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A crise do romance Sobre Alexandersplatz, de Déblin* N, sentido da poesia épica, a existéncia é um mar. Nao ha nada mais épico que o mar. Naturalmente, podemos rela- cionar-nos com o mar de diferentes formas. Podemos, por exemplo, deitar na praia, ouvir as ondas ou colher os molus- cos arremessados na areia. E o que faz o poeta épico. Mas também podemos percorrer 0 mar. Com muitos objetivos, e sem objetivo nenhum. Podemos fazer uma travessia maritima e cruzar 0 oceano, sem terra a vista, vendo unicamente o céu e o mar. E o que faz o romancista. Ele é o mudo, o solitdrio. O homem épico limita-se a repousar. No poema épico, 0 povo repousa, depois do dia de trabalho: escuta, sonha e colhe. O romancista se separou do povo e do que ele faz. A matriz do romance é 0 individuo em sua solidio, o homem que nao pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupacées, a quem ninguém pode dar conselhos, e que no sabe dar conselhos a ninguém. Escrever um romance significa descrever a existéncia humana, levando o incomensuravel ao paroxismo. A distancia que separa o romance da verdadeira epopéia pode ser avaliada se pensarmos na obra de Homero ou Dante. A tradi¢do oral, (*) Déblin, Alfred, Berlin Alexanderplatz. Die Geschichte von Franz Biber- kopft. Berlim, S. Fischer Verlag, 1929. 530p. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA SS. patriménio da epopéia, nada tem em comum com 0 que cons- titui a subst@ncia do romance. O que distingue o romance de todas as outras-formas de prosa — contos de fadas, sagas, provérbios, farsas — é que ele nem provém da tradi¢ao oral nem a alimenta. Essa caracteristica o distingue, sobretudo, da narrativa, que representa, na prosa, o espirito épico em toda a sua pureza. Nada contribui mais para a perigosa mudez do homem interior, nada mata mais radicalmente 0 espirito da narrativa que o espaco cada vez maior e cada vez mais impu- dente que a leitura dos romances ocupa em nossa exist€ncia. Por isso, a citagio seguinte contém a voz do narrador nato, insurgindo-se contra o romancista: “‘Nao quero alongar-me na tese de que considero util liberar do livro o elemento épico... Gtil sobretudo no que diz respeito 4 linguagem. O livro é a morte das linguagens auténticas. O poeta épico que se limita a escrever nao dispde das forcas lingiisticas mais importantes e mais constitutivas”. Flaubert nao teria falado assim. Essa tese é de Ddblin. Ele a expés pormenorizadamente no primeiro anuério da Seciio de Poesia da Academia Prussiana das Artes, e sua Construgao da obra épica é uma contribui¢io magistral e bem documentada para a compreensio da crise do romance, que se inicia com a restauracio da poesia épica € que encon- tramos em toda parte, inclusive no drama. Quem refletir so- bre essa palestra de Dablin nao precisaré mais ater-se aos - indicios externos dessa crise, que se manifesta no fortaleci- mento da radicalidade épica. Nao se surpreender4 mais com a avalancha de romances biogréficos e hist6ricos. Como tedrico, Doblin nao se resigna com essa crise, mas antecipa-se a clae a transforma em coisa sua. Seu Ultimo livro mostra que em sua producio a teoria e a pratica coincidem. . Nao ha nada mais instrutivo que comparar essa atitude de Déblin com a atitude igualmente soberana, igualmente concretizada na pratica, igualmente precisa e, no entanto, em tudo oposta a primeira, que se manifesta no Didrio dos moe- deiros falsos, recentemente publicado por André Gide. A si- tuacio atual da literatura épica se exprime com toda a nitidez, a@ contrario sensu, na inteligéncia critica de Gide. Nesse co- mentario autobiografico sobre seu ultimo romance, o autor desenvolve a teoria do “roman pur”. Com o maximo de suti- leza, descarta os elementos narrativos simples, combinados entre si de forma linear (caracteristicas importantes da epo- 56 WALTER BENJAMIN péia), em beneficio de procedimentos mais intelectualizados, puramente romanescos, o que também significa, no caso, ro- m§nticos. A posig&o dos personagens com relag&o 4 acio, a Pposi¢&o do autor com relacio a eles ¢ A sua técnica, tudo isso deve fazer parte integrante do préprio romance. Em suma, esse “‘roman pur” é interioridade pura, n&o conhece a dimen- sao externa e constitui, nesse sentido, a antitese mais com- pleta da atitude épica pura, representada pela narrativa. O ideal gideano do romance, exatamente oposto ao de Débiin, € 0 romance escritural puro. As posigdes de Flaubert sao de- fendidas talvez pela ultima vez. Nao admira que a palestra de Déblin represente a reaciio mais extrema a esse ponto de vista. “Talvez os senhores levantem as mos a cabeca, se eu lhes disser que aconselho os autores a serem decididamente liricos, dramaticos, e mesmo reflexivos, em seu trabalho épico. Mas insisto nisso.” A perplexidade de muitos leitores desse novo livro mostra como essa insisténcia foi tenaz. E verdade que raramente se havia narrado nesse estilo, raramente a serenidade do leitor fora perturbada por ondas tio altas de acontecimentos e re- flexdes, raramente ele fora assim molhado, até os ossos, pela espuma da linguagem verdadeiramente falada. Mas nao é necessério usar expressées artificiais, falar de “dialogue inté- rieur’’ ou aludir a Joyce. Na realidade, trata-se de uma coisa inteiramente diferente. O principio estilistico do livro é a mon- tagem. Material impresso de toda ordem, de origem pequeno- burguesa, histérias escandalosas, acidentes, sensacées de 1928, cangdes populares e andincios enxameiam nesse texto. A montagem faz explodir o “romance”, estrutural e estilistica- mente, e abre novas possibilidades, de carater épico. Princi- palmente na forma. O material da montagem esta longe de ser arbitrario. A verdadeira montagem se baseia no documento. Em sua luta fandtica contra a obra de arte, 0 dadaismo colo- cou a seu servic a vida cotidiana, através da montagem. Foi o primeiro a proclamar, ainda que de forma insegura, a hege- monia exclusiva do auténtico. Em seus melhores momentos, o cinema tentou habituar-nos 4 montagem. Agora, ela se tor- nou pela primeira vez utilizavel para a literatura épica. Os versiculos da Biblia, as estatisticas, os textos publicit4rios so usados por Dablin para conferir autoridade 4 ac&o épica. Eles correspondem aos versos estereotipados da antiga epopéia. MAGIA E TECNICA, ARTEE POLITICA 37 T4o densa é essa montagem que o autor, esmagado por ela, mal consegue tomar a palavra. Ele reservou para si a organizacao dos capitulos, estruturados no estilo das narra- g6es populares; quanto ao resto, nado tem pressa em fazer-se ouvir. (Ele tera, mais tarde, o que dizer.) E surpreendente por quanto tempo ele acompanha seus personagens, sem correr 0 risco de fazé-los falar. Como o poeta épico, ele chega até as coisas com grande lentidao. Tudo o que acontece, mesmo o mais repentino, parece preparado h4 longo tempo. Inspira-o, nessa atitude, o préprio espirito do dialeto berlinense. O ritmo do seu movintento é vagaroso. Pois o berlinense fala como co- nhecedor, relacionando-se amorosamente com o que diz. Ele degusta o que diz. Quando insulta, zomba ou ameaga, ele toma algum tempo para fazé-lo. Glassbrenner acentuou as qualidades dramaticas do dialeto berlinense. Aqui ele é son- dado em suas profundidades épicas; o navio de Franz Biber- kopf tem uma carga pesada, mas nao corre o risco de enca- thar. O livro é um monumento a Berlim, porque o narrador ndo se preocupou em cortejar a cidade, com o sentimenta- lismo de quem celebra a terra natal. Ele fala a partir da ci- dade. Berlim é seu megafone. Seu dialeto é uma das forcas que se voltam contra o carter fechado do velho romance. Pois esse livro nada tem de fechado. Ele tem sua moral, que afeta mesmo os berlinenses. (O Abraham Tonelli, de Tieck, j4 ha- via mostrado em aco “‘o focinho berlinense”,* mas ninguém tinha ousado ainda curar essa enfermidade.) Vale a pena investigar essa cura, através de Franz Biber- kopf. O que se passa com ele? Mas uma questio prévia se impe: por que o livro se chama Berlin Alexanderplatz, en- quanto A histéria de Franz Biberkopf s6 aparece como sub- titulo? O que é, em Berlim, Alexanderplatz? E o lugar onde se dao, nos iltimos dois anos, as transformacées mais violentas, onde guindastes e escavadeiras trabalham incessantemente, onde o solo treme com o impacto dessas maquinas, com as colunas de automéveis e com o rugido dos trens subterrAneos, onde se escancaram, mais profundamente que em qualquer outro lugar, as visceras da grande cidade, onde se abrem a luz (*) A berliner Schnauze designa o estilo de falar do berlinense: irreverente, répidona réplica e ocasionalmente agressivo. (N. T.) 58 WALTER BENJAMIN do dia os patios dos fundos em torno da praca Georgenkirch, e onde se preservaram mais silenciosamente que em outras partes da cidade, nos labirintos em torno da Marsiliusstrasse (onde as secretarias da Policia dos Estrangeiros estdo alojadas em corticos) e em torno da Kaiserstrasse (onde as prostitutas praticam, 4 noite, suas rondas imemoriais), remanescentes in- tactos da ultima década do século passado. Nao é um bairro industrial, e sim comercial, habitado pela pequena burguesia. No meio de tudo isso, o negativo sociolégico desse meio: os marginais, reforgados pelos contingentes de desempregados. Biberkopf é um deles. Desempregado, ele deixa a prisio de Tegel, mantém-se honesto durante algum tempo, abre algu- mas lojas, renuncia 4 vida respeitavel, e torna-se membro de uma quadrilha. O raio em que se move essa existéncia, na praca, é no m4ximo de mil metros. Alexanderplatz rege sua vida. Um regente cruel, se se quiser. E seu poder é ilimitado. “Porque 0 leitor se esquece de tudo o que nao seja ele, aprende apreencher, nesse espaco, sua existéncia e descobre como sa- bia pouco a seu respeito. Tudo é muito diferente do que ima- ginava o leitor ao tirar esse livro da estante. Ele no tem o aspecto de um “romance social”. Ninguém dorme aqui ao ar livre. Todos os personagens tém um quarto. Nenhum deles é visto 4 procura de um quarto. O transeunte que primeiro pe- netra nessa praca parece ter perdido seus temores. Sem dt- vida, toda essa gente é miserfvel. Mas é em seu quarto que ela é miser4vel. Como aconteceu isso? O que significa isso? Sig- nifica duas coisas. Uma grande, e outra restritiva. Algo de grande: a miséria nfo é, de fato, como o pequeno Moritz a imaginaya. Pelo menos a miséria real, em contraste com a miséria temida. Nao apenas as pessoas, mas também a po- breza e o desespero precisam adaptar-se as circunstincias, precisam “‘virar-se’’. Mesmo os seus agentes, o amor e o 4l- cool, reyoltam-se freqientemente. Nao ha nada de tao grave com que nao possamos conviver durante algum tempo. Nesse livro, a miséria ostenta seu lado jovial. Ela se senta com os homens na mesma mesa, sem que com isso a conversa se inter- rompa; eles continuam sentados e nao param de comer. E uma verdade ignorada pela nova subliteratura naturalista. Por isso, um grande narrador era necess4rio para reafirmar essa verdade. Diz-se que Lenin sé odiava uma coisa com édio mais fanatico que a miséria: compactuar com a miséria. Essa MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 5o atitude, com efeito, é de certo modo burguesa; ndo somente no sentido mesquinho do desleixo, mas no sentido maior da sabedoria. Nesse sentido, a histéria de Ddblin é burguesa numa acepcio muito mais restritiva que se considerassemos apenas sua tendéncia e sua inten¢&o: ela é burguesa por sua origem. O que vem A tona nesse livro, de modo fascinante ecom uma forga incompardvel, é a grande seducao de Charles Dickens, em cuja obra os burgueses € os criminosos coexistem em grande harmonia, porque seus interesses, embora opostos, situam-se no mesmo mundo. O mundo desses marginais é homélogo ao mundo burgués; a trajetéria de Franz Biber- kopf, de proxeneta a pequeno-burgués, descreve apenas uma metamorfose herdica da consciéncia burguesa. Poderiamos responder a teoria do “roman pur” dizendo que o romance é semelhante ao mar. Sua nica pureza esté no sal. Qual o sal desse livro? Acontece com o sal épico o mesmo que com o sal quimico: ele torna mais durfveis as coisas as quais se mescla. E a durabilidade é um critério da literatura épica, num sentido inteiramente distinto da durabilidade que caracteriza os demais géneros literarios. Mas no se trata de uma duragio no tempo, e sim no leitor. O verdadeiro leitor 1é uma obra épica para ‘“‘conservar’” certas coisas. E, sem di- vida, ele conserva duas coisas desse livro: o episédio do bra¢o eo de Mietze. Por que Franz Biberkopf é jogado debaixo de um carro, perdendo um braco? E por que lhe tiram a amiga € a matam? A resposta esta na segunda pAgina do livro. “Por- que ele exige da vida mais que um sandujche.” Nesse caso, nao exige refeicdes abundantes, dinheiro ou mutheres, mas algo de pior. Seu “grande focinho” fareja uma coisa que nao tem forma. Ele est4 consumido por uma fome — a do destino. Nada mais. Esse homem precisa pintar o diabo na parede, al fresco, sempre de novo. Nio admira, portanto, que sempre de novo o diao aparega, para busc4-lo, Como essa fome de destino é saciada, saciada por toda a vida, cedendo lugar a satisfac%o com o sanduiche, e como o marginal se transforma num sabio — esse é 0 itinerario de sua vida. No fim, Franz Biberkopf se converte num homem sem destino, “esperto”’, como dizem os berlinenses. Doblin descreveu esse “‘amadure- cimento” de Franz com uma arte inesquecivel. Assim como durante 0 Barmiswoh os judeus divulgam 4 crianca o seu se- gundo nome, até entdo secreto, Déblin dé a Biberkopf um Ci WALTER BENJAMIN segundo prenome. Ele se chama, agora, Franz Karl. Ao mes- mo tempo, acontece algo de muito estranho com esse Franz Karl, que se tornou ajudante de porteiro numa fabrica. Nao podemos jurar que Dablin tivesse percebido isso, embora co- nhecesse seu heréi t4o intimamente. O que acontece é 0 se- guinte: Franz Biberkopf deixa de ser exemplar e ascende, em vida, ao céu dos personagens romanescos. A esperanga e a meméria 0 consolarao, doravante, nesse céu, seu cubjculo de Porteiro, porque é mais “‘esperto” que os outros. Mas nés nao o visitaremos nesse cubiculo. Pois essa é a lei da forma roma- nesca: no momento em que o heréi consegue ajudar-se, sua existéncia nao pode mais ajudar-nos. E se é certo que essa verdade vem a luz, em sua forma mais grandiosa e mais im- placavel, na Education sentimentale, ent&o a histéria de Franz Biberkopf é a Education sentimentale dos marginais. O es- tagio mais extremo, mais vertiginoso, mais definitivo, mais avan¢ado, do velho “romance de formagao” do periodo bur- gués. 1930

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