working class kids get working class jobs Nova Iorque:
. The sociological imagination. Nova Iorque Press, 1956.
Columbia University Press, 1981.
: Oxford University Press,
. The causes of world war three Londres 1959a. WOOLF, Virginia. To the lighthouse. Londres: Penguin Popular Classics, 1996.
.
. Listen, Yankee! The revolution in Cuba.
: Seeker & Warburg, 1959 b.
MOI, Toril. Simone de Beauvoir: the
Nova Iorque: McGraw Hill, I 960.
-
making of an intellectual woman.
1994. Cambridge: Blackwell

180
181
> O MARXISM O ENCONTR A BOURDIE
U :<
BIBLIOGR AFIA DISPON ÍVEL EM PORTUGU Ê S

Bibliografia disponível em portuguê s FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civiliza çã o Brasileira , 1979.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2 FOUCAULT, Michel . Microf ísica do poder. S ão Paulo: Edi ções Graal 2007 .
1970.
vols . S ão Paulo: Difusã o Europeia
do Livro .
GEERTZ, Clifford . A interpretação das culturas Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
GERTH , Hans e MILLS, Charles Wright. Caráter e estrutura social: a psicologia das insti -
.
Os mandarins Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1983. .
tuições sociais Rio de Janeiro: Civiliza ção Brasileira , 1973.
Cartas a Nelson Algren: um amor transatl
Fronteira, 2000.
ântico, 1947 - 1964 . Rio de Janeiro: Nova m GRAMSCI, Antonio. Conselhos de f á brica. Sã o Paulo: Brasiliense , 1982 .
BOURDIEU , Pierre. “Fieldwork in philosophy , . “Americanismo e fordismo” , in Maquiavel , a política e o Estado moderno. Rio de
1987 . .
” in Coisas ditas Sã o Paulo:
Brasiliense, Janeiro: Civilização Brasileira , 1984. •

——
. Livre-troca: diálogos entre ciência e arte. Rio de Janeiro K- Cartas do Cárcere. Rio de Janeiro: Civiliza çã o Brasileira , 1987 .
mE
. A economia das trocas linguísticas: o que " : Bertrand Brasil, 1995. £ Os intelectuais e a organiza ção da cultura . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1996a.
falar” quer dizer. São Paulo: Edusp
, ¥ 1991.
$
As regras da arte: génese e estrutura do
V
&
Cadernos do cá rcere, 6 vols. Rio de Janeiro: Civiliza çã o Brasileira , 2004 .
campo literário. S ão Paulo: Companhia I LÊ NIN ,, Vladimir Hitch. O Estado e a revolu ção: o que nos ensina o marxismo sobre o papel
das Letras, 1996b. IK
Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge do Estado e do proletariado na revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007 .
. Contrafogos: táticas para enfrentar a invas 1997. .

Zahar, 1998.
Zahar,
ão neoliberal . Rio de Janeiro: Jorge I
% LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco Petró polis: Vozes , 1982.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural , 1983.

——
2000a.
.
A dominação masculina Rio de Janeiro:
O campo económico: a dimensão simb
Bertrand Brasil, 1999.
ólica da dominação. Campinas:
Papirus,
iI
fr
.

Claret, 2001.
A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2004.
.
MARX , Karl e ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista S ão Paulo: Martin

ítf: MILLS, Charles Wright. A verdade sobre Cuba . Rio de Janeiro: Zahar, 1961 a.
— . A profissão de sociólogo: preliminares epistemol
ógicas. Petrópolis: Vozes, 2000b. Causas da próxima guerra mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 1961 b.
— . Contrafogos 2: por um movimento social europeu
2001a.
. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
f:
I . A elite do poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, Bertrand Brasil, 2001b. í
i A nova classe média. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
2003a. W
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Cam -
. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas ;
. Esboço de autoanálise. São Paulo: Companhia : Papirus, 2003b. 5 pus , 1980.
das Letras, 2005 . PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e social- democracia. São Paulo: Companhia das Letras,
. A distinção: crítica social do julgamento.
2007.
Porto Alegre: Zouk; São Paulo: Edusp, I* R 1989.
BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean- VEBLEN, Thorstein. “Rejeições religiosas do mundo e suas direções” , in Max Weber. Sã o
Claude. A reprodução: elementos para uma Paulo: Abril Cultural , 1980.
sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco teoria do
Alves, .1975. Teoria da classe ociosa: um estudo económico das instituições. São Paulo: Abril
BURAWOY, Michael. “A transformação
dos regimes fabris no capitalismo avan
ta Brasileira de Ciências Sociais, çado’ , Revis- Cultural , 1983.


2008a.
ano 5 , nQ 13, 1990.
“A sociologia da terceira onda e o fim da ê

“ O futuro da sociologia,” Margem Esquerda


ci ncia pura”, Estudos de Sociologia,
nc 24 , 2004.
A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras ,

WOOLF, Virginia. Rumo ao farol . Porto: Afrontamento, 1985.


, na 11, 2008b.
“Carta aberta a Wright Mills”, Revista Outubro, nc 18, 2009
BURAWOY, Michael e BRAGA, Ruy (orgs a.
.). Por uma sociologia pública. São
da 2009b.
, Paulo: Alame -
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho
social. São Paulo: Martins Fontes 1995.
As formas elementares da vida religiosa .
: o sistema totêmico na Austrália
Martins Fontes, 1996. . São Paulo:
ENGELS, Friedrich . A origem da fam í
lia , da propriedade privada e do
ro: Bertrand Brasil, 2002. Estado. Rio de Janei-
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras
brancas. Porto: A. Ferreira, 1975.

182
183

Você também pode gostar