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A MÍSTICA

em prosa
Contos benfiquistas

Alberto Miguéns
António Costa Santos
Carlos Campaniço
Fernando Arrobas
Filipe d'Avillez
Hugo Gonçalves
João Paulo Oliveira e Costa
João Rebocho Pais
João Tomaz
João Tordo
Leonor Pinhão
Luís Filipe Borges
Luzia Lage
Manuel Neves
Pedro Baptista-Bastos
Pedro F. Ferreira
Ricardo Santos
Título
A Mística em Prosa – Contos Benfiquistas

Autores
Alberto Miguéns | António Costa Santos | Carlos Campaniço
Fernando Arrobas | Filipe d'Avillez | Hugo Gonçalves
João Paulo Oliveira e Costa | João Rebocho Pais | João Tomaz
João Tordo | Leonor Pinhão | Luís Filipe Borges | Luzia Lage
Manuel Neves | Pedro Baptista-Bastos | Pedro F. Ferreira
Ricardo Santos

Design e Paginação
Vitor Duarte

Impressão
Cafilesa

1ª Edição
Novembro de 2015

ISBN
XXX-XXX-XXX-XXX-X

Depósito Legal
XXXXX⁄15

Todos os direitos reservados


© 2015 autores dos textos e Prime Books

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Índice

2104 D.C. – Alberto Miguéns .................................................. XXX


Xxx Xxxx Xxxxxx – António Costa Santos .............................. XXX
Xxxx Xxx Xxxxxxx – Carlos Campaniço ................................. XXX
Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx – Fernando Arrobas .................... XXX
Xxxx Xxxx Xxxxxxx – Filipe d'Avillez ..................................... XXX
Xxx Xxxx Xxxxxxx – Hugo Gonçalves ..................................... XXX
Xxxx Xxxx Xx Xxxxx – João Paulo Oliveira e Costa ............... XXX
Xxx Xx Xxxxxxx – João Rebocho Pais .................................... XXX
Xxxx Xxxx Xxxxxxx – João Tomaz .......................................... XXX
Xx Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx – João Tordo ................................ XXX
Xxxx Xxxx Xxxxxxx – Leonor Pinhão ..................................... XXX
Xx Xxxx Xxxxxxx – Luís Filipe Borges ................................... XXX
Xxxx Xxxx Xxxxxxx – Luzia Lage ........................................... XXX
Xxxx Xx Xxxxx Xxxxxxx – Manuel Neves ............................... XXX
Xxxx Xxxx Xxxx Xxxx – Pedro Baptista-Bastos ..................... XXX
Xxxx Xxxx Xxxxxxx – Pedro F. Ferreira ................................. XXX
Xxx Xxxx Xxxxx – Ricardo Santos .......................................... XXX
2104 D.C.

Alberto Miguéns
O Benfiquismo é um sentimento eterno proveniente do Ideal
de 1904. Um vírus de ideias.
Na véspera da comemoração do segundo centenário do SL
Benfica, o navegador Pershingue 38, em fuga do planeta Ceblon
informa o escravo Carlos Silva que entraram no «Anel de Perdição»,
espaço-tempo onde as naves espaciais ficam entregues à sua sorte
e habilidade do piloto por ser impossível estabelecer contacto com
o Planeta, devido às «Forças de Shila» que impedem a troca de
informação e som.
– Carlitos, temos 90 unidades-tempo, cerca de meia hora na
contagem de tempo do teu planeta para falarmos à vontade!
– Shingue, eles não vão saber que estamos a caminho da
tua casa? Ainda mal me habituei a não haver intimidade neste
planeta!
– Não! Não vão ouvir nada. Daqui a 89 unidades-tempo
temos de voltar a conversar normalmente, para de nada se aper-
ceberem.
– Óptimo. Há tantos anos que não falávamos. Aliás só falámos
uma vez, Shingue.
– Emprestas-me o livro que vi dessa vez, há cinco anos, em
tempo terrestre?
– Evidente! Aqui o tens!
Carlos Silva estava preso há cerca de cinco anos (aproxima-
damente oito milhões de unidades-tempo) no planeta Ceblon, des-
tino cruel para os habitantes do planeta Terra após o semi-colapso
deste em 2093. Desde esse tempo os terráqueos eram aprisionados
e levados para centros de reabilitação em Ceblon. Por lá deixavam
de ser bárbaros, adquiriam boas maneiras e uma total incapacidade
para criticar. Depois de recuperados eram postos a servir os inte-
resses dos ceblontianos, super-estrutura celeste, que adquiria a
forma física e emocional dos seres que enfrentava.

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A MÍSTICA EM PROSA

Era impossível um ceblontiano fazer amizade com um ter-


ráqueo. Não só eram seres intelectualmente díspares como não
podiam estabelecer diálogos de amizade pois tudo era visto e
ouvido em Ceblon. Os contactos estavam condenados a não pas-
sarem de relações entre dominante e dominado.
Carlos Silva foi preso em final de 2098, próximo do dia do
afamado Natal terrestre, na zona 8866 Ásia Sudeste (correspon-
dente ao antigo território sob administração portuguesa de Macau
no sul da China), quando estava a ver na sua «pulseiraprojectora»
a equipa de futebol do seu Sport Lisboa e Benfica que disputava a
Liga Euroasiática. Era a 52.ª jornada (uma por fim-de-semana,
não havendo interrupção para férias que iam sendo feitas alter-
nadamente ao longo do ano pelos 44 futebolistas que integravam
os plantéis). A «pulseiraproj» permitia ver os jogos em qualquer
superfície de qualquer ponto do Universo. Foi assim que continuou
a ver o SLB na cela em Ceblon.
Pershingue 38 fora o carrasco que o capturara (a ele e mais
29 terráqueos) havia cinco anos. Quando o prendeu na zona 8866
Ásia Sudeste interessou-se, ao revistá-lo, por um pequeno livro que
estava num dos bolsos da gabardina de Carlos Silva, denominado
“Cosme Damião Apontamentos e Recortes sobre Football Association
Lisboa 1925”. No seu interior, a fazer de separador entre páginas,
uma fotografia... que mostrava uma imagem obsoleta de um
planeta atrasado. Os habitantes tinham de ter um apetrecho para
os proteger do calor e da chuva. Para um ceblontiano bastava
pensar nisso para se criar à volta do corpo um escudo protector.
Mas a fotografia impressionava. E o texto na página 38 que ela
separava da página 39 ainda mais. Leu para si: «O interesse pelo
êxito do seu grupo deve ser a parte dominante no pensamento do
futebolista, pois ele deve ser tão impessoal e tão alheio à sua ambição
individual, que se deve preocupar tanto ou mais do êxito de um com-
panheiro, do que do seu próprio».
Pershingue 38 achou uma idiotice. O indivíduo é supremo e
deve ter capacidade para conseguir suplantar os outros. É assim
em Ceblon. Sempre será assim. O livro estava cheio de terraquices.
Por isso agora são escravos noutro planeta. Mas... enquanto foi

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CONTOS BENFIQUISTAS

pilotando a nave-prisão até Ceblon, numa viagem de cinco mil


unidades-tempo (pouco mais que um dia terrestre) foi pensando
no que lera e observando o êxtase do dono do livro, Carlos Silva.
Gritava de prazer enquanto via projectado no revestimento da
nave, o SLB derrotar, por 5-4, o rival Sporting Clube do Porto, no
estádio do adversário, na zona 53 da Europália Oeste (outrora Porto
em Portugal). Essa vitória permitia a obtenção do 2.º lugar (entre
27 clubes), remetendo o rival para o 2.º escalão zonal, a Liga
Mediterrânica. O segundo lugar na Liga Euroasiática permitiria ao
SLB disputar (as épocas coincidiam com o ano civil terrestre) a
Liga Mundial logo nos três primeiros meses de 2099. A competição
disputava-se em dez jornadas nas quartas-feiras terrestres,
enfrentando, o 1.º e 2.º classificado da Liga Euroasiática, os dois
primeiros classificados da Liga Americana e da Liga Afrooceânica.
Seria a primeira vez em 23 edições da competição que o Benfica
obtinha essa possibilidade. Para felicidade dos Benfiquistas. A
fotografia e a frase do livro, objectos há muito extintos em Ceblon,

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se é que alguma vez existiram, faziam-no pensar. Pediu o livro e


página-a-página foi fazendo a captura instantânea que há muito
constava das capacidades dos ceblonianos. Excelentes qualidades
que lhes permitiam memorizar imagens e moradas para depois
ir até elas e capturar. Em menos de seis unidades-tempo (dois
minutos em tempo terrestre) arquivou na sua “memozuta” as 142
páginas do livro.
Chegados a Ceblon, o director-reabilitador revistou os presos
terráqueos e proibiu praticamente tudo. Era necessário programar
a reabilitação. As reprogramações eram dispendiosas em dinheiro
e tempo. Quando chegou a Carlos Silva retirou-lhe a carteira com
os cartões de dinheiro, fotografias de familiares, cartão de asso-
ciado do SL Benfica, um livro de novelas (tudo inutilidades em
Ceblon) mas observou um segundo livro. Leu o título “Cosme Damião
Apontamentos e Recortes sobre Football Association Lisboa 1925” e
examinou a fotografia escura-e-clara. Pensou no que fazer. Talvez
não fosse má ideia o preso ficar com o livro e a foto que separava
a página 38 da 39. O futebol distraía os presos sendo inofensivo
na reabilitação. A fotografia era tão obsoleta que o seu arcaísmo
iria convencer o terráqueo a aceitar um mundo melhor com vida
de escravo servido por tecnologia libertadora. Os livros estavam
extintos em Ceblon por poderem ser subversivos. No Planeta
transmitiam-se imagens e pensamentos por telepatia.
Pershingue 38 nunca mais perdeu o preso 233 877/2098 de
vista. Sabendo que não podia conversar nem contactar com ele,
pois dava direito a degredo no planeta Entulho, decorou a cela que
Carlos Silva escolhera. A número 73 (o número de títulos que o
SLB conquistara, no antigo e descontinuado, campeonato nacional
de Portugal).
Em Ceblon tudo era controlado. Todos estavam impossibili-
tados de falar ou escrever em sigilo. Sabiam que podiam ser ouvidos
e lidos. O controlo era tão intenso e eficaz que conseguia-se mesmo,
recuperar sons e imagens do passado, em qualquer ponto da
superfície do planeta, recuando mais de 10 mil milhares milhões
de unidades-tempo. Pershingue 38 optou por não contactar o
terráqueo Benfiquista. Começou sim, a sintonizar os jogos do

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CONTOS BENFIQUISTAS

“Glorioso” na Terra. Assim apelidara, Carlos Silva o seu querido


clube, em conversa entusiasmada na nave-prisão, rodeado pelos
outros terráqueos capturados.
Pershingue 38 ficou a saber que o SLB tinha sido fundado
em 28 de Fevereiro de 1904 (faria, daí a dois meses, 195 anos e
cinco anos depois chegaria aos 200 anos). Era dos clubes mais
antigos da Liga Euroasiática, pois muitos deles resultaram de
fusões para poderem competir a tão alto nível. Tinha apoiantes de
todos os níveis económicos, zonas do planeta e etnias, numa mescla
sem paralelo entre os 81 emblemas das três principais ligas mun-
diais, 27 em cada campeonato. Percebeu que era no lema (Todos
Por Um) que conseguiam fazer frente a outros clubes mais pode-
rosos. E que Cosme Damião não era um título de um livro mas um
dos 24 fundadores. Era mesmo considerado o pai do Ideal que os
unia e o qual apelidavam de “Benfiquismo”. O “Velho Cosme”, como
era carinhosamente recordado pelos adeptos, mesmo mais de 150
anos após o seu falecimento, escrevera um livro, publicado em
1925, que era a cartilha para o futuro. O legado da sua inspiração, a
sua devoção, a obra maior da sua vida. O Benfica! Por esse motivo
andavam sempre com um exemplar. Cosme Damião chegou a ter
o seu nome num Museu. Em relação à fotografia, Pershingue 38
percebeu que era do Estádio n.º 6, inaugurado em 1 de Dezembro
de 1954. Apelidado de Catedral daria depois origem a outro, o n.º
7, inaugurado em 25 de Outubro de 2003. E esse outro já tinha sido
substituído, pelo n.º 8, em 28 de Fevereiro de 2045 (no mesmo
local do n.º 6). Agora, nesse ano de 2104, havia no mesmo sítio
grande azáfama. Os devotados simpatizantes do Clube pretendiam
inaugurar o Estádio n.º 9 (de regresso ao local do n.º 7) no dia do
200.º aniversário (28 de Fevereiro de 2104). Os apoiantes, que se
denominavam Benfiquistas, faziam questão de não alterar o local
dos estádios nem a cor vermelha da camisola. Era uma opção única
dando-lhe um aspecto pitoresco entre os adversários que preferiam
combinações cromáticas cintilantes e atractivas. Gostos Benfi-
quistas simples, arcaicos e obsoletos mas fiéis à tradição que já nem
a enorme maioria dos obtusos terráqueos partilhava. Subtilmente,
no tempo livre, Pershingue 38 adorava recordar algumas palavras

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e ideias do livro. Já tanto o lera (ou vira) que o sabia de cor. E, como
nas páginas iniciais, se falava da fundação do “Glorioso” cada vez
admirava mais esse emblema que resultara do amor de um pu-
nhado de idealistas que conseguiram erguer um colosso desportivo
no planeta Terra. Um Clube nascido num ambiente familiar, pacato
e cortês, mas ambicioso guindado pelos valores de um Ideal
supremo a lugar de destaque no mundo do desporto. Além disso,
o livro descrevia tácticas com mais de 150 anos. Estavam há muito
esquecidas, mas continham ensinamentos que eram desconhecidos
em Ceblon. Pershingue 38 nunca ouvira tais conceitos. Podiam
estar desactualizadas e conterem ideias há muito esquecidas mas
continuavam interessantes. Para Pershingue 38 faziam sentido,
inesperadamente devido à sua educação ceblontiana, pois apelavam
à solidariedade, dedicação, pontualidade, aprumo, comprometi-
mento, igualdade, apurar as características individuais, o todo como
fundamento do único, simplicidade e vontade de ser melhor, para
ser maior. Esta última era uma ideia cebloniana que afinal também
fora definida num atrasado planeta distante em…1925!
Passados quase quatro anos, em tempo terrestre, Carlos
Silva ia-se reabilitando, adquirindo os hábitos do que se pretendia
para os escravos ceblontianos. Não deixava era o vício de ver
futebol. Nos fins-de-semana – sábados ou domingos terrestres –
era vê-lo extasiado a projectar as imagens dos jogos do SLB 1904
no revestimento celular. Este hábito pertencia ao domínio público
de Ceblon. Era dos proto-escravos mais intrigantes. Não perdera
o desejo de ver futebol (jogado a cinco mil unidades-tempo de
distância) e entusiasmava-se com os feitos do Clube. Carlos era
um “Liberdade” em primeiro grau. Um selvagem. Facto que estava
a ser um obstáculo à conversão. Já detinha o recorde de mais tempo
necessário para ser libertado com custos acrescidos, em tempo
e dinheiro. Assim, por diversas vezes tinha comparecido no Con-
selho de Reabilitação. Invariavelmente quando questionado acerca
da sua resiliência (pois um escravo tinha de ser convertido à Com-
placência) argumentava que aprendera com a cultura e participação
na vida associativa do Clube. Sentimentos esses que mantinha
vibrantes, tal como outrora, no local onde residia na Terra, a

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CONTOS BENFIQUISTAS

milhares de unidades-tempo de distância da Sede e do Estádio


(os transportes que os terráqueos denominavam “aéreos” eram
obsoletos, e mais terrestres que aéreos, ainda que voassem). Tudo
estava controlado em Ceblon. Era impossível alguém esconder-se,
a si e às suas ideias, nesse vigiado planeta.
Mais intrigante era o comportamento de Pershingue 38.
Passou a ser um caso de estudo em Ceblon. Considerava-se que
um dos melhores pilotos navegadores das naves-prisão Ceblon-
-Terra-Ceblon fora capturado pelo futebol. Aliás, endoidecera
mais pelo Benfica do que pelo Futebol. Era mesmo considerado
o primeiro (e único) Benfiquista de Ceblon! Chegou a ser levado
ao Conselho de Recuperação, mas o facto de ser um piloto irre-
preensível com tremenda eficácia na prisão e transporte (nunca
falhara trazer a nave lotada, em mais de duas mil missões em
vários planetas do Universo), implacável para com os terráqueos,
fazia acreditar que se tratava de uma paranoia. Um efeito secun-
dário de quem ia muitas vezes ao planeta Terra abastecer Ceblon
de escravos. Pershingue 38 via os jogos na sua habitação comu-
nitária, sozinho. Nesse ano de 2103 andava eufórico. Tal como
Carlos Silva, que aliás nunca mais visitara. A alegria tinha uma
causa. O SLB conquistara, pela primeira vez, o título de campeão
euroasiático, candidatando-se a ser novamente campeão mundial,
facto que conseguira em 2099. Além disso, sabia dos preparativos
para as comemorações do duplo centenário e da inauguração
do estádio da Luz IV, o n.º 9, desde 1904. O ano prometia ser
Glorioso.
Há algum tempo que sentia saturação por tantos anos a
pilotar a nave-prisão. Sabia que podia mudar de ocupação. Passar
para piloto das naves de transporte de terráqueos reabilitados
com destino a escravos de ceblonianos. Tinha essa possibilidade
pois era dos melhores navegadores das naves-prisão Ceblon-
-Terra-Ceblon. Não deveria ser difícil obter autorização. E assim
foi. Mudaria de ramo. Piloto das naves-escravatura. Passado algum
tempo soube que Carlos Silva seria transferido para a residência
de um cebloniano. Averiguou quem era e propôs-lhe uma troca.
Como gostava de futebol teria interesse em ter um terráqueo que

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A MÍSTICA EM PROSA

também gostasse. O outro cebloniano achou aquilo tudo patético


mas disse não se importar, desde que lhe desse um escravo
experiente. Pershingue 38 dispôs-se a ceder o seu que tinha
certificado «Total Garantia», em mais de 30 avaliações pela Alta
Autoridade de Certificação Escrava. As autoridades competentes
apesar de não gostarem da ideia decidiram não contrariar. Afinal
era um acordo entre um par de ceblonianos com uma folha serviçal
exemplar.
Pershingue 38 acordou a transferência do seu escravo para
a outra residência e dispôs-se a ir buscar Carlos Silva. Com tudo
acertado, foi decidida a saída do reabilitado terráqueo em 27 de
Fevereiro de 2104 (data do calendário do planeta Terra), numa
quarta-feira terrestre.
As naves-escravatura não podiam sair do planeta Ceblon.
Nunca ninguém o tinha tentado. Só um piloto perito e destemido
podia ousar em navegar manualmente uma nave entre dois pla-
netas que distavam cinco mil unidades-tempo. Pershingue 38
deslocou-se, com o gerador de códigos de segurança, à cela 73
encontrando-se pela segunda vez, depois de cinco anos, com Carlos
Silva. Este só o reconheceu quando o cebloniano lhe perguntou
se ainda tinha o livro e a fotografia do estádio. Como a resposta
foi afirmativa pediu-lhe para não se esquecer dele e dela. E devia
segui-lo, pois estaria a poucas unidades-tempo de ser seu escravo.
Na nave-escravatura, mais pequena que a nave-prisão, cada um
ocupou o seu lugar. Carlos Silva disse-lhe para o tratar por Carlitos,
visto passar a ser seu escravo. Pershingue 38 disse-lhe que era
o n.º 38 na hierarquia dos pershingues, mas que passaria a ser
apenas Shingue.
Pershingue 38 rumou ao céu vermelho de Ceblon e desa-
pareceu. Sem se aperceber, Carlos Silva ia viver um tempo de
inovação e perigo de morte. O desconhecimento da tecnologia
livrou-o do susto e da incerteza. A nave entrou nos limites da
atmosfera do Planeta, com os sensores a zunirem “Desintegração”.
Num planeta sem conflitos nem fugas, não existiam exército e
polícia desde há infinitas unidades-tempo. A nave estava entregue
ao destino. Estabeleceram numa primeira conversação as regras

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CONTOS BENFIQUISTAS

da viagem, Shingue pediu o livro com a fotografia que Carlitos


emprestou. Depois:
– Carlitos! Não vamos para a minha casa, mas para a nossa!
– Shingue! Como é que consegues ler o livro e falar comigo?
– É uma das habilidades dos ceblonianos! Conseguir fazer
várias coisas ao mesmo tempo. Mas não estou a ler. Tenho-o
memorizado. Estou a tentar perceber o fascínio de passar as
páginas. O cheiro do papel dá dimensão às letras. Que livro de amor,
este do nosso Cosme Damião!
– Para a nossa casa, Shingue? Do nosso Cosme Damião?
– Sim! Vamos às comemorações dos duzentos anos do “Glo-
rioso” e à inauguração do Estádio n.º 9!
– O quê? Vamos fugir de Ceblon? És Benfiquista? Há Benfi-
quistas em Ceblon?
– Diria de outro modo. Vamos substituir a sofisticada Ceblon
pela rústica Terra. Que eu saiba sou o único cebloniano do “Glo-
rioso”!
Ficaram entusiasmados a fazer planos para viverem na zona
158-15-08 da Europália Oeste (outrora Lisboa-Benfica-Luz em
Portugal), contactarem os Benfiquistas e planearem a ida à Sede
na zona 158-32-05 (outrora Baixa de Lisboa) e inauguração do
Estádio na Luz IV. Ia ser uma quinta-feira, 28 de Fevereiro de 2104,
em cheio. À Benfica!
– Carlitos! Temos três unidades-tempo para diálogo. Um
minuto em tempo terrestre. Depois não podemos continuar a
conversar para podermos despistar os ceblonianos da nossa
localização terrestre. Esta nave não tem sensores extra-Ceblon
como as naves-prisão mas as conversas podem ser localizadas.
– Shingue! Que saudades! Vamos ter tanto que fazer na Terra!
– Ãããã! Ainda haverá bilhetes?

Alberto Miguéns

Um conto de Natal infantil, 12 de Julho de 2015

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