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MO E CORPQ
RATIVISMO
EM FACE DA
ENCÍCLICA
MATER ET
Socialism o e Corporativism o em face da Encíclica
M ater et Magistra
J. P. Galvâo de Sousa
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efetivam ente in sp ira r a reform a das instituições
e dos costumes quando concretizados dentro das
condições peculiares a cada povo, através de n o r
m as jurídicas elaboradas em consonância com o
desenvolvim ento do direito histórico. P or sua vez,
tais princípios — que da R eru m N ovarum chegam
até à Mater et Magistra — supõem um a ordem po
lítica e um aparelham en to adm inistrativo que res
peitem as diretrizes de outras Encíclicas referen
tes à Fam ília, ao Estado e às liberdades. L em bre
mos, entre tantas, a Im m ortale D ei de Leão XIII e
a D ivini R edem ptoris de Pio XI, incluindo-se tam
bém os num erosos discursos de Pio XII.
A paz social e intern acio n al não pode existir em
regim es políticos que não asseguram aos hom ens
a liberdade dos filhos de Deus. T al é a lição da re
cente Encíclica Pacem in Terris, que, por isso m es
mo, im plica em um a condenação dos regim es im-
perantes atrás da cortina de ferro.
Dado fundam ental na situação política do m undo
de hoje e de todos os povos abrangidos pela p ro p a
ganda soviética é a guerra revolucionária. F ech ar os
olhos para esta realidad e dos nossos dias é expor-se
a servir de instrum ento p ara aqueles que, querendo
d estruir as bases da civilização cristã, têm encon
trado m uitas vêzes os m elhores aliados nos cristãos
incautos ou desconhecedores da v erd ad eira d o u tri
na social da Igreja.
Um dos pontos dessa d outrina íiltim am ente dei
xado na som bra é o princípio da form ação orgâni-
nica da sociedade e do valor dos grupos sociais
autônom os perante o Estado. T rata-se da tese
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corporativista, por sua vez objeto de distorsões que
acabaram por com prom etê-la, p ara grande gáudio
dos interessados em sepultá-la definitivam ente.
Depois de considerado o problem a do socialismo
em face da doutrina da Ig reja, e p articularm ente
da Maicr et Magistra, o leitor destas páginas será
convidado a algum as reflexões em tôrno do signi
ficado e da atualidad e do corporativism o.
J o s é P ed ro G alvão d e S o u sa
8
Introdução
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iniciar-se o Conclave, não figuravam nos noticiá
rios nem estavam na cogitação de círculos ecle
siásticos como os m ais prováveis escolhidos. Ambos
procediam de fam ílias pobres, e haviam conhecido,
na infância e na juventude, as am argas penas da
luta pela vida. Finalm ente, coube-lhes suceder a
Pontífices que se p ro jetaram na história, depois
de haverem governado a Ig reja d u ran te longos
anos e com um brilho poucas vêzes alcançado por
seus predecessores.
São Pio X sucedia a Leão XIII — liim en in coelo,
segundo a profecia de São M alaquias — e João
XXIII ao P astor Angélico, Pio XII. T anto Leão
XIII quanto Pio XII se viram aureolados de um
imenso prestígio. As grandes Encíclicas do prim eiro
e as num erosas alocuções e m ensagens radiofôni
cas do segundo dem onstravam um a p rofunda sa
bedoria, que os fazia d issertar sôbre os m ais v a ria
dos assuntos, q u er nos domínios da filosofia e das
ciências particulares, qu er nos diferentes setores
da atividade hum ana social. D iplom atas ilustres,
oxãundos de nobres estirpes, eram acatados pelos
monai'cas, chefes de govêrno e homens públicos.
Num caso e noutro, tinha-se a im pressão de que
a personalidade do Pontífice, pelo esplendor da
sua atuação no govêrno da Ig reja, iria forçosa
m ente ofuscar a do seu sucessor.
E ntretanto, depois de Leão XIII tivemos Pio X,
o prim eiro P ap a a ser elevado aos altares desde
São Pio V, que viveu no século XVI. À santidade
da sua vida correspondeu um dos m aiores pontifi
cados da história.
E depois de Pio XII, João XXIII, il Papa biiono.
no dizer dos rom anos, m orre aclam ado como um
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santo, tendo sabido manter-se à altu ra do seu an
tecessor nas diretrizes lum inosas traçadas para a
C ristandade em tôrno dos problem as sociais e in
ternacionais.
O presente volum e tem em vista alguns proble
m as da atualidade, cu ja solução só em tais d ire tri
zes pode encontrar-se. O confusionism o de h o je
vem provocando um a desorientação entre certos
católicos, nem sem pre p rep arad o s p ara bem enten
d er a p alavra do P apa e sobretudo p a ra a defender
contra interpretações falsas. E ’ o que se dá a pro
pósito dos tem as aqui ventilados, concernentes ao
socialismo e ao corporativism o.
Depois de escritas as considerações que se vão
ler, focalizando tais tem as em face da Encíclica
Mater et Magi sir a, foi publicada a Encíclica Pacem
in Terris. Aí se encerra um a teoria da sociedade
e do Estado segundo os princípios da filosofia cris
tã. Coligem-sc os ensinam entos pontifícios até aqui
dados sôbre a m atéria, com vistas especialm ente
às relações internacionais.
Assim a Pacem in Terris confirm a a M ater et
Magistra, e coloca-se na m esm a linha de pensa
mento das anteriores Encíclicas, cujos princípios
são sem pre hauridos nas verdades da Revelação
e nas norm as do direito n atu ral.
Na rádiom ensagem com em orativa do cinqüente-
nário da Encíclica R erum N ovarum , Pio XII faz
no tar que a com petência da Ig reja nestes assuntos
decorre do fato de estarem os mesmos in tim am en
te relacionados com a m oral. Cabe à Ig reja ju lg a r
“se as bases de um a d eterm in ad a organização so
cial são conform es à ordem im utável das coisas
que Deus m anifestou pelo direito n atu ra l e a Re
li
velação”. E acre sce n ta: “os princípios do direito
n atu ra l e as verdades reveladas derivam efetiva-
m ente da m esm a fonte divina, como duas correntes
não contrárias m as convergentes; e a Ig reja, g u ar
diã da ordem sobrenatural cristã, na qual conver
gem natureza e graça, tem a missão de fo rm ar as
consciências, inclusive as consciências daqueles que
são cham ados a encontrar soluções p ara os pro
blem as e os deveres im postos pela vida social” . F i
nalm ente perg u n ta: “como poderia a Ig reja, Mãe
am orosa e solícita pelo bem de seus filhos, ficar in
diferente à vista dos perigos, calar-se ou fingir
não ver e não com preender que certas condições
sociais tornam árd u a e pràticam ente im possível
um a conduta cristã, conform e aos m andam entos
do soberano L egislador?” 1
Essas palavras de Pio XII antecipam -se às de
João XXIII, m ostrando-nos a Ig reja como M estra
infalível da verdade e Mãe carinhosa das alm as
rem idas pelo sangue de Cristo. M ater et M agistral
Pelo seu m agistério, possibilita aos hom ens o co
nhecim ento das verdades reveladas e assegura a
preservação dos princípios do direito n atu ra l, na
sua plenitude e nas eonseqüências dêles decorren
tes com respeito à constituição das sociedades.
Com a sua solicitude m aternal, é levada a advertir
os seus filhos sôbre os perigos que os cercam de
todos os lados, apontando-lhes a solução dos num e
rosos problem as da crise contem porânea, não no
aspecto técnico e m eram ente tem poral, m as no sen
tido m ais profundo, pois tal crise reflete um a de
sordem na inteligência e no cará ter dos homens. 1
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Aos m em bros do Congresso In ternacional de Es
tudos H um anistas, reunidos em Roma p ara deba
ter o tem a “H um anism o e ciência política”, o m es
mo Pontífice d eclarav a: “A lei n atu ra l! Eis o fu n
dam ento sôbre o qual repousa a doutrina social
da Igreja. E’ precisam ente sua concepção cristã
do m undo que inspirou e sustentou a Ig reja na edi
ficação desta doutrina sôbre um tal fundam ento.
Pugnando p ara conquistar ou defender sua pró
pria liberdade, é tam bém pela v erd ad eira lib erd a
de e os direitos prim ordiais do hom em que ela o
faz. A seus olhos, estes direitos essenciais são de
tal m aneira invioláveis que, contra êles, nenhum a
razão de Estado, nenhum pretexto de bem comum
poderia prevalecer. São protegidos por um a b a r
re ira intransponível”. 2
F undada, pois, sôbre o alicerce inabalável da lei
n atu ral, que é a p ró p ria lei etern a de Deus traç an
do norm as p a ra os atos livres do homem, a dou
trin a social da Igi’eja está m uito longe de poder ser
colocada no mesm o plano das ideologias que desde
o século passado vêm disputando o domínio m u n
dial. D esfiguram -na totalm ente aqueles que p re
tendem seja a doutrina social católica um meio
têrm o ou solução conciliatória entre liberalism o e
socialismo. Nem tão pouco é um a espécie de terceira
posição ideológica, pois a d outrina da Ig reja tran s
cende de m uito os lim ites das teorias sôbre a so
ciedade e o Estado, como tam bém os dos sistem as
filosóficos, inserindo-se na visão universal que,
do Gênese ao A pocalipse e através dos ensinam en
tos da T radição, chega até nós graças àquele m a
2) Alocução do P apa Pio XII p ro ferid a a 25 de setem
bro de 1949.
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gistério infalível, cujos pronunciam entos consti
tuem as definições dogmáticas.
P or isso mesmo, quando Leão XIII escreveu a
R erum N ovarum não veio in o v ar o ensino da Igre
ja . Tendo por objeto a questão operária suscitada
no século passado pelo liberalism o econômico e
político, fazia ver, em face da luta de classes daí
resultante, que a Ig reja h au re no Evangelho dou
trinas capazes de pôr têrm o ao conflito ou pelo
menos suavizá-lo. A pelava tam bém p ara um a con
sideração m ais profunda da n atu reza hum ana, con
jugando assim a razão e a fé no estudo da questão
proposta, isto é, os ensinam entos do direito n a tu ra l
e os da teologia revelada.
T ratav a de aplicar tais ensinam entos, vindos de
séculos de história da Ig reja, à situação nova do
mundo. D aí o título da Encíclica. Tendo em vista
a sêde de inovações ou de coisas novas ■ — rerum
novarum — que se ap o d erara das sociedades, “tra
zendo-as num a agitação feb ril e passando das re
giões da política p ara a esfera vizinha da econo
m ia social”, Leão XIII indicava o rem édio que
em vão se pro cu raria enco n trar sem reco rrer à re
ligião e à Igreja.
A Encíclica M ater et Magistra, escrita p ara ce
leb rar o septuagésim o aniversário da R eru m No
varum , teve am pla receptividade no m undo in tei
ro. Não ad m ira que o pensam ento do Pontífice
chegue a ser deturpado. Desde logo com eçaram
a aparecer interpretações tendenciosas, an u n cian
do um a reconciliação da Ig reja com o socialismo.
Outros saudavam nas lições de João XXIII um a
confirm ação das teses enunciadas no cam po eco
nômico pelo liberalism o, cada qual procurando
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en q u ad rar nas suas pró p rias concepções a doutrina
pregada pelo chefe visível da Ig reja.
A m aneira pela qual foi recebida a Encíclica
indica a m udança de atitude em relação à Ig reja
da parte de seus adversários confessos ou dos in
diferentes. Até há alguns anos atrás eram freqüen-
tes as críticas dirigidas à Ig reja por suas in terv en
ções em m a téria social, considerando-se que ela
devia ater-se aos assuntos religiosos e que a re li
gião era um a questão privada. T al ponto de vista,
característico do velho liberalism o, passara ao so
cialismo, procedente aliás das m esm as origens ideo
lógicas. Por outro lado, p eran te a R eram N ovarum
muitos de seus contraditares acusavam o P ap a de
socialista, enquanto os socialistas denunciavam n a
quele docum ento um a inspiração de fundo in d i
vidualista e liberal. Hoje, pelo contrário, vemos li
berais e socialistas a invocarem a Encíclica Mater
et Magistra, porfiando entre si p ara terem o priv i
légio de expressar o autêntico pensam ento social
da Igreja, n a m ais lídim a ortodoxia!
Note-se que essa m udança de atitude não cor
responde de form a algum a à aceitação da d o u tri
na católica, ou ao reconhecim ento da v erd ad eira
com petência da Ig reja p ara v ersar assuntos sociais.
Alguns, bem intencionados, aplaudem os ensina
mentos pontifícios pelo seu conteúdo de ju stiça e
se congratulam com as m agníficas soluções p ro
postas por tão alta autoridade, cujo prestígio m o
ra l respeitam . E ntretanto, não seriam capazes de
p en etrar no sentido m ais profundo de tais ensina
mentos, e estão m uito longe de poder perceber ou
pelo menos ad m itir os seus pressupostos teológicos.
Outros, continuando num a posição de hostilidade
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em relação à Igreja, preferem não a dem onstrar,
ap arentando até mesmo sim patia. Neste caso, aque
la m udança de atitude significa sim plesm ente ado
ção de um a nova tática, m uito freqüente em nossos
dias nos setores esquerdistas, em penhados em fa
zer crer a todos que a Ig reja se encam inha p ara a
esquerda. Sabemos m uito bem que à perseguição
religiosa, abertam ente desencadeada, os inimigos
da Ig re ja têm preferido, por vêzes, o sistem a das
infiltrações entre os católicos e até no Clero, como
nestes últim os tempos vêm fazendo com tan ta p er
feição os com unistas. T rata-se de processos corren
tes na g u erra fria revolucionária, que se acoberta
com o m anto da “coexistência pacífica”.
O fato é que a doutrina social exposta nos do
cum entos pontifícios se nos apresenta como um
todo orgânico e coerente. Suas teses, p ara serem
devidam ente com preendidas, não devem ser dedu
zidas apenas de trechos isolados. Im porta consi
derá-las no contexto in teg ral de um a Encíclica ou
um discurso, e ainda m ais, em função de todo o
pensam ento católico, que os ensinam entos dos P a
pas em m atéria social aplicam às questões can
dentes da época.
Assim, a Encíclica R e n im N ovarum ganha em
significação e pode ser m ais perfeitam ente enten
dida se nos lem brarm os de o utra Encíclica do m es
mo Leão XIII, onde são analisados em p ro fu n d i
dade os princípios do naturalism o m o d e rn o : a
H u m a n u m Genus.
P or outro lado, a teoria da sociedade e do E sta
do que se contém nas Encíclicas é um a decorrên
cia da filosofia cristã, tal como foi elaborada desde
o tempo de Santo Agostinho e dos P adres da Igreja,
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tendo chegado às suas culm inâncias com Santo
Tom ás de Aquino, no século XIII. Esta filosofia,
que herdou a m etafísica do senso com um vinda de
Aristóteles e dos antigos, é a “m etafísica n a tu ra l
do espírito hum ano” ou a “filosofia perene”, con
soante a qualificarem grandes pensadores m oder
nos. Houve épocas, porém , em que a babel dos sis
tem as da filosofia m oderna, eivados de su b jetiv is
mo, chegou a prom over devastações no próprio
cam po da filosofia cristã, afastad a daquela tr a
dição. Foi preciso que Leão X III escrevesse a E n
cíclica A eterni Patris, com pletada pela Studiorum
D ucem de Pio XI, p ara que se restaurasse, em tôda
a plenitude, a filosofia perene, instrum ento indis
pensável da form ação teológica.
Sem a restauração do pensam ento cristão, não
era possível a restauração da ordem cristã na socie
dade. E por isso mesmo, Encíclicas como a R erum
N ovar um e a M ater et Magistra se inserem no p la
no m ais vasto daquelas outras que têm por objeto
a filosofia e a teologia, e ainda das que versam
assuntos relativos ao estudo da Sagrada E scritura,
ou à form ação do Clero, ou à educação da ju
ventude.
De um modo particu lar, cum pre não esquecer os
ensinam entos de Leão XIII na Graves de C om m uni
e, m ais ainda, os de São Pio X na Notre Charge
Apostolique, p ara entender devidam ente os discur
sos dc Pio XII sobre as condições cristãs da de
m ocracia.
Da m esm a form a, as diretrizes sôbre a dem ocra
cia, a questão econômica c os problem as in te rn a
cionais contidas naqueles discursos e nos p ro n u n
ciam entos de João XXIII não podem ser atingidos,
Socialismo — 2 17
na sua significação m ais autêntica e profunda,
senão em função de diretrizes anteriorm ente fir
m adas. E ntre estas, im porta le m b rar as constantes
das Encíclicas D ivini Redem ptoris e Mit Brennen-
der Sorge, de Pio XI, condenando os erros do co
m unism o e do nacional-socialism o respectivam ente.
As Encíclicas dc Leão XIII não podem ser separa
das do Syllabus de Pio IX, onde se acha a conde
nação do liberalism o oriundo dos princípios da Re
volução Francesa. Assim tam bém , os discursos de
Pio XII e as Encíclicas de João XXIII devem ser
interpretados no contexto destes documentos, da
quelas Encíclicas de Pio XI e ainda da Encíclica
Pascendi, de São Pio X, sôbre o m odernism o, a
qual versa sôbre assunto d ireta e especificam ente
teológico m as dc im portantíssim as im plicações so-
cio-políticas.
Destinando-se este pequeno trabalho a alguns es
clarecim entos acêrca do socialismo c do corporati
vismo em face da M ater et Magistra, o au to r não
pode d eix ar de lem b rar a confirm ação do pensa
m ento corporativista pela Encíclica Pacem in Ter-
ris. Com efeito, nesta C arta, d atad a de 11 de abril
de 1963, João XXIII por v árias vezes se refere aos
“corpos interm ediário s” que, na sociedade civil,
representam a m anifestação da sociabilidade h u
m ana em suas m ultíplices form as, servindo de b a r
reiras contra a socialização estatal e de proteção
às liberdades concretas da pessoa hum ana.
O liberalism o, com o sistem a da liberdade abs
trata, nas Declarações dos Direitos do Homem e
nas constituições individualistas, p rep aro u o te r
reno para a invasão crescente das esferas de do
mínio privado pelo Estado. O reconhecim ento da
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queles “corpos” ou “entidades” de cará ter autô
nomo em face do Estado é a g aran tia contra esses
erros que têm inspirado as ideologias revolucio
n árias de nossa época. Já se disse, com razão, que
o corporativism o m ata o com unism o e o lib eralis
mo gera o comunismo. 3
Não se deve ver no corporativism o um a espécie
de ideologia ou sistem a, ao lado do liberalism o e
do socialismo. Não. T rata-se sim plesm ente de um a
expressão da form ação orgânica das sociedades
políticas, obliterada pelo atom ism o individualista
e pelo m ecanicism o totalitário, duas m odalidades
do naturalism o sociológico.
Quando se fala em form ação orgânica das socie
dades, isto não quer dizer, de modo algum , um
crescim ento biológico, à m an eira dos organism os
vivos. Nem tal expressão significa a existência de
um determ inism o, do qual resultem fatores neces
sários em referid a form ação.
A sociedade se constitui com hom ens, isto é, se
res livres, e por isso mesm o suas form as variam ,
no tempo e no espaço, o que não se verifica no caso
dos organism os vivos e dos anim ais gregários. D aí
a grande diferença entre a história n a tu ra l e a his
tória das sociedades hum anas.
Aquelas variações, decorrentes da liberdade, tor
nam o hom em um ser histórico, e dão origem a
form ações m uito diversas de povo p ara povo. Há
“características étnicas que contradistinguem os
vários grupos hum anos”, diz o P ap a João XXIII
2* 19
na Encíclica Pacem in Terris, lem brando a lição
de Pio XII na S u m m i Pontificatus.
E’ p ara êste aspecto, de suína relevância, que
devemos voltar as nossas atenções sem pre que se
trata de ap licar os princípios das Encíclicas. A
doutrina social católica fornece-nos diretrizes de
c ará ter genérico, que só podem ter validez desde
que devidam ente adequadas à realid ad e social e
à form ação histórica de cada povo.
Os regim es políticos e as organizações econô
micas não podem ser iguais p ara tôdas as nações.
Devem conform ar-se às peculiaridades do meio
am biente. Do contrário, não funcionarão de um
modo efetivo, m as hão de d ar origem a tensões e
crises freqüentes, como temos visto no B rasil e nos
países da Am érica espanhola. O direito n atu ra l
torna-se um a construção apriorística c ab strata
quando não aplicado no plano do direito histórico.
Em saber ad a p ta r os princípios da doutrina so
cial da Igreja, contidos nas Encíclicas, à situação
concreta de seu país, está a prudência política dos
estudiosos e hom ens públicos católicos, cham ados
hoje a um a grande tarefa de renovação social.
20
CAPÍTULO I.
21
E ncam inhando estas notas ao prelo, faço-o de
pois de h av er por repetidas vêzes focalizado o te
ma, especialm ente cm curso m inistrado no In sti
tuto Teológico Pio XI, em com unicações apresen
tadas ao Conselho Técnico do Instituto de Estudos
Econômicos, Sociais e Políticos da F ederação do
Comércio do Estado de São Paulo e num a confe
rência proferida no Centro de Debates de Assun
tos Econômicos “Gásper L ibero”.
E antes de m ais nada, tenham os presente a adm i
rável continuidade da doutrina social da Igreja,
através dos num erosos docum entos em anados da
C átedra de Pedro, aplicando aos problem as destes
últim os tempos os princípios eternos do Evangelho.
Essa doutrina tem por fontes os princípios do di
reito n a tu ra l e os ensinam entos da Revelação. De
Gregório XVI, quando o liberalism o com eçava a
difundir-se pelo m undo, até João XXIII, quando
m uitos julgam no socialismo um a fatalid ad e histó
rica, há um a linha de coerência na qual em vão se
hão de p ro cu rar contradições. O que v ariam são
as situações de cada época, exigindo um a aplica
ção diferente dos mesmos princípios.
De um modo especial estas observações valem
p ara as três grandes Encíclicas concernentes à or
dem econômica, isto é, a R eru m N ovarum de Leão
XIII, a Quadragésimo Anno de Pio XI e a Mater
et Magistra. A êstes docum entos acrescentem -se os
m em oráveis discursos de Pio XII alusivos a tem as
sem elhantes.
D efinindo a posição da Ig reja, ao condenar os
abusos do capitalism o de inspiração lib eral e os
falsos princípios socialistas, Leão XIII, com a p ri
m eira destas Encíclicas, dava-nos a “carta m ag n a”
22
do operariado. Com em orando o quadragésim o an i
versário de sua publicação, Pio XI precisava alguns
pontos da R erum No varam e descortinava novos
e m ais am plos horizontes. O mesm o veio a fazer
o atual Pontífice, por ocasião do septuagésim o
aniversário da sem pre lem brada Encíclica de Leão
XIII. Quanto ao seu sucessor im ediato, governando
a Igreja nos anos torm entosos da guerra e preocupa
do com os problem as da reorganização do m undo
de após-guerra, não chegou a escrever urna E ncí
clica do teor das que form am êsse tríptico, m as
deixou esclarecim entos dos m ais oportunos cm n u
m erosas alocuções proferidas a operários e a p a
trões, a participantes de Sem anas Sociais e m em
bros de diversas entidades.
P ara bem com preender a Encíclica Mater et
Magistra, cum pre considerá-la não apenas em tre
chos isolados, ou em frases e até em palavras a que
alguns se apegam para daí tira r partido, m as na
integridade do seu texto e ainda no contexto d o u
trinário dos m encionados docum entos, além de ou
tras diretrizes pontifícias. Sobre a constituição da
sociedade e do Estado, o poder político e a lib er
dade, o liberalism o e o socialismo em suas várias
m odalidades, há tôda um a série de im portantíssi
m as Encíclicas, sem fala r no Syllabus de Pio IX
e nas que versam ternas especificam ente religiosos,
cujo conhecim ento perm ite alcan çar em tôda a
sua profundidade o significado e o alcance da dou
trina social católica.
23
1. Cristianismo e socialismo
Nessas perspectivas é que se deve colocar o p ro
blem a do socialismo em face da doutrina da Igreja.
Na Encíclica Quadragésimo A im o declarava Pio
X I: “O socialismo, qu er se considere como doutri
na, quer como fato histórico, ou como “ação”, se
é verdadeiro socialismo, mesmo depois de se ap ro
x im ar da verdade e da justiça nos pontos sobredi
tos, não pode conciliar-se com a doutrina católica,
pois concebe a sociedade de modo com pletam ente
avêsso à verdade cristã”. E m ais o seguinte: “So
cialism o religioso, socialismo católico são termos
contraditórios: ninguém pode ao mesmo tempo
sem bom católico e verdadeiro socialista”.
Cristianism o e socialismo repelem -se pelo an ta
gonismo de duas concepções da vida irreconciliá
veis. Os pressupostos ideológicos do socialismo mo
derno são incom patíveis com as verdades fu n d a
m entais da vida cristã. O socialismo deve ser en
tendido na linha do pensam ento n atu ralista —
negando a ordem so b ren atu ral — e p artindo de
certas prem issas que já eram as do individualis
mo lib eral: nega o direito n a tu ra l de propriedade,
o cará ter sagrado da fam ília e a origem divina do
poder, enquanto por outro lado enseja o to talita
rism o do Estado e preconiza teoricam ente um a so
ciedade igualitária, em contraposição com as re a
lidades hum anas e com as norm as do Evangelho.
O Cristianism o essencialm ente é uma religião.
Procede da revelação de Cristo, que rep resen ta o
Nôvo Testam ento, na continuação do Antigo, isto é,
dos tempos em que a h u m an id ad e era p rep arad a
p ara a vinda do Redentor. Não é um a doutrina
24
social, nem um sistem a político. Mas, sendo reli
gião, im plica em um a concepção geral da vida e
do destino do homem, da q u al decorrem conse-
qüências de n atu reza social, econôm ica e política.
Eis porque a Ig reja, sendo depositária do au tên
tico Cristianism o, tem um a d outrina social, o que
não se deve entender no sentido de receitas técni
cas para organizar a vida em sociedade — regim e
político ou sistem a econômico — m as sim de p rin
cípios gerais tocantes à fundam entação da ordem
social e encam inhando os hom ens à realização do
seu fim último.
Quanto ao socialismo, é um sistem a económico-
político que determ ina que a produção e distrib u i
ção dos bens deve ser feita pelo Estado, um a vez
transferido p ara o Estado o domínio dos bens p ro
dutivos. Assim se apresenta na atualidade, sob vá
rias form as, desde as m ais m oderadas até ao cole
tivismo integral, in sp irad o r da revolução russa.
Superada a fase do socialismo utópico, que vinha
da Renascença, foi feita por K arl M arx a sistem a
tização dos princípios socialistas, M arx aplicou,
p ara a interpretação filosófica dos fenôm enos so
ciais, o idealism o de Hcgel e o m aterialism o de
Feuerbach. Daí resultou o m aterialism o histórico
ou dialético, base ideológica do cham ado “socialis
mo científico”. Tôdas as correntes socialistas têm
recebido esta influência, e o últim o Congresso do
P artido Com unista realizado em Moscou re a firm a
va os mesmos princípios, fazendo ver como deve
entender-se presentem ente, na visão socialista, a
concepção científica do m undo.
E videntem ente um a tal concepção filosófica tor
na o socialismo incom patível com o Cristianism o.
25.
Mas — pergunta-se — não poderíam os aceitar os
princípios socialistas apenas no domínio econô
mico? E assim o socialismo, despojado da filoso
fia m aterialista que lhe serve de pressuposto, não
poderia conciliar-se com a doutrina social católica ?
O sim ples fato do socialismo estar construído
na base da negação do direito de propriedade •—
um dos princípios fundam entais da ordem eco
nôm ica segundo o direito n a tu ra l e o direito cris
tão — e da aceitação de um intervencionism o exa
gerado do Estado, com prom etendo as liberdades
individuais e fam iliares, exclui a possibilidade de
q ualquer resposta afirm ativa.
Consideremos, tendo em vista p articularm ente
os ensinam entos da Encíclica Metter et Magistra,
esses dois aspectos da q u estão : o prim eiro, re la ti
vo à propriedade, situando-nos na ordem econôm i
ca; o segundo, sôbre a ação social do Estado, con
duzindo-nos ao plano político.
2. O direito de propriedade
26
abusos das classes abastadas, conduzindo à prole-
tarização dos trabalhadores.
Passava-se assim de um extrem o a outro, e per-
dia-se o sentido cristão da propriedade, enuncia
do com tôda a clareza pelos prim eiros P adres da
Igreja, a verberarem com veem ência os abusos
dos ricos ao mesm o tempo em que sustentavam
a legitim idade do uso e da posse exclusiva de bens
m ateriais pelo homem. Santo Tom ás de Aquino e
outros expoentes da escolástica m edieval, à luz do
direito n a tu ra l ou com entando textos da Sagrada
E scritura, reafirm av am os princípios do uso com um
das coisas da natureza, necessárias a todos os ho
mens, e da divisão dos bens determ inados por vá
rios motivos, entre os quais exigências da paz
social.
Na m ensagem radiofônica de N atal de 1942, Pio
XII fazia as seguintes ponderações a respeito dêstc
tem a: “Deus, abençoando nossos prim eiros pais,
lhes disse: “Crescei e m ultiplicai-vos, e enchei tô
da a te rra e dom inai-a” (Gn 1,28). E ao prim eiro
chefe de fam ília disse em seguida: “Comerás o
teu pão com o suor do teu rosto” (Gn 3,19). A digni
dade da pessoa hum ana supõe, pois, norm alm ente,
como fundam ento n a tu ra l p a ra viver, o direito
ao uso dos bens da te rra ; a êste direito correspon
de a obrigação fu ndam en tal de d ar um a p ro p rie
dade particular, quanto possível, a todos. As n o r
m as ju ríd icas positivas, regulam entando a p ro p rie
dade privada, podem m u d a r ou restrin g ir o seu
uso, m as se quiserem co n tribuir p ara a pacifica
ção da com unidade, deverão im p ed ir que o o p erá
rio, pai ou futuro pai de fam ília, seja condenado
27
a um a dependência ou a urna servidão econômica,
incom patível com os direitos de sua pessoa.
“Que esta servidão derive do poder do capital
privado ou do poder do Estado, o efeito é o mesmo.
Ou antes, sob a pressão de um Estado que dom ina
tudo, que regulam enta tôda a esfera da vida pú
blica e privada, que penetra até no cam po das
idéias e das convicções da consciência, esta falta
de liberdade pode ter conseqüências ainda m ais
graves, como a experiência o m anifesta e tes
tem unha” .
Note-se aí a repulsa ã tiran ia do poder econô
mico, q u er proceda do capital privado, q u er do
Estado, exercendo-o êste últim o nos regim es de
tipo socialista. Condenando a servidão decorrente
de um ou de outro, a Ig reja defende a p ropriedade
tendo em vista seu altos fins éticos e sociais. O
mesmo Pio XII, falando ao m undo por ocasião do
quinto aniversário da guerra, a 1 ■ ’ de setem bro de
1944, lem brava que Leão XIII é Pio XI haviam
enunciado o princípio de que tôda ordem econô
mica e social deve apoiar-se sôbre a base sólida do
direito à propriedade privada, acrescen tan d o : “A
consciência cristã não pode reconhecer a justiça
de Uma ordem social que nega em princípio ou
que torna pràticam ente im possível ou vão o direi
to n a tu ra l de propriedade, tanto sôbre os bens de
uso quanto sôbre os meios de produção”.
A través dêstes trechos já se pode perceber co
mo a Ig reja condena o capitalism o nos seus abu
sos e o socialismo nos seus princípios. O socialis
mo é, pois, repelido de um modo radical. O regi
me capitalista — baseado na livre em presa e no
salariado — é suscetível de ser realizado n u m a
28
ordem social cristã, desde que h a ja observância
das norm as éticas, o que supõe da parte dos em
presários um a consciência cristã bera form ada.
O mesmo não se pode dizer do socialism o: negan
do o direito de propriedade, nunca lhe será possí
vel in sta u ra r um a ordem social conform e com a
doutrina da Igreja.
Observe-se que o capitalism o, como se desen
volveu no m undo ocidental, especialm ente nos p aí
ses que sofreram a influência da ética protestante
— segundo a tese de Max W eber — tornou-se um a
antecipação do socialismo, sistem a a que aplainou
o cam inho. Nem é o socialismo, nas suas conse-
qüências lógicas e na sua realização prática, senão
um grande capitalism o de Estado, como estam os
vendo na Rússia. Há no capitalism o gerado no cli
m a da economia lib eral um m aterialism o p ra g
m ático, ao qual vem suceder o m aterialism o d ia
lético do socialismo. Daí o hav er escrilo B crdiaeff:
“o socialismo é a carne da carne e o sangue do
sangue do capitalism o”. 1
P or isso mesm o não se deve pensar que a dou
trina social da Ig reja seja um a espécie de conci
liação ou meio term o entre a posição capitalista-
liberal e a socialista. A Ig reja supera a estes dois
extx-emos que se tocam, coloeando-se num plano
superior ao de tais sistem as, etapas sucessivas do
naturalism o econômico m oderno.
Nas Encíclicas R erum N ovarum c Quadragésimo
Anuo e nos discursos de Pio XI, acha-se afirm ado
o c ará ter da propried ad e como um direito n atu ra l
e inviolável, que deve ser reconhecido e protegido
1) N icolas B e r d ia e f f , Un noiweau Moijen Age, P a
ris, Plon, 1930, p. 269.
pelos poderes públicos, e ao mesmo tempo a fu n
ção social que lhe é inerente, donde decorre, a
legitim idade de sua lim itação em vista do bem
comum. E nquanto o liberalism o individualista con
sagrava o direito de propriedade sem lev ar em
conta a sua função social, e o socialismo q u er su
p rim ir a propriedade, a doutrina da Ig reja preconi
za a propriedade utilizada segundo os seus fins
sociais, a sua m áxim a difusão possível.
Assim podemos, em síntese, caracterizar essas
três concepções distintas de p ropriedade:
Liberalism o — A propriedade E ’ um direito.
Socialismo — A propriedade E’ um a função
social.
D outrina social da Ig reja — A propriedade E’
um direito que TEM um a função social.
3. A propriedade na “M ater et M agistra”
R eitera a Encíclica de 15 de m aio de 1961 as afir
mações de Leão XIII e de Pio XI, referindo-se tam
bém de um modo especial à rádiom ensagem de
Pio XII dirigida ao m undo na festa de Pentecos
tes de 1941, em plena guerra, p ara celeb rar o cin-
qüentenário da R erum N o va n im . R elem brando os
argum entos expostos p o r seus predecessores p ara
ju stificar a propriedade privada, o P ap a João
XXIII aponta para as modificações introduzidas
no instituto da propriedade pelas novas condições
sociais e técnicas dos povos. E nfrenta os aspectos
decorrentes da utilização da energia atôm ica e con
sidera tam bém as possibilidades abertas pela a u
tomação. E considera, entre outras questões, o de
senvolvim ento da política de seguros sociais.
30
Na tradição do pensam ento católico sem pre se
fêz ver que a propried ad e p a rticu la r tem, entre ou
tras motivações, o fato de, pela liberdade recebi
da de Deus, tornar-se o hom em como que uma
providência de si mesmo, assim participando da
providência com que Deus o governa e rege o u n i
verso. Sob êste prism a, a pro p ried ad e vem a tor
nar-se um a g aran tia do fu tu ro da fam ília, asse
gurando ao pai a genuína lib erd ad e de que p re
cisa para cu m p rir todos os seus deveres com res
peito ao bem -estar físico, esp iritu al e religioso da
sociedade doméstica.
Com tôda a objetividade e pleno conhecim ento
das situações vigentes no m undo atual, Sua S anti
dade encara o assunto. D iante de referidas tran s
form ações c do desenvolvim ento da previdência
social a cargo do Estado, pode-se le v an tar a ques
tão de saber se o princípio da pro p ried ad e como
um direito n a tu ra l ainda tem valor hoje, ou se
perdeu a sua significação, que seria assim r e la ti
va, dependendo das condições de cada época.
Ao que o P ap a João XXIII, n a M ater et Magistra,
retruca de m an eira bera clara e com firm eza: “Es
ta dúvida carece em absoluto de fundam ento. Pois
o direito de propriedade privada, mesm o no tocan
te aos bens produtivos, tem um valor perm anente,
já que é um direito contido n a p rópria n atu reza
das coisas, pela qual ficam os sabendo da p rio rid a
de do hom em individual sôbre a sociedade civil e
da consequente subordinação teleológica da socieda
de civil ao hom em ”. Além disso — frisa o P o n tífi
ce — “a história e a experiência dem onstram que
nos regim es políticos que não reconhecem aos p a r
ticulares a propriedade dos bens de produção o
31
exercício da liberdade h u m an a é violado ou su p ri
mido nas coisas m ais fundam entais, o que prova
à evidência que o uso da liberdade tem a sua ga
ran tia e ao mesmo tempo o seu estímulo no d irei
to de pro p ried ad e”.
Passando ao desenvolvim ento da propriedade
pública em nossos dias, qu er se trate do Estado
quer de outras instituições, realça o princípio en
sinado pelos P apas anteriores sôbre a função so
cial “intrinsecam ente in eren te” ao direito de pro
priedade privada.
Ainda a tal propósito faz a seguinte afirm ação,
na qual se poderá facilm ente ver um a crítica às
tendências hodiernas p ara o socialismo de E stado:
“Em bora, em nosso tempo, tanto o Estado como as
instituições públicas tenham estendido c continuem
a estender o cam po de sua intervenção, não se
deve concluir que desapareceu, como alguns errô
neam ente opinam , a função social da propriedade
privada, já que esta função tira sua força do pró
prio direito de propriedade. Acrescente-se a isto
o fato de h av er um a v ariad a gam a de situações
angustiosas, de necessidades ocultas e graves, que
a assistência do Estado, em suas m últiplas form as,
não pode de nenhum modo atin g ir e solucionar.
P or isso fica sem pre aberto um vasto cam po ao
exercício da m isericórdia e da caridade cristã pe
los particulares. Por fim, é evidente que p ara o
fomento c o estím ulo dos valores espirituais resu l
ta m ais fecunda a iniciativa dos p articulares ou dos
grupos privados do que a ação dos poderes p ú
blicos” .
Registra a nossa época a tendência p ara aquela
progressiva am pliação da p ropriedade do Estado
32
e de csuíras instituições públicas. A explicação dês-
te fato está na série crescente de funções a trib u í
das aos poderes públicos, e a esta situação aplica
João XXIII o princípio da suplem enfação ou subsi-
diariedade, com estas p alav ras: “o Estado e outras
entidades de direito público só podem licitam ente
am pliar o seu domínio na m edida em que v e rd a
deiram ente o exijam motivos evidentes de bem
comum, e um a vez excluído o perigo de que a p ro
priedade privada se reduza em excesso ou, o que
ainda seria pior, seja suprim ido por com pleto”.
4. O princípio de suhsidkiriedade
Êsse princípio, que na passagem acim a vimos
aplicado à propriedade, é de um grande alcance
como critério p a ra fix ar o sentido e os lim ites
da ação social do Estado. Vêmo-lo form ulado na
Quadragésimo Anuo, e reiterad o com ênfase na
Mater et Magistra.
Na prim eira destas duas Encíclicas, escrevia Pio
X I: “Ao falarm os na refo rm a das instituições, te
mos em vista sobretudo o Estado; não porque dêlc
só deva esperar-se todo o rem édio, m as porque o
vício do já referido “individualism o” levou as coi
sas a tal extrem o, que, enfraquecida e quase ex tin
ta aquela vida social outrora rica e h arm ônicam en
te m anifestada em diversos gêneros de agrem ia
ções, quase só restam os indivíduos e o Estado. Es
ta deform ação do regim e social não deixa de p re
ju d ic a r o próprio Estado, sôbre o q u al recaem to
dos os serviços que as agrem iações suprim idas pres
tavam e que verga ao pêso de negócios e encargos
quase infinitos” .
Socialismo •— 3 33
Refere-se aí Pio XI à situação provocada pelo
liberalism o de 1789, abolindo os grupos existentes
entre o indivíduo e o Estado, grupos êstes que na
ordem econômica eram as corporações de ofício.
Desta form a, os indivíduos ficaram isolados pe
rante o Estado, no regim e da livre concorrência,
em que os m ais fracos não tinham condições de
resistir à pressão dos m ais poderosos. Sabemos
que depois com eçaram a form ar-se os sindica
tos à m argem da lei, quando não mesmo contra
a lei e já insuflados pelo espírito de luta de clas
ses. Basta le m b rar que na F ranca, depois da lei
de 1791, supressora das corporações, o Código Pe
nal proibia a form ação de,„.coalizões, q u er de pa
trões q u er de operários. Leis posteriores revogaram
tão rígidos dispositivos, m as d eixara dc existir
aquele entendim ento entre profissões e classes ou-
trora reinante. Na dispersividade dos indivíduos
soltos em face do Estado, e não m ais existindo as
autoridades interm ediárias, qualquer ação ordc-
nadora da vida econômica teria de p a rtir do poder
do Estado, e assim o cam inho estava aberto p ara
um a política de tendência socialista.
Mas continuava Pio XI: “V erdade é, e a história
o dem onstra abundantem ente, que, devido à m u
dança de condições, só as grandes sociedades po
dem hoje levar a efeito o que antes podiam até
mesmo as pequenas. Perm anece, contudo, firm e e
constante na filosofia social aquêle im portantíssi
mo princípio que é inam ovível e im utável: assim
como não é lícito su b trair aos indivíduos o que
êles podem realizar com as próprias forças e in
dústrias, p a ra o confiar à coletividade, do mesmo
modo p assar p ara um a sociedade m aior e m ais
34
elevada o que sociedades m enores e inferiores p o
deriam conseguir, é um a in ju stiça, um grave dano
e perturbação da boa ordem social. Toda ação da
sociedade, em virtude da sua p ró p ria natureza,
deve prestar a ju d a — subsM iiim — aos seus m em
bros, e nunca destruí-los nem absorvê-los”.
Aí está o principio de subsidiariedade ou suplc-
m entação, indicando que a ação social do Estado
deve ser supletiva em relação à dos particulares.
Donde o concluir Pio X I : “Deixe, pois, a au to rid a
de pública ao cuidado de associações inferiores
aqueles negócios de m enor im portância, que a
absorviam dem asiado; poderá então desem penhar
m ais livre, enérgica e eficazm ente o que só a ela
com pete, porque só ela o pode faze r: dirigir, vigiar,
u rg ir e rep rim ir, conform e os casos e a necessida
de requeiram . Persuadam -se todos os que gover
nam de que quanto m ais p erfeita ordem h ie rá r
quica re in a r entre as várias agrem iações, segundo
êste princípio da função “su p letiv a” dos poderes
públicos, tanto m aior a influência e autoridade te
rão êstes, tanto m ais feliz c lisonjeiro será o esta
do da N ação”.
O princípio assim enunciado por si mesmo vai
contra o individualism o c o socialismo. O indivi
dualism o liberal, no seu extrem o, que aliás nunca
chegou a ser de fato praticado, seria o Estado-po-
lícia. o État geiudarme, com os braços cruzados
diante dos problem as econômicos, deixando-os in
teiram ente ao livre jôgo das leis naturais. O socia
lismo, pelo contrário, preconiza a intervenção do
Estado sem nos oferecer n enhum critério p ara li
m itá-la, tornando-se logo dem asiada um a tal in
tervenção e pondo em risco as liberdades.
0 problem a da intervenção do Estado na ordem
econômica, em todos os países, mesmo nos de re
gime dem ocrático, é e s te : quando o Estado com e
ça a intervir, êle tende sem pre a avançar cada vez
mais, n a senda de um coletivismo progressivo.
Nas páginas de sua filosofia política, Du Pouvoir,
B ertrand de Jouvenel nos faz ver que quando o
Estado põe o pé em algum terreno geralm ente não
o re tira mais. Às vêzes, por necessidades excepcio
nais em tem po de guerra ou p ara aten d er a m e
didas justificadas para debelar um a crise econô
mica, o Estado assum e um a série de atribuições
ou tarefas extraordinárias, e depois dificilm ente as
abandona. D aí a tendência p ara essa intervenção
crescer num a progressão constante, suprim indo a
iniciativa privada e não encontrando m ais ne
nhum lim ite à sua ação. 2
O princípio de subsidiariedade vem trazer êste
lim ite à ação do Estado, firm ando a regra segundo
a qual tudo aquilo que os particulares podem fa
zer o Estado deve d eix ar que êles o façam , s;ó
lhe cabendo in terv ir quando a iniciativa privada
se m an ifestar incapaz ou deficiente.
Mas que se deve entender por esta deficiência?
Quando se justifica a intervenção do Estado, subs-
tituindo-se os particulares ?
P relim inarm ente devemos dizer que o princípio
vale quer p ara o Estado, quer p ara q u alquer ou
tra sociedade. Assim, quando o indivíduo pode fa
2) B er tra nd de J ou venel ,, D u Pouvoir-Hintoire, nalii-
relle de sa croissance, B ibliothèque du Cheval Ailé,
Constant B ourquin, É diteur, Genève. Do mesmo autor, e
com pletando esta obra, veja-se De la Soiweraiiieté-A la
recherche du bien politiqiie, É ditions Ivl. Th. Génin, Li-
b rairie de M édicis, P aris.
36
zer algum a coisa, é n a tu ra l que êle o faça; quando
não o pode, o grupo é que a deve fazer. Q uando a
fam ília não pode fazer algo, a um grupo m aio r ca
be fazê-lo em seu lugar. Q uando o m unicípio está
em condições, realiza um determ inado em preendi
m ento; em caso contrário, a região ou a província.
F inalm ente, não podendo esta, chega a vez do
Estado.
Resta saber o que deve ser entendido por neces
sidades decorrentes da insuficiência dos p articu la
res. A ação do Estado se legitim a p ara su p rir a
atividade dos grupos autônom os, m as o que vem
a ser êste suprir?
Em prim eiro lugar, deve considerar-se aquilo
que os particulares não são capazes dc fazer por
suas próprias forças, ou então certas iniciativas
dispendiosas dem ais p ara os p articulares e que
êles, por si, não fariam mesmo. Compete aos po
deres públicos realizar tais iniciativas, por exem
plo: grandes barragens, represas, estradas de ro
dagem, obras que vão além do âm bito de ação
dos particulares, dc suas possibilidades, dc seus
recursos.
Em segundo lugar, essa intervenção se ju stifica
no caso dos agrupam entos em condições deficien
tes, provindas de anom alias sociais, como seja um a
crise econômica. E’ o que se verifica na hipótese
das fam ílias indigentes. Em épocas de crise, os
grupos se ressentem , uns m ais, outros menos, e
deixam de poder realizar o que norm alm ente não
ofereceria os mesmos obstáculos. Então o Estado
assum e legitim am ente certas tarefas pelas quais
vem em auxílio das sociedades m enores em crise.
F inalm eníe, há um terceiro aspecto assaz im por
37
tante e constanlcm entc focalizado em nossos dias:
o de certas iniciativas que não podem ser deixa
das em mãos de particulares por estar em jôgo
o interesse nacional. E ’ o caso da exploração do
petróleo ou das areias m onasíticas, além de tantos
outros, figurando hipóteses nas quais a segurança
nacional e a independência econômica do País po
dem ser com prom etidas um a vez entregues tais ini
ciativas à livre ação dos particulares.
Assim o princípio de subsidiariedade apresenta
os três seguintes aspectos:
15*9) insuficiência dos particu lares em virtude da
própria n atu reza da obra a realizar;
20) deficiência m otivada por certas condições
extrínsecas, gcralm eníe oriundas de épocas de cri
se e que afetam aos grupos interm ediários;
3o) restrições im postas á ação dos p articulares
em virtude dc exigências do bem comum nacional,
p ara atender a razões de segurança ou mesmo
p ara assegurar a plena independência de um povo.
38
R eproduz então literalm ente o P ap a João XXIII
aquele m encionado trecho de Pio XI, dizendo que
perm anece de pé o princípio da função subsidiá
ria do Estado, princípio êste que não pode ser re
movido nem alterado — neque m overi neque m u-
tari potest.
Referindo-se aos progressos científicos e técni
cos, dos quais têm resultado m aiores possibilida
des ao poder público no cam po econômico, •— espe
cialm ente p ara red u zir os desequilíbrios entre os
diversos setores da produção, entre as v árias re
giões de um país e entre as diferentes nações no
plano m undial, — insiste Sua Santidade sôbre
o valor e a atualidad e do princípio cm ques
tão : “M antenha-se sem pre a salvo o princípio de
que a intervenção das autoridades públicas em m a
téria econôm ica, por m ais larg a e p en etran te que
seja, não som ente não deve red u zir a esfera da li
b erdade na iniciativa dos p articulares, m as antes
pe!o contrário garantir-lhe m aio r am plitude, sal
vaguardando os direitos essenciais da pessoa h u
m ana. E ntre êstes há de incluir-se o direito e a
obrigação que corresponde a cada um de ser n o r
m alm ente o prim eiro responsável pela m an u ten
ção própria e da fam ília, o que im plica que os
sistem as econômicos perm itam e facilitem a todos
o livre e proveitoso exercício das atividades p ro
dutivas” .
No volum e da Biblioteca de Autores Crislianos
de M adrid, Comentários a la M ater et Magistra, edi
tado em 1962 sol) o patrocínio do Instituto Leão
XIII, há um m agnífico estudo do conhecido cons-
titucionalista Luís Sánchez Agesta, R eitor da Uni
versidade de G ranada, sôbre o te m a : “Iniciativa
39
pessoal e intervenção dos poderes públicos no cam
po econômico. A constituição econômica dos Es
tados”. Observa o auto r que “o princípio de subsi-
diariedade é um princípio jurídico, fundado na
justiça. As próprias palavras de Pio XI, rep ro d u
zidas pela Encíclica Mal cr et M agistm, m anifes
tam, sem lugar a dúvidas, que os Pontífices não o
consideram em nenhum caso como um princípio
técnico, isto é, um princípio que im plique m aior
eficácia da ação social ou m aio r rendim ento no
âm bito econômico, m as um princípio estrito de
justiça. Pio XI disse que era “in ju sto ” atrib u ir
a um a sociedade m aior ou m ais elevada o que as
com unidades m enores ou os indivíduos podiam
fazer por seu próprio esforço e in d ú stria (nefas
est, iniuria est, diz o texto latino). João XXIII o
declara vinculado à g aran tia c tutela dos direitos
essenciais da pessoa h u m an a (mado praecipua
cuiusuis hum anae personae iura sarta tecta sur-
ven tu r)”.
Assim, o P ap a João XXIII faz ver como o prin cí
pio de subsidiariedade está intim am ente vinculado
à tutela dos direitos essenciais da pessoa hum ana.
Além disso, a Encíclica Mater et Magistra alarga-
lhe o conteúdo, não se lim itando a interpretá-lo
como sim ples “suplem entação” ou m ero lim ite à
ação do Estado. P receitua de modo explícito e ca
tegórico que o Estado deve fom entar, estim ular,
coordenar, su p rir e com pletar a atividade dos p a r
ticulares: Haec autem reipublicae provvdentia,
quae fovet, excitai, oixlinat, supplet atque complet,
illo subsidiarii officii principio innititur.
Comentando essas palavras da Encíclica, o p ro
fessor Sánchez Âgesta nota que o princípio de
40
subsidiariedade acarreta um a divisão de com pe
tências e um a cooperação das diversas esferas de
ação social e individual.
Uma tal divisão de com petências abrange tríplice
aspecto, a saber:
“a) Pode, sem dúvida, e com um valor restrito à
prevenção de excessos ou abusos de poder, consi
derar-se como um lim ite, enquanto proíbe ao Es
tado ou às com unidades m aiores p riv ar os in d iv í
duos ou as com unidades m enores do que eles po
dem realizar por seu próprio esforço e indústria.
“b) Porém sua significação básica é delin ear o
contorno ou a dim ensão do conteúdo positivo cor
respondente à esfera de atividade reservada à ini
ciativa in d iv id u a l: aquilo que os indivíduos po
dem realizar por seu próprio esforço ou indústria.
“c) Por últim o deve advertir-se que esta deli
m itação de com petências não está traçad a como
um a autonom ia ou independência recíproca da
esfera de ação do Estado e dos indivíduos, m as
como um a cooperação. A missão do Estado é subsi
diam , isto é, a ju d a ; e o próprio princípio que traça
esta divisão dc com petências traz este nom e: p rin
cípio de subsidiariedade, isto é, de aju d a e tutela
por parte do Estado. A m issão do poder do E sta
do, esclarece taxativam ente o Pontífice, não é des
tru ir ou absorver, m as favorecer, estim ular, coorde
n a r e com pletar a atividade dos sujeitos pessoais
e das com unidades m enores c, quando fôr o caso,
su pri-la”. 3
Do ponto de vista da ética c do direito n atu ra l,
vários autores já haviam aprofundado o sentido
3) Obra citada, pp. 164-165.
41
do princípio da subsidiariedade antes da publi-
cação de Encíclica Mater et Magistra. E ntre tais
autores, cum pre destacar Messner, em seu tratado
de D ireito N atural, e Utz, num exaustivo estudo
sôbre as form as e os fundam entos de tal princípio.4
A com petência dos indivíduos e dos grupos so
ciais fundam enta-se na p ró p ria aptidão dos m es
mos indivíduos ou grupos p ara realizar determ i
nadas tarefas. E assim vemos que esta doutrina,
como pondera Messner, radica-se na concepção
objetiva do direito n a tu ra l segundo a qual a ju s
tiça das relações juríd icas se apóia sôbre a n a tu
reza das co isas.5
6. O problem a da “socialização”
A ação subsidiária do poder público c a autono
m ia dos grupos interm ediários em face do listado
são duas teses correlatas, as quais por si m esm as
excluem o socialismo de um modo definitivo.
E ntretanto, um a palavra da Encíclica malèvola-
m ente in terp reta d a deu m argem a se pro p ag ar a
idéia de um absurdo socialismo cristão que estaria
contido no docum ento pontifício. T rata-se aliás
de um a expressão não constante do texto latino.
Mas o m ais interessante é que, utilizada em dife
rentes traduções, tem na Encíclica um a significa
ção exatam ente oposta à idéia socialista.
4) 0 livro de J. Messner, Das N alurrecht, é um dos
m ais com pletos na m atéria. Quanto ao estudo de Utz, foi
publicado na coleção “P oliteia” do Instituto Intern acional
de Ciência Social e P olítica da U niversidade de F riburgo
(Suíça) : A r t iiu r -F ridoi .i n U tz , F orm en im d G renzen des
Subsidiaritáisprinzips, 195G, F. H. Kerle Verlag, H eidelberg.
5) J. M e s s n e r , Das N atnrrecht, 4* e d iç ã o , 1960, p p .
255-264.
42
Vimos que o socialismo preconiza a tran sferên
cia p ara o Estado do domínio dos bens de p ro d u
ção. Além disso, atrib u i ao Estado um a série de
funções no exercício de sua ação social, re tira n
do-as das sociedades m enores ou da iniciativa in
dividual. Neste sentido, a p alav ra “socialização”
tem sido em pregada p ara designar êsses dois as
pectos do socialismo, e tornou-se sinônim o de “cs-
tatização”, ou “nacionalização”.
T al não é, porém , o significado original do vo
cábulo em questão. Socializar q u er dizer to rn ar
social, e, assim sendo, vemos aquêle mesmo term o
nas traduções da Encíclica dizendo respeito ao
desenvolvim ento da vida associativa, nos diversos
grupos de que os hom ens participam .
E ’ certo que a Mater et Magistra focaliza o pro
blem a das nacionalizações e do crescim ento da
p ropriedade pública nas condições do m undo atual.
T rata tam bém da intervenção do Estado em m a
téria social, dentro dos lim ites estabelecidos pelo
princípio de subsidiariedade. E ntretanto, não é a
propósito das nacionalizações que encontram os a
p alavra “socialização” no texto italiano e no v er
náculo de outros idiom as, e sim quando se cogita
da m ultiplicação das relações sociais, favorecendo
a vida associativa, pela qual se torna possível efe
tivar concretam ente o princípio de subsidiariedade.
Estam os diante do que a sociologia m oderna tem
estudado na análise dos fenôm enos da integração
social, como se pode ver, por exem plo, nas obras
de Gurvitch, p ara não citar m uitos outros. E aquêle
m ultiplicar-se de relações e form as de convivên
cia social, nos diferentes agrupam entos que com
põem a sociedade global, sugere desde logo a idéia
43
central da Quadragésimo Anno, retom ada com vi
gor em novas perspectivas pela M ater et M agistra:
a valorização da vida com unitária, a autonom ia
dos grupos diante do Estado, ou seja, um a b a rre i
ra erguida contra a invasões do poder público na
esfera de ação dos particulares. E tudo isto vai
frontalm ente contra o socialismo.
O indivíduo, na vida social, faz p arte de um a sé
rie de com unidades a p a rtir da fam ília. São gru
pos econômicos, culturais, esportivos, recreativos,
sem fa la r ainda no m unicípio, que é a célula po
lítica, e no Estado, que coordena a atividade de
tais grupos em vista do bem com um nacional. A
proliferação de tais grupos e o fortalecim ento das
relações suscitadas no âm bito de cada um têm-se
acentuado nestes últim os tempos, e é a isto que o
P apa cham a de “socialização”, ou m elhor, segun
do tradução literal e absolutam ente fiel, “incre
mento das relações sociais” — socialium ralionum
increm enta.
Lemos na E n cíclica: “Uma das principais notas
características da nossa época está no increm ento
das relações sociais, isto é, nos laços m útuos e cada
vez m ais estreitos entre os cidadãos, que introduzi
ram , na sua vida e atividade, m últiplas form as de
convívio social, em geral reconhecidas pelo direito
privado ou público. Origem e fonte dêste fato na
atualidade são, entre outras, as seguintes: o pro
gresso científico e técnico, a m aio r eficácia da pro
dução, o m ais elevado nível cu ltu ral dos cidadãos”.
Notem-se agora as observações feitas logo a se
guir: “Os progressos da vida social são ao mesmo
tempo início e causa da crescente intervenção do Es
tado em m atérias que, por serem atinentes ao que
44
há de íntim o nas pessoas hum anas, não são de
pouca im portância nem estão isentas de perigo”.
Tais as questões relacionadas com a saúde p úbli
ca, a instrução e educação da juventude, a o rien
tação profissional e a recuperação ou read ap tação
dos que sofrem de incapacidade física ou m ental.
A pontando os riscos da ação do Estado, o P on
tífice refere-se tam bém aos perigos de uma reg u la
m entação m inuciosa daquelas m útuas relações en
tre os hom ens em diferentes setores, podendo p re
ju d ic a r a liberdade e a form ação pessoal de cada
um . Mas ao mesmo tempo reconhece as vantagens
decorrentes do desenvolvim ento de tais relações,
desde que se observem as norm as da boa ordem
social, a respeito das quais torna a le m b rar as li
ções de Pio XI na Quadragésimo Anno.
Muitos outros trechos da Encíclica poderiam ain
da ser analisados. P ara te rm in ar citemos apenas
m ais um a passagem , relativa â vida ru ral.
D iscorrendo sôbre as exigências da justiça no
concernente às relações entre os diversos setores
da produção, Sua Santidade volta-se com p a rti
cu lar atenção p ara os problem as da agricultura.
Ao tra ta r da adequação das estru tu ras da em prêsa
agrícola, refere-se à em prêsa de dim ensão fam i
liar, dizendo que ela só será firm e e estável quando
ren d er tanto quanto im porta ao honesto sustento
da fam ília. E acrescenta: “P ara lográ-lo é absolu
tam ente necessário que os agricultores sejam p er
feitam ente instruídos nos seus trabalhos, possam
conhecer os novos inventos e recebam assistência
técnica no exercício da sua profissão”.
Aí vemos algum as norm as de m uita oportuni
dade a propósito de reform as agrárias. A divisão
45
da propriedade por si só nada resolve, E’ preci
so que os pequenos lavradores estejam devidam en
te preparados p a ra cu ltiv ar a terra e tenham o
devido assessoram ento técnico.
Mas é no fin al daquela passagem que devemos
fix ar a nossa a ten ção : “E ’ indispensável ainda
que os agricultores form em sociedades coopera
tivas, constituam associações profissionais e p a rti
cipem eficientem ente dos negócios públicos, tanto
nos organism os adm inistrativos quanto na política”.
Nessa afirm ação do Pontífice, encontram os três
idéias de grande alcance, que correspondem a en
sinam entos dos seus im ediatos predecessores, a
s a b e r:
1) o cooperativismo, como sistem a de organiza
ção das em presas;
2) o sindicalism o, como processo de organização
da classe;
3) o corporativismo, como princípio de organi
zação da profissão e de entrosam ento das profis
sões no plano nacional.
Conjugam -se assim as duas Encíclicas comemo
rativas da R erum N ovarum . O corporativism o, tese
central da Quadragessimo Anno, relaciona-se indis
soluvelm ente com o princípio de subsidiariedade,
que daquela Encíclica passou p ara a M ater et
Magistra.
E’ o que verem os a seguir, um a vez firm ad a,
através dos ensinam entos do P ap a João XXIII,
renovando os de Pio XI e Pio XII, a incom patibi
lidade absoluta entre a doutrina social da Ig reja
e o socialismo.
46
CAPÍTULO II.
47
Com precisão e num a form a concisa, assim se
expressava o Pontífice: “O século passado des
truiu, sem as substituir por coisa algum a, as corpo
rações antigas, que eram p ara os operários um a
proteção; os princípios e o sentim ento religioso de
sapareceram das leis e das instituições públicas,
e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados
e sem m ercê, têm-se visto, com o d ecorrer do tem
po, entregues à m ercê de senhores desum anos e à
cobiça de um a concorrência desenfreada. A usura
voraz veio ag rav ar ainda m ais o mal. C ondenada
m uitas vêzes pelo julgam ento da Igreja, não tem
deixado de ser p raticad a sob o utra form a por ho
m ens ávidos de ganância e de insaciável ambição.
A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio do
trabalho e dos papéis de crédito, que se to rn aram
o quinhão dum pequeno núm ero de ricos e de
opulentos, que im põem assim um jugo quase servil
à im ensa m ultidão dos proletários”.
Vemos aí apontadas quatro causas da crise a que
se deu o nom e de questão social:
l 9 a extinção das corporações;
29 o laicism o;
39 a u su ra;
49 a concentração excessiva do capital nas mãos
de poucos e a proletarização crescente.
Abrange-se assim o problem a em tôda a sua
com plexidade, ficando desde logo patente que não
se trata de um a questão m eram ente econômica.
Sem cair no unilateralism o de Marx, ao an alisar
êste autor a alienação do hom em m oderno e es
pecialm ente do operário no regim e capitalista,
Leão XIII destaca os elementos de natureza econô-
48
mica, política, m oral e religiosa contidos n a cau
salidade daquela angustiosa questão.
Nas épocas de vida cristã intensa, o hom em não
vivia angustiado por êsse problem a, pois a fé so
b ren atu ral e a graça dos sacram entos lhe p erm i
tiam contornar as m aiores dificuldades surgidas
ao longo de sua afanosa existência, cu jas próprias
raízes são afetadas por um a pro fu n d a desordem
e pelas conseqüências do pecado.
E’ o que observa, em obra recente, Júlio Mein-
vielle, notando ainda que “quando o puro h u m a
nism o penetrou na m entalidade do hom em e o
persuadiu de que estava cham ado a em presas pro-
m eteieas tendentes a lhe asseg u rar o paraíso na
terra, m as na realidad e trazendo-lhe a sistem ati
zação do terro r coletivo e m undial, sem oferecer
nenhum a explicação do próprio hom em , teve êste
que cair em estado de angústia e desespero”.
“À alienação fundam en tal somam -se então ou
tras históricas, que aju d am a torná-la m ais aguda.
Tôda a vida m oderna — a m odernidade — que
p arte do Renascim ento e do protestantism o, criou
um a civilização laicista e hum anista, aum entando
o m al existencial do homem. O hom em está desu-
biquado com respeito ao fim da sua existência.
Não se sabe qual o seu destino e em que estriba
sua felicidade. Faltam -lhe as bases éticas, e estas
lhe faltam pela ausência de um a sã m etafísica c,
em definitiva, de um a verdade religiosa certa e
segura” . 1
Essa desubiquação do homem, isto é, o fato de
se to rn ar o hom em um ser estranho no m undo por
1) J. M e in v ik t .l e , El poder destruclivo de la dialécti-
ca com unista, E diciones T heoría, Buenos Aires, p. 88.
Socialismo •
— 4 49
êle mesmo fabricado, decorre com efeito p rin cip al
m ente da p erd a do sentido da vida e da ordenação
da vida hum ana para Deus. Passando do domínio
da causalidade final, a que se refere o citado autor,
p ara o da causalidade m aterial na constituição das
sociedades, vam os en co n trar o mesmo fenôm eno:
o homem, um ser desorbitado, um desconhecido
de si mesmo, na linguagem de G arrei, e a sociedade
constituída não segundo a n atu reza e a história
m as em função de abstrações, que não se coadunam
com a condição hum ana real.
Uma dessas abstrações é a procedente de Rous-
seau e do pensam ento liberal individualista, ven
do na sociedade política um a sim ples soma de in
divíduos. Vem daí a transform ação dos Estados
m odernos em Estados de m assa — Massenstaaten
— oriundos do esquem a liberal deixando de ver
no povo um conjunto orgânico de grupos e red u
zindo-o a um a coleção de cidadãos isolados. “Não
deve h aver sociedade parcial no Estado”, dizia
Rousseau, e êste pensam ento, ju n tam en te com as
teses do liberalism o econômico preconizando a
liberdade de trabalho no regim e de am pla con
corrência, inspirou a abolição das corporações,
abrindo as portas p ara os abusos do capitalism o.
As Encíclicas pontifícias p artem sem pre de um a
concepção orgânica da sociedade pela q u al se
opõem radicalm ente às dem ocracias liberais e aos
Estados totalitários. Foi a dem ocracia m oderna,
com seus postulados individualistas, que gerou o
totalitarism o, levando êste ao extrem o aquela con
cepção da socicdade-de-m assas, e transform ando
o homem, unidade anônim a do liberalism o, num a
simples peça da m áquina social m ontada pelo Es
50
tado. Prim eiro temos os indivíduos desprendidos
de todos os vínculos sociais (lib eralism o ); e depois,
os indivíduos organizados com pulsòriam ente pelo
poder do Estado. Em am bos os casos, a m esm a
“desubiquação” do hom em : a libertação indivi
dualista prep aran d o a escravização operada nos
regim es de Estado totalitário. Eis as conseqüências
do desaparecim ento dos grupos corporativos, cu ja
restauração nas condições atuais da sociedade tem
sido preconizada com insistência por Leão XIII
e seus sucessores.
Recordemos m ais um a vez as incisivas palav ras
de Pio XI n a Quadragésimo A n n o : “Ao falarm os
na reform a das instituições, temos em vista so b re
tudo o Estado; não porque dêle só deva esperar-se
todo o rem édio, m as porque o vício do já re fe ri
do individualism o levou as coisas a tal extrem o,
que, enfraquecida e quase extinta aquela vida so
cial outrora rica e harm ônicam ente m anifestada
em diversos gêneros de agrem iações, quase só res
tam os indivíduos e o Estado. Esta deform ação
do regim e social não deixa de p reju d icar o p ró
prio Estado, sôbre o qual recaem todos os serviços
que as agrem iações suprim idas prestavam e que
verga ao pêso de negócios e encargos quase in
finitos” .
A existência de tais agrem iações, com um direito
próprio, com um a capacidade norm ativa e disci
p lin ar dentro de sua órbita de ação e com a sua
autonom ia plenam entc reconhecida pelo Estado,
é um pressuposto do princípio de subsidiariedade,
o qual consiste exatam ente em atrib u ir às socie
dades m enores tarefas de direção e coordenação
4*
51
que não devem pertencer ao Estado a não ser a
título supletivo.
Princípio inam ovível c im utável, proclam a com
clareza Pio XI. 23 Princípio retom ado na Mater et
Magistra, que, pelo simples fato de o aceitar, re a
firm a os ensinam entos anteriores dos P apas no
sentido da organização corporativa da sociedade. "
A idéia corporativista, como a encontram os nos
docum entos pontifícios, corresponde a um a onto
logia social fundada na experiência e na história.
Não é a expressão de um a ideologia, nem tão pou
co de um técnica juríd ica. Observa-o com acuida
de Marcel Clément, apontando nessa idéia tôda
um a “orientação de pensam ento e de ação, con
52
form e ao direito n a tu ra l e aos ensinam entos da
Ig re ja ”. 45
E ’ da m aior im portância esclarecer bem essa
dupla fundam entação do corporativism o.
53
Com unidades de natu reza diversa, um as de cará
ter local, outras profissional, outras cultural, cons
tituem a sociedade política — a Civitas ou Polis ■ —
podendo esta com parar-se a um vasto organism o,
dos quais somos os m em bros. Note-se bem que
um a tal analogia não nos deve levar ao êrro do
organicism o sociológico. Esta doutrina, que teve na
A lem anha seus m ais famosos expoentes, assim ila
as coletividades hum anas a organism os vivos, daí
surgindo um a espécie de biologia social. Ora, a
sociedade não se identifica a um organism o, em
bora se lhe possa com parar. E ’ falso todo realis
mo social que pretenda fazer da sociedade um a
realidade sui generis e queira tra ta r os fatos so
ciais como se fôssem coisas à m an eira de D urkheim .
Mas tam bém não se deve considerar a sociedade
um a sim ples justaposição ou soma, tal qual um
feixe de lenhas. Num corpo vivo ou num composto
químico existe unidade substancial; num feixe de
lenhas, unidade m eram ente acidental; na socie
dade, nem um a coisa nem outra, pois ela não é
um a realidade substancial e indivisa, um simples
agregado de indivíduos, um em pilham ento de ho
54
m ens que se ju n ta m p ara form á-la. Na linguagem
de Santo Tom ás de Aquino, a sociedade é um a u n i
dade de ordem : cada parte do todo social tem sua
atividade, que não é a do conjunto, m as por sua
vez o todo tem um a ação p rópria, que não é a das
diferentes partes. “
Em síntese:
a) a sociedade é um organism o m oral, dotado
de unidade de ordem e não de unidade física ou
biológica;
b) ela não resulta da m era aproxim ação dos in
divíduos c de um a ação m ecânica;
c) a sociedade política é constituída de seres
hum anos vivendo em agrupam entos m enores que
passam a in teg rar a Civitas e aí são coordenados
pela autoridade superior existente, à qual cabe
prom over o bem da com unidade global.
A sociedade política é, pois, o conjunto orgâni
co de fam ílias e outros grupos dentro de um a
certa ordem estabelecida pelo poder soberano ten
do em vista o bem com um a atin g ir e preservar.
Se nas sociedades políticas m ais simples, a p lu
ralid ad e de grupos quase sem pre se reduz à p lu
ralidade de fam ílias, nas sociedades m ais desen
volvidas surgem os agrupam entos profissionais c
outras associações cujo c ará ter voluntário é m ais 6
55
acentuado e que não correspondem tanto a incli
nações n aturais, como é sobretudo o caso da fam í
lia, m as assim mesm o m anifestam a força expan
siva da natureza social do homem. A profissão
aproxim a os que a exercem , dá-lhes um a certa
m entalidade com um, identifica-os pelos mesmos
objetivos no trabalho. Daí a tendência dos tra b a
lhadores de determ inada profissão p ara se unirem
em vista do aperfeiçoam ento do ofício e da salva
guarda dos seus direitos. Da m esm a form a, os que
m oram na m esm a cidade procuram associar-se
p ara atender aos interêsses locais, daí resultando
a com unidade de vizinhos, isto é, o m unicípio ou
com una, a que os rom anos cham avam convcntus
publicas vicinorum . A sociedade doméstica e a
agrem iação profissional, que é sociedade econô
mica, não chegam a ter os característicos de um a
sociedade política. Esta últim a já se configura no
m unicípio, o qual com preende coletividades m e
nores, abrangendo por vezes associações profissio
nais que podem p articip a r do governo m unicipal.
Todas essas form ações sociais são anteriores ao
Estado, e tam bém lhe são exteriores, como obser
va Roland M aspétiol \ se bem que o m unicípio,
do liberalism o p ara cá, passasse a ser um a parte
integrante do Estado, um a sim ples subdivisão adm i
nistrativa, desaparecendo a autêntica autonom ia
m unicipal.
56
No decurso da história, o Estado se sobrepõe aos
agrupam entos anteriorm ente existentes. Os g ru
pos m enores que vão com por a sociedade politica
tendem p ara um a com unidade m ais am pla, recla
m am a existência de um poder m ais forte capaz
de protegê-los eficazm ente e mesmo de completá-
los em face das novas condições criadas por um a
vida cada vez m ais com plexa. Assim se vai che
gando, em nossos dias, até mesm o à complemen-
tação dos Estados em com unidades supra-estatais. '
D iante dêsse dinam ism o na vida dos povos é que
se pode entender perfeitam ente o princípio de sub-
sidiariedade. Os grupos buscam ju n to do Estado
um a suplem entação, m as o Estado não lhes deve
tira r a legítim a autonom ia, nem m uito menos eli
miná-los p ara se substituir a eles mesmos no ex er
cício de suas tarefas.
Se as sociedades têm um a form ação orgânica e
se a sociedade política é um a “sociedade de socie
dades”, segue-se que nela há um a plu ralid ad e de
corpos sociais, e as regulam entações espontâneas
destes corpos interm ediários constituem um a o r
dem ju ríd ica que o Estado, organizando o co n ju n
to da sociedade política, deve resp eitar e proteger. ”*89
sentim ento de um a cultura, etc., são exteriores e an terio
res ao Estado. R em ontam a épocas em que o Estado ainda
não existia e m anifestam necessidades hum anas in elutá
veis, tanto assim que o Estado pode recusar-lhes o re
conhecim ento ju ríd ico sem jam ais conseguir fazê-las de
saparecer. L em bra que foram vãos os esforços da Cons
tituinte revolucionária na F ran ça p a ra su p rim ir as coleti
vidades in term ed iárias. 0 mesmo pode dizer-se da te n ta
tiva do com unism o na Rússia p ara abolir a vida de fam ília.
8) 0 assunto, já considerado na Mater et Magistra, rece
be m aior desenvolvim ento na E n cíclica Pacem in Terris.
9) Il faut ne p o in t toucher aux usages du pays d’Alsace,
recom endava Luís XIV depois da anexação daquela pro-
57
Podemos citar, entre nós, como expressão típica
de um a organização corporativa, a Ordem dos
Advogados. Esta entidade, fora da qual ninguém
pode exercer a profissão, tem um a autoridade pró
p ria reconhecida pelo Estado, com poder n o rm a
tivo e disciplinar.
À base de tais corpos interm ediários está a fa
m ília, unidade social por excelência, cujos direitos
não são criados pela lei civil m as decorrem da
lei n atu ra l e da lei divina positiva. O poder do
Estado, revestido da soberania política, não pode
deixar de reconhecer a soberania social do chefe de
fam ília dentro do seu lar. E entre a fam ília e o E sta
do surgem as autoridades sociais ou corporativas,
correspondendo àqueles corpos interm ediários.
Há um a ordem ju ríd ica n atu ral, que se afirm a
através da m archa histórica dos povos. M anifesta
a realidade tal como ela é. F o ra dessa ordem o
hom em torna-se um ser desubiquado e as socieda
des involuem p ara form as inferiores, que se ap ro
xim am dos agregados anim ais. Desviando-se dela,
o direito positivo se transform a num a legalidade
sem conteúdo de legitim idade.
A fam ília, a propriedade, o direito de associação
fundam entam -se nessa ordem n atu ral. Donde o
haver declarado o grande P ap a Pio XII, em sua
m ensagem radiofônica de 22 de dezembro de 1956:
“As estruturas sociais, como o casam ento e a fam í
lia, a com unidade e as corporações profissionais, a
58
união social na propriedade pessoal, são células
essenciais que asseguram a lib erd ad e do homem,
e por aí sua função histórica. Elas são intangíveis,
e sua substância não pode ser su jeita a revisões
a rb itrá ria s”.
N ada m ais é preciso dizer depois de palav ras
tão significativas. Note-se a referência expressa
do Pontífice às corporações profissionais. O mesmo
P apa que, naquela visão celestial, ab ria os braços
em cruz p ara abençoar o m undo conturbado pela
guerra, o Pastor Angelicus das profecias de São
M alaquias, vai-nos fazer ver agora como a idéia
corporativista, no seu legítim o sentido, faz p arte
integrante da doutrina social da Igreja.
59
fim n atu ra l da sociedade civil “é co ad ju v ar os seus
membros, e não destruí-los nem absorvê-los”. 101
Aí está a analogia da sociedade com os organis
mos, servindo-se dela o Pontífice m ais de um a vez a
fim de esclarecer bem o assunto. Assim é que,
com apoio em Santo Tomás, faz ver que a ordem
é a unidade resultan te da disposição conveniente
de m uitas coisas, só podendo o corpo social ser
verdadeiram ente ordenado m ediante um vínculo
comum, a u n ir solidam ente num todo os m em bros
que o constituem . 11 Mais ain d a: citando São Paulo,
apela Pio XI p a ra a doutrina do Corpo Místico dc
Cristo. Lemos na Quadragésimo A nuo que, um a
vez restaurados os m em bros do corpo social e res
tabelecido o princípio regulador da economia, po
derá aplicar-se-lhes, de algum a form a, o que o
Apóstolo dizia do Corpo M ístico: “todo o corpo
organizado e unido pelas articulações de um m útuo
obséquio, segundo a m edida de atividade de cada
membro, cresce c se desenvolve n a carid ad e” (Ef
4,16). F inalm ente, m ostra que “só haverá v erd a
deira cooperação de todos p ara o bem comum,
quando as diversas partes da sociedade sentirem
intim am ente que são m em bros de um a só c g ran
de fam ília, filhos do mesmo P ai celeste, antes um
60
só corpo em Cristo e “m em bros uns dos outros”
(Rom 12,5) de modo que “se um m em bro sofre,
todos os m em bros sofrem com êle” (1 Cor 12,26)” .
Mas voltemos à afirm ação do corporativism o co
mo é feita por Pio XI ao fo rm u lar o princípio de
suplem entação. Tendo em vista a harm onia entre
as diversas profissões, devidam ente ordenadas p a
ra o bem com um de tôda a coletividade, a política
social deve em pregar todos os seus esforços em
reconstituir os corpos profissionais. T al é a lição
da Quadragésimo Anno, sendo ainda de se desta
car o seguinte trecho: “Assim como as relações de
vizinhança dão origem aos m unicípios, assim tam
bém os que exercem a m esm a arte ou profissão —
quer seja econômica, q u er.d e outro gênero — são
pela própria natureza im pelidos a fo rm ar asso
ciações ou corporações; tanto que m uitos julgam
tais grupos, dotados de um a ordem ju ríd ica p ró
pria, se não essenciais, ao m enos n atu ra is à socie
dade civil”. 12
Nunca é dem ais rep etir: o princípio de subsidia-
ríedade supõe necessàriam ente o corporativism o.
Com efeito, se se diz que o Estado deve ter um a
ação supletiva em relação aos grupos in term ed iá
rios, é por se reconhecer em tais grupos a cap acid a
de de agir num a determ inada esfera, reservando-
61
se o Estado p a ra prestar-lhes auxílio nos casos de
deficiência. Reconhece-se prèviam ente a existência
de tais grupos com um direito próprio em face do
Estado. Q uando o poder público intervém , diante
das deficiências m anifestas ou p ara aten d er a r a
zões superiores ditadas pelo interêsse nacional,
nem por isso deve deixar de levar em conta a auto
nom ia de tais grupos, e por isso não os deve destru ir
nem absorver.
Finalm ente um ponto im portante a considerar.
As funções exercidas por aquêles grupos dentro do
seu âm bito de ação não procedem do Estado, por
um a espécie de descentralização. Não se tra ta de
favores em anados do poder público. Os ag ru p a
mentos corporativos têm um a ordem ju ríd ica pró
pria, podendo aquelas funções, especialm ente q u an
do é o caso da harm onização entre diversas clas
ses ou profissões, exercex’-se no cam po do direito
público, que não deve ser confundido com o d i
reito do Estado.
A concepção orgânica da sociedade, o princípio
de subsidiariedade e o reconhecim ento da autono
m ia ju ríd ica dos grupos com capacidade n o rm a
tiva e disciplinar p ara se regerem a si mesmos, tais
são as notas essenciais do corporativism o. Vemo-
las na Reriirn N ovarum e n a Quadragésimo Anno,
nos discursos de Pio XII e na M ater et Magistra,
De um modo especial o Pontífice que governou
a Ig reja du ran te a torm entosa época da segunda
guerra m undial insistiu sôbre a im portância dês-
ses pontos fundam entais na doutrina social cató
lica. Em face das circunstâncias pertu rb ado ras
e aflitivas que agitavam os povos, Pio XII deixou
de escrever um a Encíclica p a ra com em orar o cin-
62
qüentenário da R erum N ovarum , tendo cabido ao
seu sucessor, aos sessenta anos da m esm a, com
p letar o tríptico das grandes encíclicas sociais. Mas
em seus m onum entais discursos, por várias vê-
zes Pio XII referiu-se aos tem as versados por Leão
XIII e Pio XI. ”
V ejam os nas lições de Pio XII a im portância do
princípio do corporativism o como solução in d ica
da pela Ig reja p a ra o problem a social.
Na alocução de 7 de m aio de 1949, depois de
haver aludido ao fracasso das tentativas m ais re
centes de socialização, e preconizando a união en
tre chefes de em presa e operários, através de um a
com unidade de interesse c de responsabilidade na
obra da econom ia nacional, lem brava a recom en
dação de Pio XI no sentido da organização profis
sional dos diversos ram os da p ro fissão : “N ada,
com efeito, lhe parecia m ais indicado p ara triu n fa r
do liberalism o econômico do que o estabelecim en
to, na economia social, de um estatuto de direito
público fundado precisam ente sobre a com unida
de de responsabilidade entre todos os que p artici
pam da produção. Êste ponto da Encíclica foi al
vo de um a série de ataques: uns aí viam um a con
cessão às correntes políticas m odernas, outros um a
volta à Idade Média. T eria sido incom paràvelm en- 13
13) Uma síntese d o u trin ária acom panhada dos textos
de Pio XII nos é dada m agnificam ente p o r Marcei
Clément, U économ ie sociale selon Pie XII, Nouvelles
É ditions L atines, P aris, 1953, 2 volum es. No segundo vo
lume, estão as m ensagens de N atal e outros discursos, in
cluindo cartas e trechos de E ncíclicas. As citações acim a
são das alocuções de 7 de m aio de 1949, d irig id a aos
m em bros da Ü nião In tern acio n al das Associações P a tro
nais Católicas, e de 31 de jan eiro de 1952, aos m em bros
da União C ristã dos Chefes de E m presa Italianos.
te m ais sábio deixar de lado velhos preconceitos
inconsistentes e entregar-se dc boa fé e de bom
grado à realização da pró p ria coisa e de suas m ul
típlices aplicações p ráticas”.
Lam entava o Pontífice que, com tudo isso, aque
la parte da Encíclica tivesse fornecido infelizm en
te “um exem plo dessas ocasiões oportunas que se
deixa escapar por não saber ap ro v eitar em tem po”.
Referindo-se à “concessão às correntes políticas
m odernas”, de que era acusado, evidentem ente
Pio XII aludia à confusão operada entre corpora
tivismo e fascismo. Até b o je um a tal confusão é
a causa dc grande prevenção existente contra o
regim e corporativo. Passou-se com a Quadragési
m o Anuo em relação ao corporativism o fascista o
mesmo que está ocorrendo h o je com a Mater et
Magistra p erante o socialismo. Atribuem -se ten
dências para o socialismo ao P ap a João XXIII sim
plesm ente por haver aceito, nesta últim a Encícli
ca, a socialização, quando, na verdade, a sociali
zação ou integração social tem na M ater et Magis
tra um sentido radicalm ente oposto ao socialismo,
como foi visto anteriorm ente. Igualm ente ab su r
do seria acoim ar de fascista a Encíclica Quadragé
simo Anuo só por acolher o princípio do corpora
tivismo, que então o Estado fascista procurava
realizar na Itália, pois num caso e noutro trata-
se de coisas inteiram ente diversas e de concepções
antagônicas. 14
64
No regim e fascista, as corporações eram órgãos
do Estado, controladas pelo governo e sob a in
fluência do partido único. Além disso, havia tam
bém o sindicato único sem liberdade de associação.
Negava-se assim o principio de subsidiariedadc c
atribuía-se ao Estado a função diretiva da vida
econômica sem possibilidade do estabelecim ento
de um a ordem ju ríd ica baseada na autonom ia dos
grupos. Corporações e sindicatos tornavam -se or
ganizações d epartam en tais do Estado totalitário,
ao passo que Pio XI vinha exatam ente m o strar a
necessidade da existência dos corpos sociais a u
tônomos. O fascism o d eturpava, pois, o sentido do
corporativism o e de fato, pelo princípio do totali
tarism o, opunha-se à realização de um corporati
vismo autêntico, do qual era mesm o a negação.
Na concepção fascista tínham os o Estado corpora
tivo, enquanto a doutrina católica preconiza e p re
conizou sem pre um a sociedade corporativa. 13
Socialismo — 5 65
Cum pre te r presentes m ais estas p alavras do
mesmo Pio XI n a Quadragésimo A rm o : “E’ preciso
recordar que os ensinam entos de Leão XIII sôbre
a form a do govêrno político se aplicam tam bém ,
na devida proporção, às associações profissionais:
é lícito aos seus m em bros eleger a form a que lhes
aprouver, contanto que atendam às exigências da
justiça e do bem com um ”. À Ig reja, que não tem
por missão a organização política dos povos, não
cabe m an ifestar preferências por êste ou aquê-
le regime. Daí, no entanto, não se deve deduzir
que ela recom ende aos católicos um a atitude de
indiferença em face das form as de govêrno, pois
estas devem ser estru tu rad as sem pre de acordo
com os princípios m ais altos da m oral e em cada
povo conform e as condições reais e a sua fo rm a
ção histórica. O mesmo se diga de um sistem a eco
nôm ico: a Ig reja não dá lições de economia polí
tica, m as estabelece as condições p ara que a orga
nização da produção, das profissões e das classes
seja feita de acordo com a justiça e de m an eira a
assegurar a consecução do bem comum, ordenado
à finalidade últim a do homem.
Áinda a propósito da pretensa concessão ao fas
cismo na Quadragésimo Armo, não nos devemos
esquecer de que, no mesmo ano da publicação
desta Encíclica, o próprio Pio XI fazia publicar
tam bém aquele veem ente docum ento em língua
italiana, condenando aberta e severam ente a po-
66
lítica do governo da Itália contra as organizações
da juventude da Ação Católica. O simples título
dessa outra Encíclica dispensa q u alquer com entá
rio: Non A bbiam o Bisogno. Não era hom em de
concessões aquele P ap a que m an d av a fech ar as
portas do V aticano quando H itler, recehido por
Mussolini, visitava Roma.
Se à Ig reja não com pete fo rm u lar soluções de
c ará ter técnico para os problem as sociais, deven
do estas v a ria r segundo as condições de cada país
e de cada época, não qu er dizer isto que ela fique
alheia à realidade e às circunstâncias de tem po
e lugar das quais depende a aplicação dos p rin cí
pios. Pelo contrário, o que temos visto sem pre, a tra
vés da história, é voltar-se a Ig reja, com solicitu
de m aternal, p a ra as questões que m ais afligem
os homens e p ertu rb am as sociedades, in d ican
do-lhes ao mesm o tempo os princípios superiores,
fundados na lei n a tu ra l e na Revelação, princípios
ju n to aos quais devem os responsáveis pela vida
pública p ro c u ra r as soluções concretas.
P or isso a palav ra da Ig re ja é sem pre atual,
e frequentem ente ela se antecipa aos hom ens na
previsão do rum o dos acontecim entos.
D aí o se re fe rir Pio XII ao engano daqueles que
quiseram ver no program a de restau ração corpo
rativ a traçado na Quadragésimo Anno um a volta
ao passado. Quando se fala em corporativism o,
costum a-se evocar a experiência das corpora
ções de ofício na sociedade m edieval. Donde
aquela acusação de anacronism o feita ao regim e
corporativo. Os que levantam um a tal acusação
caem no sofisma que em lógica se cham a a igno
ra li o elenchi. Com efeito, um a coisa era o corpo
5* 67
rativism o na Idade Média, em face das condições
peculiares à econom ia de então e à pequena in
dústria m a n u fa tu reira dom inante na época, sem
a divisão dos produtores nas duas classes consti
tuídas após a form ação do capitalism o. O utra coi
sa, m uito diferente, será o corporativism o no regi
me da grande indústria perante as condições dc
trabalho profundam ente alterad as pela m áquina.
O princípio pode ser o mesmo, variando a sua
realização técnica. E, como verem os posteriorm en
te, o corporativism o h o je n ad a tem de anacrônico
e vai-se recom pondo em m uitos povos sob a pres
são dos fatos sociais, p ara aten d er a im perativos
das condições presentes.
Mas há um texto de Pio XII ainda m ais expressi
vo para fazer com preender o significado do cor
porativism o na doutrina social católica. São estas
p alavras da alocução de 31 de jan eiro de 1952:
“Não podem os ignorar as alterações com que fo
ram desnaturadas as palavras de alta sabedoria
do nosso glorioso antecessor Pio XI, dando o pêso
e a im portância de um program a social da Igreja,
em nossa época, a um a observação com pletam ente
acessória, a respeito de eventuais m odificações
ju rídicas nas relações entre os trabalhadores, su
jeitos do contrato de trabalho, e a outra parte con
tratan te; e por outro lado passando m ais ou m enos
em silêncio sôbre a p rin cip al p arte da Encíclica
Quadragésimo Anuo, que contém na realidade êsse
program a, isto é, a idéia da ordem corporativa
profissional de tôda a econom ia” .
Estamos vendo a quem se refere o P apa. A to
dos aqueles que, destacando alguns pontos da E n
cíclica Quadragésimo Anuo, como, por exem plo,
68
a participação nos lucros ou a refo rm a da em p re
sa, deixaram de inseri-los no plano geral da o r
dem corporativa da economia. Baseando-se em
trechos isolados, fora do contexto, e dando-lhes por
vêzes um a in terpretação tendenciosa, contribuíram
assim para estabelecer certa confusão nos espí
ritos. De um modo especial, logo em seguida à
passagem que acaba de ser citada, prossegue Pio
X II: “Os que se dispõem a tra ta r dos problem as
relativos à reform a da estru tu ra da em presa sem
levar em conta que cada em presa está pelo seu
próprio fim estreitam ente ligada ao conjunto da
econom ia nacional, correm o risco de estabelecer
prem issas errad as e falsas, em detrim ento de tôda
a ordem econômica e social” . 10
Os que se batem por alguns princípios ensina
dos nas Encíclicas e referentes ao salário, à p a r
ticipação dos lucros ou da gestão, à organização
da em presa, à pequena p ro p ried ad e e outros, to
m ados isoladam ente, contribuem p ara o en fraq u e
cimento da doutrina social católica, tirando-lhe
tôda a fôrça, que está naquela com pleta reestru
turação das sociedades anarq u izad as pelo indivi
dualism o e em m arch a acelerada p ara o socialis
mo totalitário.
Tal reestruturação consiste precisam ente na
instauração de um a autêntica ordem corporativa,
16) Pio XII reporta-se á um discurso an terio r, p ro fe ri
do diante dos m em bros do Congresso In tern acio n al de
Estudos Sociais da U niversidade de F riburgo reunidos
em Roma. D ata dc 3 de junho de 1950, nêle se focalizando,
entre outras questões, a do pseudo-direito de cogestão,
questão esta levantada pelas resoluções do Congresso de
Bochum (31 de agosto a 4 de setem bro de 1949). Como
observa Marcei Clément, êste discurso de Pio XII co n sti
tui um a trilogia com os outros dois acim a citados.
69
condizente com as liberdades fam iliares e associa
tivas e com os direitos fundam entais do homem
em face do Estado. Pio XII é claro, inequívoco, a
êste respeito: no corporativism o está o program a
social da Igreja.
Conseqüentem ente a m esm a idéia não poderia
deixar de se encontrar na Mater et Magislra, ins
pirando as diretrizes traçadas por João XXIII.
70
cípio indicado por tais expi’essões se acha vigoro
sam ente reiterado no notável docum ento.
A propósito do socialismo, diante da palavra “so
cialização”, veio a tem pestade tôda. Com o corpo
rativism o dá-se o c o n trá rio : porque esta p alav ra
não está na Enciclica, nega-se que o P apa m an te
nha a m esm a diretriz dos seus antecessores.
Aliás, se Pio XI deu m ais ênfase ao tem a do
que os outros P apas foi porque sua Encíclica ti
nha por objetivo precípuo a restau ração da ordem
•social, sendo, pois, necessário destacar o fio con
dutor para um a tal restauração segundo os p rin cí
pios tradicionalm entc ensinados pela Igreja. Nes
se ponto, foi além de Leão XIII, que se restringia
à questão operária. F inalm ente, João XXIII, com
a Maler et Magistra, vem alarg ar as considerações
dos seus predecessores tendo em vista os proble
m as que hoje se põem em escala m undial, e o faz
supondo já estabelecidos certos pontos fu n d am en
tais, aos quais não deixa de aludir. E’ em plena
continuidade com os docum entos dos P apas an te
riores que se desenvolve a exposição da nova
Encíclica.
Aliás, ao se re fe rir à Quadragésimo Anuo, o P on
tífice gloriosam ente reinante, destaca a p arte cen
tra l da Encíclica de Pio X I: “a ordenada reo rg a
nização da convivência hum ana, por meio de so
ciedades m enores de cará ter econômico c profissio
nal, não im postas pelo Estado m as livres” . A res
tauração social preconizada por Pio XI — acen
tua João XXIII — deve ser alcançada através da
“fundação de. instituições públicas ou privadas,
dentro do âm bito nacional ou in tern acio n al”.
71
Tais instituições têm um cará ter corporativo, e
às mesm as volta a alu d ir a Encíclica justam ente
ao tra ta r da socialização, entendida como “p ro
gressivo m ultiplicar-se das relações de convivência
com diversas form as de vida e de atividade asso
ciada e como institucionalização ju ríd ic a ”. Diz
a in d a : “Sem elhante tendência deu vida, sobretu
do nestes últim os tempos, a um a grande série de
grupos, associações e instituições com fins econô
micos e sociais, culturais, recreativos, esportivos,
profissionais e políticos, tanto nos lim ites de cada
um a das nações como na esfera intern acio n al”.
Nesse sentido é que o P ap a João XXIII entende
a integração social, propiciando um a reconstrução
orgânica da convivência h u m an a segundo o ensi
n a Pio XI. E torna a citar o Pontífice da Quadragé
simo Anno, afirm an d o : “tal reestruturação, con
soante o adverte nosso predecessor Pio XI, de g ra
ta m em ória, é absolutam ente necessária p ara o ple
no exei'cicio dos direitos e deveres da vida social”
(om nino necessária est ad sociãlis vitae iuribus
et officiis cum ulate satisfaciendum ).
Está visto, portanto, que a Encíclica Mater et
Magistra m antém a m esm a lin h a de orientação
do utrinária dos anteriores docum entos pontifícios
e reafirm a os princípios essenciais do corporati
vismo.
Èstes princípios decorrem , como vimos, de or
dem n atu ra l tias sociedades, em meio a tôdas as
variações que se encontram na form ação p articu lar
de cada povo. P or isso mesmo, não pode a Ig reja
d eixar de adm iti-los. O direito cristão não nega o
direito n atu ral, m as o supõe, confirm a, restau ra
72
e aperfeiçoa, segundo o princípio teológico de que
a graça não destrói m as eleva a natureza.
P ara term inar, podemos aco m p an h ar M arcei Clé-
m ent, sum ariando os pontos característicos daque
le “program a social da Ig re ja ” a que se refere Pio
XII e que em n ad a a M ater et Magistra veio subs
tancialm ente a lte r a r :
1) O fundam ento da corporação está na con
cepção orgânica da sociedade.
2) O princípio de tôda organização corporativa
é o princípio de subsidiariedade.
3) A profissão não é um a sociedade tão n atu ra l
quanto a fam ília, m as pode ser considerada n a
tu ral enquanto reclam ada por um a ordem social
conform e com a reta razão.
4) A idéia da corporação profissional deve a c a r
re ta r a da colaboração orgânica de várias profis
sões, e m ais ainda a idéia corporativa interprofis-
sional.
5) Juridicam ente, a organização corporativa con
siste num estatuto de direito público pelo qual a
profissão pode agir com um a autoridade reg u la
m entar pi’ópria.
6) Sociologicamente, a corporação está apta a
su p erar a luta de classes, pela instauração de um a
ordem orgânica unindo patrões e operários.
7) Econôm icam ente, a corporação dá às trocas
e à repartição dos bens um princípio diretor justo
c eficaz, que atualm ente lhes está faltando.
8) Politicam ente, a organização profissional cor
porativa deve ser reconhecida pelo Estado e não
se confunde com a idéia do “Estado corporativo” .
73
9) Socialm ente, a corporação das profissões e
das “interprofissães” corresponde a um a form a
realista de prom oção o perária nos quadros de uma
organização de conjunto das forças produtivas da
economia.
10) Tècnicam ente, a organização corporativa
em um dado pais depende das circunstâncias de
tempo e lugar, da form ação histórica, da psicologia
coletiva e pode dar m argem a divergências pru-
denciais im portantes. Não se tra ta m ais aqui de
um “program a social da Ig re ja ”, m as de “um a
aplicação concreta, no quadro de opções tem po
rais diversas, dêste program a”. 11
Um exam e cuidadoso da M ater et Magistra m os
tra-nos na Encíclica do P ap a João XXIII a confir
mação de todos êsses pontos. *
74
CAPÍTULO III.
75
Dc outro lado, porém , assistimos ao florescim en
to da vida associativa, transform ando em realid a
de a idéia do corporativism o, que em outras épocas
e em condições sociais diferentes havia precedido
a desordem individualista. Daí o m ultiplicar-se das
relações sociais, a que se refere o P ap a João XXIII
na Encíclica M ater et Magistra, escrevendo: “Se
m elhante tendência deu vida, sobretudo nestes ú l
timos tempos, a um a grande série de grupos, asso
ciações e instituições com fins econômicos e sociais,
culturais, recreativos, esportivos, profissionais e
políticos, tanto nos lim ites de cada um a das nações
como na esfera in tern acio n al”.
Nessas palavras do Pontífice vemos ressaltada
a atualidade do corporativism o e tam bém indica
dos os seus diversos aspectos.
Pelas deturpações que sofreu desde o fascismo,
a palavra “corporativism o” ainda assusta a m uita
gente. O fascismo, servindo-se da p alavra, m atou
a idéia. T ransform ou as corporações em órgãos
do Estado, opondo-se assim à realização de um a
sociedade corporativa. N ada m ais contrário ao
verdadeiro corporativism o do que qualquer con
cepção de Estado totalitário, diante da qual de
saparece a autonom ia dos grupos sociais revestidos
de capacidade disciplinar e norm ativa. E nada
m ais eficaz do que o reconhecim ento dessa auto
nom ia para proteger as liberdades em face das
arb itrárias ingerências do poder público na esfera
de ação dos particulares.
O liberalism o, suprim indo as corporações, e o
socialismo totalitário, fazendo do Estado a corpo
ração única, são sistem as avessos à n atureza da
sociedade política. Constitui-se esta pelo ag ru p a
76
m ento de sociedades m enores, cujos direitos an
teriores aos da sociedade global cabe ao poder do
Estado reconhecer. Personificando a sociedade po
lítica, o Estado não pode p reten d er substituir essas
sociedades m enores nas funções que lhes são pe
culiares.
Aí está a idéia essencial do corporativism o. T ra
ta-se sim plesm ente da expressão do modo n a tu
ra l de form ação das sociedades políticas. A expe
riência histórica é a origem de tal concepção, que
já se encontra em Aristóteles e em Santo Tom ás
de Aquino e que a sociologia contem porânea re
tomou num a linha de objetividade científica, da
qual se desviaram as ideologias abstratas do libe
ralism o e do socialismo.
Cedo ou tarde, a realid ad e acaba por recu p erar
os seus direitos. E’ o que estam os vendo no con
traste entre a m arch a das dem ocracias p ara o so
cialism o e a p u ja n ça ad q u irid a pelos corpos so
ciais, cu ja autonom ia se afirm a ante o fenôm eno
oposto da estatização crescente.
Um autor sueco de nossos dias, P er Engdahl, vem
dizer-nos que o corporativism o é a “política do
fu tu ro ” e o cam inho que pode reconduzir à lib er
dade. A seu ver, a m ais séria am eaça p ara o m undo
ocidental está na d itad u ra burocrática, “conse-
qüência lógica da dem ocracia m o d ern a”. Pelo con
trário, “a passagem às corporações de num erosas
tarefas do Estado significa finalm ente um a su
pressão do aparelho adm inistrativo do Estado
que começa a tom ar agora proporções gigantes
cas. Uma nova form a de adm inistração indepen
dente, nacional, se configura e serve de contrape
so às tendências para a burocratização na dem o
77
cracia. Assim o corporativism o consiituirá final-
m ente um a g aran tia p ara a liberdade em face do
perigo cada vez m aior da ditad u ra, que am eaça
crescer na dem ocracia atu al”. 2
Não se deve pensar que o corporativism o seja
algo de superado diante das novas condições econô
micas e políticas do nosso tempo. Após o térm ino
da segunda guerra m undial, escrevia Oliveira Vian-
n a : “Há um a ilusão enorm e da p arte dos que, pen
sando nos resultados da últim a guerra, presum em
que as instituições sindicais e as instituições cor
porativas irão desaparecer no m undo nôvo, que
surgiu com a vitória das dem ocracias. Muito ao
contrário, estas instituições irão te r um a ex p an
são vitoriosa”. 3
Em artigo publicado na revista Justitia, escreve
o professor Miguel R eale: “A vida econômica dc
nossos dias, com tôda a íôrça de suas conquistas
e de suas inquietações; as reivindicações popula
res no plano econômico; as próprias exigências
técnicas da produção, tudo veio, aos poucos, quer
através de lutas sangrentas, q u er pela clarividên
cia antecipadora dos Governos, — como é o caso
do Brasil — rev elar a existência de um a outra,
de um a nova dim ensão, que deve ser levada em
conta na estru tu ra do Estado M oderno: a dim ensão
grupalista, a dim ensão associativa, de que o sin
dicato é a expressão m ais relev an te”. E m ais ad ian
te : “Q uaisquer que venham a ser as m odificações
78
fu tu ras (e quem ousaria fazer prognósticos?) po
demos a firm ar que o povo, p a ra p articip a r da vi
da político-adm inistrativa, não será levado em con
ta tão-sòm ente sob o prism a das diferentes regiões,
m as tam bém segundo os grupos profissionais, cujo
âm bito de ação pode v ariar, desde o Município
até à N ação”. 1
Vemos assim, com o reconhecim ento dêsses g ru
pos na sociedade atual, ao mesm o tem po afirm ad a
a missão que lhes incum be, m esm o no plano polí
tico. E’ o que se encontra claram ente expresso na
Encíclica M atei• et Magistra, quando o P ap a João
XXIII se refere à organização da agricultura, d i
zendo ser indispensável aos agricultores a fo rm a
ção de *cooperativas e agrem iações profissionais,
bem como a participação nos negócios públicos,
“ tanto nos organism os adm inistrativos quanto xxa
política” .
Isto nos leva a considerar no corporativism o di
versos aspectos, que assim podem ser enum erados:
o aspecto sociológico, o econômico, o estritam ente
jurídico e o político.
1. Aspecto sociológico
O corpoi-ativism o xxão é xxxais do que um a decor
rência da form ação n a tu ra l e histórica de tôdas
as sociedades políticas. No sexx aspecto sociológico
consiste precisam ente em reconhecer êsse modo
n atu ra l de constituição do Estado, o qual represen-
79
ta a cúpula de um edifício à base de fam ílias e
cu ja estru tu ra se compõe dos m ais variados grupos.
E’ falsa a ontologia social do liberalism o — h erd a
da pelo socialismo — a fazer da sociedade um con
junto am orfo de indivíduos peran te o poder do
Estado. Nisto exatam ente se distinguem povo e
massa, conceitos cu ja diferenciação o P apa Pio XII
estabeleceu de um modo m agistral na sua m en
sagem natalícia de 1944.
“O Estado não contém em si mesmo e não reúne
m ecânicam ente num dado território um a aglom e
ração am orfa de indivíduos. Êle é, e deve ser na
realidade, unidade orgânica e organizadora de um
verdadeiro povo”. Assim se expressava o P ontífi
ce, acrescen tan d o : “O povo vive da plenitude da
vida dos hom ens que o compõem, dos quais cada
um — no lu g ar e segundo o modo que lhe são pró
prios — é um a pessoa consciente de suas próprias
responsabilidades e convicções. A m assa, pelo con
trário, ag u ard a o im pulso de fora, joguête fácil
nas mãos de quem quer que lhe explore os instin
tos e as im pressões, pronta a seguir h o je um a b an
deira, am anhã outra. A exuberância vital de um
verdadeiro povo propaga a vida, abundante e ri
ca, no Estado e em todos os seus órgãos, in fu n d in
do-lhes com um vigor sem cessar renovado a cons
ciência das próprias responsabilidades, o v erd a
deiro sentido do bem comum. A fôrça elem entar da
m assa pode não ser m ais do que um instrum ento
a serviço do Estado, que sabe habilm ente utilizá-
la. E o Estado, nas mãos de um ou muitos am bicio
sos, agrupados artificialm ente por suas tendências
egoísticas, pode, apoiando-se sobre a m assa, tran s
form ar-se em pura m áquina, im por arb itràriam en -
80
te sua vontade à m elhor p arte do p o v o : o interês-
se com um fica assim por m uito tempo e grave
m ente lesado, sendo difícil de c u ra r a ferid a assim
ab erta” .
A concepção m ecanicista da sociedade e do Es
tado conduziu, em nossos dias, ao Estado to talitá
rio. Absorvendo as funções sociais dos grupos e
fazendo desaparecer a iniciativa privada, o Estado
transform ou-se naquele L eviathan da visão de
Hobbes, perdendo-se a idéia da distinção entre
sociedade e Estado. “ P or outro lado, o hom em se
torna assim desubiquado no meio social, m era u n i
dade anônim a nas dem ocracias do sufrágio u n i
versal inorgânico e simples peça de um vasto ma-
quinism o na sociedade planificada pelo coletivis
mo e s ta ta l.056
82
sentando-os aquêles que exercem a autoridade em
tais grupos, e constituem assim, segundo a lingua
gem de Vázqucz de Mella, a “soberania social”
coexistente com a “soberania política” do E s ta d o .7
P or isso mesmo as relações en tre os homens re u
nidos política ou civilm ente não decorrem de um a
solidariedade m ecânica. Nas fam ílias que integram
a sociedade civil h á um a pro fu n d a e íntim a soli
dariedade, resultante daquela com unhão de vida
que levava os rom anos a definirem o casam ento
um consortium om nis vitae, um a com unicação dc
direitos divinos e hum anos. T al consortium ou
com unhão de inteligências e corações, que existe
entre os cônjuges e se p erpetua entre pais e filhos,
não é evidentem ente a m esm a do consórcio civil.
E ntretanto, pela subordinação do fim da socieda
de civil ou política à fin alid ad e pessoal do homem,
tam bém nesta sociedade os vínculos se form am
por um a afinidade de sêres criados p ara um m es
mo fim superior, a pro cu rarem na vida social as
condições exteriores que lhes possibilitem alcan
çar a felicidade p ara a q u al tendem , felicidade
relativa nesta vida e conducente à perfeita bem-
aventurança n a outra.
2. Aspecto econômico
Quando se fala em corporativism o, desde logo
são lem bradas as corporações de ofício dos tempos
m edievais. Com efeito, estas agrem iações realiza
ram um a experiência corporativista dentro das
7) P or várias vêzes aquele trib u n o focalizou o tem a,
destacando-se as referências a respeito nos discursos de
17 de maio de 1903 no P arque da Saúde de B arcelona e
de 18 de junho de 1907 no Congresso.
83
condições da pequena indústria m a n u fa tu rcira en
tão existente. Cada profissão se achava organizada
de tal form a que a regulam entação da produção
e do comércio, bem como a proteção aos interes
ses dos trabalhadores, estavam a cargo daquelas
agrem iações e não do Estado. Assim, os órgãos
das divei’sas categorias profissionais possuíam um
poder norm ativo e disciplinar, pelo qual desem
penhavam funções hoje pertencentes aos órgãos
do Estado que elaboram a legislação trabalhista
e exercem os ofícios da justiça do trabalho.
A idéia essencial do corporativism o, sob o pris
m a econômico, não está entretanto na organização
profissional, que voltou a ap arecer nos tempos mo
dernos sob a m odalidade do sindicalism o. O que
caracteriza o regim e corporativo é a colaboração
entre as classes e as profissões. O sindicalism o, de
pois da ciãse provocada pelo liberalism o econô
mico, surgiu sob o signo da luta de classes. O sin
dicato foi então concebido como um instrum ento
de luta do operário nas suas reivindicações. Do
mesmo modo, os grêmios, associações ou fed era
ções patronais se instituíram girando quase exclu
sivam ente em tôrno da defesa dos interesses da
classe capitalista ou de um a determ inada catego
ria de em pregadores. No século XIX vimos algu
m as tentativas isoladas, como as do Conde Alberto
de Mun na F ran ça ou de Vogelsang na Áustria,
no sentido de um tipo de associação profissional
que, superando o antagonism o de classe, realizas
se o ideal de cooperação entre as classes e as pro
fissões. No plano doutrinário, p ro cu raram tam bém
alguns d a r nova form ulação à idéia corporativis-
ta, em face das realidades do nosso tempo, e entre
84
estes cum pre destacar o grande nom e de La T our
du Pin. Nesta m esm a linha de pensam ento, ve
mos desenvolver-se a doutrina social católica a tra
vés das Encíclicas pontifícias, desde Leão XIII
até João XXIII.
O princípio de snbsidiariedade, ensinado pelas
Encíclicas Quadragésimo A n u o e M ater et Magistra,
supõe um a certa organização corporativa. A fir
m ando o ca rá te r supletivo da ação social do Es
tado, tal princípio só pode ser aplicado num a so
ciedade em que se reconheça a autonom ia dos g ru
pos no âm bito de ação que lhes é próprio. Na
ordem econômica, isto red u n d a na liberdade da
associação profissional, exercendo aquele duplo
poder norm ativo e disciplinar, que exige o enten
dim ento entre as categorias de “em pregadores” e
“em pregados” quando se trata dc ab ran g er todo
um determ inado ram o da produção.
Neste sentido, escreve um econom ista de nossa
época: “Nem colaboração, nem lu ta de classes, m as
acordo técnico entre os diversos elem entos da pro-
dução, eis a lei de am anhã. A produção não está
dividida em classes e sim rep a rtid a entre grupos
econômicos. Uns vivem do carvão, outros dos te
cidos, outros do livro. Q uer se trate dc patrões,
engenheiros, contram estres ou operários, todos os
m em bros do grupo têm por prim eiro interesse a
prosperidade do livro, do tecido, do carvão. Se
cai a produção, é a ru ín a p ara o patrão, o desem-
prêgo p ara o operário. O interesse prim eiro, fu n
dam ental, é econômico, e próprio de um a dada
categoria da produção. Em seguida, m as somente
em seguida, os interesses se diferenciam : há in
teresses próprios dos operários de tecidos, como
85
há interesses peculiares aos engenheiros ou aos p a
trões de tecidos”. 8
D aí um cunho com unitário n a organização eco
nômica. As corporações de ofício m edievais rea
lizaram a idéia da com unidade no trabalho, idéia
que renasce em nossos dias e temos visto na li
ção de m uitos economistas, entre os quais François
Perroux.
Não se tra ta de neg ar a divergência de interês-
ses entre as diversas profissões, ou mesmo num a
profissão. E ’ o que faz ver ainda o autor citado,
frisando que cum pre d esp ertar entre os que p e r
tencem a um a determ inada profissão, a consciên
cia dos interesses gerais. Os sindicatos operários
e as associações patronais de h o je geralm ente se
lim itam ao conhecim ento dos interesses p articu la
res de cada grupo. E’ num a instituição superior a
êsses dois grupos que os m em bros da profissão po
dem chegar a um a visão quase total dos seus in
teresses comuns, resolvendo-se assim os problem as
suscitados pelos antagonism os de classe ou de
profissão.
A corporação surge, pois, não só como órgão de
base, m as tam bém como órgão de cúpula, prom o
vendo o entendim ento entre as classes e revestin
do, por vêzes, um cunho interprofissional, sem fa
la r ainda na distribuição geográfica dos organis
mos econômicos corporativos, de cará ter local, re
gional, inter-regional e nacional.
Tudo isto é a realid ad e dos nossos dias, sendo
de le m b rar ainda os comités perm anentes organi
86
zados em certos países p a ra determ inados ram os
da produção in d u strial e reu n in d o representantes
das Federações operárias e das Federações p atro
nais. Tais com ités não são apenas órgãos de con
ciliação, m as chegam por vêzes a d a r diretrizes ge
rais à organização racional do trabalho.
3. Aspecto jurídico
D urante m uito tem po tôdas as relações ju ríd i
cas foram enquadrad as n a m odalidade de re la
ções interindividuais.
Foi a época do individualism o jurídico.
O direito era então reduzido a duas categ o rias:
contrato e lei. O contrato, no direito privado; a lei,
no direito público. Contrato, ou acordo de vo n ta
des; lei, ou expressão da vontade geral, in d iv id u a
lismo, pois, de c ará ter v o h m ta rista : o direito, um a
criação da vontade hum ana.
.Tal concepção já foi de há m uito ultrap assad a.
Os autores de h o je reconhecem , ao lado dos d irei
tos oriundos de relações interindividuais, o que cha
m am de direito social, direito institucional ou di
reito corporativo.
H á relações ju ríd icas m eram ente in terin d iv id u
ais. E’ o caso da m aioria dos contratos e das re la
ções existentes no cam po do direito com ercial. Ou
tras, porém , não se dão entre indivíduos tom ados
isoladam ente, m as enquanto m em bros de um grupo
e levando em conta a função que nesse grupo ex er
cem. Assim as relações entre cônjuges ou en tre
pais e filhos, no seio da fam ília; entre governantes
c governados, no Estado; entre “em pregadores”
87
e “em pregados” num a profissão. São as relações
de direiío corporativo.
O reconhecim ento do direito corporativo im plica
um a visão objetiva e orgânica da ordem ju ríd ica,
fu ndada na observação dos fatos e da condição
real dos homens. Nisto, como em tudo o mais, o
liberalism o e o socialismo, que se opõem à idéia
corporativa, são contrários â n atu reza do homem
e à natureza da sociedade. Os hom ens não são
seres isolados uns dos outros, m as vivem inseridos
em agrupam entos nos quais se acham os seus in
teresses concretos e os seus direitos — não les
droits de 1’H om m e et du Citoyen em abstrato. Tais
agrupam entos m anifestam a sociabilidade h u m a
na e abrem aos hom ens as perspectivas diante das
quais se afirm a a missão pessoal de cada u m : fa
m ília, associação profissional, com unidade local,
região, enfim a Nação, com unidade histórica de
cultura. Num plano transcendente, e inform ando
todos os domínios da atividade pessoal e social do
homem, está a Igreja.
Sol) o aspecto jurídico, o corporativism o, corres
ponde a um a análise das relações de direito feita
através de um m étodo sociológico, qu er dizer, pela
consideração da realid ad e sem o prism a deform a-
dor das categorias apriorísticas que in sp iraram
a concepção individualista.
Em pleno dom ínio do individualism o liberal, P el
legrino Rossi, no curso de D ireito Constitucional,
dado em Paxás, aos tempos da M onarquia de J u
lho já fazia ver que as i'elações de indivíduo a in
divíduo são de um a n atu reza diversa das que dão
oiágem a “direitos peiáencentes igualm ente aos in
divíduos, m as que não se poderiam conceber, de
m aneira nenhum a, fora da sociedade”. E a êstes
últim os cham ava “direitos públicos ou sociais”. '
A plicando a noção de “fato norm ativo” de Pe-
trasziky, G urvitch relaciona a m esm a idéia de
direito corporativo ou “direito social” com a cap a
cidade norm ativa dos grupos com ponentes da so
ciedade política. Q uando tais grupos alcançam um
certo grau de sociabilidade, que os capacita a pro
duzirem a sua p rópria regulam entação ju ríd ica,
acom panhada de um poder de justiça interno,
revestem-se do c ará ter dos “fatos norm ativos” .
Baseado nessa idéia, elabora tôda um a tipologia
ju rídica, no qual m enciona, ao lado do o rd en a
mento jurídico do Estado, os seguintes:
1) ordenam entos superiores ou equivalentes a
ordem ju ríd ica estatal (direito eclesiástico e canô
nico, direito in te rn a c io n a l);
2) ordenam entos subm etidos à tutela do Estado
(grupos de atividade não lucrativ a, ou grupos eco
nômicos p a rtic u la re s);
3) ordenam entos “anexados” pelo Estado (ser
viços públicos descentralizados, a u ta rq u ia s );
4) ordenam entos condensados no direito do Es
tado dem ocrático.
Sem elhante visão da realid ad e ju ríd ica foi a
de T ap arelli d’Azcglio, com a idéia das “socieda
des subordinadas” no seu Saggio de D irilto Natu-
rale, e tam bém a de E nrique Gil y Robles no seu
Tratado de Derecho Político. A “sociedade subor
d in ad a” de T aparelli corresponde á inclusive so-
ciety de G urvitch, e a “a u ta rq u ia ” de Gil Robles,
4. Aspecto político
Colocando o indivíduo só e desam parado cm
face do Estado, a dem ocracia liberal ou socialista
p rep ara o cam inho p ara o Estado totalitário. O
infinitam ente pequeno diante do infinitam ente
grande, na expressão de Boutmy.
Já em seu fam oso discurso de 28 de m aio de
1888, na C âm ara francesa, o dissera o Conde Al
berto de M un: “A teoria revolucionária é m uito
clara: os interêsses particulares, de um lado, qu er
dizer, os indivíduos; do outro, o interêsse geral,
quer dizer, o Estado, que o rep resen ta; não m ais
laços comuns, não m ais direitos coletivos, não m ais
interêsses p ro fissio n ais... os indivíduos e o Estado,
um a sociedade pulverizada e centralizada pela
burocracia”. D aí o conflito perpétuo dos interês
ses, num a situação de luta perm anente, ou seja,
a anarq uia social. A fim de co n ju ra r tais efeitos,
apelam m uitos p ara a intervenção constante e ca
da vez m ais preponderante do Estado. E’ o socia
lismo, para o qual cam inham os — dizia ainda
De Mun — a passos de gigante.
90
E concluía: “A narquia e socialismo de Estado,
eis os term os necessários, inevitáveis, do sistem a
individualista, que constitui o regim e econômico
m oderno”. — “Estas são as condições gerais que
dom inam o debate. A conclusão é simples e se a p re
senta por si m esm a. P ara sair do regim e in divi
dualista, p ara escapar à an arq u ia, sem cair no so
cialism o de Estado, p ara d a r ao trabalho o seu
verdadeiro caráter, im porta, necessariam ente, re
co rrer a um a organização fu n d ad a no sentim ento
de deveres recíprocos, no respeito do direito de
cada um , enfim no interesse com um, que ap ro x i
m a os hom ens e lhes dá a possibilidade de e n fre n
ta r os azares da vida com os seus próprios re c u r
sos e sem precisar reco rrer à onipotência do Es
tado”. — “Que é isto, senhores?. . . O nom e vem
logo aos lá b io s: é o regim e corporativo”.
Problem a de im portância cap ital no concernen
te às liberdades individuais e associativas é o da
representação política. Um sistem a rep resen tati
vo bem estruturado assegura ao povo v erdadeira
participação no poder. A crise das dem ocracias mo
dernas é em grande p arte um a crise de rep resen ta
ção, d esen tran h ad a da realid ad e e desfigurada
no regim e de partidos.
Afinal, que é a representação política? E’ o v in
culo entre a sociedade e o poder, o meio pelo qual
os m em bros do corpo social fazem chegar ao co
nhecim ento dos detentores do poder político os seus
interesses e aspirações. Ora, p a ra isto, n ad a m ais
indicado do que a presença de tais grupos, pelos
seus representantes devidam ente credenciados, ju n
to ao Estado. Temos assim um a genuína re p re
sentação do povo, isto é, dos “hom ens situados”
91
no seu meio, n a sua classe, na sua profissão, ao
passo que os deputados eleitos pelos partidos fa
lam em nom e da m assa dos cidadãos anônimos e
de um a suposta e fictícia vontade geral.
P ara d ar autenticidade à representação, cum pre
considerar a sociedade tal como ela existe re a l
m ente, e não como soma de indivíduos form ando
o povo soberano e delegando poderes am plos aos
seus pseudo-representantes, autorizados e fa la r em
nom e dessa entidade deform ada, que é a Nação
concebida à m an eira de um todo homogêneo.
A sociologia política m ostra-nos que: l 9) a socie
dade não é um todo homogêneo, um a simples co
leção de indivíduos; 29) o m andato representativo
das dem ocracias m odernas, fazendo de cada depu
tado um representante do povo, sem lim ites à p ró
pria vontade ou opinião, não perm ite estabelecer
um a perfeita identificação entre esta vontade dos
eleitos e a dos eleitores.
Não há, pois, representação. P a ra que esta :se
dê efelivam ente, é preciso: 1") rep resen tar a so
ciedade tal como ela é (conjunto orgânico de fa
m ílias e dem ais g ru p o s); 2o) assegurar a corres
pondência entre a vontade dos eleitores e a dos
eleitos.
Esta segunda condição era preenchida pelo m an
dato im perativo, antes do sistem a atual do m an d a
to representativo am plo e ilim itado. E a prim eira
constitui precisam ente a nota característica da re
presentação corporativa, substituindo o sufrágio
individualista pelo sufrágio dado por categorias
sociais.
Que fizeram , aliás, os partidos políticos senão
p ro cu rar im p rim ir ao sistem a representativo um
cunho de m aior consonância com a heterogenei
dade do meio social? O regim e de partidos decor
re da divisão da opinião púhlica. Os partidos p re
tendem ser expressões de diferentes correntes de
opinião. E a tendência p ara fazer prevalecer a vo
tação por legenda sôbre a votação uninom inal não
é m ais do que um a tentativa p ara refo rçar a p rim a
zia do grupo p artid ário sôbre as can d id atu ras de
cada indivíduo.
Os partidos vieram su b stitu ir os antigos g ru
pos n atu rais e históricos, como base da rep resen ta
ção política. Assim a representação passou a ser
feita segundo o critério da opinião, e não m ais do
interesse do grupo, da profissão ou da classe.
São geralm ente artificiais e inexpressivos os p a r
tidos políticos. Em certos países, não têm signifi
cação nenhum a a não ser êsse sentido dem agógi
co, que bem conhecemos no Brasil, transform ando-
os em instrum entos de dom inação oligárquica e
sindicatos de exploração da opinião pública.
Nos países onde há um a opinião pública orga
nizada os partidos podem chegar a ter um conteú
do representativo. Tal é o caso da Inglaterra. Não
nos esqueçamos, porém , de que os partidos ingleses
possibilitam um a representação orgânica de cunho
corporativo. O P artido T rab alh ista tem o seu elei
torado entre os trabalh ad o res sindicalizados nos
Trades Unions, enquanto o P artid o Conservador
está ligado à nobreza e a um a p arte da burguesia
industrial. P or outro lado, os organism os de classe
exercem um influência crescente no Parlam ento,
participando ativam ente da elaboração legislati
va. A nte-projetos de lei são preparados por depar-
tam entos m inisteriais, órgãos técnicos especiali
zados e associações não oficiais.
Lem brem os que por m uito tem po os partidos
políticos que se quedaram à m argem da lei. O fo r
m alism o da representação excluía-os. Mas ao lado
da representação disciplinada legalm ente, com as
categorias ju ríd icas dom inantes, a sociologia ju
rídica nos m ostrava a im portância dos quadros
partidários, como estru tu ras de base no sistem a
representativo. Só nestes últim os tempos, e espe
cialm ente após a últim a guerra m undial, as cons
tituições e as leis eleitorais en tra ram a disciplinar
os partidos, tendo em vista a defesa da p lu ralid a
de p artid ária contra um regim e de partido único.
Foi o que se verificou com a Constituição b ra
sileira de 1946.
Podemos, pois, perg u n tar se não se d ará o mesmo
com os organism os de classe e os agrupam entos
profissionais. H oje a sociologia os registra como
estruturas sociais que servem de base ao sistem a
representativo. Não chegará am an h ã o dia de se
rem tam bém reconhecidos pela ordem legal?
Enquanto isto não se dá, estam os vendo os g ru
pos de pressão a atu arem sôbre os partidos e os
parlam entos, num a dem onstração cabal de q u an
to o atual processo de representação é falho e dei
xa de atender aos interesses reais da sociedade.
O corporativism o, no seu aspecto político, asse
gura o entrosam ento dos grupos, das profissões c
das classes com o poder do Estado. Não se trata de
passadism o ou anacronism o. A realidade dos nos
sos dias clam a por um a representação dêste tipo.
Enquanto os partidos nada ou quase nad a signifi
cam, vemos que os organism os sindicais, as Fcde-
94
rações da indústria ou do com ércio, as associações
ru rais e instituições de c a rá te r cu ltu ral vão ga
nhando um a expressão política que até há pouco
tem po não possuiam.
P a ra bem se com preender o sentido da re p re
sentação corporativa, cum pre distinguir entre dois
conceitos que o direito público m oderno confunde:
o de representação e o de autoridade. A au to rid a
de diz respeito ao poder do Estado, que, no exercí
cio da soberania política, detém a função legisla
tiva; a representação é um atributo da sociedade,
pela qual os órgãos da “soberania social” se m ani-
festão p erante o Estado. A tarefa legislativa é um
m ister da natureza técnica. F azer a lei cabe p ro
priam ente aos juristas. A ntigam ente, os legistas
redigiam o texto legal e o soberano, com a sua
autoridade, o transform av a n um a n orm a obrigató
ria e coercitiva. O que interessa, na rep resen ta
ção das diversas categorias sociais, é que as aspi
rações dessas categorias sejam conhecidas e aten
didas pelos detentores do poder, que devem con
fia r a órgãos especializados a elaboração legisla
tiva. Destes órgãos deve vir a form a da lei, en q u an
to a m atéria legislativa vem da representação.
96
ÍNDICE
P r e f á c io ......................................................................... 5
In tro d u ç ã o ..................................................................... 9