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Alimentação na escola e autonomia – desafios e possibilidades
Abstract This study seeks to emphasize school Resumo Este estudo tem por objetivo evidenciar
food as an important policy to promote student a alimentação na escola como importante políti-
autonomy by means of food and nutrition educa- ca na promoção da autonomia dos estudantes por
tion included in the curriculum, integrated with meio de uma educação alimentar e nutricional
different actors and based on the standpoint of desenvolvida de modo curricular, integrado pelos
citizenship. It seeks to return to fundamental con- diferentes atores e sob a ótica da cidadania. Reto-
cepts in the context of school food reflecting on mar conceitos fundamentais no contexto da ali-
them through theoretical assumptions to identi- mentação escolar, refletindo sobre eles por meio
fy possible strategies to promote citizenship and de pressuposições teóricas para identificar possí-
autonomy in school. The strategies involved food veis estratégias na promoção de cidadania e da
and nutrition education with the daily presence autonomia na escola. As estratégias envolveram
of quality and suitability in school meals, discus- educação alimentar e nutricional com a presença
sions on the various dimensions of food in the cotidiana de qualidade e adequação na alimenta-
curriculum and integrating food in the pedagog- ção escolar, de debates sobre as diversas dimensões
ical project extended to various areas of the edu- da alimentação no currículo vivido e com inte-
cation system. School food fosters the need for in- gração da alimentação no projeto pedagógico es-
tegration of actions, actors and the various social tendido a vários âmbitos do sistema de ensino. A
spaces interested in the food issue, such as minis- alimentação na escola suscita que haja integra-
¹ Secretaria de Estado de tries, education systems, departments and schools, ção das ações, dos atores e dos diversos espaços
Educação do Distrito
so that they may tackle the demands of contem- sociais interessados pelo tema alimentação, como
Federal, Fundo Nacional de
Desenvolvimento da porary reality in an integrated, systematic, con- ministérios, sistemas de ensino, secretarias e es-
Educação. 72000-000 sistent and efficient manner. colas, de modo que se possa enfrentar, de modo
Brasília DF.
Key words Autonomy, School nutrition, School, integrado, sistemático, consistente e eficiente, as
najla.barbosa@fnde.gov.br
² Departamento de Nutrição, Curriculum, Food and nutrition education demandas da realidade contemporânea.
Centro de Ciências da Palavras-chave Autonomia, Alimentação esco-
Saúde, Universidade Federal
de Santa Catarina.
lar, Escola, Currículo, Educação alimentar e nu-
³ Instituto de Nutrição, tricional
Universidade do Estado do
Rio de Janeiro.
4 Centro Colaborador em
Alimentação e Nutrição do
Escolar de Santa Catarina.
938
Barbosa NVS et al.
relação social onde comunidade, família, educan- se articula com a questão da segurança alimen-
dos e educadores possam refletir e empoderar- tar e nutricional e que perpassa sua história de
se de argumentos e em favor de alternativas, ações vida e de sua família. O usufruto do direito à
e políticas voltadas para a sustentabilidade e para alimentação adequada é um processo de cons-
o respeito aos direitos humanos, o que a conso- trução social, sobretudo numa perspectiva do que
lidará como uma escola competente, democráti- Freire considera como sendo a ressignificação
ca, autônoma, séria e cidadã12. Nesta proposta que o sujeito faz a cada momento. A sensação de
de escola, emergem as possibilidades de que te- que o direito é uma lei capaz de se estabelecer
mas como direitos humanos, cidadania, susten- como prática é ilusório no sentido de que o legis-
tabilidade, ecologia, direito à alimentação ade- lativo é somente uma das dimensões desse direi-
quada, entre tantos apareçam no currículo de to na vida, entre tantos outros instituídos. O usu-
forma integrada com outros saberes que são tra- fruto do direito não e uma automação no con-
dicionalmente reconhecidos como pertencentes texto social. É necessária uma ética nesse proces-
ao cenário educativo. São temas que, se articula- so de construção cotidiana, é preciso desenvol-
dos, possibilitam tanto aos educandos/as e edu- ver a cultura do direito, o habitus que o institui
cadores/as a discussão da realidade e a viabilida- como parte do cotidiano.
de de propostas de construção de uma sociedade Uma cultura do direito envolve as possibili-
mais humana e cidadã. dades que tem o sujeito de conhecer e escolher os
O alimento e a alimentação, temas principais alimentos. A essa capacidade de optar entre as
desse debate, no espaço escolar assim organiza- alternativas existentes, de maneira instrumenta-
do, certamente serão desenhados tanto pelo en- lizada, consciente e deliberada, se pode chamar
tendimento de sua composição e qualidade nu- de autonomia, como sendo a liberdade de esco-
tricional quanto, principalmente, como elemen- lha diante, inclusive e sobretudo, dos apelos da
to fundamental na continuidade da vida e repro- grande indústria na mídia, diante da ruptura com
dução da espécie humana, como parte histórica hábitos alimentares anteriores e não saudáveis.
do viver humano. Nessa perspectiva, o alimento E tem que ser muito consciente porque a mídia
retoma sua característica de elemento constituti- contrata inteligências para impor hábitos e alte-
vo do mundo que se relaciona com a economia, rar o habitus das pessoas. Os adoçantes dietéti-
com o capital, com a saúde, com a cultura, com cos e alimentos “diet”, por exemplo, em poucas
o trabalho, com o prazer, com o sabor, etc. Ao décadas mudaram sua imagem passando de ali-
ser identificado como tal, possibilita o empode- mento refinado e caro próprio para camadas
ramento dos seres humanos de suas condições médias e altas da população, para alimento po-
de sujeitos autônomos, protagonistas responsá- pular e de baixo custo usado como terapêutica
veis pela construção de uma sociedade cidadã, em nome da prevenção de obesidade. Qual senti-
que convive com toda essa teia de relações13. do há em comer um alimento light? O que está
Ao trazer esta prática para o espaço escolar implícito neste enunciado?
voltado para a construção de uma proposta edu- O momento é de construção de verdades re-
cativa pautada pela autonomia, não se pode de- lativas que se modificam de um contexto para o
senhar somente uma prática centrada na relação outro e que demanda interação social, criativida-
alimentos e seus nutrientes. O alimento e a ali- de e respeito às diferenças. Os fundamentos con-
mentação ao se apresentarem como elementos ceituais, a construção coletiva de conhecimentos e
pedagógicos no espaço escolar, compondo pro- o acesso a informações orientam a construção
postas efetivas envolvidas com o currículo, po- dos significados dos sujeitos e ampliam suas pos-
derão propiciar discussões que avançam em di- sibilidades de viver e de entender a realidade dos
reção a análises mais ampliadas da realidade so- diferentes discursos produzidos na vida social.
cial e possibilitar o entendimento do espaço es- Se não se reconhece o poder do discurso que
colar como favorecedor de ações transformado- domina ou muitas vezes paralisa os sujeitos no
ras da realidade social14. campo social, sobretudo na escola, há um grande
risco de manutenção dessa escola inflexível, fria,
A construção conceitual do direito mecanizada e mecanizadora, quase sempre apáti-
à alimentação adequada na escola ca aos problemas e demandas da realidade social.
Convém lembrar que seres mecanizados reagem
Nesse espaço de atuação social, encontram- sem pensar e se mantém alienados de si mesmos,
se sujeitos que têm legalmente instituído o direito ignorando seu potencial criativo. Para ilustrar,
humano à alimentação adequada – DHAA, que pode-se pensar: como a escola se comporta dian-
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desta com uma proposta de educação que situe vas sobre alimentação em todas as suas dimen-
os processos e as práticas educativas no cerne, sões, inclusive a nutricional.
nos anseios e nas necessidades da própria vida Importante registrar neste espaço as conquis-
humana. tas que na atualidade tem se verificado em rela-
Também, como elemento importante para ção à constituição e à implementação de uma
compor esta discussão, aparece a necessidade de Política Nacional de Educação Alimentar e Nu-
consolidar no espaço escolar um novo entendi- tricional, na perspectiva da realização do Direito
mento de alimentação escolar que não se limite à Humano a Alimentação Adequada e Saudável.
questão da refeição fornecida com qualidade e Nesta discussão, encontram-se associados dife-
adequação nutricional. Lamentavelmente, não é rentes Ministérios como os da Educação, Saúde,
rara na prática escolar a presença de educadores Desenvolvimento Social, instâncias do controle
que não percebem a alimentação escolar como social ligadas à alimentação e à nutrição tais como
estratégia pedagógica a restringindo ao mecâni- o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
co ato de servir o alimento na escola. Nutricional (CONSEA), a Associação Brasileira
Romper estes limites em direção a consolidar de Nutrição (ASBRAN), entre outras que se uni-
os espaços de facilitadores da integração entre os ram para pensar tal política em direção a efetivar
conhecimentos sobre educação dos educadores, ações intersetoriais em todos os âmbitos.
com os conhecimentos sobre nutrição do nutri- Outros elementos se associam aos que aqui
cionista, pode ser um dos caminhos de supera- são apontados. Mas essa discussão encontra-se
ção dos limites que se fazem presentes tanto na longe de receber um ponto final. Antes sim, ex-
escola quanto na própria formação do nutricio- pressa reticências, no sentido de que há muito
nista e do docente pedagogo ou licenciado. Esta mais a ser dito, escrito, discutido e praticado.
questão aponta como fundamental a constitui- Essas reticências devem traduzir-se em tempos e
ção de espaços de formação continuada que pos- espaços de reflexão e ação permanentes em dire-
sibilitem a promoção sistemática destas ações no ção a possibilitar que a polifonia das vozes dos
âmbito dos currículos escolares, contemplando diversos atores envolvidos qualifique e se tradu-
o disposto na política de alimentação escolar, que za em uma integral, efetiva, instrumentalizadora
qualifica a oferta de alimentos na escola precedi- e cidadã educação para todos, rumo à emanci-
da, concomitante e sucedida por ações educati- pação e à autonomia de nossa gente.
Colaboradores
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