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DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA
Talita Baldin
NITERÓI, 2016
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA
Talita Baldin
NITERÓI, 2016
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
Talita Baldin
RESUMO
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SUMÁRIO
Agradecimentos............................................................................................................................. 6
Introdução ..................................................................................................................................... 7
Capítulo I..................................................................................................................................... 13
Capítulo II ................................................................................................................................... 23
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Considerações Finais ................................................................................................................. 118
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Agradecimentos
A meu orientador, Dr. Paulo Eduardo Viana Vidal, pela aposta que fez em mim
quando da submissão de meu projeto de pesquisa à sua orientação. Obrigada pela
presença atenta e sensível. Minha experiência com o mestrado não poderia ser melhor.
Às professoras Drª. Bethânia Mariani e Drª. Juliana Marcolino Galli, membros
da banca de qualificação e defesa. Obrigada pela leitura atenta e pelas indicações e
pontuações preciosas desde a qualificação. A Juliana um agradecimento especial por
todo apoio e ajuda desde o 4º ano da graduação em Psicologia, quando começamos a
compartilhar nossas histórias e a criar outras.
À Direção do Abrigo do Cristo Redentor, que tornou essa pesquisa possível.
Obrigada pelas portas abertas. Em especial, agradeço a Áurea, pela supervisão sempre
atenta e por todo o apoio e a Mariana, Rita e Thayanná, pela parceria nos projetos
desenvolvidos e pela troca de experiências. Um agradecimento especial a cada um dos
residentes do Abrigo, principalmente àqueles que protagonizaram esta pesquisa.
A todos os professores que acompanharam minha vida escolar e acadêmica,
vocês representam muito do que desejo ser enquanto docente. Em especial, agradeço à
Drª. Claudia Magnabosco Martins, quem me mostrou com toda a sensibilidade o campo
de pesquisa pelo qual sou apaixonada. Obrigada pelos cinco anos de olhar atento
durante a graduação, pelos preciosos ensinamentos e por se tornar minha amiga. Minha
admiração por você é imensa.
Às amizades. Àquelas que surgiram na infância, nos tempos do colégio em
Chopinzinho, e ao nomear Bruna, Franciele, Kelli e Thanise, estendo a todas as demais.
Também às que surgiram com a graduação em Irati, em especial a Camila, Gislaine e
Pâmella. Um brinde a todas as amizades que permanecem na vida, e que hoje são alento
nos dias de chuva, mesmo com a distância. Agradeço a todas pelo amor incondicional
que vocês me mostraram existir.
Aos amigos que fiz com a vinda para Niterói, a todos sem exceção: a Karine e
Rodrigo, por serem meu primeiro porto seguro; a Graça, por dividir sua casa e me
acolher em seu coração; às amigas que vieram com o mestrado, Cristiane e Luísa; e com
o trabalho, Eliane e Tatiana; os colegas do grupo de pesquisa, em especial Danuza,
Maira e Vitor, pelas inúmeras ajudas, partilhas de experiências e por todo o apoio.
Aos colegas do trabalho, pela compreensão e paciência diante das dificuldades
em conciliar um emprego e o mestrado. Em especial, agradeço a Fabio Toledo por todas
as oportunidades e flexibilidades que nunca cansou de me oferecer. Serei grata sempre.
A Naira, pelo lindo espaço de escuta que construímos e quem me ajudou a
descobrir que tenho motivos de sobra para nunca desistir, de nada.
Por fim, agradeço muito a Deus por me presentear com o que de mais lindo há
nesta vida, minha família. Agradeço a meus pais Jaquelene e Paulo, por fazerem de tudo
para que eu chegasse aonde quer que fosse, mesmo significando estar um pouco mais
longe de vocês, e a meus irmãos Tiago e Taisson Fernando. Vocês são minha razão de
ser e a melhor de minhas histórias. Essa dissertação não é minha, é nossa.
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Introdução
Toda história parte de uma história pregressa. Com esta pesquisa, não foi
diferente. Todo meu trajeto enquanto acadêmica de Psicologia e como pesquisadora
circundou em torno de histórias. Talvez também pela minha outra formação
profissional, a de atriz, que me levou ao primeiro contato profissional com idosos, por
meio de oficinas de teatro.
Em nossa cultura, muitas vezes, o idoso é tomado como um “vovô que gosta de
contar histórias”. Em minha cultura, de tradição gaúcha, desde pequena aprendi que
deveria respeitar os mais velhos e sempre ouvi-los. Minha infância se constituiu em
uma grande variedade de histórias. Cada uma delas, por si só, consistiu-se em
amontoados de palavras que, juntas, traziam algum sentido para a existência:
retomavam a minha própria história, a de minha origem, e de alguma forma criavam
extensões dessas histórias para que aqueles que não as viveram pudessem tomar contato
com elas.
Destaco aqui a importância que essas histórias tiveram e têm em minha história
enquanto pessoa, mas especialmente como profissional. No exercer da dialética de
minha experiência profissional como atriz e psicóloga, Psicologia e teatro se “amalgam”
com o entrelaçamento das palavras. A linguagem surge como um elemento central,
mesmo quando o texto propriamente não é falado, mas representado de forma simbólica
e imagética.
Augusto Boal acredita ser, a palavra, a maior invenção humana.
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filhos, netos e bisnetos, podíamos ver. Histórias eram contadas e recontadas, recriadas, e
toda escuta fluía como se aquela fosse a primeira vez.
A partir daí já recebia indícios de que no dia a dia todos nós nos tornamos
personagens de nossas próprias histórias. Atores, mas também dramaturgos – e tantas
vezes também diretores. Criamos, editamos e alteramos nossas histórias de modo que o
público possa servir-se dela e também construir e alterar suas histórias com aquilo que
dizemos. A vertente teatral desenvolvida por Antonin Artaud aponta para o teatro como
espaço terapêutico no qual se tem uma possibilidade única de trabalhar com a cura do
ser humano. Na atuação, o sujeito tem as ferramentas essenciais para desenvolver um
lugar em que pode criar para si uma nova identidade, ou seja, a produção teatral exerce
função regeneradora do ser (ARTAUD, 1987).
Em meio a meus estudos sobre o teatro e pesquisas para produção de uma
montagem teatral deparei-me com os textos de Artaud compilados em Linguagem e
Vida (2011). Com eles, percebo a necessidade de desenvolver uma nova linguagem para
comunicar por meio do teatro, uma nova linguagem que parta da língua para se apoiar
na expressão e, por meio dela, ser capaz de exprimir aquilo que o ator tem a dizer – isso
sempre se trata de um lugar no qual se quer chegar. Com a linguagem, cujo objetivo
maior é encontrar a cura1, percebo um ponto de intersecção entre uma linha artaudiana
do teatro e a existência humana: o sujeito fala para curar a si mesmo, para criar um novo
sentido em ser, que lhe dê algum alento.
Artaud vislumbra o teatro enquanto imagem. Neste sentido, não há
necessariamente supressão do texto falado, mas sua subordinação à cena. “Trata-se de
transformar a palavra em imagem” (ARTAUD, 2011, p. 21), importância similar àquela
que Freud atribui aos sonhos na relação com o inconsciente. As palavras, no texto, são
símbolos que se tornam imagem. Minha hipótese com isso é questionar: o que as
histórias narradas seriam se não um meio de criar a existência?
Condizentes com a realidade ou não, histórias dizem da realidade do sujeito. A
tentativa sempre é a da representação. Em um espetáculo teatral, sonoplastia,
dramaturgia, interpretação e cena sobrepõem-se para dizer algo, de forma similar a um
ideograma japonês, criando um novo símbolo a partir de um agrupamento de símbolos.
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Para Artaud, a cura é entendida como a busca por algum sentido para a vida e para a existência.
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Na vida cotidiana fazemos o mesmo e contracenamos uns com os outros na busca por
novas histórias.
As histórias que marcaram minha vida, e que interagem com as histórias que
hoje releio e reconto, foram fruto principalmente de minha criação em uma família que
valoriza o respeito pelos mais velhos. Meus avós maternos se foram quando ainda era
menina, embora já com idade avançada. Convivi mais com os avós paternos, que
inclusive moravam na mesma cidade que minha família e por isso era sagrado:
“domingo é dia de visitar a nona”. Lá, histórias também não faltavam. Embora pequena,
lembro-me das aventuras do nono que serviu ao Exército e de suas histórias no trabalho,
na lida com o gado.
Apenas muito mais tarde comecei a escolher as histórias que gostaria que me
contassem e ficava frustrada quando passei a me interessar pela língua italiana e a nona
não lembrava mais como se falava. Dela, não me recordo de ouvir muitas histórias e só
senti o quanto elas eram importantes muito mais tarde, quando me aproximei de outros
idosos, agora numa relação profissional. Foi na busca por essas histórias, que pensava
perdidas, que, em meados de 2009, ano em que entrei na graduação em Psicologia,
entrei pela primeira vez em uma instituição para idosos, de onde profissionalmente não
quis mais sair. Embora a formação em Psicologia, o teatro não deixou de transitar pelos
mesmos espaços e ressignificar minhas práticas no dia a dia.
Com as práticas enquanto estudante apenas cresceu o interesse na temática que
hoje me mobiliza enquanto pesquisadora: acompanhei por alguns anos idosos que
entraram e saíram de ILPIs, mais que entraram do que saíram, uma vez que a tendência
é de que o idoso permaneça institucionalizado até seu falecimento. Ao longo desses
acompanhamentos convivi com idosos que visivelmente, com o passar do tempo, se
“apagavam” na ILPI. Com isso quero dizer que, muitas vezes, eles entram na instituição
ativos e falantes e aos poucos se fecham em si mesmos, restringindo o contato com
outras pessoas. Passam a falar menos, levantar menos da cama, participar com menor
frequência de atividades propostas pela instituição. Esta é uma questão frequentemente
discutida em grupos que atuam com a velhice institucionalizada. Há uma preocupação,
por parte dos profissionais, em garantir qualidade na prestação de serviços ao mesmo
tempo em que, em termos psicossociais, têm-se observado que a estrutura
institucionalizada da ILPI reprime a subjetividade e intersubjetividade de seus
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moradores e, por consequência, favorece o empobrecimento nas relações,
concretamente apresentadas pelo pouco interesse no convívio com os demais.
Foi, portanto, a imersão no dia a dia de uma ILPI que me permitiu formular de
forma mais sólida a questão que norteia este trabalho e que, embora muito similar se
diversifica consideravelmente no Abrigo do Cristo Redentor, onde a pesquisa atual foi
desenvolvida: com minhas visitas semanais, percebi este Abrigo como um lugar muito
diferente do asilo (que carregava este termo no nome) em que trabalhei como
pesquisadora e extensionista no estado do Paraná. Embora meu objetivo não seja
comparar as duas instituições, não posso deixar de mencionar as diferenças estruturais e
relacionais que as compõem. No Abrigo em que esta dissertação foi construída, percebi
idosos muito mais satisfeitos com a estada na ILPI. Muitos a tratavam como sua “casa”
e mesmo os que não consideram o Abrigo como a melhor opção entendiam-no como
uma boa opção.
Logo de início isso me espantou um pouco. Primeiramente porque percebi que
meu projeto de pesquisa inicial não era condizente com a realidade que visualizava na
ILPI. Em segundo lugar, porque não acreditava que pudesse ser possível, uma vez que
batia de frente com muito do que já havia visto na ILPI anterior e com o que ouvia as
pessoas dizerem e, ainda, com muito do que a própria literatura científica aponta quando
aborda tal temática. Não posso deixar de reconhecer, também, que compreendo as
diferenças entre uma instituição e outra, não apenas em termos infraestruturais e de
recursos humanos, mas também culturais. Esta ILPI se localiza na região sudeste do
país, em um município com mais de um milhão de habitantes e a economia é baseada na
indústria e no comércio, enquanto minhas experiências anteriores aconteceram em
municípios de pequeno e médio porte localizados na região sul do país, onde predomina
a economia rural.
Na confusão entre todas essas impressões e sentimentos é que surge, portanto,
uma nova questão de pesquisa, a qual buscou ser aprofundada com esta dissertação: o
que sustenta o posicionamento de sujeito dentro de uma ILPI, quando a literatura
aponta para noções de empobrecimento subjetivo?
É assim que cheguei ao desenvolvimento de entrevistas semiesruturadas com
oito idosos residentes do Abrigo do Cristo Redentor, homens e mulheres, com idades
entre 66 e 89 anos e entre dois e sete anos de institucionalização, indagando-lhes sobre
as histórias que têm para contar. Busco, neste momento introdutório, abordar o que digo
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que a literatura tem trazido a respeito da velhice institucionalizada. Tanto os relatos de
Debert (1999), quanto o desenvolvimento de minhas pesquisas, além de outras
referências que não irei aprofundar neste momento, consideram que o empobrecimento
subjetivo que acomete idosos em situação de institucionalização se expressa nas normas
que restringem não somente as saídas, mas que também padronizam a rotina
institucional, igual para todos, desde a hora de acordar até o momento de exercer a
higiene pessoal. Com isto, apresentam pouco ou nenhum espaço para as peculiaridades
de cada pessoa. Infelizmente, esta é a realidade de parte considerável das ILPIs
brasileiras, principalmente em se tratando de instituições públicas e filantrópicas, as
quais carecem de recursos humanos e financeiros.
Quanto aos objetivos da pesquisa, nesta dissertação, busco falar do sujeito do
desejo que sobrevive em meio à rotina institucional. No entanto, apenas por meu relato
inicial já reconheço que ela também é fruto do desejo da pesquisadora. Há uma aposta
em jogo, a de que é possível que ILPIs sejam espaços de produção de subjetividade para
seus moradores, mesmo diante das dificuldades diárias enfrentadas, principalmente com
relação à carência de recursos e de profissionais e mesmo que não se defenda a sua
existência e a existência de uma “velhice institucionalizada”. A hipótese é a de que
embora a literatura científica denuncie que a institucionalização oferece poucos
mecanismos que favorecem a qualidade de vida e a expressão da subjetividade durante a
velhice, conforme abordarei com mais detalhes, há possibilidade de que idosos que
residem em ILPIs, mesmo por longos períodos de tempo, sejam capazes de construir
espaços subjetivos que os auxiliem a sobreviver em meio às burocracias institucionais.
Considerado isso, no primeiro capítulo dessa dissertação optei por descrever
com mais detalhes minha inserção pelos caminhos da pesquisa com o velho e a velhice,
em especial, como cheguei às Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) e
que afetações esse contato provocou em mim enquanto estudante, enquanto
pesquisadora e também enquanto pessoa.
No capítulo seguinte, no capítulo 2, abordo a questão do velho para a
Psicanálise, assim como o processo de institucionalização do idoso. Este capítulo
carrega consigo minha principal questão de pesquisa, que surge de forma ainda um
pouco rasa no primeiro capítulo. À medida que ia desenvolvendo distintas atividades
com pessoas idosas e em locais diversos, comecei a perceber a multiplicidade de
velhices e de velhos. Os idosos do asilo, da Universidade Aberta para a Terceira Idade
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(UATI) e da Pastoral da Pessoa Idosa, em muito se diferenciavam dos meus avós, assim
como eram diversos entre si. Poucas são, em minha percepção, as aproximações de
formas de viver, ver e pensar a vida para esses distintos grupos. Em grande parte, é essa
percepção que me trouxe também ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Universidade Federal Fluminense (UFF). A grande questão que têm ficado para mim
em todos os espaços pelos quais passei com relação à velhice gira em torno da
diversidade de velhos e de formas de viver a velhice.
Nos capítulos 3 e 4 encontram-se relatadas a experiência de fazer parte do dia a
dia do Abrigo do Cristo Redentor, antes mesmo de iniciar “a pesquisa” propriamente
dita. Apresento também pouco da rotina dos residentes e dos funcionários do Abrigo,
bem como os próprios residentes, além de dados da instituição em questão. Considero o
momento de inserção no Abrigo como de extrema importância para o faz da pesquisa,
uma vez que foi com ela que criei um vínculo com os residentes, a ponto de que as
entrevistas individuais realizadas fossem possíveis da forma mais espontânea possível.
Foi com esta inserção, antes de desenvolver as entrevistas individuais, que comecei a
ouvir suas histórias, suas atividades e seus apontamentos sobre a velhice e a vida, antes
e após o período de institucionalização no Abrigo.
Conforme já relatei, esta dissertação carrega consigo uma experiência anterior,
durante a qual pude me aproximar e estudar a velhice e o envelhecimento em uma
instituição de idosos, quando estudante de Psicologia na Universidade Estadual do
Centro-Oeste, no município de Irati, estado do Paraná. Durante este período, trabalhei
com atividades distintas, que foram deste escuta psicológica até oficinas artísticas e de
letramento, intervenções tanto na pesquisa quanto na extensão. Embora as
características específicas de cada uma das atividades desempenhadas, aproxima-se a
questão da escuta. Em todas as atividades ouvi e vivi as narrativas que boa parte dos 80
idosos daquela ILPI tinha a contar. Fui espectadora de suas apresentações, mais que
ouvinte de seus relatos. Neste sentido, portanto, em todos os trabalhos desenvolvidos
objetivei dar voz aos moradores da instituição, seja por meio de palavras faladas e/ou
escritas, encenações, desenhos e colagens.
Agora, entretanto, é momento de dar voz aos moradores de outra instituição,
diversa, com histórias diversas, e muito a dizer. Eis a importância de se ouvir novas
versões dessa mesma história – “envelheSer”.
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Capítulo I
O CAMINHO QUE SE FAZ PELO CAMINHAR
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instituições, com as mais variadas modalidades de atendimento, públicas e privadas,
cujo objetivo comum é proporcionar serviços de saúde e assistência aos idosos
conforme suas necessidades coletivas e individuais, assim como garantir a manutenção
de seus direitos prescritos em políticas específicas, a Política Nacional do Idoso (1994)
e o Estatuto do Idoso (2004).
Até o momento atuei com ILPIs que se destinam ao atendimento de idosos
carentes, oriundos de famílias geralmente com poucas condições financeiras. De forma
prática, e pude verificar isto na fala de inúmeros idosos e profissionais com que atuei ao
longo destes anos, as ILPIs têm emergido para acolher aqueles que não possuem
condições financeiras de se manter em sociedade, mesmo que a orientação da Política
Nacional do Idoso (1994) e do Estatuto do Idoso (2004) seja de que este deve
preferencialmente ser mantido juntamente à família. Logo, com as ILPIs, o Estado tem
suprido necessidades que são fruto de má administração de políticas de assistência. O
resultado é que idosos que têm boas condições de locomoção, são lúcidos e bem
orientados e/ou que precisam de pequeno auxílio com suas atividades diárias são
alocados em instituições para cuidados a longo prazo, uma vez que não há outras
modalidades de assistência disponíveis.
Distintos trabalhos têm abordado essa relação entre velhice e institucionalização e
gostaria de destacar neste momento os trabalhos desenvolvidos por Guita Grin Debert,
antropóloga com diversas experiências em ILPIs no estado de São Paulo e que, embora
não seja relatado pela ótica da Psicanálise, trata-se de uma análise antropológica
minuciosa e que ilustra bem as questões com as quais tenho me deparado em ILPIs.
Em A reinvenção da velhice, Debert (1999) aborda as diversas faces da velhice,
dada a complexidade de se pensar velhice sem abordar o singular. Ela trata das
instituições para idosos, seja no formato de variados programas de convivência
destinados à chamada terceira idade, seja na “decisão”, optada ou forçada, de ir morar
em uma ILPI. O ponto forte dos relatos da autora está no fato de que as experiências
revelam significados diferentes para cada sujeito, de acordo com suas histórias pessoais.
No entanto, quero enfatizar o que ela compartilha com relação à ILPI que é reconhecida
pelos próprios residentes e profissionais como um asilo2. Assim sendo, já vem
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Asilo era um termo comum no momento em que o livro de Debert foi escrito, no final da década de
1990, sendo recentes as considerações da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG)
quanto à revisão do termo que visa romper com o estereótipo e sentido negativo atribuído a “asilo”. Em
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carregada com sentidos negativos, aliados a solidão, desprezo e abandono, um
contraponto com aquilo que a autora gostaria de mostrar como possível ao se falar em
velhice e o ser velho em uma instituição de longa permanência.
O ponto que quero destacar da obra de Debert (1999), no entanto, diz respeito à
visão de velhice, do velho e do asilo para residentes de uma instituição destinada a
moradores de classe média, na zona urbana de São Paulo. Por meio de entrevistas e
acompanhamento de atividades propostas dentro da instituição, a autora percebeu que
sua tentativa de criar uma ideia positiva acerca do asilo, atrelada à aquisição de
conhecimento e sabedoria, era desconstruída pelos próprios internos, que firmavam a
ideia da velhice na solidão e no abandono. Além disso, com relação ao velho,
especificamente, destaca que idosos entrevistados, e mesmo os quais encontrava nas
atividades na ILPI, apontavam sempre a velhice do outro como pior que a sua. Nesse
sentido, ela entende que o velho precisa se agarrar a tudo que lhe for possível para
manter viva a dignidade e a autoestima.
Para os idosos pesquisados por Debert (1999), a institucionalização era vista como
uma possibilidade de autonomia, quando não era mais possível cuidar de si sozinho, ou
não se queria estar sozinho, uma possibilidade de manter uma vida social. Muitas vezes
o abrigamento é a única possibilidade de não ficar morando na casa dos filhos, uma
prática comum nas gerações anteriores, em que estes velhos, quando jovens, prezavam a
presença dos avós em casa. No entanto, embora a possibilidade de manter-se em contato
com outras pessoas, muitas vezes se busca enclausurar essas outras pessoas em suas
2010 Camarano e Kanso desenvolvem um estudo com um apanhado histórico sobre as ILPIs e as direções
que o novo conceito, o de ILPI, tem tomado, sendo utilizado indiscriminadamente na literatura e na
legislação para identificar casas de repouso, clínicas geriátricas, abrigos e asilos; sem que as instituições
se autodenominem ILPIs. Ou seja, substituir o termo “asilo” por “ILPI” não constrói outros significados
para as instituições em si, apenas se torna um eufemismo utilizado pelos teóricos. Quanto a isso ver
CAMARANO, A. A.; KANSO, S. R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 233-235 jan./jun.
2010.
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próprias solidões. Aparece aqui um contraponto interessante que nada mais é do que
uma forma de representar. Os idosos que respondem às suas questões e que surgem
como personagens de sua pesquisa se esforçam por mostrarem-se satisfeitos com a
institucionalização, mas escorregam em suas atuações ao tentarem se reconhecer como
“menos velhos” que os demais internos.
Embora a análise de Debert (1999) não seja psicanalítica, conforme já reiterei,
este último aspecto de que trata vem muito ao encontro do espelho lacaniano, porém um
espelho às avessas. Enquanto Lacan (1966/1998) aponta que o eu se constrói a partir de
como o outro o vê, Debert (1999) trata da negação que enfatiza o eu como diferente
daquele outro que não se quer ver: o velho só, abandonado, desinvestido pelos filhos e
pela família, pela sociedade.
Conforme já apontado, muitas vezes a busca pela instituição acaba sendo uma
forma de manter laços sociais que, como veremos a seguir, nem sempre se efetiva, uma
vez que estar rodeado por pessoas não quer dizer necessariamente que haja laço social.
Não abordo esta temática mais a fundo neste momento, pois será retratada no capítulo
sobre velhice. Neste momento cabe destacar o fato de que estar em uma instituição para
idosos não é vivido da mesma forma para todos os sujeitos, ao contrário, cada um tem
uma percepção e uma maneira própria de se colocar neste lugar. No entanto, ressalto a
identificação com o outro, apontada por Debert. Trata-se de uma identificação às
avessas, uma vez que representa sempre aquilo que não se quer ser.
Embora a antropologia possa caracterizar categorias de velhos, algo que não nos
interessa do ponto de vista da Psicanálise, ressalto a existência de múltiplas velhices, e
da existência de uma velhice própria a cada sujeito, também destaca por Debert (1999)
no asilo em que desenvolveu sua pesquisa em São Paulo.
Ainda, gostaria de relatar de forma mais aprofundada minha experiência com as
pesquisas e extensões que desenvolvi com práticas de letramento, escuta psicológica e
atividades artísticas, juntamente a distintos orientadores. A primeira pesquisa
desenvolvida em ILPI durante a graduação foi entre os anos de 2010 e 2011, uma
Iniciação Científica com a qual busquei compreender de que forma os idosos da
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instituição se expressavam. O método foi construído com base em oficinas artísticas
com desenho e tinta guache. A iniciativa surgiu a partir da percepção de que havia
poucas atividades artísticas no local, ao mesmo tempo em que os idosos demonstravam
interesse em participar de atividades em que pudessem criar materiais com suas próprias
mãos e cujo resultado fosse algo concreto e palpável (MAGNABOSCO-MARTINS,
BALDIN; MACARI, 2014).
Com tintas guache, pincéis, folhas sulfites e cartolinas à disposição, um grupo de
seis idosos foi incentivado a desenhar livremente durante os encontros, embora
precisassem estar atentos a temáticas dirigidas, que se relacionavam com sua vida na
ILPI, seus familiares e sua posição enquanto sujeito. Assim, os encontros aconteceram
enfatizando suas representações de “meus familiares”, “as pessoas com as quais
convivo” e “quem sou eu”. Portanto, a tentativa de apreensão da expressão de si por
meio do desenho em aquarela deu-se tanto pela interpretação dos desenhos, quanto por
comentários e considerações feitos pelos participantes durante os encontros da oficina,
que aconteceu em uma sessão semanal durante quatro semanas (MAGNABOSCO-
MARTINS, BALDIN; MACARI, 2014).
Quanto aos resultados, os idosos não apresentavam grande preocupação técnica
e/ou estética com os desenhos, fugindo de padrões considerados socialmente aceitos. Ao
contrário, misturavam grande número de símbolos em um mesmo desenho, como uma
casa com um jardim e vários números soltos entre os demais desenhos na folha, ou
números misturados a letras soltas e círculos abertos. Foi importante colocar-me atenta
para as metáforas utilizadas pelos idosos em seus desenhos como quando, por exemplo,
uma idosa desenha uma flor no encontro em que foi pedido que falasse das pessoas com
que convive e que, nas entrelinhas de sua fala, foi remetida à beleza da amizade, algo
que busca cultivar no local (MAGNABOSCO-MARTINS, BALDIN; MACARI, 2014).
É possível destacar que, para além dos desenhos, outro marco da pesquisa diz
respeito à valorização, por parte dos idosos participantes, de atividades que
favorecessem alguma forma de atuação, ou seja, o fato de exigir que estivessem fazendo
algo produtivo em meio a uma rotina marcada pela estagnação do dia a dia na ILPI. Nas
palavras de alguns dos participantes: “tem que usar a cabeça pra fazer as coisas, pra
pensar, né?” e “ah, tem que sempre tá inventando alguma coisa pra passar o tempo
mais rápido, né?” (MAGNABOSCO-MARTINS, BALDIN; MACARI, 2014, p. 68-
69). Há ainda a valorização do trabalho e do cuidado com o outro na atividade em
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grupo, pois os idosos constantemente ofereciam elogios aos colegas e palavras de
incentivo, dizendo que os desenhos estavam bonitos. Logo, a oficina foi um espaço para
o exercício do eu, mas também de troca e interação com o outro, que mesmo tão perto
fisicamente, muitas vezes está distante em outros aspectos, já que eles pouco interagem
em seu dia a dia. Por fim, as conclusões desse capítulo foram que, embora o pequeno
número de participantes, a oficina de desenho se mostrou uma técnica satisfatória para
trocas coletivas, experimentação de novas situações e contato com si mesmo
(MAGNABOSCO-MARTINS, BALDIN; MACARI, 2014).
Com a supracitada pesquisa surgiram questionamentos que me faço até o
momento e que são pontos norteadores desta dissertação. Busquei estudar mais a fundo
aquilo que já havia encontrado na literatura disponível sobre a temática, em termos de
empobrecimento subjetivo a partir da institucionalização. A ideia de empobrecimento
que busco sustentar é de base lacaniana. Como definida com Lacan (1959-1960/2008)
em seus estudos sobre as duas mortes, a física e a subjetiva (ou simbólica), muitas vezes
esta última morte pode vir antes da física e contribuir com a deterioração do corpo e da
existência do eu. Com a morte subjetiva, o eu do sujeito deixa de existir, mesmo que ele
esteja vivo no sentido mais concreto da palavra.
Para este estudo, Lacan aborda a Antígona, tragédia escrita por Sófocles por volta
do século V a. C., a qual faz parte da trilogia tebana juntamente com Édipo Rei e Édipo
em Colono. A tragédia relata que Creonte era rei de Tebas e prometeu seu trono a quem
conseguisse derrotar a Esfinge. Édipo o faz e além do trono, recebe a mão de Jocasta,
irmã do rei, com quem tem dois filhos homens, Etéocles e Polinices, que acordam
revezar o trono anualmente. Porém, Etéocles reina primeiro e não passa o trono ao
irmão no ano seguinte. Por conta disso, Polinices invade Tebas e ambos matam-se em
luta, conforme uma maldição de Édipo, e Creonte reassume o trono. Antígona, sendo a
segunda tragédia da trilogia, dá sequência à trama.
Quando os filhos de Édipo morrem em duelo, Creonte determina que sejam dadas
as honras a Etéocles e proíbe o sepultamento de Polinices, considerado traidor. No
entanto Antígona, irmã dos dois, compreende os motivos que levaram o irmão a invadir
Tebas e manda construir uma pira para libertar sua alma. Ao saber disso, o rei Creonte
ordena que os guardas prendam Antígona, a qual é levada ao rei e condenada a morrer
presa em uma caverna. Há divergências na literatura sobre Antígona morrer presa na
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caverna ou ser libertada, no entanto o que nos interessa nesse momento está para além
da morte física de Antígona.
Com a atitude de enterrá-la viva, Creonte não condena Antígona diretamente à
morte, mas a uma vida subterrânea que a coloca entre as duas mortes: uma simbólica,
por ser “enterrada viva” quando afastada da presença dos vivos; e uma segunda morte,
definitiva, a morte do corpo. Da mesma forma, ela tenta livrar o irmão morto da morte
simbólica a que é condenada pelo pai, por meio da ordem de não sepultar seu corpo. A
importância do sepultamento, para Antígona, está no fato de que ela acreditava que seu
irmão morto merecia uma sepultura.
No Seminário VII, Lacan (1959-1960/2008) dirige o sentido da atitude de
Antígona para a ética na Psicanálise. Ao contrário de Creonte, que não dá ouvidos à
restauração do sentido do desejo ao negar a sepultura do herdeiro morto, Antígona
sustenta-o até o seu fim, até a vivência da segunda morte. O que Lacan atenta é que ela
nos faz deparar com o que define como desejo, do qual não abre mão e enfrenta a
interdição do rei em nome da lei dos deuses. Por consequência, tem sua morte
antecipada ao revelar o desejo durante a travessia. Outro ponto importante é que
também Creonte se depara com essa região fronteiriça, da morte em vida, ao perceber
que perdeu todos os seus bens e também seus familiares (LACAN, 1959-1960/2008).
Com a tragédia, podemos perceber que a morte simbólica acomete a toda a família, uma
vez que todos eles de uma forma ou de outra perdem importantes objetos de desejo de
suas existências: Polinices perde, efetivamente, a própria vida; Antígona é privada do
contato com o mundo e com aqueles que ama; Creonte perde sua família.
Retomo a Antígona, sob a análise do desejo, para sustentar algumas observações
dentro do campo do conhecimento acerca da velhice institucionalizada: muitas vezes, os
muros institucionais favorecem o enfraquecimento do posicionamento do desejo do
sujeito que os habita. Dependendo do modo como é organizada, a instituição tolhe a
vida do sujeito, levando-o a viver uma vida subterrânea, sem cor, assim como ocorre
com Antígona ao ser presa na caverna, e que tem por consequência final a morte
subjetiva antes da morte propriamente dita. Esse quadro é comum em ILPIs, pois de
uma vez só os idosos perdem a ligação com sua rotina, com os vizinhos, conhecidos e
com quem dividem uma casa. Precisam deixar de lado suas roupas e objetos pessoais,
além de perderem também espaços que ocupa e que lhes são familiares, como a
organização da casa em que habitam, como um todo. Assim, há a necessidade da
19
elaboração de pequenos lutos vivenciados com a morte simbólica de coisas e situações a
que estão habituados, muitas vezes ao longo de muitos anos.
Propus outra Iniciação Científica na mesma ILPI, desenvolvida em 2012 e 2013,
com objetivo de investigar a mesma questão. Porém, nesse momento, trabalhei com
entrevistas individuais com alguns idosos residentes na ILPI há mais de dez anos. Os
resultados desta pesquisa apontaram que a institucionalização, muitas vezes, é vivida
pelo idoso como um rompimento brutal com a realidade. Há, portanto, o esmagamento
de lembranças e vivências anteriores à institucionalização, principalmente no que diz
respeito a idosos que permanecem institucionalizados durante vários anos. Neste
sentido, é comum perceber na fala desses idosos que pouco pode ser dito sobre sua vida
anterior à ILPI. A exemplo, trago as entrevistas concedidas por Antônia e Joana3,
institucionalizadas há 13 e 17 anos, respectivamente. Suas falas eram marcadas pela
fixação em alguns fatos recorrentes ao longo de suas vidas, dada a totalidade da
entrevista, como frequentar a igreja e trabalhar. Mas elas não podem dizer muito mais
sobre isso4 (BALDIN; MARCOLINO-GALLI, 2014). Interessante que as idosas
relatam que “não se lembram”, mas não apresentam queixa de memória, nem quadro
demencial.
Em síntese, com a pesquisa, concluímos que quando a vida na instituição
mantém relação com o cotidiano anterior a ela, por meio do contato com pessoas e/ou
atividades externas, há significativa preservação da ideia de si enquanto sujeito, ao
contrário daqueles idosos que relatam uma quebra radical com a vida anterior à
institucionalização. Com relação às mulheres entrevistadas, seu discurso circundava o
cuidado com as pessoas familiares e com a casa e, de forma mais ampla, a rotina
doméstica. Curiosamente, os entrevistados mais falantes, que dialogavam e se
comunicavam de forma mais aprofundada, eram justamente os que auxiliavam nos
cuidados diários da instituição em que residiam, cuidados similares aos que exerciam
antes da institucionalização. As mulheres lavavam, cozinhavam, limpavam e cuidavam
dos demais moradores; atividades muito ligadas às suas rotinas anteriores como donas
de casa. Quanto aos homens, mantinham-se em contato com atividades de jardinagem e
3
Nomes fictícios.
4
Fragmentos dos relatos podem ser acessados em BALDIN, T.; MARCOLINO-GALLI, J. Considerações
sobre sujeito, memória e linguagem, a partir da escuta dos relatos de duas idosas institucionalizadas.
Revista Kairós Gerontologia, v. 17, n. 2, p.153-177, 2014. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.São
Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP
20
cultivo (BALDIN; MARCOLINO-GALLI, 2014). Com relação às atividades
mencionadas, efetivamente são as mais comuns para a geração abordada, uma vez que a
ILPI localiza-se em uma região cuja economia se baseia na agricultura.
Ou seja, a experiência mostra que, naquela instituição, as pessoas que se mantêm
mais ativas são as que continuam exercendo atividades similares às de seus lares
anteriores. Portanto, mesmo havendo rotinas burocráticas que rompem com laços
importantes, tanto em termos subjetivos quanto propriamente do dia a dia de cada idoso,
eles preservam parte da vida que tinham antes da institucionalização, mantendo vivas
lembranças que são reescritas no dia a dia institucional. Ao contrário, os idosos que
rompem com a vida anterior à ILPI de forma abrupta, em geral, entregam-se lentamente
a um processo de mortificação do eu, conforme já explicitado anteriormente com Lacan
(1959-1960/2008).
Entendo que a realidade da supracitada ILPI não é uma regra, pois a imensa
carência de recursos, financeiros e humanos, obriga que os internos ajudem nos
cuidados do dia a dia, tanto no que se refere à limpeza e preparação das refeições,
quanto com relação a cuidados com medicação e higiene pessoal dos demais internos.
No entanto, tampouco ela é uma exceção. No período em que estive no local, havia
cerca de oito funcionários para oitenta idosos, vários com grau II e III de dependência,
ou seja, conforme a Anvisa (2005), parte considerável dos idosos precisava de auxílio
em até três atividades de autocuidado para a vida diária, leia-se alimentação, higiene
pessoal e mobilidade, com alto ou baixo comprometimento cognitivo, o que diz respeito
às condições de cuidar de si (autonomia e orientação temporal e espacial). No plano
ideal, deveria haver funcionários em número suficiente para prestarem estes serviços,
um cuidador para cada dez idosos, mais dois funcionários de serviços gerais (ANVISA,
2005), jamais os próprios internos. Da mesma forma, não posso negar a importância que
estas atividades do dia a dia têm para os idosos que a habitam, em contraste com a
pequena oferta de outras atividades. Questiono-me, inclusive, as consequências para
essas pessoas, caso não lhes fosse permitido exercerem tais funções.
Tanto os relatos de Debert (1999) quanto o desenvolvimento das pesquisas, além
de outras referências que não aprofundarei aqui, consideram que o empobrecimento
subjetivo se expressa nas normas que padronizam a rotina institucional, sem levar em
conta as especificidades de cada pessoa. Infelizmente, esta é a realidade de parte
considerável das ILPIs brasileiras, principalmente em se tratando de instituições
21
públicas e filantrópicas, ou seja, aquelas que são mantidas por prefeituras, fundações e
mesmo parcialmente pela iniciativa privada, as quais carecem de recursos financeiros e
de pessoal.
Por fim, enfatizo de onde surge meu interesse nesta pesquisa: a partir do contato,
em diversos e distintos trabalhos, com pessoas idosas durante a graduação em
Psicologia como participante de projetos interdisciplinares de pesquisa e de extensão
voltados tanto para o idoso que vive em sua residência, sozinho ou não, e participa de
instituições como os Grupos de Convivência e as Universidades Abertas para a Terceira
Idade, quanto aquele abrigado em ILPIs. É essa experiência que me leva a querer ouvir
outras histórias, querer conhecer outros contextos e realidades, buscando novos olhares
sobre a velhice e a institucionalização em outros espaços, que não este, até aqui
descrito, e já vivenciado.
22
Capítulo II
VELHICE E INSTITUCIONALIZAÇÃO
Tais resistências têm relação com o fenômeno chamado por Freud (1937/1975)
de “entropia psíquica”, conceito emprestado da física para indicar o grau de organização
de um sistema. Quanto maior for a desordem desse sistema, maior será a entropia. Ela
se caracteriza pela parcela de elementos disponíveis, mas não utilizados, que não
circulam pelo sistema. Ou seja, muitas vezes na velhice há dificuldades para o
investimento libidinal em objetos externos ao sujeito e para o retorno dessa libido ao
ego, o que pode acontecer tanto com pessoas de avançada idade, quanto com pessoas
muito jovens. Em outras palavras, a entropia psíquica que acomete pessoas de mais
idade caracteriza a perda da plasticidade em permitir a circulação de libido.
Em se tratando dos velhos, a entropia psíquica tem relação direta com o prazer,
como se o sujeito não fosse capaz de encontrar satisfação na realidade. No entanto, com
a prática clínica, Freud (1937/1975) percebe que não é possível crer que os eventos
23
mentais sejam governados somente pelo desejo, assim como é possível, ao longo da
vida, descobrir novos objetos para investimento libidinal, pois a relação externa com a
realidade pode ser prazerosa mesmo em idades mais avançadas.
Ou seja, embora Freud não tenha falado muito sobre a velhice de forma
específica, trouxe suas colaborações ao, de forma generalizada, expandir o campo do
inconsciente e sobre a atemporalidade desses processos, possibilitando a criação de
espaço para o estudo da vida de pessoas que já viveram muito. Além disso, para além
do aumento da expectativa de vida, que atualmente está em mais de 73 anos no Brasil
(BRASIL, 2013), sabemos que o tempo cronológico diz pouco do sujeito, uma vez que
o inconsciente é atemporal e que quando se fala de sujeito, estamos sempre tratando do
sujeito do inconsciente.
Antes de falar propriamente em velhice, gostaria de abordar o sujeito de que
falo. Para aprofundar nessa questão, precisarei recorrer a Freud. Primeiramente, aponto
a estrutura do sujeito a partir de três proposições psicanalíticas: o inconsciente, a
sexualidade enquanto organização da vida psíquica e uma estrutura de linguagem
necessária à subjetivação do sujeito. Essas questões, no entanto, não são objetivo neste
momento, portanto discorro acerca delas apenas o suficiente para compreensão do ponto
de vista ora defendido.
um ato psíquico passa por duas fases quanto a seu estado, entre as quais se
interpõe uma espécie de teste (censura). Na primeira fase, o ato psíquico é
inconsciente e pertence ao sistema Ics; se, no teste, for rejeitado pela censura,
não terá permissão para passar à segunda fase; diz-se então que foi
‘reprimido’, devendo permanecer inconsciente. Se, porém, passar por esse
teste, entrará na segunda fase e, subsequentemente, pertencerá ao segundo
sistema, que chamaremos de sistema Cs. Mas o fato de pertencer a esse
sistema ainda não determina de modo inequívoco sua relação com a
consciência. Ainda não é consciente, embora, certamente, seja capaz de se
tornar consciente (para usar a expressão de Breuer) - isto é, pode agora, sob
certas condições, tornar-se um objeto da consciência sem qualquer resistência
especial. Em vista dessa capacidade de se tornar consciente, também
denominamos o sistema Cs. de ‘pré-consciente’ (FREUD, 1914, p. 102).
26
um ponto de interpretação sobre um significante sem se prestar a todos os sentidos. No
entanto, o sujeito pode ocupar diversos lugares à medida que se coloca sob um ou outro
significante (LACAN, 1964/1990; MARCOLINO-GALLI, 2013).
Em meio a esse processo há, portanto, produção de subjetividade. Muitas vezes,
subjetividade é entendida como se fosse o próprio psiquismo, formado pelos sistemas
consciente e inconsciente, mediante os quais o indivíduo, governado por sua
consciência, é capaz de delimitar seu espaço na relação com o outro ao colocar-se como
uma estrutura unificada. Mas essa posição reduz a noção de inconsciente a um estado,
como se fosse uma parcela temporária de desconhecimento da consciência. Falar de
clivagem da subjetividade nos permite melhor compreensão do que seja a subjetividade
e como é possível que haja uma produção subjetiva (LACAN, 1964/1990).
Com relação a isso, Garcia-Roza (2009) destaca as considerações freudianas de
que o inconsciente é um sistema psíquico com leis próprias e diferenciado da
consciência, por isso se trata de uma subjetividade clivada, cindida em dois modos
diversos de funcionar – consciente e inconsciente. No entanto, para Freud, é o
inconsciente que constitui a subjetividade e não representa somente aquilo que não pode
ser acessado pela consciência. Em outras palavras, tratar de subjetividade é tratar de
uma constituição do eu cindida e essencialmente governada por processos monitorados
pelo inconsciente.
Vale ainda destacar que na relação entre sujeito e Outro, uma falta cobre a outra,
criando uma relação dialética dos objetos do desejo, em que o desejo do sujeito faz
junção com o desejo do Outro, processos essencialmente de ordem inconsciente. Essa
noção é fundamental para o fazer desta pesquisa, conforme veremos adiante.
Não resisti mais. Ela sentiu, viu meus olhos úmidos de lágrimas, e só então
deve ter descoberto que eu já não era o que fui e sustentei seu olhar com uma
coragem da qual nunca me achei capaz... É que estou ficando velho, disse a
ela. Já ficamos, suspirou ela. Acontece que a gente não sente por dentro,
mas de fora todo mundo vê [destaque meu] (MÁRQUEZ, 2005, p. 109).
27
O personagem, no auge de seu aniversário de 90 anos, não se sente velho, mas
todos já lhe atribuíram a velhice ao se depararem com o que veem ao olhar para ele: do
ponto de vista orgânico, a idade e o corpo velho; do ponto de vista psíquico, as
vivências de alguém que chegou aos 90 anos. É do velho e da velhice conforme é
sentida pelo personagem que quero falar, de uma velhice que não se atrela à idade
cronológica, mas sob o ponto de vista subjetivo.
Antes de mais nada, cabe diferenciar velho de velhice e também fazer um
apontamento sobre o envelhecimento, em Psicanálise. Sobre o envelhecimento, é um
termo emprestado da biologia que tem por objetivo caracterizar o processo de desgaste
do corpo e da energia vital dos seres vivos ao longo do tempo. Seria, portanto, um
processo cronológico pelo qual nos tornamos mais velhos, sem qualquer
representatividade do ponto de vista do inconsciente. Sozinha, esta definição é
demasiado simplista, pois não abarca qualquer singularidade nas vivências, ao mesmo
tempo em que esse processo está longe de ser linear e universal. Da mesma forma, a
partir da Psicanálise, e por consideramos o inconsciente atemporal, não faz sentido
atribuir a ideia de envelhecimento ao eu do sujeito, mas apenas a seu corpo, o que
tampouco acontece de forma única e padronizada, uma vez que experienciamos distintas
situações ao longo de nossa vida e elas dizem sobre esse corpo que envelhece.
Posso ilustrar essa passagem novamente com o personagem de Márquez que,
vislumbrando fotografias, tem a consciência de que o real do corpo que envelhece não é
compatível com o que se sente com o suceder do tempo.
28
outro pelo espelho, identificar quem é o outro pelas marcas que o tempo produz e
escreve em seu corpo.
Há, portanto, processos biológicos e subjetivos envolvidos, os quais provocam
diversas modificações nesse corpo que muda e que é visto e nomeado pelo outro. Na
velhice, considerada a última etapa da vida humana, aquela que antecede a morte
orgânica, podemos ter contato com marcas muito visíveis e bem definidas. Nesse
sentido, a velhice possui representações muito peculiares quando vista pelo olhar do
outro, mas também quando o sujeito é questionado a falar sobre o que vê acerca de si
mesmo. Por convenção, muito mais ligada a aspectos jurídicos, de legalidade, o Estatuto
do Idoso (2004) demarcou o idoso, eufemismo para a palavra velho, como aquela
pessoa que tem 60 anos ou mais. Em contrapartida, é comum pensarmos que o idoso
seja aquele que vive a velhice, período em que a pessoa começa a demandar cuidados
específicos por apresentar mais fortemente sintomas ligados a perdas, incapacidades e
doenças. Isso é tão disseminado no imaginário de nossa sociedade que é difícil pensar
em aspectos positivos da velhice.
Considerados esses três conceitos e suas diferenciações, gostaria de ressaltar
mais um aspecto de velhice e velho, conforme é abordado por ciências de cunho mais
positivista, antes de abordá-los pela via da Psicanálise.
O velho, em geral, é pensado a partir da categoria social: na sociedade ocidental,
se antes o velho era visto como um sábio, detentor da cultura e do conhecimento de seu
povo, hoje é socialmente identificado sob a ótica das limitações corporais e mentais, das
doenças e suas comorbidades, da dependência física e financeira, do declínio das
atividades sociais, profissionais e da libido. Nesse viés, não há outra forma de encarar a
velhice se não pelo caminho da rejeição (MUCIDA, 2004, 2009).
Nossa sociedade presencia a expansão significativa da categoria “idoso” na
população mundial, ao mesmo tempo em que rejeita sua presença. Logo, e não é à toa,
que tantas vezes o velho introjeta tais sentimentos e assume uma posição de
inferioridade no contexto social; papel que muitas vezes não se comprova, dado os
vários exemplos de idosos que chegam à longevidade mantendo-se independentes e
participantes da vida social, como é o caso do personagem da obra de Márquez (2005).
O velho que de alguma forma se destaca é considerado como o que foge à regra.
Como exemplo, o personagem surpreende a todos quando vai comprar uma
bicicleta à sua jovem amada e expressa o que há de vida em si.
29
Quando fui comprar a bicicleta não consegui resistir à tentação de
experimentá-la e dei algumas voltas a esmo na rampa da loja. Ao vendedor
que me perguntou a minha idade respondi com a graça da velhice: vou fazer
noventa e um. O empregado disse exatamente o que eu queria ouvir: pois
parece vinte a menos. Eu mesmo não entendia como havia conservado
aquela prática do colégio, e me senti sufocado por um gozo radiante
[grifo meu]. Comecei a cantar. (...) As pessoas me olhavam, divertidas, e
gritavam para mim, me incitavam a participar na Volta da Colômbia em
cadeira de rodas. Eu lhes fazia com a mão uma saudação de navegante feliz
sem interromper a canção. Naquela semana, em homenagem a dezembro,
escrevi outra crônica atrevida: Como ser feliz anos noventa anos em uma
bicicleta [grifo do autor] (MÁRQUEZ, 2005, p. 81).
30
dias, que não sofre os mesmos efeitos que aqueles físicos e visíveis, portanto de fácil
acesso, infringidos no corpo físico. De forma mais ampla, isso quer dizer que se um
adulto jovem ou um idoso busca por atendimento, não há qualquer distinção do ponto
de vista do inconsciente. Messy5 (1993) chega a definir o tratamento psicanalítico como
um “encontro peculiar de inconscientes, qualquer que seja a idade do paciente... ou do
psicanalista; somente estão em jogo seus desejos. Na circulação da libido não há jovem
nem velho, o desejo não tem idade” (ibidem, p. 8). É também por esse caminho que
olho para o velho.
Em sua tese, Messy (1993) anuncia que “a pessoa idosa não existe”,
considerando que não é possível abordar o “idoso” enquanto categoria individual, uma
vez que a velhice é um estado. Crendo nisso, só é possível falar de idoso enquanto
categoria social – é sempre um lugar ocupado por um certo sujeito no olhar do outro, da
família, dos mais jovens. Enfim, só se pode ser velho a partir do olhar da coletividade.
O autor traz a velhice do ponto de vista da percepção: pelo espelho, o sujeito se
vê envelhecendo fisicamente e ao se dar conta disto nada pode esperar além da
aproximação da morte, que anteriormente já fora discutida com Freud (1915/1974). Ao
buscar sentidos para a velhice, inconscientemente percebemos que estamos convictos de
nossa imortalidade e, em se tratando da atemporalidade do inconsciente, a morte não
possui representação. Por fim, aponto que para o inconsciente, o velho é sempre o outro.
Se envelhecer só diz respeito ao velho, nos localizamos fora das ameaças do tempo.
Logo, do ponto de vista do imaginário, somos inalcançáveis pela morte.
Na continuidade de sua tese Messy (1993) não deixa de falar sobre o
envelhecimento em termos de perdas e aquisições, no entanto indo muito além do
sentido biológico desses termos, que opto por não adentrar dada a especificidade de
minha pesquisa. Em termos de aquisições, envelhecer está muitas vezes ligado à
maturidade e à acumulação da sabedoria adquirida com o tempo. Para exemplificar com
o personagem de Márquez (2005, p. 75) “quando meus gostos musicais entraram em
crise me descobri atrasado e velho, e abri meu coração às delícias do acaso”. Já as
perdas são essencialmente de caráter pejorativo, sobre aquilo que se perde com o tempo.
Em Psicanálise, podemos falar de dois processos, continuamente presentes na existência
5
Messy é pioneiro ao abordar a velhice e a demência sob a ótica da Psicanálise, sendo que após seu
trabalho em “A pessoa idoso não existe” na década de 1990, a literatura sobre o tema é fortemente
influenciada por seu olhar.
31
humana, uma ligada à construção e à assimilação; e outra destrutiva, desassimilativa
(FREUD, 1920/1975). Neste mesmo sentido se orientam os movimentos pulsionais,
pulsão de vida por um lado, e pulsão de morte por outro.
Com foco no envelhecimento enquanto aquisição, Messy (1993) aponta para as
contribuições da Psicanálise com relação a um investimento da dimensão imaginária do
ego: o sujeito investe em objetos significativos e, assim, a noção de aquisição é fruto da
relação narcísica do eu com o objeto. “Sem o sabermos, moldamo-nos à imagem de um
outro, por quem nutrimos afetos de qualquer natureza” (ibidem, p.14). Já, em se
tratando do envelhecimento enquanto perda, o autor se refere à perda dos supracitados
objetos investidos. Ou seja, tanto as perdas quanto as aquisições estão presentes ao
longo de toda a vida do sujeito, por isso tratam-se de processos inerentes ao
envelhecimento, que todos vivemos desde o nascimento, e não à velhice em si. Não
deixo, porém, de reconhecer que a intensidade das perdas aumente com o avançar da
idade.
Todas as perdas vividas ao longo da existência de um sujeito indicam marcas
que estruturam o seu eu: a perda dos dentes de leite, na criança é o avanço para a
adolescência. A perda da virgindade, no jovem, é um marco que o aproxima da idade
adulta. Quanto ao adulto, a menopausa nas mulheres, a aposentadoria e a perda de
pessoas próximas com a mesma idade cronológica (MESSY, 1993). Márquez
exemplifica com maestria como o velho percebe seu acúmulo de perdas ao longo de
uma vida.
32
Quanto à aposentadoria, Márquez também a aborda em sua ficção. Em
continuidade à narrativa do retrato com as cruzinhas sobre as cabeças, o diretor do
jornal lhe elogia por uma crônica bem escrita sobre a velhice: “quem pôs as cruzinhas
não fui eu, disse. Acho que são de muito mau gosto. (...) Se antecipou a tudo: estou
falando da sua demissão. Mal consegui dizer: é uma vida inteira. (...) Não tinha sentido
termina-la com uma decisão que mais parecia uma morte civil” [grifo meu] (2005, p.
57). Este fragmento da obra pode ser também um bom exemplo para esclarecer o que
seria a noção de morte simbólica, já abordada, para Lacan (1959-1960/2008).
A aposentadoria, decorrência da velhice para o personagem, tem relação com o
ego. Essas realidades se manifestam no plano psíquico caracterizando a ruptura de um
vínculo como um vácuo no ego do sujeito, vivido de forma dolorosa (MESSY, 1993).
Quando pensamos amar uma pessoa, nosso ego investe nela uma imagem que
o constitui. Quando a pessoa desaparece ou morre, a relação do ego com o
objeto é marcada pelo luto, sendo vivida pelo sujeito como a perda. A libido
investida no objeto se retira. A dor é uma decorrência da volta da imagem
investida, e, aspecto capital, essa imagem fica desprovida de suporte da
realidade do outro. Digo do outro, mas bem que poderia dizer do objeto. Não
se trata do outro na sua inteireza, mas da perda desta parte do outro que
constituía um aspecto do meu ego (MESSY, 1993, p. 15).
33
por Freud (1914/2003, p. 91) como aquilo que o sujeito imagina que o eu “deveria ser”.
A imagem constituinte do eu ideal seria fruto da busca constante do sujeito por
recuperar uma satisfação desfrutada na perfeição narcisista da infância. É algo de que o
sujeito não abre mão mesmo quando se afasta da vivência do narcisismo primário, o que
se espera que aconteça, para então haver a recuperação do estado narcísico no qual o eu
foi o seu próprio ideal.
Se o eu não é mais o seu próprio ideal, sentimentos negativos emergem na
vivência da feiura de ser velho: as rugas, as olheiras, a pele flácida, os cabelos brancos.
Os espelhos são evitados e o sujeito é desinvestido. Com a queda do eu ideal, emerge o
eu feiura, evidência da queda do ideal e um reviver os fantasmas do passado com
relação ao estádio do espelho, o retorno do corpo fragmentado. Como o sujeito não é
mais a criança antiga e não há a mãe para sustenta-lo, só resta ao velho se prender nas
boas lembranças do passado (MESSY, 1993), o que justifica a fixação em um discurso
voltado para o passado, comum na fala de idosos (MUCIDA, 2009).
Quanto ao estádio do espelho, Lacan (1966/1998) o compreende como um
modelo que atravessa toda a vida do sujeito. O estádio do espelho representa a relação
libidinal do sujeito com sua imagem corporal, iniciada quando ainda é um bebê, pouco
consciente de si. Porém, mesmo muito pequeno, por volta dos seis meses, o bebê já dá
indícios de reconhecer sua imagem refletida no espelho, que passa de uma relação da
ordem do real, daquilo que não pode ser simbolizado, até a compreensão do eu como
imagem, chamada de imagem especular. Isso tem total relação com os três registros,
real, simbólico e imaginário, que abordarei posteriormente. Neste momento, porém,
quero destacar que Lacan desenvolveu a metáfora do espelho para representar a relação
da criança com a realidade ao seu redor, “uma identificação, no sentido pleno que a
análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele
assume uma imagem” (ibidem, p. 97).
Para que a criança reconheça que está em relação com outros, primeiro ela
precisa compreender que a imagem que vê é ela, ao mesmo tempo em que não é
somente ela, uma vez que o eu se encontra alienado ao outro (o semelhante, a
identificação) e também ao Outro (pois a criança, para constituir-se sujeito, precisa estar
imersa na Linguagem, na Cultura e no Simbólico). Dessa forma, falar de sujeito, com
Lacan, é falar de um eu assujeitado, que se constrói na relação com outros e o Outro,
assujeitado pelo próprio desejo (LACAN,1966/1998).
34
Assujeitar-se é fundamental para a constituição do eu. É assim que a criança
passa da imagem fragmentada do corpo para um eu que está longe de ser total, embora
possa ser estruturado. Conforme Lacan (1966/1998, p. 101), “esse momento em que se
conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e
pelo drama do ciúme primordial, (...) a dialética que desde então liga o eu a situações
socialmente elaboradas”, passando de um eu especular, para um eu social.
Não perdendo a metáfora do espelho lacaniana de vista, falo do estádio do
espelho quebrado, na velhice, representada pela fragmentação do corpo, o momento em
que o sujeito se depara com a ameaça de extinção da espécie, a perda da identificação
com o outro/Outro, que Freud denominou como uma angústia de castração (MESSY,
1993; MUCIDA, 2004).
A angústia, conforme Freud (1926/1996) descreveu em Inibições, sintomas e
angústia, se trata de uma angústia sentida frente à castração iminente. Suas origens
estão no complexo de Édipo quando, na infância, o menino sente o medo de ser
castigado pelo pai ao sentir de forma mais intensa desejo pela mãe. A angústia parte
deste sentimento de ser punido severamente, portanto um perigo que impõe um limite e
leva o menino a recalcar o que sente pela mãe, assim como ódio que sente pelo pai. Eis
a demarcação do declínio do Complexo de Édipo. Ou seja, a angústia produz o recalque
do que não é suportado de ser vivido. A partir daí, Freud aponta que todo adulto que
sofre de uma fobia, sofre na verdade de uma fobia infantil que se relaciona com a
angústia de castração primeira, relatada no Complexo de Édipo.
No caso do velho, com a vivência do estádio do espelho quebrado, há uma
antecipação da morte em sua imagem no espelho ou na imagem de um outro, entendido
como mais velho do que si. A angústia sentida frente ao corpo fragmentado, que o velho
quer destruir de alguma forma, é uma angústia de morte. Messy atenta para a
possibilidade de surgir uma nova perda de um objeto investido neste período, “cujo luto
já não é mais possível fazer e que vai transformar o adoecimento em trauma originário,
não simbolizado” (MESSY, 1993, p. 46). Pode ser a perda de um animal de estimação,
um roubo, uma doença corporal, e que por consequência precipitará a pessoa na velhice.
“O estado de velhice se caracteriza por uma depressão, pelo curvar-se sobre si mesmo,
pelo desinvestimento no mundo externo” (ibidem, p. 47).
Como consequência, são crescentes os índices de suicídios na velhice,
principalmente entre aqueles que sentem “não fazer mais falta”. Se não há uma falta,
35
que é sempre constituinte, não há sentido na existência. Com relação a isso, uma revisão
de literatura quali e quantitativa recente, desenvolvida por Minayo e Cavalcante (2015),
levantam os principais fatores que estariam relacionados com tentativas de suicídio em
idosos. Os mais comuns são doenças graves e degenerativas, dependência física,
transtornos mentais e depressão severa. Dentre esses, a depressão é o fator mais
relevante e se encontra ligada principalmente a perdas, abandono, solidão e conflitos
familiares. Isso demonstra que o avanço da idade não tem sido vivido de forma
favorável.
Mucida (2004) também trata das perdas na velhice. Ela aponta que a velhice é o
período da vida que nos escancara o real da castração, pois nossa cultura liga o velho à
improdutividade e à morte. Não raro, ouvimos falar de doenças atreladas à velhice como
o “mal da idade”.
Cabe aqui uma explicação sobre o nó borromeano e as três instâncias que
compõem o aparelho psíquico, o registro Real-Simbólico-Imaginário, ou R-S-I, para
que possamos aprofundar a discussão em torno da velhice enquanto a impossibilidade
de ser, logo algo que compete ao campo do Real. No Seminário XX, Mais ainda Lacan
(1972-1973/1985) apresenta o nó borromeano, formado por três círculos entrelaçados e
que juntos formam um nó. Cada um desses círculos corresponde a uma instância
psíquica, portanto todas interligadas, e o corte de uma delas deixaria todas soltas.
Quanto aos três círculos, um deles representa o Real, outro o Simbólico e o
terceiro, o Imaginário. No cerne dos elementos encontra-se a Linguagem, por sua
presença ou falta, pela interação com o Outro e reconhecimento das Leis sociais. O Real
estaria num plano anterior à linguagem, referindo-se àquilo que não pode ser dito, que
não pode ser nomeado, o inalcançável. A partir do momento em que se é possível falar
sobre algo, entramos no plano do Simbólico. Conforme Lacan (2005, p. 15), “falar já é
introduzir-se no objeto da experiência analítica”, momento da simbolização, por meio
da qual a experiência singular de cada sujeito pode ser transmitida ao outro através da
interação. O Imaginário, por sua vez, refere-se ao objeto para além do símbolo,
abrangendo assim o plano da fantasia, aquilo que já tem “seu próprio valor de imagem
para um outro sujeito” (ibidem, p. 20), o que denota a singularidade das relações inter e
intrapessoais, com o Outro.
Dada a impossibilidade do sujeito considerar a morte, a velhice enquanto
experiência se encontra no campo do Real, daquilo que não pode ser dito, visto e nem
36
sentido pelo sujeito – ao menos não no que diz respeito à sua própria velhice. No
entanto, atrelar morte a velhice é prática comum por conta de um discurso que se
propaga no âmbito social. Ela compete ao Imaginário, sem nunca chegar ao plano do
Simbólico. Não pode ser simbolizada sem que haja a morte do ego, pois se o
inconsciente não envelhece nem morre, o eu o faz e o que compõe esse processo se faz
marcado pelo sofrimento, tornando a velhice algo do intolerável, um não-lugar
concretizado pelo sentimento de não-pertencimento (LACAN, 2005).
Retomando Messy (1993), a velhice guarda em si “a ideia de uma morte de
nada. Quando ela surge, porém, torna-se uma morte por velhice” (ibidem, p. 35).
Através do medo de envelhecer não estará, acaso, o medo da morte que assim
se exprime, ou falando de outro modo: o temor de perder a vida, como
tivemos que perder o seio ou a placenta? Mas essa perda é impossível,
impensável em demasia, exceto se anteciparmos o ganho de outra vida,
celeste ou reencarnada, através da fé num ideal religioso. Talvez não seja a
própria morte que cause medo, mas a ideia que temos dela (MESSY, 1993, p.
36).
37
menores infratores, instituições de órfãos, instituições de saúde mental e instituições
para idosos.
Quanto à sua origem, a palavra instituição prevê o uso e o sentido comumente
atribuído a ela. Instituição vem do latim institutio, forma nominal do verbo instituere,
que significa instrução, ordem, arrumação. Em síntese, a instituição pode ser
compreendida como um espaço físico construído a partir de convenções sociais de
normas instituídas e que dão origem a novas normas. Lebrun (2009) aponta como outro
traço importante da instituição a noção temporal de que um evento está acontecendo
pela primeira vez e em seguida entrando em uma hierarquia.
38
modificação. “A instituição que existia anteriormente constituía espontaneamente a base
sobre a qual se podia reconstruir uma outra” instituição (LEBRUN, 2009, p. 19). Ainda,
para o autor, a crise que se fala estar sendo vivida pelas instituições é uma crise que
confunde a instituição com os estabelecimentos, estes definidos como locais em que
nada se pode modificar, onde as normas são cristalizadas pela tradição e, portanto, não
capazes se serem instituídos.
Nas instituições há um papel a ser observado e exercido pelo psicanalista, o de
estabelecer o questionamento de certas normas que são estabelecidas e que, de forma
autoritária e repressiva, não permitem que o sujeito expresse qualquer tipo de posição de
seu desejo. Considerando isso, também é preciso admitir que, atualmente, a instituição
não se submete mais à tradição estrita e precisa ser constantemente reescrita para
alcançar o desejo do outro. Para exemplificar, o autor aponta para o direito que falha se
não se submeter à evolução dos costumes do grupo em que se insere. Em outras
palavras, não se trata mais tanto de evitar que instituições se tornem estabelecimentos,
ou de transformar estabelecimentos em instituições, mas de permitir que grupos se
tornem instituições, os quais vão para além de um simples agrupamento, mas compõem
uma rede de relações complexas e intensas, essenciais para garantir a vida do sujeito do
desejo (LEBRUN, 2009).
No que diz respeito especificamente às ILPIs, trago algumas considerações
quanto à realidade brasileira. As ILPIs, conforme já descritas anteriormente, são
“instituições governamentais ou não governamentais, de caráter residencial, destinada a
ser domicílio coletivo de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, com ou sem
suporte familiar, em condição de liberdade e dignidade e cidadania” (ANVISA, 2005,
online). No Brasil são encontradas inúmeras diversificações destas instituições,
orientadas em várias modalidades e qualidades de atendimento, públicas e privadas e
que atendem tanto idosos independentes, em situação de carência de renda e/ou de
família, quanto aqueles com dificuldades para o desempenho das atividades diárias e
que, portanto, necessitam de cuidados prolongados. O objetivo comum é sempre o de
proporcionar serviços de saúde e assistência às pessoas com idade acima de 60 anos.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou em 2011, embora
tenham sido coletados em 2005, dados que apontam para a existência de 3.548 ILPIs no
território brasileiro. Deste total, 65,2% são filantrópicas, ou seja, são entidades que
embora particulares, se mantém essencialmente a partir de doações e convênios com
39
empresas privadas e a comunidade civil. Estima-se que, nas 3.294 instituições que
responderam à pesquisa haja 109.447 leitos, dos quais 91,6% estão ocupados. De toda
forma, menos de 1% da população idosa ocupa leitos de ILPIs (aproximadamente 84
mil idosos). Destes, a maioria são mulheres (57,3%). Atentamos ainda, que o
crescimento do número de ILPIs no Brasil é alarmante: de 1940 a 2009 surgiram 2.897
novas instituições. Somente entre os anos 2000 e 2009 foram 90 (CAMARANO;
KANSO, 2010; IPEA, 2011).
A discussão do relatório aborda que a faixa populacional que mais cresceu no
Censo Brasileiro é justamente a população considerada “muito idosa”, de pessoas com
80 anos ou mais. As motivações para a busca pelas ILPIs estariam no fato de que muitos
chegam à velhice com poucas condições financeiras e sem moradia. Há mais idosos
independentes abrigados em instituições públicas e/ou filantrópicas do que em
instituições privadas ou com fins lucrativos. Também, é mais comum encontrarmos
idosos dependentes, física e mentalmente, em instituições pagas, já que quando está
bem de saúde a tendência deste idoso que possui boas condições financeiras é de que
continue vivendo com sua família ou sozinho, ao invés de em uma instituição
(CAMARANO; KANSO, 2010; IPEA, 2011).
Ainda, destaco a entrevista concedida por Ana Amélia Camarano (2011),
economista especializada em envelhecimento populacional, ao IPEA. A pesquisadora
apontou para a necessidade de uma postura mais efetiva do Estado na criação de
mecanismos de proteção ao idoso, uma vez que a capacidade das famílias
responsabilizarem-se por eles têm sido decrescente, em contraste com o aumento do
número de idosos, que é crescente. Isto se deve à diminuição do número de filhos e à
saída da mulher, historicamente quem exerce o papel de cuidadora, para trabalhar fora
de casa. A tendência é de que a oferta de cuidadores familiares diminua ainda mais nos
próximos anos: “hoje, as pessoas trabalham e estudam mais que no passado. E essas
pessoas não dispõem de tempo para cuidar dos idosos que precisam de cuidados diários
e específicos” (CAMARANO, 2011, s/p.). No entanto, não é porque o idoso está em
uma instituição que ele não precisa mais dos cuidados familiares. Ao contrário, “o idoso
deve e precisa manter relações com a família quando está em um asilo” (idem). Este é
um ponto importante para pensar nas duas mortes apresentadas por Lacan (1959-
1960/2008) por meio da Antígona.
40
Considerado isto, reconhecemos que o Estado promulgou uma Lei, que dispõe
sobre a organização da Assistência Social (BRASIL, 2011). Em seu Artigo 2º, ela traz a
garantia de direito ao idoso e à pessoa portadora de deficiência, que não é capaz de se
manter economicamente sozinha, de receber um benefício equivalente ao valor do
salário mínimo. Ainda assim, minha experiência indica que há muitos idosos com boas
condições físicas e emocionais e más condições financeiras, ocupando leitos de ILPIs,
portanto não se utilizando deste benefício. Parte considerável deles ocupa leitos de
instituições públicas e/ou filantrópicas e são idosos independentes (CAMARANO;
KANSO, 2010; IPEA, 2011).
Nesse cenário, a maioria das instituições precisam de parcerias com prefeituras e
empresas privadas para se manter, além de auxílio da família dos internos, de suas
aposentadorias e de doações da sociedade civil. Sob tais condições muitas ILPIs passam
por necessidades econômicas e vivem à beira da impossibilidade de continuarem com as
portas abertas (CAMARANO; KANSO, 2010). Além disto, muitos idosos encontram-se
abandonados nas instituições, sem contato com familiares ou amigos, o que denota que
haja a vivência de um grande empobrecimento nas ILPIs públicas e/ou filantrópicas
brasileiras, o qual diz sobre diversas ordens, para além da financeira. Inclui-se aí o
empobrecimento de laços sociais e afetivos.
42
Com relação a isso, são palavras de Freud sobre a sua própria velhice, permeada
pelo contato com o outro:
A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contra a
ordem universal. Afinal, vivi mais de setenta anos. Tive o bastante para
comer. Apreciei muitas coisas - a companhia de minha mulher, meus filhos, o
por do sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando
tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que
quase me compreendeu. Que mais posso querer? (FREUD, 1926/1976, s/p.)
44
O homem moderno, parece, está cada vez menos aparelhado para estar só e
encontrar uma boa solidão, malgrado todo discurso em torno do rechaço de
relações amorosas e do contato mais íntimo com os outros. Estar só torna-se
também sinônimo de abandono e falta de amor (MUCIDA, 2009, p. 111).
A autora continua:
Nem sempre é fácil suportar esse estado, se ali o sujeito não encontra um
bom momento para organizar sua vida, fazer projetos, refletir, meditar... A
solidão como escolha, desejada e propícia à reflexão, à criação ou associada a
outros estados de espírito como a meditação e a oração difere-se da solidão
muitas vezes presentes na velhice, na qual o isolamento e, tantas vezes, a
carência de laços afetivos e sociais levam a um estar só penoso, dolorido, no
qual se demanda a presença do Outro. Todavia, nesses casos, observa-se
muitas vezes que a demanda dirige-se a uma presença afetiva, seja de filhos,
seja de outro familiar, cuja ausência o sujeito não consegue conduzir.
Aprender a estar só e bem consigo não é uma tarefa fácil (MUCIDA, 2009, p.
112).
46
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
(ANDRADE, 1984, p. 25).
É tentando responder aos ideais que prescrevem uma relação asséptica com a
dor, que muitas vezes um ‘idoso’ encurta a conversa. Não há muito o que
falar, porque o que há para falar requer uma escuta que lhe permita alguma
leitura, a partir de suas perdas. O que terá perdido? Terá sido uma localização
no campo do Outro? Este contexto convoca a um trabalho a partir da perda
que, entretanto, nem sempre se realiza, fato que não é sem consequências
para o sujeito (CASTILHO, 2011, p. 7).
47
lembranças, tornar presente uma ausência, (...) recriar enredos, transitando em outros
espaços e tempos” (idem, p.115). Isso, nada mais é que efeito de dar voz ao velho.
Outra situação, relacionada com a vivência de lutos na velhice, é apresentada por
Elias (2001). Ele aponta que a maneira como cada pessoa percebe que envelhece e lida
com isso é particular, dependente de todo seu curso de vida e estrutura do eu. No
entanto, muitas atitudes que passamos a ter quando velhos diz respeito ao medo de
perder. Perder a independência física e também mental – acima de tudo a mental. O
medo de perder o controle sobre si mesmo. Uma tentativa de lidar com esta situação
seria a regressão ao comportamento infantil.
48
Capítulo III
O PROCESSO DE TRABALHO
3.1 A ENTREVISTA
53
indícios do tema pesquisado, por evidenciar pistas mais profundas da questão da velhice
institucionalizada a partir daquilo que não é dito, mas ainda assim manifestado.
55
que necessitam de assistência para todas as atividades de autocuidado. A ILPI organiza
os dormitórios e as equipes profissionais conforme esta classificação.
Algumas especificidades da instituição devem ser consideradas. Com relação às
saídas, são permitidas, desde que a triagem realizada pelos profissionais da instituição
avalie como possível, ou seja, que os idosos tenham condições efetivas de se ausentar
da ILPI e justifiquem o motivo. No entanto, há horários: poderão sair entre o final do
café da manhã e as 18h, pouco antes do jantar. Exceções como necessidade de outros
horários ou dormir fora podem acontecer desde que sejam justificadas e previamente
avisadas, para que sejam tomadas providências quanto à medicação. Quando estas
normas não são respeitadas, o idoso é encaminhado ao Setor de Psicologia, para uma
advertência e solicitação de justificativa pelo não cumprimento das normas.
Por fim, os idosos podem possuir objetos pessoais, mas nem tudo é permitido.
Por exemplo, podem levar objetos pequenos, que não ocupem muito espaço, dado as
limitações dos quartos, os quais são compartilhados e com pouco espaço entre as camas.
Além disto, objetos como roupas, toalhas, lenços, devem ser identificados, para que não
se percam ou extraviem na hora da lavagem, por exemplo. Esta é uma questão que
eventualmente gera desentendimentos entre os idosos, com relação a objetos “tomados”
por outros e a perda de objetos que não foram identificados. Percebo nesta instituição
em específico, o apreço por guardarem fotografias de familiares e amigos, comum a
vários idosos, assim como a posse individual de um rádio a pilha e de seu próprio
cobertor.
É um triunfo da vida que a memória dos velhos se perca para as coisas que
não são essenciais, mas raras vezes falhe para as que de verdade nos
interessam (MARQUEZ, 2005, p. 14).
56
3.3.1 CAROLINA TEM UM LUGAR PARA CHAMAR DE CASA
Carolina está com 80 anos e reside no Abrigo há sete anos, embora acredite
residir na ILPI há mais de 10 anos. Sua fala é fluente e bem localizada temporalmente.
Não demonstrou interesse em falar sobre sua vida pregressa à institucionalização, sendo
sucinta diante de perguntas que fizessem referência a isto e se concentrando mais nas
falas sobre o Abrigo. Sua visão com relação a ele é totalmente positiva, um lugar em
que gosta de morar e que é considerado e chamado por ela de “casa”, um ponto de
referência, como mostrarei nos fragmentos a seguir.
Vinda de outro estado, Carolina passou por várias cidades do Rio de Janeiro até
chegar na última cidade, na qual viveu mais tempo, momento em que começou a
trabalhar em casas de famílias e morar com elas. “Eu limpava, cuidava das coisas, mas
não tinha assim um emprego fixo, eu fazia assim, onde eu morava. Mas era muito bom,
muito bom mesmo” (CR10). Por conta disso não se casou nem teve filhos. “Não tive
filhos nem quero ter. [risos] (...) Tá ótimo. Eu sozinha, a gente sozinha já dá um
trabalho danado, já tem que fazer bastante coisa...” (CR12-13).
Antes de entrar no Abrigo morava sozinha. Foi o filho de uma das pessoas de
que cuidava que manteve o aluguel de uma kitnet enquanto ela pôde viver sozinha. Foi
ele também quem a levou para a ILPI. A idosa relata que morava sozinha e que passava
por vários problemas de saúde, enfrentando dificuldades para cuidar de si. Esses
problemas foram controlados com os cuidados recebidos na instituição. Com relação a
isso, relata que “eu vim porque o atendimento é muito bom aqui” (CR4).
T13: Depois de você vir pra cá melhorou? Você sente que melhorou?
CR14: Hurum. O sistema nervoso abalado, a diabetes, nunca mais tive. Era
muita coisa...
Resposta similar apresenta quando questionada sobre o que mudou em sua vida
com a entrada na ILPI. Afirma apenas mudanças consideradas por ela como positivas,
mais uma vez atreladas aos cuidados recebidos na instituição.
57
CR24: Foi só pra bom. Eu passei... Eu me tratei, que a diabetes não parava, e
aqui parou um pouco. Eu tomo insulina e tudo. Mas mudou muito mesmo. A
doença cessou mais um pouco, equilibrou aqui.
T24: É que você tem os cuidados né... De uma alimentação equilibrada pra
você, né?
CR25: Sim, elas [funcionárias] têm todo cuidado comigo, tomam conta de
mim e tudo direitinho.
Quanto à sua rotina, relata não fazer nada, mas que isto não a incomoda, pois
entende que está ali porque precisa de cuidados, ao mesmo tempo em que entende que
seus problemas de saúde a impedem de fazer atividades. Ela aponta que “tem gente que
faz” (CR15).
T18: Você tem, então, um círculo muito amplo de contatos, né? De pessoas
que você conversa...
CR19: Tenho, tenho.
T19: E aqui dentro do Abrigo você também tem uma boa relação, né? Eu
vejo que você se comunica com todo mundo...
CR20: É, tem a assistência social, as assistentes sociais, as enfermeiras... E aí
eu vou indo... Esse povo que me colocou aqui é um povo muito bom, lá de
[nome do bairro em que morava]. Nunca mais eles vieram aqui, porque eles
são meio adoentados.
58
T25: Embora, Carolina, tenham te trazido pra cá, você considera que viver no
Abrigo é uma escolha sua?
CR26: Eu considero aqui como a minha casa. Que eu gosto muito daqui.
[risos]
T26: Hum... Você não tem vontade de sair, então?
CR27: Não, eu não tenho vontade de sair daqui de jeito nenhum. Que
aqui é a minha casa e todo mundo sabe onde me encontrar aqui.
T27: É a sua referência, né? O seu ponto de referência. Já se sabe que a
Carolina está em tal lugar.
CR28: É, meu ponto de referência é aqui. Eu gosto muito daqui mesmo.
Em continuidade a isso e retomando a noção de cuidado, que para ela parece ser
significante para a vida institucional, relaciona cuidado à referência da ILPI como sua
casa, conforme os fragmentos.
CR41: Essa família daqui, eu gosto muito deles, de todos, todos eles cuidam
de mim e é muito bom. Cuidam de mim. Graças a Deus. Achei uma casa
boa, nem minha família não é assim. Aqui não, aqui é diferente.
T41: Olha só... O que é que difere da sua família da sua casa, dessa família
aqui, que você mora hoje?
CR42: Eu quero mais antes morar aqui, do que morar com a minha
família. Família, eu não quero morar. Eu quero, mais antes, ficar aqui. Ficar
aqui e tudo... Não morar com mais família nenhuma. Não quero saber disso.
T42: Você fala muito do cuidado que tem aqui dentro, né? Na sua família
você acha que não tinha tanto cuidado assim?
CR43: Não, não tinha, não. Lá eu morava sozinha e não tinha quem me
desse um copo d’água e aqui, pelo menos, se a gente cair ali, eles estão
juntando. Estão dando remédio, estão levando pro hospital, estão
trazendo e tudo. É muito melhor do que a gente estar sozinho. Eu adoro
aqui, adoro aqui. Cuidam da gente muito bem.
(...)
CR44: Olha, eu tava com a minha boca toda ruim, de sapinho. E eles,
mudaram a comida. Fizeram papa, papinha pra comer, pra não machucar a
boca. Se fosse em casa não tinha isso. Aqui não, aqui tem. (...) Por isso que
eu gosto deles. Muito bom, eu gosto muito.
Ela deixa clara a sua relação com a ILPI como ponto de referência.
Provavelmente, se reconheça apenas neste local. Parafraseando Messy (1993), para a
família, Carolina se sente objeto, e não sujeito, ao receber cuidados. Portanto o paralelo
aí é significativo: não deseja, de forma alguma, retornar para uma casa, sozinha ou
recebendo cuidado de outros com os quais não se percebe sujeito. Na ILPI, ao contrário,
recebe cuidados que a ancoram no desejo do Outro. Conforme o autor, quando o velho é
59
É importante, nesse sentido, discutir acerca do vínculo que pessoas
institucionalizadas por longos períodos de tempo criam com o local. Talvez, se Carolina
fosse tirada do Abrigo não se reconhecesse em sociedade. Ela criou uma forma de se
relacionar com a realidade institucional, com as pessoas que por ali circulam e com a
sua própria rotina, que parece ser um ponto de referência para si própria enquanto
sujeito.
Messy (1993) aborda esta questão para pensar a senilidade, mais
especificamente a demência. O velho cria uma relação com o ambiente com o qual
convive que se torna ponto de localização. Na relação que estabelece com seu entorno, o
sujeito cria uma borda para si próprio. Qualquer alteração ambiental lhe causa
estranhamento e um desequilíbrio psíquico. Ao que parece, Carolina teceu essas bordas
de acordo com o que vê de si no espelho do outro: é esta que precisa ser cuidada e que
ali, na ILPI, recebe os cuidados desejados e necessários. Quando relata que “não faz
nada”, Carolina parece tornar-se dona de si, é sua representação de sujeito do desejo
diante do olhar do Outro.
Por fim, Carolina foi convidada a falar sobre o que pensa sobre “idoso”, “velho”
e “velhice”. Em sua fala, ela oscila entre colocar-se como idosa (não como velha) e
atribuir este significante apenas aos outros internos: “o idoso que eu tenho
consideração, é que eles são muito velhinhos. Aqui a gente tem que cuidar dos
velhinhos, né?” (CR33). Em outro momento, porém, atenta para o fato de que “eu já
tenho essa idade todinha” (CR38).
Para ela esse idoso se difere do velho apenas em termos de características
pessoais. O velho seria o idoso teimoso, conforme explana nos fragmentos abaixo.
Reflexões similares são trazidas por Debert (1999). Muitas vezes o idoso,
quando levado a uma ILPI, sente abandono e rejeição. No entanto, ao chegar na ILPI e
se deparar com tantas outras velhices distintas da sua e consideradas por ele como
velhices “piores”, é esperado que se sinta em melhores condições, reforçando nele a
60
ideia de que o velho, na verdade, é o outro. “A impressão de que o momento de entrada
no asilo corresponde à autoidentificação dos indivíduos como sendo velhos é desfeita
logo após um contato mais demorado com os residentes” (DEBERT, 1999, p. 121).
Em sua pesquisa com idosos, Debert (1999) também traz a ideia de que o velho
tem uma certa relação com o humor, “o velho vive reclamando da vida” (p. 121). Com
seus entrevistados, “falar de sua vida era procurar demonstrar o não-enquadramento
pessoal nesse modelo estereotipado” (idem, p. 121).
Já, com relação à velhice, questiona se minha pergunta diz respeito à velhice
dela, o que denota que pode se compreender como vivendo a velhice, ao mesmo tempo
em que na sequência de sua fala aborda-a em terceira pessoa: é a velhice do outro.
T35: E a velhice?
CR36: Velhice? A minha velhice?
T36: O que a senhora entende por velhice? A senhora considera que vive a
velhice?
CR37: Eu considero que a velhice, a gente tratando dela, cuidando dela,
a gente vive. Mas eu não acho que velhice é ruim.
T37: Não?
CR38: Não, porque eu já tenho essa idade todinha e nem tô aí. Eu gosto
dessa idade.
T38: A senhora considera que viver essa idade, hoje...
CR39: É muito bom! É muito bom. Eu saio, vou passear, vou passear com
eles. Com eles, de carro. Não ando sozinha.
Cássio aparenta cuidado (ou receio) ao responder cada pergunta, com pausas
longas e pouco aprofundamento no que lhe era perguntado (não pode ou não quer?),
mas ao mesmo tempo se mostra aberto para falar sobre assuntos que em geral são
61
delicados de serem tratados, como sua relação com a bebida e o tempo em que viveu na
rua, antes de chegar a uma Fundação de acolhimento e, posteriormente, ao Abrigo.
Relata abertamente, também, que gosta de beber e não nega, mas que tem tentado não
chegar embriagado ao Abrigo, pois sabe da possibilidade de ser transferido para outro
lugar caso isso aconteça.
Cássio fala muito pouco sobre a vida antes da institucionalização. Com relação a
isso, tenho percebido, até mesmo por estar ouvindo vários relatos semelhantes de
histórias de vida permeadas pela violência e pobreza, que a vida antes da ILPI foi difícil
e não se quer falar muito sobre ela. Este é um ponto importante, uma vez que se
diversifica de minha experiência anterior, cujos idosos falavam mais sobre a vida antes
da ILPI do que sobre vivências atuais.
Quanto ao conteúdo da entrevista, Cássio relatou ter nascido no interior do
estado do Rio de Janeiro, mas mudado aos quatro anos para a baixada fluminense, onde
cresceu e viveu com o pai e os irmãos até os 23 anos. Quanto à mãe, já era falecida.
Atualmente está com 67 anos e mora no Abrigo há sete anos, portanto desde que sua
idade permitiu a entrada na ILPI. Ele buscou a institucionalização antes, sendo acolhido
em uma fundação de caridade e quando completou 60 anos foi transferido para o
Abrigo.
Com relação à família, perdeu o contato após a separação com a esposa, que
levou o filho com ela para outro estado. Depois de algum tempo perdeu completamente
o contato com eles. Não se demora ao falar sobre isso, mas coloca ênfase na afirmação
de que gostaria de ter a sua casa e viver com sua família, o que lhe parece ser mais
agradável do que a vida no Abrigo.
Eu gostaria mesmo é de ter a minha casa, ter a minha família, ter a minha
casa. É diferente, né, do que viver assim. Então eu gostaria de ter a minha
casa, junto com a minha família, entendeu? Eu gostaria disso. Mas já que
estou aqui, o que eu vou fazer? (C30).
A bebida o levou à situação de rua, onde viveu durante algum tempo. Relata que
foi um momento de grandes dificuldades: “na rua eu passava sufoco. Passava frio.
Comida sempre aparecia, né? Tinha lugares que a gente ia que ajudavam. Roupa,
63
também. E, depois que eu vim pra cá, melhorou bastante” (C25). Cássio queria sair da
rua e solicitar a institucionalização foi a solução que encontrou. Atualmente gosta de
morar no Abrigo, embora deixando claro que não se trata exatamente de uma escolha.
Relata-se grato pelos bons cuidados que recebe na ILPI. Ou seja, ele conforma-se com a
institucionalização por acreditar que não pode escolher entre outras opções neste
momento. Na primeira instituição ficou até completar os 60 anos necessários para entrar
no Abrigo.
Cássio gosta de viver no Abrigo por conta da comodidade no recebimento dos
cuidados. Sua posição quanto a isso pode ser verificada nos fragmentos C26 e C39.
T26: Tem alguma coisa que você não goste aqui dentro, que te incomoda?
C26: Não. Nada que me incomoda, eu gosto de tudo aqui dentro do
Abrigo. O Abrigo é muito bom. De vez em quando eu vou lá fora, por aqui
mesmo por perto, né? Eu gosto de beber uma cervejinha...
C39: O que eu tenho que falar é que faz sete anos que eu tô aqui, gosto daqui,
né? Gosto daqui. Os tratamentos daqui é bom, 24hs de enfermagem, né?
Tratando da gente, aí, o remédio vem na mão, aonde a gente tiver, eles levam
o remédio, entrega na mão. Quer dizer, o tratamento daqui é bom. Não é
como em outros lugares que, às vezes, só fica jogado, né? Tem lugares que
a pessoa está e é maltratado, fica jogado por lá. Não tem tratamento, assim,
não cuida das pessoas direito, né? Aqui por exemplo, estão ali acamados ali,
né? Os enfermeiros estão sempre ali, na hora que precisa trocar uma roupa,
uma fralda, troca. Na hora de dar banho vai e dá naquela hora certa, coisa que
dão um bom tratamento, né, para os idosos aqui. Eu gosto daqui.
64
C27: Eu não posso chegar embriagado aqui. Eles não gostam que chegue
embriagado. Agora se eu for lá fora, tomar alguma coisa, e chegar firme,
assim, entendeu, não dando demonstração de que bebi, tudo bem. Mas agora,
se chegar embriagado, eles chamam atenção. Dá advertência e tudo.
T28: Hurum. Já aconteceu?
C28: Já, várias vezes. Andou uns tempos aí que eles davam suspensão na
gente. Se a gente chegava embriagado, aí eles suspendiam, sem poder ir lá
fora, um mês. Já cheguei a levar três meses sem poder ir lá fora. Davam uma
suspensão. Mas depois pararam com isso, agora pararam com isso. Agora
eles dizem que se chegar embriagado, vai ser transferido, daqui lá pra [nome
de cidade]. Tem um lugar lá. Eles já foram, viram, e coisa e tal, diz que é
muito bom, é a [nome do local]. É uma vila, casa de um lado, caso de outro, e
cada casa só fica duas pessoas. Aí tem fogão, a cozinha, e na sala tem sofá, se
quiser botar uma televisão, bota; uma geladeira. Mas eu prefiro ficar por aqui
mesmo, não quero ir pra lá, né? Eles perguntaram, quer ir pra lá ou quer ficar
aqui? E eu: quero ficar aqui. Então, procura não chegar embriagado, porque
se chegar embriagado aqui, de qualquer maneira vai ter que ir pra lá. E tô
aqui até hoje.
Ele relaciona suas saídas com o fato de ser idoso, mas não velho. Aponta para a
necessidade de sair, dar uma volta pela rua, mesmo que perto da instituição, como algo
bom para si e que demonstra que está ativo. Isso surge nos momentos em que fala sobre
o idoso e o velho.
C30: Bom, o idoso, hoje em dia, é aquele que tem mais de 60, né? O idoso é
aquele que tem mais de 60. Agora velho, o velho...
C31: Por exemplo, eu não sou velho, quem tem mais de 60 anos jamais se
pode considerar como velho, porque velho é aquele que não liga pra mais
nada, nem mais lá fora, vai; só quer ficar deitado e tal... Quer dizer, ele já tá
desiludido da vida, já tá cansado da vida, não tem atividade nenhuma. Então
esse é o velho, né? Agora tem o idoso. Todos somos idosos, mas que pode ter
o espírito de jovem, né?
T32: Então o idoso me parece mais que é uma classificação legal, digamos
assim, é isso? 60 anos, idoso...
C32: Da terceira idade.
T33: Isso, terceira idade. Mas a terceira idade, não necessariamente é
composta por velhos. Isso?
C33: Não quer dizer que seja velho, porque às vezes, a pessoa é jovem e se
torna, parece mais velha do que aquele que tem bastante idade. Não, porque,
não liga pra nada, não quer atividade, né, não aproveita a vida, entendeu?
Quer dizer, tem idoso que é muito ativo, né? Que ainda tem espírito de
jovem. Ele envelhece por fora, mas o espírito continua novo, né?
É importante ressaltar que ele não conceitua “velhice” como uma etapa da vida,
mas como o próprio sujeito. Seria uma forma inconsciente de distanciar ainda mais
aquilo que legalmente se considera como “idoso” da noção que atribui ao “velho”?
Afinal, ao que parece, Cássio só se autointitula idoso por conta de um Estatuto
(BRASIL, 2004) oficial que o coloca em tal posição. Quanto a isso, sua fala mantem-se
consistente. Em todas as questões, sobre idoso, velho e velhice, segue por uma mesma
linha de pensamento, trazendo a categoria de referência legal para o “idoso” e a noção
de finitude e desmotivação pela vida ao abordar o “velho” e a “velhice”.
Da mesma forma, a velhice vivida dentro ou fora do Abrigo abarca tais noções,
sendo considerada por ele como igual – o velho institucionalizado seria, portanto o
mesmo velho que hoje está em sua casa. Mais uma vez aponta para a vivência de
66
atividades com finalidade produtiva, daquele que “está em plena atividade” (C36),
como sair e encontrar pessoas, como mantenedora do “espírito jovem” na pessoa idosa.
Seria a mesma coisa que aqui dentro. Porque tem o idoso que tá dentro de
casa, mas ele tá naquela também. Quer dizer, é um idoso sem atividade
nenhuma, não dá umas voltas também, só quer ficar dentro de casa
prostrado. E ainda tem aquele idoso lá fora, que é diferente, né, que vai lá
fora, chega na praça, senta numa mesa, joga uma dama, né, joga uma
sueca, um baralho, e coisa e tal, com os amigos, toma uma cervejinha e
coisa e tal. Quer dizer, esse tá em plena atividade né? (C36).
67
inclusive afirmando ter 49 anos de idade, e não sendo capaz de definir de forma clara
conceitos para “idoso”, “velho” e “velhice”, muito menos se considerar parte disso.
Quanto aos seus dados, Celimar tem 68 anos, mas afirma ter 49. Mesmo quando
questionada uma segunda vez sobre sua idade repete, “49 anos”. Da mesma forma, ao
longo da entrevista, é possível perceber que ela não se considera idosa, fazendo
referências a si como “garota” e aos demais residentes como “os idosos que moram
aí”. Paciente psiquiátrica, com fortes traços de esquizofrenia, nasceu em uma
comunidade do município do Rio de Janeiro e está no Abrigo há 4 anos.
Acerca de sua história pregressa ao Abrigo, relatou ter sido casada e ter 3 filhos.
Sua fala não nos permite verificar com precisão como viveu, pois ela circula entre os
momentos em que morou com a mãe, a irmã, o marido e em uma instituição de caridade
(antes de chegar ao Abrigo), com idas e vindas pouco claras. Relata que morava com a
mãe, depois foi morar com a irmã. Casou-se e separou-se do marido, de quem sofria
agressões físicas e verbais. Depois de diversas situações de violência pede ajuda judicial
e separa-se do marido, ficando com os três filhos, que embora sejam referenciados pelo
substantivo “crianças” já são adultos6, uma vez que ela sai de casa e eles saem também,
cada um optando por algo diferente para si. Essas informações podem ser verificadas
nos fragmentos C10 e C11.
CM10: (...) Não sei o que me deu na minha cabeça, no meu estado de nervos,
aí eu falei ó, eu vou pegar as minhas coisas e disse, vou-me embora daqui, eu
vou fugir. Aí eu fugi, fui parar em [nome do bairro].
T11: E as crianças?
CM11: As crianças falaram, olha mamãe, se a senhora for embora daqui
eu vou também. E aí foram embora, não falaram pra onde que ia, pra onde
que foi. Não sei se estão morando aí perto, se estão... Um disse que ia pra
Bahia, lá pra Brasília, sei lá. Aí fui saber, uma vez minha irmã veio aqui e
disse, ‘Celimar, um vez encontrei com teu filho’. E eu falei, aonde? Ela disse,
‘ah, foi por aqui, aqui no Rio, veio passear. Aí perguntou assim, ô tia, fala
com a minha mãe, que eu não vou ver nunca mais ela. Eu fiquei com raiva
dela’, que eu fugi de casa e não falei nada pra onde que ia. Então eles não
querem saber pra onde que eu fui.
Celimar aponta que, nesta situação do fragmento CM11, a irmã passou para o
filho o endereço do Abrigo, mas que nunca foram vê-la, e que a última vez que se viram
foi há mais de 11 anos. Além disso, 11 anos também é o período que relata estar na
6
Mesmo para falar de seus filhos na atualidade chama-os de “crianças”. Esta pode ser uma forma
coerente que encontrou para colocar ela própria na situação de mãe jovem. Ela fixa-se em um momento
específico de sua vida.
68
ILPI, quando na realidade adentrou no local em 2012, portanto há menos de quatro
anos. Ela chegou na ILPI após essa saída de casa, quando saiu sem falar com ninguém,
e foi acolhida em uma fundação de caridade, na região metropolitana do Rio de Janeiro.
Posteriormente, foi levada ao Abrigo.
Com relação à vida institucional, Celimar participa das atividades externas
promovidas pela ILPI, como passeios e excursões, mas não gosta das oficinas. Dentro
do Abrigo, participa apenas das confraternizações. No dia a dia, sua rotina “é só comer,
dormir aqui e ver televisão” (CM20), o que não parece lhe incomodar. De certa forma,
entende que é um momento de passagem, pois sairá do Abrigo para morar com a irmã, e
esse desejo, atrelado a uma certeza do acontecimento, sustenta sua vida.
Ou seja, Celimar não acha ruim viver no Abrigo, inclusive, relata que “no
Abrigo eu posso ficar, mas tem hora que vem um pensamento assim, na minha cabeça,
de coisa que diz assim, ‘vai embora pra sua casa, vai embora pro seu canto’” (CM42).
Embora não seja ruim e ela não faça queixas com relação à ILPI, não condiz com seu
desejo ficar e, ao que parece, está entrando em um quadro depressivo por conta de seus
sentimentos com relação à institucionalização. Em outro momento, quando questionada
sobre com quem moraria caso saísse do Abrigo, aponta para a irmã e esse residente, mas
jamais para morar sozinha.
69
T43: Você sente vontade então de ter uma casa sua, um lugar seu... Mas você
fala muito da sua irmã, né? Se fosse pra sair daqui e morar sozinha, você iria
ou não?
CM43: Ah, eu tenho medo. Sabe por que que eu tenho medo? Porque uma
vez, uma moça morou sozinha e um cara arrombou a porta lá e matou a
mulher dentro de casa. Eu tenho medo. Ou é com esse aí que falou que vai
resolver, ou é com a minha irmã, né? Um dos dois. Eu já falei pra minha
irmã, a minha irmã não conhece ele, não sabe quem é ele, aí eu falei pra
minha irmã, ‘ô [nome da irmã], eu tô gostando de um rapaz aí’ e ela me
falou, como que ele é, ele é novo? E eu falei, não, ele é meio idoso... Mas
ele... Eu, quando tô lá fora, tomando chá, ele fica me esperando assim lá fora,
eu bato um papo com ele e entro pra dentro.
Anteriormente já havia ressaltado que gosta de morar no Abrigo, mas sente falta
de algo que referencia como “a sua vida”, diferenciada da coletividade institucional:
“morar eu gosto, mas eu queria sair daqui pra morar com a minha irmã, certo? Ter a
minha vida” (CM29).
Além da irmã, única referência externa, dentro do Abrigo mantém relações
próximas com outra residente, sendo que ambas sempre estão juntas, no quarto ou pela
área aberta da ILPI. Além desta colega, Celimar relata envolvimento com um interno e
pensa na possibilidade de deixar o Abrigo para viver com ele.
Aí eu digo sabe o quê? Que eu vou arrumar um coroa aqui, mas ele é daqui
do lado, ele é bonzinho, sabe? Ele é carinhoso, ele é bonzinho, só que ele é
ciumento. Ele diz, ‘Celimar, você é uma garota tão bonita, não tem ninguém,
não tem namorado, não tem ninguém?’. Aí ele ficou com olho em mim, me
chamou num canto e disse ‘eu amo você, eu gosto de você a beça’. Vamos
ver se vai dar certo, né? Se der certo, eu caso com ele. Aí ele diz que arruma
um cantinho pra mim [risos] (CM16).
É possível que o que lhe faça sofrer em estar na ILPI é o fato de não se
identificar com ela, não haver uma referência clara de porque é que está ali, até mesmo
porque ela não se considera idosa. Para ela, é simplesmente o fato de ainda não poder ir
morar com a irmã. Essa não identificação com a ILPI e também com a condição de
“idosa” fica clara nos momentos em que é solicitada a falar sobre o idoso, o velho e a
velhice. Da mesma forma, não há identificação entre Celimar e o ambiente em que vive,
uma “instituição para idosos”. Talvez até mesmo sua estrutura egóica não a permita se
localizar frente à ILPI, onde tudo é coletivizado. Só há identificação com o lugar em
que gostaria de viver, aquele que é capaz de simbolizar – um espaço dividido com a
irmã.
70
T38: E aí tem uma terceira palavra ainda, que eu queria que você me falasse
um pouco sobre o que você pensa sobre isso, sobre o que é a velhice.
CM38: Eu não tô entendendo essa não.
T39: Você já pensou sobre velhice?
CM39: Ah, quando fica velha?
T40: É, eu tô perguntando o que você pensa, qual é a sua ideia disso, o que é
velhice pra você.
CM40: Nada.
Já, com relação ao idoso, Celimar discorre em terceira pessoa e como algo que
ela virá a ser um dia (fragmento CM32). Demora a responder, sendo preciso que a
pergunta fosse repetida. Por fim, sua resposta aponta para uma diferenciação entre ela e
as demais pessoas que vivem no Abrigo: “tem uma porção de idoso aí” (CM33), não se
incluindo na categoria.
71
Parece, mas não fica claro, que o velho, para ela, estaria mais atrelado a um
temperamento, como se o velho fosse aquela pessoa que “xinga e briga”, o ranzinza,
irritado, por isso para ela o residente em questão não é velho, embora seja idoso, pois
concorda com ela em tudo o que diz: “tudo o que eu falo com ele, ele fala sim, sim,
você tá certa, você tá certa” (CM36).
De forma geral, alguns pontos de discussão podem ser levantados com relação à
entrevista com Celimar. O primeiro deles é que quando questionada a pensar a
“velhice”, ela mostrou-se surpresa, como se nunca tivesse ouvido tal palavra. Celimar
não se reconhece ou cria uma imagem para si que não é visualizada por outros, não é
capaz de se reconhecer na imagem que vê no espelho. “Velhice” é uma palavra que não
consegue reconhecer, não soube sequer definir na entrevista. Ou seja, ela não pensa
sobre a velhice. Conforme Messy (1993, p. 33) “todos somos o velho de alguém”, mas
ela não nós dá a entender que tenha essa percepção com relação a qualquer pessoa.
Talvez a forma de apontar para a sua idade, “49 anos”, seja uma defesa egóica na qual
se ampara para fugir do sofrimento de deparar-se com as perdas que vive e viveu,
muitas delas relacionadas com a entrada no Abrigo. Refiro-me ao corpo fragmentado,
mas também ao rompimento com a vida familiar, com o marido, já morto, e os filhos,
que não querem vê-la, além da irmã, que embora a visite não a leva para morar consigo.
Em certa medida, ela pode, inclusive, sentir medo das outras perdas que possa
vir a sofrer com a entrada da velhice. Messy (1993) considera uma escuta mais profunda
de “pessoas idosas” e, com relação às perdas, acredita que “não se trata mais do medo
de perder a vista, a audição, o equilíbrio, a memória, a cabeça, ou ainda de ser roubado,
de ser despossuído, defraudado” (p. 33). Ao contrário, podemos deflagrar duas ameaças,
uma delas com relação ao corpo e outra à perda de objetos investidos. Com relação à
primeira, Celimar esforça-se em reforçar que é vista pelos outros como uma pessoa
jovem e bonita, uma “garota” (CM16). Até aponta para um interno como “velho, mas
de rostinho bom” (CM35), ao contrário dela, que é bonita, sem atrelar isso a qualquer
outra identificação. Quanto ao medo da perda de objetos investidos, a única relação que
vivencia com profundidade, ao que relata, é com a irmã, de quem deseja fortemente
estar próxima. O choro que vem quando das visitas e quando pensa em sair do Abrigo,
talvez venha também para expressar isso que não pode ser simbolizado de outra forma e
que aparece pela atuação.
72
Cabe aqui retomar a relação R-S-I, já explanada em capítulo anterior conforme
Lacan (1972-1973/1985). Celimar é um exemplo claro da velhice sem representação, da
velhice no plano do Real, no plano do que não se pode nomear. Embora a princípio
negue, compreende-a do ponto de vista do Imaginário ao atribuí-la a outro interno. No
entanto, a simbolização efetiva não existe, ela não é capaz de transmitir ao outro a sua
experiência singular talvez mesmo por não se identificar com ela. “Velhice” não faz
sentido para ela.
Não foi possível aprofundar nas questões com Celimar e a entrevista durou
apenas 20 minutos. Além de ser difícil de explicar para ela as perguntas, o
encadeamento de sua fala é inconsistente, com muitas idas e vindas e, ao que me parece,
há uma fuga de falar sobre si, mesmo que seja sempre tão disposta a receber as pessoas
e a falar sobre assuntos corriqueiros.
E45: Eu sei botar a mão na cabeça da pessoa e tirar o coisa ruim, até
apertando a mão assim ó. Eu ajudo aí velho sem saber. Quando eu vejo que
eles tá cheio de neurose eu vou ali conversar ali, ‘não é assim, não é não’, aí
eu tiro a encrenca da ideia deles.
T43: Entendi. Então aqui dentro você tem esse lado... Espiritualista, eu acho,
né?
E46: Positivo. Isso. E positivo também.
Todo esse cuidado de Elton com relação ao corpo pode fazer menção a um
cuidado que vai além do estético. Ele parece trazer para si a imagem refletida no
espelho do outro e faz um esforço gigantesco no sentido de manter uma imagem que
possa ser reconhecida por ele. Seria uma tentativa de não permitir que o que vê no
espelho do outro esteja fragmentado? Conforme aponta Messy (1993), isso é possível,
uma vez que a velhice não necessariamente é alcançada ao fim da vida. “Podemos
morrer sem termos atravessado essa etapa. É o sentido psicanalítico que eu dou a essas
noções, desligando-as do campo social e do médico” (p. 47). Se, na velhice patológica,
“o indivíduo retira seu interesse do mundo externo para fazê-lo recair sobre uma doença
orgânica” (idem, p. 47), Elton mantém-se para além dessa situação ao direcionar para o
mundo externo a imagem refletida que é capaz de ver. No entanto, embora toda essa
relação “positiva” de si, é preciso um olhar mais atento para perceber que ainda assim
ele não deixa de localizar o outro como o “velho”.
Ao longo da entrevista Elton retoma diversas vezes sua ligação com o
espiritualismo, o que nos dá indícios para crer que essa relação que estabelece consigo,
com o seu corpo e com as outras pessoas favorece a manutenção de sua posição
enquanto sujeito, mesmo com oito anos de institucionalização. De toda forma, há outras
relações que Elton estabelece com o mundo que parecem ser essenciais para sua
sobrevivência enquanto sujeito no processo de institucionalização, como a relação que
mantém com o trabalho. Atrela-se a isso a manutenção de uma vida produtiva,
74
conforme experiencia. Ele pode não trabalhar enquanto atividade formal, mas destaca
que assume diversas tarefas em seu dia a dia, como as saídas, as atividades físicas, os
encontros da seresta, da qual também é membro, e as demais atividades promovidas
pela ILPI. Ou seja, de certa forma, ele se “acomoda” ao que lhe é possível fazer.
Com relação a isso, Mucida (2009) discorre acerca das escritas possíveis de
serem feitas no corpo e como elas se mantém para o sujeito mesmo diante de novas
necessidades e significações. A autora chama atenção para um entrelaçar de três fitas
acerca do corpo, as quais se sustentam ao longo da existência do sujeito e não apenas a
existência em vida, mas também o que fica dela após a morte. Nesse sentido, a primeira
fita representa o corpo com o qual se nasce, a segunda representa as imagens e
referências que estruturam e nomeiam um corpo, as inscrições anatômicas e traços
genéticos; e a terceira fita são as palavras que nomeiam esse corpo. O entrelaçamento
entre essas três fitas apontam para um corpo que se é e que se tem e permite que sejam
feitas inscrições neste corpo, as quais continuam representativas do sujeito mesmo após
a sua morte. O corpo acaba se tornando, então, a própria lembrança do sujeito.
Considerado isso, quando Elton aponta para tantos cuidados com seu corpo,
estaria ele cuidando da referência a ser feita para marcar a lembrança de si enquanto
sujeito?
Quanto à sua história pregressa à institucionalização, apresentou diversas
situações relacionadas ao trabalho que exercia e ainda exerce esporadicamente, na ILPI
e fora dela, relacionado à marcenaria e construção civil em geral. No entanto, teve
vontade de cursar medicina, corroborando, em partes, com seu interesse pelo corpo
humano e sua preservação. A relação com o trabalho é de forte influência para Elton e
também importante para a sustentação do sujeito, conforme os fragmentos a seguir.
Percebamos que no primeiro deles, aponta a impossibilidade do trabalho e o quanto isso
o deixa chateado, até hoje.
75
Roubaram minhas ferramentas, duas bolsas de ferramentas. Poxa. Duas
bolsas, eu tô chateado até hoje. Tentaram me botar na carpintaria aí, mas sem
ferramenta, como é que eu vou trabalhar, né? (E41).
E58: Tem a [nome de uma fundação] também, eu fiz jardinagem lá, mas
ficou uma coisa que eu vou te contar, também... Porque eu pegava na enxada,
aqui eu também pegava na enxada. Ó o calo [mostra mão]. Passa a mão.
Como é que você vai querer um namorado com uma mão dessas, pra fazer
carinho. Ói, como é que eu vou fazer carinho com uma mão dessas? Uma
mão pesada. Mas trabalhei de letreiro de luminária, isso aí ó, aquilo ali, tá
vendo aquele letreiro da [nome], colocava também. Instalação luminária
predial.
T54: “Você é pau pra toda obra”, né?
E59: Graças a Deus. Graças a Deus. É... Hidráulica eu também conheço. Já
tinha aquela [fala nome de lugar]. Fazia uma hidráulica, pedreiro sei fazer,
fazia casa de madeira, de lambri, chalé... Chalé aqui, por exemplo, eu fui
construir um chalé aqui, começava daqui... [explica como constrói chalé]. É
um sistema de trabalho. Eu sei fazer qualquer tipo de telhado, eu faço. Quatro
águas. Isso aí é quatro águas. Duas pro lado e duas lá na ponta. Eu já fiz
muita mansão de praia, assim na praia. Lá em [nome de cidade] eu fiz muito,
monstruosa.
E61: (...) Lá na [nome de lugar], então, fizemos umas três casas bonitas pra
caramba, poxa. Fica um luxo mesmo. É porque não tinha... Eu tava querendo
tirar foto. Trabalhava até 11 horas.
T57: Trabalhava muito.
E62: É, trabalhei muito, graças a Deus, trabalhei. Mas eu gosto, eu gosto de
trabalhar.
T58: Você faz pequenos servicinhos hoje, por aqui, ainda?
E63: É...
T59: Aqui você faz né, porque eu já vi.
E64: Faço, eu ajudo aí.
E66: (...) Eu, com o que eu sei de profissional, qualquer país que eu vou eu
arrumo serviço. Chego numa marcenariazinha, trabalho de lustrador,
vendendo móveis... Eu me viro bem. Aquele móvel do salão nós lustramos
tudinho, eu e os outros colegas. Deixamos sem nada de mancha de boneca,
que a gente chama de boneca, aquele dedão, mas o móvel tava assim. (...)
Num hotel ali em [nome de bairro] eu também trabalhei. Eles quebram os pés
da cama. Eu conserto. Quebrou, eu conserto. Se eu comprar as minhas
ferramentas de novo...
Já, com relação à família, mostrou-se resistente. Apenas disse que foi casado e
que teve dois filhos com a esposa, mas está separado há 32 anos. Quando questionado a
76
falar dos filhos, disse apenas: “eu tive filhos, mas eu estou tão desligado. Eles se
mudaram... É porque, eu não gosto nem de falar, sabe? [emociona-se]” (E12). Em
seguida, emenda:
Com relação a outras pessoas, relata não receber visitas e que é ele quem vai
principalmente na casa de uma irmã que mora na baixada fluminense, embora pouco
frequente. A maior parte de suas saídas são para encontrar com amigos, beber cerveja e
ir ao cinema.
Dentro do Abrigo, joga sinuca com outros residentes, canta nas serestas
promovidas pela ILPI, uma vez ao mês, e participa das atividades promovidas pelos
funcionários, inclusive aquelas promovidas pelo Setor de Psicologia, nas quais
ofertamos atividades relacionadas à música, um de seus principais interesses.
T20: (...) E aqui dentro do Abrigo, qual que é o seu dia a dia, o que você faz?
E21: Ah, o meu dia a dia é ficar jogando sinuca. Se tivesse ping-pong aqui,
eu gosto também, mas jogo mais sinuca. Jogar sinuca e sexta-feira é a seresta,
vou cantar uma música.
T21: Você canta também?
E22: Eu canto e componho também. Já tenho algumas composições.
T22: Você canta na seresta também?
E23: Eu canto.
Segundo Elton, a separação com a esposa também foi muito difícil e que a
entrada no Abrigo foi um alento. Esta teria sido a principal mudança ocorrida em sua
vida.
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T44: (...) O que você considera, Elton, que mudou em sua vida com a sua
entrada no Abrigo? Assim, em termos de perdas e ganhos, o que você sente
que melhorou e que piorou?
E48: Mudou uma certa neurose que eu tinha, uma certa neurose, um
nervoso...
T45: Com relação à bebida?
E49: Com relação à separação.
T46: A separação pra você foi difícil.
E50: Foi.
T47: Com a entrada no Abrigo você se distrai?
E51: Não. Eu saí do esquecimento, do negativo, assim... Você sabe, né.
Muitos usavam maconha e nós criados juntos, então era aquele negócio que
eu tinha que abandonar. Eu, os amigos e tudo. E muitos eram falsos, sabe?
T48: Pra você foi um divisor de águas então, optar pela instituição.
E52: É, e aqui eu tô mais perto do meu padroeiro, São José, que eu sou
marceneiro, né? [aponta para a igreja].
Segundo ele, a ILPI não é uma escolha, mas é uma opção. É uma opção porque
embora não estivesse sendo fácil sobreviver fora da ILPI, ele é capaz de “se virar” e
poderia continuar morando fora dela, se assim desejasse: “eu, com o que eu sei de
profissional, qualquer país que eu vou eu arrumo serviço. Chego numa
marcenariazinha, trabalho de lustrador, vendendo móveis... Eu me viro bem” (E66). A
ILPI é uma opção que faz ao ser questionado sobre a possibilidade por um funcionário
da fundação de acolhimento em que estava antes de ir para o Abrigo. Elton não aponta
nenhuma perda com a entrada na ILPI, mas relata ganhos em termos de cuidado físico,
mental e espiritual. Ele introjeta em si a vida institucional. Seria toda a ideia de cuidado
que ele tem com o corpo e a ILPI tem consigo?
Elton algumas vezes assume-se como idoso, mas na maior parte do tempo da
entrevista se refere ao idoso e ao velho na terceira pessoa. Aliás, além de não se ver
como velho, sequer se vê como idoso. Ele estabelece uma linha hierárquica entre o
idoso e o velho, sendo que o primeiro viria antes do segundo e em nenhum momento de
sua fala deixa indícios de que são momentos da vida pelos quais passará um dia.
Quando indagado sobre quem é o idoso responde que “o idoso é uma pessoa sofrida,
sabe, eu vejo muito como sofrimento. Porque todos eles, e eu também, tenho meu lado
de sofrimento, quando pensa no passado. ‘Ah, meus vinte anos, ah, meus quinze anos’
[risos]” (E68).
79
E69: [risos] Aproveita, aproveita porque depois, já viu como fica essas
velhinhas aí, as velhinhas, como é que ficam?
T65: Como é que elas ficam?
E70: É por isso que eu parei até de beber. Eu é que vou ficar igual a elas?
Não, não, não vou ficar mesmo. Ah, mas murchar é ruim pra caramba!
Fica tudo murcho, fica murcho.
T66: É, não é fácil de encarar essa imagem no espelho, né?
E71: É, e as cuidadora de idosos ali não têm paciência não. Teve umas aí que
foram embora porque os idosos reclamavam dela. Mas o idoso é isso. É a
lembrança do passado.
T67: Bonito isso.
E72: Pra mim o idoso é a lembrança do passado. Passado bom, passado
ruim, passado sofrido. Muitos sofreram por causa da enxada, que eu
converso aí... No cabo da enxada na roça, na fazenda, não tiveram aquela
mordomia, era candiero, mais para uns anos atrás, o meu pai nasceu em 1920.
Nasceu em [nome de cidade] aqui, quase em Espírito Santo, então ele tava
falando pra mim, que ele levantava cedo pra colher café, nos pés do cafezal.
Trabalhava pra caramba, plantar... Hoje em dia tem maquinário, naquele
tempo não tinha, no tempo dele.
80
como ser social: ele demanda cuidados e não é estimado como alguém que detém
conhecimento.
Elton faz duas observações sobre os velhos atuais. A primeira é de que as velhas,
mulheres, têm dificuldade em assumir que estão mais velhas e sentem insegurança
diante das mulheres jovens; e a segunda é que algo tem mudado com relação aos velhos
atuais e os das gerações passadas. O primeiro apontamento pode ser visualizado nos
fragmentos abaixo.
O segundo apontamento, de que há algo mudando na forma de viver a velhice, pode ser
visualizado no fragmento E79 abaixo.
E, a velhice, não é descrita por Elton, mas é qualificada como algo que precisa
ser aturado. Exemplifica a velhice e seu ponto de vista sobre ela com o exemplo de uma
árvore imponente na entrada do Abrigo.
E80: A velhice, a gente tem que saber aturar ela, né? Tem gente que não se
contenta, não. Ó, uma árvore não fica velha? Quantos anos tem essa árvore
aí? Ela é mais idosa do que qualquer idoso aqui. Eu respeito ela, eu
respeito ela. Eu chego ali, não mijo nela, não chego ali e não cuspo nela, não
quero certas coisas não, tem que preservar, agradecer à velha árvore.
T77: A velhice então é essa fase que você recebe mais respeito. Deveria, pelo
menos?
E81: Isso mesmo. No entanto tem muitos aí... Pegam as bolsas das velhas e
saem correndo. São Paulo, aqui no Rio, lá na Central.
Com esse fragmento (E80) fica claro sua posição com relação à necessidade de
simbolização trazida pela noção de velhice. Porém, fala de uma simbolização do outro:
o eu tem que respeitar a velhice do outro. Em nenhum momento faz isso voltar para si.
Há fortes indícios aqui de que a velhice para Elton, do ponto de vista do ego, só
81
pertence ao campo do Real. No entanto, ele dá também uma pincelada pelo campo do
Imaginário, ao atribuir um sentido para a velhice do outro.
Por fim, Elton acredita que não há diferenças entre viver a velhice dentro ou fora
do Abrigo já que ela está muito mais relacionada com aquilo que o velho deve receber
do que com o que pensa ou vive por si próprio. No entanto, neste momento reconhece a
possibilidade de chegar à “terceira idade” (E82), se coloca em dúvida. Seria esta um
sinônimo de idoso? Conforme sua entrevista como um todo, suponho que não, não
sendo entendida por ele como um eufemismo para velho ou idoso.
T78: E viver, essa velhice, dentro e fora de instituição, você acha que tem
diferença?
E82: Não, não tem diferença. [pausa longa] Não tem diferença não. [pausa
longa] Ali tem o clube da terceira idade, mas sabe que eu nunca apareci lá?
Dizem que tem um baile lá, tem bailinho.
T79: Da terceira idade?
E83: Eu levo minha terceira idade como se tivesse 18 anos, 15 anos, ih!
T80: Ah, pra você, de certa forma, não existe, então?
E84: Pra mim não, eu continuo o mesmo. No mesmo ritmo, no mesmo
ritmo. No mesmo ritmo. É... Eu gosto de dar uns beijos na boca e [som de
beijo]. Beijar é bom. Dar um arrochozinho... Dar um arrochozinho, uma
pegadazinha [risos].
82
3.3.5 FRANCISCO E O RESSENTIMENTO PELO QUE FICOU PARA TRÁS
Francisco está sempre presente nas atividades propostas pelo Abrigo. Diante do
convite para a pesquisa, sua reação não foi diferente. Pediu para participar do ensaio que
estava acontecendo no Setor de Terapia Ocupacional e relatou que em seguida falaria
comigo, o que fez. Chama atenção em sua entrevista o fato de que, como falava francês
em seu país de origem, e em outros em que viveu, em diversos momentos de sua fala
trazia palavras em francês e, no início da entrevista, apresentou-se em sua língua de
origem.
Atualmente Francisco está com 68 anos e reside no Abrigo há três anos.
Conforme dito, não nasceu no Brasil e aqui chegou pela primeira vez em 1975, a
trabalho, no ramo de hotelaria. Permaneceu no país por quatro anos, tempo que durou
seu contrato, retornando ao país em que vivia anteriormente. No entanto, manteve um
relacionamento com uma brasileira, com quem se casou anos mais tarde e o motivo pelo
qual voltou ao país, permanecendo aqui mesmo após o fim do relacionamento. Com ela,
Francisco teve apenas um filho que nasceu morto. Relata que, com a separação, “ela foi
embora e eu fiquei só, com Deus e o povo brasileiro”7 (F12). Após a separação,
continuou morando no Brasil e trabalhando com hotelaria.
Atualmente mantem outro relacionamento com uma pessoa de fora da ILPI,
justamente quem mais o acompanha no dia a dia e que parece ser o único contato que
possui. “Eu tenho, por exemplo, uma namorada, que eu passo o sábado, o domingo, na
casa dela. Volto na segunda-feira e toda quarta-feira ela está me visitando. Eu levo
roupa na casa dela, ela lava, faz comida pra mim, me leva no [nome de hospital]”
(F33).
Quanto à institucionalização, por meio do trabalho morou em diversas cidades
do estado do Rio de Janeiro, até que em 1993 descobriu-se doente e precisou buscar
tratamento, quando estava na região serrana. De lá foi levado para um hospital e em
seguida para outros dois, um na própria capital e outro na região metropolitana do Rio
de Janeiro. Atualmente faz tratamento neste último. Aponta que sua doença “era um
7
O entrevistado falou em francês em diversos momentos da entrevista, misturando a língua com o
português. Por conta disso apresenta dificuldade na conjugação de verbos e tempos verbais e optamos
por, neste momento da dissertação, reescrever as falas na norma culta. Na transcrição da entrevista a
escrita é preservada conforme fala o entrevistado.
83
AVC” (F15) e foi assim que conheceu o Abrigo, pois ao ser encaminhado para uma
instituição social por perder a capacidade de trabalho e consequentemente de se manter
financeiramente e estando com idade para viver em uma ILPI, foi encaminhado ao
Abrigo.
Daí eu estive lá [hospital], fiquei lá até... Era um AVC. [O médico] falou que
eu tinha que me tratar lá. Aí, até hoje é isso que faz com que eu tenha
conhecido o Abrigo. Porque não estava mais trabalhando e minha vida ficou
difícil, então eu vim para o Abrigo para continuar tratamento e se Deus quiser
eu vou me equilibrar, podendo decidir a continuação [de minha] atividade [a
hotelaria] (F15).
T18: (...) O que é que você faz aqui dentro, Francisco? Me conta um
pouquinho do seu dia a dia, o que é que você faz?
F18: O meu dia a dia é feito de conselho comunitário, assistência de saúde,
que se preocupa com minha saúde, né? Pessoas [que] se preocupam com
minha saúde e minha alimentação, com a minha vivência dentro do
Abrigo.
T19: Então o seu dia a dia aqui são esses cuidados básicos que você... Que,
na verdade, trouxeram você aqui.
F19: Sim, na verdade é isso sim, os cuidados básicos, o primeiro... Assistance
du premier, cuidado de primeira espécie, do cidadão que eu sou né, então eles
se preocupam disso e me fazem bem, viver, continuar vivendo.
84
A mesma linha de pensamento com relação aos “cuidados” pode ser observada
quando se refere às atividades de que participa no Abrigo. Ele compreende as atividades
propostas pelo Abrigo como “reuniões” (F20) de um “conselho comunitário” (F18).
T24: É que saúde não é só física, né? Não é só cuidar a pressão, se está em
dia, né...
F24: Não, não...
T25: Se a glicose está boa, né?
F25: Tem o conselho...
T26: Tem essa coisa do contato...
F26: Do contato, do conselho, né? Pessoal, ao vivo.
T27: Isso é importante pra você né? Isso me parece muito importante pra
você...
F27: Sim, sim. Isso é um contato vivo, é necessário, se não nós morremos
rápido. Nossa existência não tem mais como sobreviver. Sem você, sem
esse contato, nós sentimos que nós somos inexistentes, que nós também...
Nós temos gosto da vida.
Embora o contato com pessoas externas à ILPI seja apenas com a namorada,
relata possuir relação com várias pessoas dentro da instituição. “Eu tenho aqui no
Abrigo, a partir de você própria, (...) tenho conhecido, como você, como o dirigente, o
85
diretor daqui” (F28). E, continua, “o pessoal da saúde, a nutrição, nutricionistas, que
se ocupam de nós... Copa, lavanderia, etc. O corpo médico, os amigos” (F29).
O cuidado com essas relações é essencial para ele, quando aponta que “tudo isso
proporciona pra nós um encorajamento pra poder... Para nós continuarmos a existir. E
nós temos que saber que vocês estão acolhendo a gente, fora de nossa própria família.
Você ficou no lugar de nossa própria família” (F30). Com esse “você” do fragmento
F30 percebemos mais uma vez a forte ligação que atribui entre a profissional e a
instituição. No entanto, a forma falada no singular pode ocorrer por conta da diferença
entre a língua que falava antes de chegar ao Brasil e o português. Talvez, Francisco
queira expressar um “vocês”, ainda assim personificando a ILPI na figura dos
profissionais.
Quando questionado sobre o que a institucionalização mudou em sua vida,
aponta para os pontos positivos da entrada na ILPI, novamente abordando a noção de
assistência, complementar à hospitalar, e de cuidado para além da noção de “abrigo”
(F35).
Não posso deixar de destacar, por meio dos supracitados fragmentos levantados
por Francisco, que a instituição é para ele uma forma de manutenção da vida. Não
apenas em termos de saúde e doença, mas ele a considera como um local em que está
para ser olhado. Quando personifica a instituição na figura dos profissionais parece, de
alguma forma, exigir que a instituição o olhe enquanto sujeito. Sobre as instituições,
86
Lebrun (2009) ressalta que elas podem tanto estabilizar, ordenar e regular, quanto
oprimir os sujeitos em seus desejos e anseios. Se a pergunta possível, nesse sentido, é de
que forma é possível preservar a vivência de um sujeito do desejo em meio a tantos
desejos de outros para si, podemos destacar a compreensão de uma temporalidade como
algo importante para este sujeito. Francisco entende que sua vida se sustenta porque está
na ILPI e, mesmo estando na ILPI, mantém vivas relações com um ambiente externo à
institucionalização (a namorada e o desejo de retomar as atividades profissionais).
Ainda, é importante vislumbrar as falas de Francisco a partir da doença que
aponta ter sido o motivo de sua institucionalização. Ao ser levado para a ILPI para
tratamento, conforme relata, não parece sentir-se abandonado e sem perspectivas. Ao
contrário, o sucesso do tratamento é justamente a sua maior expectativa, aquela que
representa a saída. Estabelecer esse laço com a institucionalização permite a Francisco
fortalecer seu corpo, do ponto de vista subjetivo – e por que não, físico também? – e
trazer-lhe alguma sensação de prazer, conforme aponta nos momentos em que relata ser
grato pelo cuidado recebido. Isso é fundamental para ver-se como sujeito, uma vez que
troca a satisfação que não pode sentir com relação ao corpo físico (doente) pela
satisfação e pelo prazer “diante de outro ganho advindo como signo de amor, carinho e
outras formas de envolvimento com o Outro” (MUCIDA, 2009, p. 76). Dessa forma,
sente que a ILPI o abraça.
Diante das últimas questões da entrevista, Francisco se mostrou reflexivo,
agradecendo pelos questionamentos. Ele parece ter chegado a respostas reveladoras,
inclusive para si. Ao final de nosso encontro, trecho não gravado, enquanto o
acompanhava ao refeitório para o almoço, agradece e relata ter sido surpreendido pelas
questões, questões importantes de serem refletidas. Para conceituar “idoso”, “velho” e
“velhice”, Francisco se posicionou de forma a fugir do comumente explanado pelos
idosos entrevistados.
Quanto ao idoso, seria alguém que “já passou de sua juventude, enfrentando o
lado crítico da vida dele. Ele não tem mais aquele vigor fresco podendo agir como ele
fazia. Hoje ele é diminuído de força e seu conhecimento, como dizer, ele se esfaça8”
(F39). Ao continuar, vincula esse ser que é deixado para trás, com a necessidade do
8
Utiliza esta palavra enquanto busca um termo em português que expresse melhor o que pensa. Tem
sentido de “afastamento”, conforme complementa com o fragmento F40.
87
cuidado e às relações construídas dentro da ILPI, principalmente com aqueles que
“cuidam”.
Ele se afasta um pouco de ser falso, dessa projeção, dessa projecture, desse
futuro, né? Ele não tá tendo mais, tirando de seu futuro uma boa vida como
antigamente. Então, a dificuldade da vida se apresenta no dia a dia. Então,
essa ajuda, pra ele, é necessária. Esse vie a vie, a vida ao vivo, esse tudo, ele
se sente bem. Sem isso ele não existe, então esse ao vivo, permite a ele
continuar vivendo (F40).
Notemos que ele fala do idoso em terceira pessoa, “permite a ele continuar
vivendo” (F40), mas em outros momentos se coloca como alguém que já “tem idade” e
aí sim fala no plural, conforme verificamos no fragmento F43: “é muito esforço hoje,
tem que ser ajudado, se não, pra nós que já temos idade, que tem 60 anos, 60 e
poucos, nós precisamos de ajuda de vocês que são mais novos que nós”. Ainda assim, é
uma “idade” comparativa, em relação a outros que são mais jovens, no caso a mim, a
entrevistadora.
Já com relação ao “velho”, embora aponte ser a mesma coisa que “idoso”,
aprofunda mais em sua fala. É a “saudade do tempo passado” (F43), contraposta com a
juventude. Relaciona-se também com a perda do “frescor” e do “vigor” (idem).
Vejamos na íntegra:
Idoso, eu acho que quer dizer a mesma coisa, idoso ou velho, quer dizer é
saudade do tempo passado. Chegou já a uma boa idade, que é desprovido
de seu frescor, de sua juventude, que não está tendo aquela força da
juventude. Já passou. E tá se sentindo incapaz de enfrentar a vida de hoje
que é um pouco mais vigorosa, tem se debatido pra conseguir viver, pra
continuar a viver. É muito esforço hoje, tem que ser ajudado, se não, pra nós
que já temos idade, que tem 60 anos, 60 e poucos, nós precisamos de ajuda
de vocês que são mais novos que nós, porque nós estamos quase se
afastando da realidade de hoje e estamos chegando um pouco atrás. Não
é atrasado, mas nós não estamos atingindo mais essas atividades, mais
veloz, de mais conhecimento, devido à velocidade da vida, ao
conhecimento. Nós somos já velhos pra atingir algum conhecimento,
como de vocês que são novos (F43).
88
Um ponto a destacar com relação a isso é que Francisco, diferentemente dos
outros entrevistados, equipara “idoso” e “velho”. Para ele não há diferença. Embora
remeta os termos em um trecho da entrevista para a pessoa com 60 anos ou mais (F43),
em sua fala esses termos estão muito mais relacionadas a um conjunto de perdas. Entre
as palavras e expressões que utiliza para caracterizar o “velho” e o “idoso” estão:
“saudade do tempo passado”, “boa idade”, “desprovido de vigor e de frescura”,
“perda da força da juventude”, “incapacidade de enfrentar a vida”, “necessidade de
ajuda” e “atraso”, todos esses no fragmento F43.
Embora aponte para tantas palavras e expressões que caracterizam o velho como
aquele que “já foi”, Francisco não se queixa do que vive atualmente, mas de não ter
aproveitado mais a juventude para se preparar para o que teria que viver na velhice,
conforme veremos a seguir. Quero, no entanto, trazer algumas considerações de Mucida
(2009) para abordar a riqueza disso que Francisco nos traz. Parece que ao olhar-se no
espelho Francisco não se volta contra a perda do corpo ideal ou contra a saúde perdida,
sequer contra possíveis marcas e flacidez. O que lhe toca e talvez angustie é, na
verdade, a perda da possibilidade de ter aprendido ensinamentos valiosos para lidar com
o tempo no presente, agora que vive a velhice.
89
Por fim, a velhice, embora não declaradamente relatada, é vista por Francisco
como uma etapa, um momento de e para reflexão, principalmente daquilo que passou e
não pode ser apreendido pela existência. Em meio a pausas longas – talvez para pensar,
talvez para encontrar as melhores palavras em português, talvez para ambas as coisas –
Francisco aborda o conhecimento e o tempo passado: “pode-se dizer que... [pausa
longa]. Podemos dizer que chegar a esse tempo” (F44), “nós podemos dizer que se eu
soubesse que chegaria a esse nível, porque não sabia que eu chegaria a esse nível”
(F45), “se eu soubesse, eu teria me preparado de uma outra maneira. Porque eu não
sabia” (F46).
Embora difícil de ser apreendida a sua percepção de velhice dada a dificuldade
na construção da frase, o idoso propõe-se a colocar a velhice como esse momento que
não se espera chegar, mas que ele chegou, e então fica o arrependimento por não ter se
apropriado mais de questões filosóficas acerca da humanidade, conforme apresenta nos
fragmentos F47 e F48 para encarar a realidade que se apresenta neste momento.
T47: O que você acha que faria diferente se soubesse que chegaria neste
momento?
F47: Eu sabia que eu teria que ser mais, eu teria que estudar mais. O que é
Universo. O que é o próximo. O que é a vida. O que é a juventude, o que é a
sabedoria. O que tem mais benefício entre A e B. O que é se alimentar e o
que é alimentação, o que é comer e o que é se alimentar, que tem uma
diferença. O que é jovem e o que é adiante, o que é maduro. O que não é
maduro, o que é precoce?
T48: Você talvez teria refletido mais.
F48: Me envolver... Teria refletido mais, me envolvido mais dos assuntos
da mulher e do homem.
Quanto à forma de vida na ILPI, dentro ou fora dela, seria a mesma coisa: “sim,
a mesma coisa [dentro ou fora da instituição]. Que pessoa desamparada como eu,
estão aí recebendo também essa manutenção, esse favor de vocês, que são preparados
para sutenir, como dizer, suprimir a carência, nossa carência” (F42). Destaco também
sua percepção da assistência enquanto “favor”, um cuidado que as pessoas oferecem a
ele, não como algo de seu direito.
Ele encerra a entrevista questionando a verdade da realidade que pode
vislumbrar e as possibilidades das quais não pôde usufruir. Quando lhe digo que as
perguntas que faz são questões importantes, Francisco responde:
90
F49: É uma reflexão importante e que se eu soubesse [pausa longa] eu não
estaria assim hoje.
T50: Assim, você fala...
F50: Atrasado.
T51: Hurum... O que você considera que está atrasado?
F51: Eu teria atingido o curar de outra pessoa, me alimentado de outra forma,
comido de outro alimento, eu poderia, que eu estou imaginando, né? Senão,
teria possibilidade de encarar a realidade de hoje.
T52: Você considera a realidade de hoje difícil de ser encarada?
F52: É difícil.
T53: O que...?
F53: Eu não tive a probabilidade [possibilidade?] de se preparar. Porque nós
conhecemos a verdade de ser realidade. Na verdade se está sentindo que ela
[a verdade] é uma realidade. Então, pra se viver, tem que conhecer ela antes,
tem que conhecer ela pra alcançar ela. Quer dizer, eu não alcancei tanto,
mas eu só tive cheiro, não aproveitei tanto, não aproveitei tanto. Eu só
senti o cheiro da verdade, mas eu não degustei tanto a vida, teve só
cheiro.
Embora não tenha sido objetivo desta pesquisa, portanto não aprofundado na
entrevista, o idoso se questiona sobre o que construiu em sua vida, em suas últimas falas
na entrevista, após todas as questões da pesquisa já terem sido feitas.
F54: Você que está me entrevistando poderá viver essa verdade, porque na
vossa idade, quando eu estava com essa idade eu não tinha essa sabedoria que
você tem em fazer a pergunta, se eu tivesse essa virtude, hoje eu seria outro.
Queria ter força de movimentar alguma coisa na vie, da vida, entendeu?
Manter alguma coisa da vie na vida.
T55: Manter alguma coisa da vida na vida.
F55: É. Inventar alguma coisa, alguma coisa da vida na vida.
O que Francisco gostaria de ter inventado da vida na vida? Que escritas sobre si
ele ainda gostaria de ver no reflexo do espelho?
91
com música que desenvolvemos na instituição. Além desta, não falta às aulas com a
pedagoga, nas quais exercita a escrita e o desenho e pintura.
Quanto à sua vida antes da ILPI, falou apenas que trabalhava na construção civil
e que vivia com conhecidos. Aponta ter trabalhado muito. Em sua fala, Jonas circulou o
discurso em torno do quanto gosta de viver ali e do cuidado (principalmente no que diz
respeito à alimentação) que encontra na ILPI. Falou pouco sobre sua vida pregressa à
institucionalização, apontando apenas que vivia com outras pessoas que não o tratavam
bem e que, um dia, uma conhecida falou sobre o Abrigo e disse que lá ele seria bem
cuidado. Por conta disso procurou a ILPI.
Portanto, sua busca pela ILPI foi motivada pela necessidade de cuidados básicos,
destacando a alimentação e roupas. Em diversos fragmentos aponta que não tem
motivos para se queixar da ILPI e que discorda quando outros falam mal.
É, é muita fartura. Muita gente fala mal desse abrigo, mas eu não falo mal
não. Eu falo bem. (risos) (J5)
Olha, muita gente fala mal desse abrigo, mas eu não falo, eu não falo mal
não. Eu ganho muita roupa, sobremesa, eu posso repetir a comida. Muita
gente fala mal disso aqui, do asilo. Eu não falo mal não. (J27)
Eu gosto. Ó, tem uma aí que eu encontrei aí, ela falou mal do asilo. Eu não
falei mal, não, eu falei bem. [ininteligível] O asilo é muita fartura, muita
roupa, passear, cinema de graça, beira mar... (J28)
Para Jonas a institucionalização parece ter sido uma alternativa para sair das
diversas dificuldades que vivia morando na casa de conhecidos: carência de um abrigo
satisfatório, de alimentação e, de forma mais geral, de cuidados. As ideias centrais
trazidas por ele, nesse sentido, são com relação à alimentação. Se antes “roubava
manga e me lambuzava” (J2) e “tinha um bocado de macarrão e galinha e me dava
arroz puro, macarrão” (J4); no Abrigo “eu ganho muita roupa, sobremesa, eu posso
repetir a comida” (J27), “é muita fartura” (J28). Muito provavelmente Jonas tenha
92
vivido até então passando por diversas dificuldades econômicas e a institucionalização
lhe trouxe um alento nesse sentido.
Jonas fala principalmente sobre os cuidados de ordem mais “orgânica” e da
felicidade que usufruir dessas situações lhe permite. No entanto, fala pouco de suas
necessidades subjetivas. Ressalto, porém, que isso não parece lhe trazer qualquer
incômodo. Ele relata que atualmente, recebe visita de familiares, mais especificamente
seus primos, e que também costuma vê-los quando sai da ILPI, pois vai às suas casas
para passear durante o dia, retornando para dormir na ILPI: “eu vou lá pra casa do meu
primo, no mesmo dia” (J13). Não deixa claro se é apenas um primo ou se mais de um
deles o visita.
Jonas relembrou sobre como era a instituição antes de tornar-se residente,
relembrando momentos em que ele e uma prima iam até o Abrigo pegar mangas dos pés
de fruta que existem em frente ao local.
Suas falas mais longas foram com relação às árvores de manga do Abrigo e, no
final da entrevista, sobre como gostava de assistir aos shows de um palhaço, bastante
conhecido na cidade em que morava.
93
Quanto aos conceitos de idoso, velho e velhice, Jonas teve dificuldade em
desenvolver o pensamento e a fala, fazendo referência à “cabeça ruim”, conforme
aponta no fragmento J19: “ah, minha cabeça é muito...”. Além disso, faz longas pausas
antes de responder, talvez por ainda não haver refletido sobre tais questões em outros
momentos. Com relação ao idoso, não soube caracterizá-lo com uma definição, mas
distingue-o do jovem, desenvolvendo uma analogia interessante.
J15: O idoso? Ah, o idoso é... [pausa longa] Ó, eu, quando eu era novo eu era
outra coisa, depois de velho... É igual potro, né? O potrinho é que tá novo,
agora, o cavalo é depois de velho. Fica igual o pai, velho.
T15: O idoso então é o velho, é isso?
J16: É.
Essa fala de Jonas aponta que embora seja pouco habilidoso com as palavras e
na construção de estruturas de pensamento consistentes, desenvolve seu posicionamento
de forma concreta por meio da metáfora do potro e do cavalo.
Jonas não sustenta sua primeira resposta com relação ao “idoso” e o “velho”. Em
um primeiro momento equivale os dois conceitos. No momento seguinte, no entanto,
responde que “há diferenças, né?” (J17).
T16: Idoso é a mesma coisa que velho ou você acha que tem diferença?
J17: Há diferenças, né?
T17: Que tipos de diferenças? Você consegue me dar um exemplo?
J18: Ah, eu não sei...
T18: Não?
J19: Ah minha cabeça é muito...
O que mais chama atenção nas falas de Jonas é seu carinho pela ILPI. Ele
realmente gosta de morar ali e se identifica com o local, talvez simplesmente por ela
94
suprir uma necessidade que não encontrava fora, talvez por questões mais profundas
que não puderam ser apreendidas com a entrevista.
T23: (...) Queria te perguntar se você acha que tem diferenças entre viver a
velhice dentro de um abrigo e fora dele. Entre viver aqui, onde a gente tá e lá
fora, numa casa, com familiares?
J24: Ah, não, eu gosto de viver mais aqui.
T24: Você acha que aqui é melhor?
J25: É melhor.
T25: Por que aqui é melhor, Jonas?
J26: Ah, eu gosto muito desse asilo aí.
T26: É o gosto que você tem pelo lugar, né?
(...)
J27: Olha, muita gente fala mal desse abrigo, mas eu não falo, eu não falo
mal não. Eu ganho muita roupa, sobremesa, eu posso repetir a comida.
Muita gente fala mal disso aqui, do asilo. Eu não falo mal não.
T27: Você gosta de morar aqui mesmo, né?
J28: Eu gosto. Ó, tem uma aí que eu encontrei aí, ela falou mal do asilo. Eu
não falei mal, não, eu falei bem.
95
histórias. Marcamos para a semana seguinte sua entrevista e quando nos encontramos,
no dia combinado, foi ela quem perguntou se a faríamos.
Ao longo de toda a entrevista, que durou 1 hora e 20 minutos, Marisa manteve-
se calma e ao mesmo tempo bastante alegre. Ria enquanto respondia, principalmente
nos momentos em que afirmava o quanto se sentia satisfeita estando na ILPI. Sua fala é
fluida, a entrevista transcorreu de forma agradável e as perguntas surgiam conforme
falávamos, pois ela mesma articulava distintos assuntos.
Chama atenção o fato de que Marisa conta a sua idade, “falta três meses para 81
anos” (M4) como quem tem muito orgulho da idade que já viveu, o que se comprova no
decorrer de sua fala, conforme veremos com seu relato. Com relação à velhice,
apresenta postura crítica, se questiona, e aborda conceitos relacionados à temática de
modo a não generalizá-los. Relata não gostar de se comparar com outros, mas faz
apontamentos em que aborda a sua velhice como diferente daquela vivida por muitas
pessoas que conhece, por isso termos como “idoso” não servem para todos.
As afetações que me provocou, enquanto pesquisadora, são notáveis. Sua forma
de expor o que pensa e sente é bonita e profunda. Ela lida com o que viveu de modo a
agradecer e não ficar presa a ressentimentos e ao que gostaria que tivesse sido diferente.
Apenas ao tentar afirmar o quanto sua vida foi e é boa deixa-se escorregar em situações
e vivências muito difíceis, segundo ela, no que diz respeito ao primeiro marido, por
parte de quem sofreu violência física e emocional, e ao segundo filho, portador de
deficiência.
Marisa tem 80 anos, mas “já tô dizendo que eu tô com 81. E eu sou muito
adiantada com esse negócio. E se eu disser que eu tenho 80, eu tô achando que tá
pouco. É 81 já!” (M5). Logo no início da entrevista chama atenção sua postura de
gratidão pela idade que tem, o que é retomado ao longo de sua fala principalmente
quando disserta sobre idoso, velho e velhice. “Eu nunca diminui a idade. Muita gente
diz ‘Marisa, você pode dizer que tem menos’ (...) Pra que... (...) Eu até tenho prazer de
dizer que eu tenho 80, que eu vou fazer 81, porque os meus irmãos não chegaram a 80.
Eu tive 10 irmãos, comigo 11, eu fui a última. (...) Nenhum deles, o máximo que chegou
foi 78 anos. E eu, nessa geração de agora... Engraçado que dizem que a qualidade de
vida tá melhor, né?”(M6).
Ela não ignora os efeitos de uma sociedade que “envelhece”, acompanhando de
perto os dados apresentados pelo IBGE (BRASIL, 2013) acerca da extensão da
96
expectativa de vida, conforme já apresentado e comemora esse avanço, talvez porque
viva este momento da vida de forma bastante satisfatória: ela tem abrigo, alimentação
adequada, é protegida por seus direitos sociais e não sofre problemas de saúde, além de
ser muito satisfeita com seus relacionamentos e estar bem adaptada à vida no Abrigo.
Marisa nasceu na região metropolitano do Rio de Janeiro e ali passou a infância
e a “mocidade” (M101, M110), com mãe, pai e dez irmãos. É a filha mais nova e a
única ainda viva. Casou-se muito cedo, com 15 anos, e aos 16 teve o primeiro filho.
Logo em seguida engravidou novamente, momento a partir do qual passou a sofrer
violência doméstica por parte do marido. Durante esta segunda gravidez relata ter
sofrido muitas agressões na barriga, o que acredita ser o motivo pelo qual o segundo
filho nasceu doente. Quanto a isso apontou que ele nasceu com o cordão umbilical
enrolado no pescoço e apresentava transtorno mental. A primeira internação em hospital
psiquiátrico (foram 31 no total) aconteceu com 17 anos e prosseguiu até seu
falecimento, aos 27. Marisa relata que esse foi o pior momento de sua vida, porque as
questões com o marido foram resolvidas com a separação, mas o filho ela precisaria
levar consigo.
Esse filho me deu muito trabalho. Eu digo que eu não esperava [ele] chegar a
essa idade. Na época eu não fiquei doente mental porque Deus não deixou,
sabia que eu tinha mais três, mas olha, foram 31 internações, em 10 anos. Eu
não sabia se eu trabalhava ou se eu cuidava dele. Eu tinha que dar remédio a
ele para dopar. (...) Ele se tornou um rapaz enorme de forte. (...) Muitas vezes
ele ameaçava, ameaçava acertar a minha cabeça com vassoura, o irmão...
Esse pedaço eu não contei, esse pedaço foi horrível na minha vida. Dez anos
horríveis. Porque quando ele estava atacado era: ‘a senhora quer ver como eu
arrebento a sua cabeça?’ Quando ele estava bom era: ‘mãe, a senhora é a
melhor mãe do mundo’. Mas quando ele estava atacado... Era uma coisa
horrível. (...) Então esse pedaço da minha vida foi o pior que tem, porque, por
causa do marido, deu pouco tempo e nós separamos (M85).
97
Eu lembro que me perguntavam assim, gosta de cantar? Desde garota, nós
tínhamos um teatrinho em [nome do bairro]. Tinha o teatrinho, e tinha a
música e tinha peça teatral. Nós fazíamos esquete. Nós tínhamos até um
ensaiador, um morador de [nome do bairro]. Por isso que eu digo que a
minha vida de mocidade, até conhecer aquela, com o perdão da palavra,
porcaria de marido, olha, minha filha... (M101).
Com o falecimento do filho, voltou para sua cidade de origem com a neta de
quatro anos, e morou com a sobrinha até conseguir uma vaga em uma instituição. No
entanto, esta era clandestina. Levou um mês para conseguir contato com os familiares,
que conseguiram encontra-la e tira-la do lugar. Voltou a morar sozinha em uma
comunidade em município próximo ao que morava, até que conseguiu uma vaga no
Abrigo. Marisa aponta que buscou o Abrigo por dois motivos principais: segurança e
acolhimento. Com relação à segurança aponta que
98
Estava muito perigoso, na época, ali perto [de onde morava]. (...) Tinha um
camarada lá, um rapaz, que ficava no meio de um matinho assim, mexendo.
Se eu ia lá e sentava um pouquinho na varanda e quando eu sentava na
varanda um cadinho pra dar um ar, imediatamente eu tinha que entrar e
fechar a porta, que ele ficava de lá assim, mexendo comigo. ‘Mulher bonita
quem é que não quer, quem é que não gosta’ [cantando], ele cantava. E eu
ficava com medo. Via sempre a cara dele no meio do mato. E eu pensava, um
dia ele pula esse muro, pois era tudo aberto, a varanda, pula esse muro e vem
aqui e me ataca (M18, M20).
Eu disse que eu quero morar num asilo, porque eu não queria morar mais
com a família. Não que com a família seja ruim, eu acho que eu não gosto de
atrapalhar. Eu tenho dois filhos, todos os dois estão casados, e todos os dois
só têm a esposa, não têm mais filho pra cuidar. O caçula diz mãe, eu faço um
quarto pra senhora aqui em cima, todos os dois são casados, e eu digo não,
tem laje com banheiro e tudo, mas eu digo não, eu não quero atrapalhar a
vida do casal. Às vezes o casal quer brigar um pouquinho, né, e a gente,
sogra, se mete. Eu não vou me meter né? Eu já saí da casa pra não me meter
na vida da sobrinha e da neta que eu trouxe. (...) De forma que eu vim para
aqui por isso. Eu voltei lá [na Assistência Social] e falei, olha, lá aconteceu
isso, assim e assado, e agora eu quero que vocês achem um outro lugar pra
mim. Eu tenho vontade de ir pro Abrigo do Cristo Redentor, que há muitos
anos que eu já conhecia aqui (M29).
Ao falar da sua própria sogra, com quem não teve uma boa relação, aponta
novamente para o motivo que a faz não querer morar com os filhos.
Por isso que eu não gosto de ser sogra, não gosto agora, hoje em dia, de
bancar a sogra. Porque eu posso ser uma sogra boa e posso também querer
me envolver. Digamos, estão brigando. Se uma mulher quisesse maltratar o
filho, a mãe não defende? Ou vice-versa? Mas a minha nora é boa, é gente
boa. Ela tem lá o geniozinho dela ué, mas não é melhor ela lá e eu cá? Então
pronto. Eu acho assim, eu penso assim (M63).
Com essa fala emenda a opção pela institucionalização: “por isso que eu digo,
aqui dentro eu tenho tido mais distração na vida, mais liberdade, e mais assim, penso
menos, que não preciso me preocupar com nada com família... Eu já preocupei muito
com família, demais” (M63).
Essa noção de ter “mais liberdade” é central na fala de Marisa. Ao longo de toda
sua entrevista ela volta para a ideia de que tem do Abrigo: ele é um local em que ela
está porque quer e porque sabe que se quiser não estar mais, pode ir embora. É por isso
que habita a ILPI com prazer. “Liberdade”, conforme ela entende, é significante de
destaque em sua fala quando aborda o Abrigo e a institucionalização. O papel central
99
ocupado por esse significante em sua vida está no fato de que o Abrigo não se compara,
em nada, com uma privação de liberdade. Ao contrário, normas claras pontuam a
possibilidade dos residentes transitarem, irem e virem no Abrigo, desde que tenham
condições para isso e sejam liberados pela equipe técnica, o que diz respeito ao
residente apresentar condições de transitar sozinho pela rua, por exemplo. Da mesma
forma, horários de entrada e saída devem ser respeitados e, em casos especiais,
acordados diretamente com a equipe técnica, para que a medicação, já que vários fazem
uso dela, possa ser organizada. Esse contrato é formal, assinado na entrado do residente
na instituição, que mantem uma cópia consigo.
Freud (1930/1996) aborda essa noção de liberdade em Mal-estar na civilização.
O autor considera que a liberdade não é um conceito inato à civilização. Ao longo do
desenvolvimento da civilização foi preciso estabelecer limites a ela, até mesmo para que
a vida fosse possível de forma organizada. Em outras palavras, à civilização, nem tudo é
permitido. O desejo de liberdade pode ser favorável para o desenvolvimento da
civilização tanto quanto base para a hostilidade. É necessário atenção, uma vez que o
homem tende a reivindicar sua liberdade individual mesmo contra a vontade do grupo.
O que nos interessa, no entanto, com relação aos estudos de Freud sobre a liberdade do
homem é o que ele aponta acerca do conceito de “acomodação”.
Freud (1930/1996, p. 21) declara que “grande parte das lutas da humanidade
centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação conveniente —
isto é, uma acomodação que traga felicidade — entre essa reivindicação do indivíduo e
as reivindicações culturais do grupo”. Levando em conta um contexto microssocial,
Marisa parece encontrar no Abrigo a acomodação conveniente que busca neste
momento da vida, no qual os filhos foram criados e têm as suas vidas, assim como as
netas, que inclusive ela ajudou a criar. Ela tem total clareza de que não é obrigada a
estar na ILPI e que pode, caso decida, sair e procurar outro lugar para morar.
Pontuações com relação a isso têm destaque em sua fala, nos trechos:
Ela [se referindo à senhora de que alugou a casa em que morava] falou
‘Marisa, agora tá bom pra você voltar’ e eu falei, não, eu estou bem onde eu
estou. Tem que pensar muito bem antes de ir. Porque não tem motivo pra sair
daqui. Tem saída, né? Tem liberdade (M23).
100
A palavra abrigo soa melhor do que asilo, né? Antigamente se falava muito
em asilo, mas asilo era uma coisa muito complicada. Eu, mais nova, cheguei
a ir num asilo visitar alguém, mas sei lá, era muito diferente. Eu acho que
aqui existe muito lazer, existe além da liberdade, existe os laços também
de vão construindo, né. Da comunidade (M34).
Por isso que eu digo, aqui dentro eu tenho tido mais distração na vida,
mais liberdade, e mais assim, penso menos, que não preciso me
preocupar com nada com família. Eu já preocupei muito com família,
demais (M63).
M83: Aqui agora, você perguntou também sobre aqui, né? Ah, essa
liberdade que eu tenho, a gente sai muito. Tem muito lazer também,
muito passeio. Muitas vezes eu que recusei.
T81: Mas você tem essa oportunidade, se você quiser ir.
M84: Quer dizer, eu sei que se eu quiser ir, eu posso. (...) Eu vim por livre e
espontânea vontade. Ninguém me jogou aqui, ninguém me trouxe enganada,
se eu quiser sair, no momento em que eu quiser sair, é só chegar no
escritório e dizer, olha...
Mudou muito, porque depois de mais idade, depois de estar aqui, eu tenho
mais chances de liberdade, de ação, de lazer, e tudo, e eu não tenho mais
assim, compromisso com nada, com... Não que eu não tenha com filho e
neto, mas eu não tenho mais compromisso como eu tive anos e anos, porque
criar quatro filhos homens não é fácil, e trabalhando! (M85).
Essas falas de Marisa com relação ao Abrigo como sinônimo de liberdade são de
suma importância para pensar a questão das amarras institucionais e de como a noção de
“poder ir e vir a hora que quiser” faz diferença em um processo de institucionalização.
Mesmo que o sujeito não tenha condições reais de ir e vir, parece ser importante para
ele saber que isso é possível. Transitar é uma palavra significativa na relação construída
entre Marisa e o Abrigo, pois ela o habita, mas, acima de tudo, transita pelo espaço
institucional. Deixa-se alienar por ele, mas não se sente sufocada com a restrição,
trazendo as considerações de Lebrun (2009) sobre a institucionalização. E não transita
apenas como residente, mas também como alguém que desempenha algum papel ali
dentro, mesmo que seja apenas o de residente. Um papel que cabe a quem tem a
possibilidade de sair, se assim o desejar.
Por fim, questionamos Marisa acerca de sua compreensão sobre os termos
“idoso”, “velho” e “velhice”. Quanto ao idoso, questiona a legislação vigente, que
classifica toda pessoa com a idade de 60 anos como idosa, uma vez que relaciona o
“idoso” à pessoa que “chegou numa certa idade” (M92), a dos 60 anos. Para
demonstrar isso, selecionamos os fragmentos:
101
Eu acho que idoso pra mim é quando ele já não pode mais... Não é pela idade
tanto assim não. É quando ele já não pode fazer o que fazia antes, o que
fazia com facilidade. Que agora já não permite fazer a mesma coisa que fazia
anos antes. Então, aí sim, pode ser chamado até de idoso, mesmo assim, eu
(...) não acho uma palavra muito adequada pra certas pessoas, não. (...) Já me
vejo como uma idosa, porque tenho a idade que eu tenho. Então eu
considero o idoso assim, de acordo com a capacidade que tem de fazer o que
ainda pode fazer. Porque quando deixar de fazer aquilo que ele fazia antes,
que ele não tiver mais possibilidade, aí ele já pode ser considerado idoso. Eu
por exemplo, uma pessoa de 80 anos é idosa, né? De 70 é idoso (M93).
Tem pessoas que chega a 100 anos e que é idoso sim, por causa da idade, mas
ele tem toda a lucidez ainda, né? Isso que eu fico imaginando... Conforme, a
[diz nome de colega] (...) é uma pessoa que passou por tudo isso e tá viva aí
né? Ela é uma idosa a beça, uma idosa que chegou a isso tudo aí, uma idosa
mesmo com letras graúdas mesmo, porque ela aguentar tudo isso... (...) Eu
considero idoso de acordo com a capacidade que ele tem ainda pra fazer,
poder fazer (M94).
Conforme Marisa, enquanto o idoso ainda pode fazer diversas coisas, o velho
espera “um momento até de partir, de descansar” (M98). Ao contrário, o idoso parece
um “estado de espírito” mais jovem: “tem idoso que ainda faz muita coisa, que tem
mais capacidade do que muito novo. Mentalmente, não só fisicamente. E fisicamente
também, tem muito idoso que faz muita coisa que muito jovem não pode mais fazer, por
problema mesmo, até que acontece” (M98). Sua fala remete à noção de que o velho se
torna alguém cindido pela vivência da liberdade, conforme entendida por Freud
(1930/1996) que ela, enquanto apenas idosa, pode viver.
Por fim, quando tratamos da velhice, sua visão é bastante positiva ao falar da
própria velhice, mas pontua que ela pode tanto ser boa, quando vinculada ao
conhecimento adquirido e experiência acumulada; quanto ruim, quando atrelada a
problemas de saúde.
Velhice é uma coisa boa. Velhice é sinal de que a gente já tem bastante
experiência da vida, né? A velhice, quando chega, já chega porque nós já
conhecemos tudo que tinha pra conhecer, que tinha que passar. Então dá
pra considerar a velhice pra algumas pessoas é uma coisa boa, que pode
lembrar até, se tem cabeça pra pensar, no que teve de bom. Eu, de vez em
quando, deitada eu penso naquelas partes que teve boas, naquelas que me
fazem feliz e tudo o que eu lembro dos meus irmãos, da minha casa... Tudo
isso. Então velhice pra mim, agora, é pensar também naquilo tudo o que eu já
fiz, que eu passei, de bom e de ruim, lembrando sempre o de bom e o melhor.
Eu acho que velhice é assim. Pra alguns, a velhice já é mais um problema
de saúde também, né? Então isso aí é irregular né? Então a minha resposta é
essa. Velhice é uma boa parte da vida que a gente relembra tudo o que já
passou e que agora não pode mais viver, mas pode relembrar (M104).
Eu vou vivendo esses dias todos com alegria e na espera de ter sempre dias
assim, como esses. Sinceramente, é isso que eu acho, que eu penso. Mas é
claro que eu tenho os meus dias... Não que sejam dias de depressão. (...) Aqui
não, aqui eu tenho certeza, tenho fé em meu Deus, que depressão não vai me
atingir nunca porque eu tenho plena satisfação de saber que eu posso, de
um momento para outro, mudar de vida, se eu quiser. E se eu puder, né?
Mas não estou almejando agora não. (...) A minha vida que Deus escolheu foi
essa, então eu fui mais feliz na infância e na mocidade, do que muitas aí
(M109).
Por fim, posso dizer que Marisa se “olha no espelho” e reconhece a imagem que
vê como sendo sua e orgulha-se disso. Ainda não há um estranhamento daquilo que vê.
Pode ser que algum dia haja ou, talvez, Marisa nunca se depare com o espelho
quebrado, tendo inclusive, Messy (1993) descrito que muitas pessoas passam pela vida
sem nunca terem chegado à velhice, e isso não tem necessariamente a ver com idade.
Monalisa tem 89 anos e está no Abrigo há três anos. É uma das poucas
residentes da instituição que está lá totalmente por seu desejo, e não por uma falta de
opção. Embora se restrinja bastante ao seu residencial, saindo pouco e andando apenas
pelas suas dependências, Monalisa é aberta a visitas, acolhedora, e recebeu o convite
para a pesquisa com satisfação. Aceitou responde-la no mesmo momento do convite.
105
Como mora do residencial particular, tem um quarto individual, onde nos
convidou a entrar e sentar. Seu quarto é bastante mobiliado, com móveis, mas também
decorado com outros adereços, como fotografias, bibelôs e flores. Esse é um ponto
importante de ser levantado: diferentemente da maior parte dos residentes do Abrigo,
Monalisa não vive uma vida coletivizada e tem seu espaço organizado conforme seu
estilo pessoal. Em outras palavras, é possível que, para ela, a institucionalização não
tenha significado um corte abrupto com a rotina, pois mesmo que precise se submeter a
normas rígidas de horários, preserva um espaço de referência, apenas seu. Isso poderá
ser abordado posteriormente, com seus relatos sobre o contato com o mundo externo à
ILPI.
Para iniciar a entrevista, sentou-se na cama e ofereceu-me a poltrona. Sorria
muito e também ria de situações que contava. Muito disposta e preocupada com
expressar de forma clara o que gostaria de dizer, mostrou fotografias de sua infância e
de familiares. Em alguns momentos perguntou se o que respondeu era suficiente ou se
eu havia entendido. Embora a idade avançada, Monalisa apresenta fala fluida e
organizada temporal e estruturalmente (constrói sentenças claras e encadeadas entre si).
De forma clara, ela manifesta o que gosta e não gosta, assim como o que deseja e seu
posicionamento diante de distintas situações. Esses apontamentos serão ilustrados a
seguir.
Quanto à chegada na ILPI, contou que a conheceu pela sobrinha, quando
buscavam uma casa de repouso para idosos, um local em que ela poderia ser melhor
cuidada do que em casa, uma vez que morava com a sobrinha e seu esposo, mas como
estes trabalham e passam a maior parte do tempo fora, quem a acompanhava eram
enfermeiras, 24 horas por dia. A idosa relata que o alto custo desses cuidados, assim
como o desejo de não “atrapalhar” a vida do casal, foi o motivo que partiu dela mesma
para a busca por uma instituição.
Monalisa faz parte do pequeno grupo de pessoas que chega a uma idade
avançada e que, embora não tenha pessoas próximas disponíveis para cuidar de si, tem
condições de optar pela institucionalização em uma instituição paga. Nesse sentido,
retomo o fato de que, embora o Abrigo do Cristo Redentor seja uma instituição
filantrópica, um dos residenciais do local é destinado aos residentes que pagam pelos
serviços usufruídos de forma particular. Estes têm quartos individuais ou duplos e
recebem alimentação e assistência no próprio residencial.
106
A realidade de Monalisa é muito similar às observações de Camarano (2011)
quanto ao perfil dos residentes de ILPIs no Brasil. No entanto, como Monalisa não
possui cuidadores familiares em casa e precisa manter uma pessoa integralmente para
acompanha-la nas atividades do dia a dia, mantê-la em casa torna-se muito dispendioso,
então ela pode optar pela instituição paga. Isso é relatado no fragmento MO15.
Como é que conheci? Não fui eu que conheci, foi a minha sobrinha. Ela
andou indagando qual era uma casa melhor pra pessoa repousar, que ela
não podia ficar comigo, ela é advogada e trabalha na prefeitura de [nome da
cidade]. Ela não tinha tempo pra nada. E não tinha e não tem, continua não
tendo, então ela não podia olhar por mim. E ela ainda fez assim, botou uma
pessoa de manhã, até a noite; e a noite outra, pra ficar comigo de noite. Era
muita despesa pra ela também, então, para ela, botar-me aqui se eu
quisesse, eu vim porque eu quis. Pra ela era melhor porque não me faltava
nada e eu estava sendo bem tratada. Ela se informou que aqui era muito bom
e me trouxe aqui (MO15).
Tanto os cuidados na ILPI são satisfatórios para Monalisa que ela considera a
ILPI como sua casa, como relata no fragmento: “eu disse a ela, olha, não vai sábado
nem domingo me visitar, pra aproveitar a tua casa. E quando puder vais lá em casa.
Chegas em casa, telefona. E assim ela vem, vou com ela até lá fora, ando com ela. Ela
vai embora, eu venho pra dentro” (MO28). Com esse fragmento, mais uma vez
percebemos a manutenção de uma vida anterior à institucionalização. Monalisa não é
deixada na ILPI, é acompanhada pela família com que morava e consegue sustentar uma
vida também similar àquela que levava anteriormente. É visível a satisfação da idosa
com sua rotina atual, que de nenhuma forma pode ser aproximada da vida institucional
quando remetida à metáfora da Antígona lacaniana (1959-1960/2008), já apresentada.
Com relação à sua história pregressa à institucionalização, Monalisa não é
brasileira. Começou a trabalhar muito nova, pois não gostava de estudar, e para ajudar
os pais. Diz que “eu tampei o estudo porque eu não dava pra estudar, então eu fui
trabalhar, ajudar os meus pais também, né?” (M02). Começou a trabalhar aos 13 anos,
com fabricação de malhas. Porém, quando veio para o Brasil, estava casada e não
trabalhava fora de casa. Ela e o marido mudaram-se juntamente com o irmão do marido
e sua família para o Rio de Janeiro. Moraram sempre todos juntos. Quando o marido
faleceu, ele com 56 anos e ela com 50, continuou morando com a família do esposo,
sendo cuidada por todos, e é esse seu círculo de relações atual.
107
É porque onde ela [a sobrinha] mora, a casa é dela. O pai dela, quando veio
aqui com a gente, ele tinha 10 anos, e ele está com 72. Então ele é uma
pessoa que também prometeu ao meu marido, cuidar de mim. Se ele me
faltasse um dia, cuidar de mim. Então ele tem uma namorada, a namorada,
tem uma mulher, né? De vez em quando ela vem me visitar. Eu, quando vou
na casa dessa minha sobrinha, que às vezes eu vou lá, eu estou com ele
também, ele vem aqui me visitar (MO26).
Embora tenha tido muito contato com seus familiares fora do Brasil, pois voltou
anualmente durante muitos anos até não se sentir mais a vontade para viajar; optou por
continuar morando no Brasil, onde seu principal contato é a sobrinha, que a visita com
frequência e compra-lhe os medicamentos e qualquer coisa que queira ou precise. A
sobrinha também a convida para passar finais de semana e dias festivos com ela, mas
Monalisa nem sempre está disposta, pois relata estar acostumada com suas coisas e
gostar de ir e passar o dia, mas voltar para dormir.
Me acostumo, por exemplo, eu durmo aqui, durmo bem. Se eu vou pra outro
lugar eu já fico... A minha sobrinha veio ontem que queria, quer, que eu vá
passar o natal com ela. Eu disse, só vou no dia. Não vou na noite, pra não
dormir lá. Aí ela achou, ah, mas na noite... Eu disse, não, vai dar muito
trabalho. Não vou não, vou no dia. Vem me buscar, que eu vou. Ficou assim
(MO25).
Uma questão que chama atenção na fala de Monalisa é o que entorna a noção de
“cuidado”. Ela relata que foi e é cuidada pelos familiares do esposo, quando este faleceu
(MO26) e ela ficou sozinha, assim como dentro da ILPI sente necessidade de “cuidar”
dos demais. Ela parece espelhar esse jogo de relações e se identificar com o que vê no
espelho. Não falo de velhice, neste momento, mas algo que a estrutura como sujeito. A
noção de alteridade pode trazer uma boa reflexão quanto a isso.
Alteridade, em Freud (1915/2004), tem relação com a pulsão, uma espécie de
alteridade que vem de dentro e que perturba o sujeito, uma vez que é atravessado pela
realidade externa. Essa realidade externa compreende aquilo que nos falta enquanto
sujeito. Se buscarmos uma referência lacaniana sobre o conceito, precisamos trazer à
tona as explanações já feitas acerca do registro R-S-I (LACAN, 1972-1973/1985). A
ideia de alteridade traz consigo a noção de que o outro é um elemento constitutivo do
sujeito e que, por conta disso, estabelece uma relação particular com ele, a qual está
inscrita em maior ou menor instância no Real, no Simbólico ou no Imaginário. Birmam
(1997) também aborda o conceito fazendo referência a Freud com relação ao eu e o
inconsciente. O eu, constituído pela alteridade, exige um grande esforço do ponto de
108
vista imaginário para organizar as relações com os objetos. Nesse sentido, o sujeito
encontra alívio ao equilibrar-se instavelmente em uma relação dialética na qual o sujeito
se produz e reproduz tendo por meio as pulsões e o outro. Monalisa parece colocar-se
nesse entremeio do cuidado: ela existe entre o eu e o outro. É objeto de cuidado, mas ao
mesmo tempo produz-se enquanto sujeito no cuidar do e com o outro.
Ainda com relação ao “cuidado”, relata ter um “coração grande” (MO18), o
que a faz sofrer, pois gostaria de fazer pelas pessoas coisas que não pode, inclusive
algumas vezes indo contra as normas da ILPI, como querer ajudar outra interna e ser
chamada atenção pela psicóloga da instituição. Ela poderia se machucar ou machucar a
outra idosa ao tentar ajuda-la. Nesse sentido, relata exemplos de situações distintas:
O que ela precisasse de mim eu ia fazer, e eu não pude fazer. Eu fui chamada
três vezes, que eu não podia fazer aquilo. Sabem que era o coração grande
que eu tinha e que eu fazia de boa vontade, mas é praxe da casa, eu não podia
fazer nada. Porque podia cair por cima dela, machucasse ela e eu e quem era
a responsável era a casa, então proibiram (MO18).
Ela tinha enfermeira, né? Mas a enfermeira vestia, arrumava e levava para a
sala, mas esquecia os óculos. Estava frio, queria um casaco. Era essas
coisinhas que eu ia buscar, só. Mais nada (MO20).
Ela falava pra mim, pode ir buscar o meu casaco? Eu estou com frio. Vou, e
eu ia. E sabia que não podia ir buscar, mas também não queria dizer que não.
Aí eu ia. De vez em quando eu era chamada, que não podia fazer aquilo
[risos] (MO21).
[risos] Então eu agora me afasto pra não ter o mesmo problema. Mesmo
porque eu me agarro muito com a pessoa e depois também fico sofrendo, né?
Como eu sinto falta dela [residente que deixou a ILPI] (MO22).
Hoje, ela prefere se afastar a sofrer com estar perto e não poder ajudar, o que
“bagunça” de alguma forma a relação de alteridade que estabelece entre si e o outro
quando é atingida pela realidade, conforme já vimos com Freud (1915/2004).
Inegavelmente precisar reprimir essa via de desejo a faz sofrer, mas ainda assim é algo
que consegue lidar e que, portanto, não lhe impossibilita a vida.
Quando questionada sobre o dia a dia na ILPI, aponta ser “uma vida normal”
(MO28). Fala novamente sobre a importância de ajudar as outras pessoas no que puder
fazer.
É assim, meu dia a dia é isso assim, vou pra aqui, vou pra ali. Ó, estou à
espera de uma moça que deixou isso guardado e o genro vem buscar, aí tô de
olho que ele não me conhece, quando vem buscar, que ela é faxineira aqui. E
a mesma coisa... Se eu puder fazer uma coisa qualquer, eu faço (MO23).
109
Monalisa recebe visitas frequentes dos familiares. A sobrinha a visita
semanalmente, às vezes mais de uma vez, e o cunhado acompanhado da esposa também
a visitam. Ela sai pouco por opção sua, gosta de ficar “em casa”.
110
T29: Bom, a gente está aqui numa instituição, que é uma instituição para
idosos, né? Quem é o idoso pra você?
MO29: Você quer que eu diga o quê?
T30: Quem é o idoso, o que significa idoso pra você, essa palavra, idoso.
MO30: Quem é quem?
T31: O idoso.
MO31: Huum.. Não tenho a menor ideia.
T32: Não? Mas entendeu do que estou falando? A gente está em uma
instituição para idosos, certo? [pausa] Idoso pode não ser uma palavra
reconhecida para você, né?
MO32: Não... Não faz nada pra ninguém, não.
Com relação ao “velho” é direta e sucinta: “ah, velho é uma pessoa idosa que já
viveu a vida e espera que Deus se lembre dele. É isso que eu penso” (MO33). Aqui fala
da “pessoa idosa”. Seria, para ela, diferente do idoso? Infelizmente só atentei para esse
detalhe em sua fala após minha saída da ILPI, não podendo retomar com ela. Se “idoso”
talvez não lhe seja uma palavra com significado, a “pessoa idosa” sim. Já, quanto ao
conteúdo dessa fala, Monalisa é bastante religiosa e em outros momentos faz referência
a Deus como um alento e uma ajuda.
MO36: Mas eu não tenho que falar de nada não. Eu, graças a Deus... Olha,
Deus foi tão bom comigo, que tem esse apego comigo, Deus foi tão bom
comigo que ele me acode nas piores horas, que eu preciso e aí eu, ai, meu
Deus, coisa que me acontece tudo bem, graças a Deus.
MO46: É... Sempre fui feliz, graças a Deus, sempre fui. E continuo sendo
aqui mesmo. Espero que não tenha mais nada, que eu vá quando Deus quiser.
Mas acho que Ele já fez muito por mim, que me ajudou sempre muito.
Qualquer coisa que eu tô, digo, ai meu Deus, ai meu Jesus, e ele me vai logo.
Para ela o velho é, portanto, aquela pessoa que percorre um dado caminho e
chega ao final da vida aguardando a compaixão divina. Já a velhice está ligada com uma
característica pessoal, a do “resmunguento, do ranzinza”, coisa que ela não traz para si.
Abertamente, sequer traz para si o estatuto de “velho” ou de “pessoa idosa”. Ela dá a
entender ao dizer que espera “que eu vá quando Deus quiser” (MO46), mas não se
declara. Atribuiu esse estado ranzinza do velho como uma “falta de educação também”
(MO34).
111
Na velhice, Monalisa busca continuar aprendendo por meio da observação.
Aponta que repara nos defeitos dos outros para poder corrigi-los em si mesma, talvez
mesmo uma forma de atualização do tempo para si. Conforme já abordamos em Freud
(1915/1974), dada a atemporalidade dos processos inconscientes, por meio da
linguagem é permitido que esse sujeito do inconsciente se reatualize na realidade e
transite pelo tempo, não com relação a uma ordem cronológica da existência, mas sobre
algo que não envelhece com o passar dos dias. Monalisa quer continuar sendo sujeito e
isso parece, de alguma forma, ter relação com ser objeto de uma produção positiva do
outro acerca dela.
MO34: Ah, velhice... Tem gente que é velha e é muito resmunguenta, se irrita
e tem que ser aquilo. Eu não sou assim, não. Eu sei, às vezes, que as pessoas,
que me perdoa até qualquer coisa, devido à minha idade, porque eu não tenho
que dizer de ninguém, todo mundo me respeita, eu também não faço mal a
ninguém. Se eu puder fazer o bem... Olha, já me disseram que eu não posso
guardar aquilo aqui. Que isso ficará guardado lá embaixo. Mas eu não disse à
pessoa nada, deixei ficar. Quando vier levar, leva. Não vem trazer outro
porque digo, olha, não traz porque eles não gostam que traga. Mandaram
levar lá embaixo, mas tudo numa boa, não... Pra mim a velhice é falta de
educação também. Porque às vezes acha que por ser idoso pode fazer e
acontecer. Eu já não sou assim. Eu já vejo até os defeitos dos outros e
procuro eu me, como é que vou dizer, eu me corrigir naquilo que eu
estiver errada.
T35: Então a velhice pra senhora está mais ligada a essa coisa mais ranzinza,
é isso?
MO35: É. A pessoa fica mais enjoada, fica. Fica mais enjoada. Ah, é a idade,
é a idade. Às vezes é. Outras vezes não, já é da pessoa né?
Chama atenção o destaque que Monalisa dá para a velhice como uma etapa que
“qualifica” o velho, trazendo a ele alguns atributos específicos, com conotação negativa.
Chamo atenção para uma fala específica. Ela diz “que as pessoas, que me perdoa até
qualquer coisa, devido à minha idade, porque eu não tenho que dizer de ninguém, todo
mundo me respeita, eu também não faço mal a ninguém” (MO34). A velhice seria
também um momento de desculpar-se? O que é isso que a velhice traz e que precisa ser
desculpado “devido à idade”?
Quando alguém conta uma história, conta para si, mas também conta para os
outros. E conta para que outros a contem. Por fim, na ponta de toda história há fios
112
tecidos por muitos uns e um fio tecido por muitos. Já dizia Artaud que há dez mil
maneiras notórias de se recompor um corpo9. Nenhuma história é pura. Nenhuma
história é construída fechada em si mesma. Em um espetáculo teatral isso também não é
linear. As histórias, embora se mantenha um enredo mais ou menos fixo, se moldam a
cada apresentação, se diversificam com cada público, se recriam com a troca de
adereços cênicos, de figurinos, de atores.
Com base nisso, neste tópico da dissertação optei por tecer comentários e
discussões gerais com base nas entrevistas individuais dos participantes da pesquisa.
São, portanto, impressões acerca de algumas aproximações que percebo a partir de toda
a amplitude e riqueza de material trazido com o processo de construção desta
dissertação. Embora as importantes particularidades entre as pessoas com as quais
trabalhei, algumas aproximações não podem deixar de ser notadas e é a elas que me
reporto aqui.
Primeiramente, chama-me atenção o fato de que os idosos, em geral, falam
pouco sobre a vida antes da institucionalização e se mostram mais abertos a abordar a
vida no Abrigo. Esse me parece um dado significativo porque em outras experiências
que tive, há maior tendência para se falar do passado. Talvez isso seja, realmente, uma
tentativa de alimentar o ego, já que na velhice ele não é mais o seu próprio ideal,
conforme já abordei com Messy (1993). Por outro lado, ao ouvir as narrativas que cada
uma daquelas pessoas tinha para contar, dou-me conta de que o texto narrado por elas
nem sempre é julgado pelo seu narrador como uma história bonita para se contar. Isso se
exemplifica com Marisa, que apenas nos últimos minutos de uma entrevista muito longa
se atreve a percorrer o sombrio caminho de recordar o quanto a vida foi difícil quando
precisou lidar com o filho doente. Com Elton, se apresenta mais firmemente na recusa
por falar sobre a família cujo contato se perdeu. De forma mais sutil, o mesmo acontece
com Cássio, Jonas e Carolina. Estes últimos, embora não explicitem recusa em falar
sobre a vida pregressa à ILPI, centram suas falas no quão positivo é viver hoje no
Abrigo. Isso pode se dever a uma espécie de vínculo instaurado, o qual coloca para
esses idosos a ILPI como um local em que vão para serem cuidados.
Jonas é claro ao explicitar a ILPI como um lugar em que tem não só abrigo, mas
alimentação. Diversas vezes repete que tem comida em fartura e que pode se servir
9
Alusão ao poema “Post-Scriptum” publicado em Eu, Antonin Artaud.
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quantas vezes quiser, em contraste com uma vida baseada em privações. O mesmo
acontece com Francisco. Embora de outra ordem, a busca pela institucionalização é o
meio de manter sua vida e ele não economiza palavras para dizer que é ela, a ILPI e os
profissionais que ali se encontram, que cuidam dele e oferecem condições para
continuar existindo – existência que diz sobre um corpo orgânico, mas também da
ordem de uma existência psíquica e social. Na ILPI eles fazem-se sujeitos. Assujeitam-
se, de alguma forma, às normas, às condutas esperadas, à coletividade de diversas
situações que não preservam suas particularidades enquanto sujeito, conforme
abordamos com Lebrun (2009). Mas, diante disso, encontram brechas para construir
espaços particularizados. Nas palavras de Lacan (1966/1998), tal assujeitamento é
fundamental para a constituição do eu.
Diante das diversas histórias contadas, sobressai a meus ouvidos a importância
desses idosos compreenderem a ILPI como um lugar em que estão, fazendo uma
diferenciação entre aquilo que são enquanto sujeitos. Há uma forte expressão da
liberdade como via de acesso para a preservação de um sujeito do desejo, que emerge e
se atualizar no dia a dia institucional. Isso que se ilustra pela fala “tem saída né? Tem
liberdade” (M23). Principalmente no que diz respeito a Marisa, Celimar, Cássio e
Elton, ter liberdade para transitar entre a ILPI e o mundo externo parece garantir suas
existências enquanto sujeitos. Estar no Abrigo não parece ser vivido como uma privação
de liberdade. “Liberdade” acaba por se tornar significante no contexto em que vivem.
Não uma liberdade baseada nos ideais iluministas, mas entendida conforme Freud
(1930/1996) trabalhou. Uma liberdade atrelada à noção de “acomodação”. Ao que me
parece, a forma como esses idosos se relacionam com a ILPI em que habitam, garante o
encontro de uma acomodação que se torna suficiente para a existência, ou seja,
encontram no Abrigo elementos que garantem a manutenção de sua existência, pelo
abrigo em si, pela alimentação equilibrada ou apenas entendendo-o como um lugar para
repousar.
Outra questão importante é que os idosos não se sentem sós. Eles mantêm
relações dentro e fora da ILPI com distintos objetos significativos, sejam pessoas,
artigos pessoais ou lugares que frequentaram muito: Elton continua indo à praça e aos
bares a que sempre foi, assim como Cássio frequenta seus lugares de referência,
Monalisa mantém as fotografias e as expõe com emoção, Marisa, Celimar e Francisco
sentem-se vinculados a familiares e amigos, Carolina e Jonas sentem suas necessidades
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supridas pelas relações que mantêm dentro da ILPI. Manter este vínculo, para eles é
estruturante e diz de um sujeito que pulsa na relação com outros e que ali existe, se faz
sujeito.
Não há, portanto, um apagamento do eu, nem uma relação forte de
empobrecimento subjetivo. Diferentemente da tragédia da Antígona, trazida por Lacan
(1959-1960/2008), mesmo que tenham sido de certa forma retirados da vida social,
estão longe de sentirem-se condenados à solidão do subsolo. Ao menos não de forma
tão evidente a ponto de que pudesse perceber em suas representações resquícios da
eminência de uma morte subjetiva. Ao contrário, o sujeito do desejo pulsa. Assim se
sustentam sonhos e anseios: da parte de Francisco é o encerramento de um tratamento
de saúde, para Marisa é a chega do bisneto e da longevidade, para Celimar a saída do
Abrigo para uma vida compartilhada com a irmã.
Isso me leva a crer que na velhice sim, pode haver sonhos. Há expectativas de
futuro. Não se vê um fim por si só. Na institucionalização há, também, possibilidades de
se respirar, de se continuar produzindo enquanto sujeito. Se outrora minhas experiências
me mostrassem as ILPIs como um local em que dificilmente uma velhice “em vida”
pudesse sobreviver, como muito abordei em outros trabalhos (BALDIN,
MARCOLINO-GALLI, 2014), hoje há um pouco mais de esperança de que processos
favoráveis possam ser construídos. Ao mesmo tempo, reconheço que preciso estar alerta
para não abordar apenas uma “romantização” da institucionalização, ou mesmo
defende-la. Mas reconhecer que aquilo que ouço por parte dos residentes do Abrigo que
pesquisei, é fruto também de uma tentativa do sujeito manter-se autor de sua própria
história e, mais!, apresentar uma história bonita de ser contada. Como trabalho com uma
abordagem que valoriza a verdade sujeito, não questiono o que me é dito, mas deixo
esses apontamentos para serem levados em conta.
No mesmo sentido, embora não me referindo especificamente às instituições e
processos de institucionalização, ressalto também a importância do velho se autoafirmar
enquanto sujeito. Quero dizer que por meio das falas dos idosos, percebo que eles veem
o desinvestimento do eu no espelho do outro, sentem que com o passar dos anos se
tornam menos investidos pessoal e socialmente. Uma tentativa de contornar essa visão
tão dolorosa que têm de si é pela diminuição do outro: o pior é sempre o outro. Debert
(1999) chegou a conclusões similares em seus estudos. Embora estejam no mesmo
Abrigo, vivendo situações semelhantes, é comum que os idosos façam comparações
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entre si e outros, justificando o outro como mais velho, como mais solitário, como mais
abandonado. Jamais a si próprio. Tenta-se, com o direcionamento para o outro, manter a
dignidade enquanto sujeito.
Nesse sentido é interessante atentar para as falas sobre “velho”, “idoso” e
“velhice”. Efetivamente o velho acaba sendo sempre o outro. Comuns são os pronomes
utilizados para referenciar os velhos: “eles” e “aqueles”. Todos os entrevistados, em
algum momento, se referem a velhos como “eles”. Quando tratam do idoso, porém, ou
referenciam o outro, ou assumem o conceito para si, mas apenas conforme os aspectos
legais do idoso pela idade (60 anos ou mais). O velho e a velhice, em resumo, se
referem àqueles que perderam o encanto pela vida, independentemente da idade. Estes
são “o trapo”, os desacreditados. Muitas vezes a velhice e o velho estão ligados à
dependência, física e psíquica. No Abrigo, a dependência física é mais visível, pois os
cuidados são evidenciados tanto pela presença mais recorrente dos profissionais de
enfermagem, quanto pela distribuição dos moradores nos residenciais, classificados por
grau de dependência. Nesse sentido, a maior liberdade para ir e vir, sem depender de
outros, é correlato à qualidade dos relacionamentos interpessoais. Os velhos, então, são
os que têm mais dificuldades. São os idosos reclamões, mal humorados; e a velhice para
eles é um estado de espírito que muitas vezes chega antes da idade avançada.
Mas mesmo entre os idosos mais independentes nem tudo são flores e
envelhecer, em nossa cultura e no momento atual, pode ser visto como um crime.
Quando Francisco se questiona sobre as coisas que aconteceram no mundo e em sua
existência dentro de um piscar de olhos que ele não acompanhou, de forma mais ampla
parece perguntar se pode ser perdoado por ter chegado à velhice. Ele parece solicitar
absolvição por não imaginar que chegaria à velhice. “Pode-se dizer que [se eu soubesse
que] chegaria a esse tempo (F44) eu teria me preparado de uma outra maneira. Porque
eu não sabia [que chegaria aqui] (F45)”. Ele se desculpa por acreditar que poderia ter
se envolvido mais com questões filosóficas que permeiam a vida e assim teria se
“preparado” para estar velho.
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T47: O que você acha que você faria diferente se soubesse que chegaria neste
momento?
F47: Eu sabia que eu teria que ser mais, eu teria que estudar mais. O que é
Universo. O que é o próximo. O que é a vida. O que é a juventude, o que é a
sabedoria. O que tem mais benefício entre A e B. O que é se alimentar e o
que é alimentação, o que é comer e o que é se alimentar, que tem uma
diferença. O que é jovem e o que é adiante, o que é maduro. O que não é
maduro, o que é precoce.
T48: Você talvez teria refletido mais.
F48: Me envolver... Teria refletido mais, me envolvido mais dos assuntos de
mulher e de homem.
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Logo que conheci o Abrigo do Cristo Redentor percebi que havia inúmeras
diferenças com relação às minhas experiências anteriores, desde aspectos
infraestruturais até de pessoal e organização da rotina. A experiência foi algo
completamente novo e trouxe o novo para minha análise com a pesquisa: embora muito
do material que até então tenho estudado e daquilo que vivi em ILPIs remontem à
institucionalização como um processo extremamente danoso para o sujeito, ela não
precisa ser dessa forma. Há possibilidades. Há caminhos. Há construções a serem feitas
e que permitem que mesmo dentro de normas rígidas e coletivizadas o sujeito possa se
fazer sujeito. Uma dessas formas é dar-lhe voz e autonomia para contar sua história da
forma que quiser, ou que acredita ser. Outra, e é esta minha principal consideração com
relação a toda a pesquisa, é tornar a ILPI um lugar aberto a possibilidades, a escolhas,
mesmo que limitadas. As pessoas que lá se encontram precisam sentir-se pessoas.
Precisam de voz e de ouvidos que as escutem. Precisam de meios de representação.
Precisam de plateia.
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