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A cor tóxica proveniente dos vulcões que mudou a história

da arte
Por séculos, a origem do pigmento laranja era um mineral tóxico. Alquimistas acreditavam que
a tonalidade era essencial para criar a Pedra Filosofal, enquanto artistas a usaram para
expressar as mais diferentes sensações.
BBC BRASIL.com
24 MAR2018
16h09
atualizado às 17h21

Se você tirar o laranja da história da arte, tudo desaba. O céu na obra O Grito , de Edwaed
Munch, se desfaz, e o grande fogo que acende o famoso Junho Flamejante , de Frederic
Leighton, se apaga.

Se você tirar o laranja, tudo some, desde o brilho eterno e quente das pinturas das tumbas
egípcias até a barba ruiva e flamejante dos autorretratos de Vincent van Gogh. Um árbitro
sagaz entre o decisivo vermelho e o implacável amarelo, o laranja é um pigmento com um
papel pivô. É a dobradura de uma tonalidade que permite que uma obra de arte oscile entre
estados contraditórios da existência - este mundo e outro, vida e morte.

A obra Junho Flamejante tem um ramo oleandro que pode simbolizar a ligação entre o
sono e a morte
Foto: Museu de Arte de Ponce/The Luis A.Ferré Foundation / BBCBrasil.com

Além da moldura da história da arte, o laranja se mostrou um símbolo elástico pouco comum,
florescendo em um espectro de formas e significados culturais. Apesar da influente Casa Real
Orange ("laranja", em inglês) dizer que seu nome vem muito antes daquele dado à cor em
1540, seu ilustre filho William 3º (mais conhecido como William de Orange) rapidamente
abraçou a coincidência linguística em 1570.

Sua rebelde obra laranja, azul e branca acabou sendo a vencedora do concurso da bandeira
moderna da Holanda. A partir daí, o laranja tomou as cores de tudo desde os motores suíços
até as roupas usadas pelos astronautas na Estação Espacial Internacional. Mas foi no reino da
arte e da estética que a cor deu mais frutos.

Desde a antiguidade até o fim do século 19, um mineral vulcânico encontrado em fumarolas
sulfúricas (gases que saem da crosta terrestre) era uma fonte importante para a composição do
pigmento laranja.
O ouro-pigmento é altamente tóxico, rico em arsênio letal e passa de um suave amarelo para
um laranja vivo quando submetido ao calor do fogo.

Convencido de que o brilho luminoso do ouro-pigmento (seu nome é uma contração da palavra
em latim aurum, que significa ouro, e pigmentum, que significa cor, e também é chamada de
auripigmento) deveria ser um ingrediente chave no preparo da Pedra Filosofal, durante séculos
alquimistas arriscaram a vida se expondo à substância nociva. Assim como os artistas.

Explorar o oculto do laranja significava flertar com a mortalidade e a imortalidade na mesma


medida.

Da faísca à chama

Intencionalmente ou não, essa aura ambígua é irrepreensível quando quer que o laranja seja
usado na arte.

Por exemplo, o pintor francês rococó Jean-Honoré Fragonard e seu retrato de um escritor
genérico em um momento de visão intensa:Inspiração , pintada em cerca de 1769. O casaco
de veludo laranja - seus amassados vibrantes cintilando como chamas - ameaça engolfar a
personagem alegórica de um poeta cuja imaginação acabou de ser acesa. Os sulcos de veludo
se tornaram uma reflexão externa da mente do escritor.

Esse momento de devaneio que ilumina o indivíduo, como se fosse a partir de sua alma, vai ou
garantir sua fama eterna como um trovador celebrado ou colocará seu próprio ser em chamas.
Se você o vestir em qualquer outra cor senão o laranja, o poder da obra será perdido.

Nem é possível imaginar o Autorretrato com Auréola e Cobra , pintado pelo artista pós-
impressionista Paul Gauguin mais de um século após o quadro de Fragonard, mergulhado em
dois tons de laranja que dominam e dividem sua superfície radiante em territórios em
competição de piedade e malevolência.

Criado por Gauguin enquanto ele vivia na vila de pescadores Le Pouldu, no noroeste da
França, a obra traz na metade de cima uma indiferença sagrada às tentações humanas,
simbolizada pelas frutas proibidas penduradas.

A pintura A Dança de Henri Matisse foi encomendada por um empresário russo em 1990
para enfeitar a escada de sua mansão
Foto: Getty Images / BBCBrasil.com

Para garantir que não perdêssemos o ponto imperdível, o artista se coroou nesse hemisfério da
obra com uma auréola angelical. A parte de baixo desse painel de madeira, porém, revela uma
suscetibilidade insustentável ao mal já que a cobra sedutora do Jardim do Éden está enrolada
no dedo proverbial do artista.

Amarrar a obra em termos de tom envolve uma mudança dramática no equador das sombras
de laranja - não diferentemente do próprio ouro-pimenta, antes e depois de seu batismo
purificador por meio do fogo.

E assim vai, obra por obra, século atrás de século: onde quer que a cor laranja dite a
temperatura de uma obra de arte, sabemos que estamos diante de um sertão entre um
universo que podemos ver e um desconhecido misterioso que sentimos com cautela.

Como mais você caracterizaria o reino onde a fase liquefeita do herói de Munch grita sob um
céu estranho cor de canela no trabalho O Grito ? De que outra maneira você descreveria o
espaço eterno das mulheres da obra icônica A Dança , de Henri Matisse?

Encomendada em 1909 por um empresário russo muito rico para enfeitar as escadas de sua
mansão, à primeira vista, A Dança pode parecer a apoteose do prazer rítmico e a leveza
sincronizada.

Mas o toque inquietante de damasco dos cinco corpos nus em êxtase, que parecem ter sido
integrados em sua essência pelo Armageddon laranja do trabalho de Munch, é uma dica de
que algo mais complexo e perigoso está em ação. As duas dançarinas que se esticam no chão
da obra soltaram as mãos umas das outras enquanto a mais perto de nós começa a cair. Seu
pé esquerdo já está saindo do campo de visão.

Longe de mostrar uma alegria sem preocupação, Matisse coreografou com cuidado um
balanço em um desastre cósmico. A própria rotação do mundo é colocada perigosamente em
dúvida.

Alerta âmber

Munch e Matisse determinaram o tom, e assim foi para o temperamento portentoso do laranja
na arte moderna e contemporânea.

Durante o século 20, o esplendor do laranja foi refletido de várias maneiras nos trabalhos de
todo mundo, desde Francis Bacon, no qual ele cria o cenário sinistro para o perturbador Três
Estudos para Figuras na Base de uma Crucificação (1944) até a Arte de Estar (1967) de Rene
Magritte, no qual a cor se infla ao ponto de desabrochar em um crânio surreal.

Os pigmentos sincopados de Ritmo, Alegria da Vida , pintado em 1931, são característicos de


quão crucial o laranja é para o trabalho e a imaginação da artista ucraniana nascida na França
Sonia Delauney, que uma vez protestou: "você sabe que eu não gosto de laranja".

Gostando ou não, o laranja é frequentemente o calor que mantém unida - enquanto ameaça
soltar tudo - a música visual de seus sinuosos mosaicos.
Para Portões, de Christo Yavacheff e Jeanne-Claude, 7.500 passagens laranjas foram
instaladas no Central Park em Nova York em fevereiro de 2005
Foto: Getty Images / BBCBrasil.com

Por ter sido tão crucial para a história da arte no final do século passado, o laranja foi tingido
inesquecivelmente no tecido da consciência artística contemporânea.

Entre os trabalhos mais celebrados do novo milênio, Portões , do casal de artistas Christo
Yavacheff e Jeanne-Claude (conhecidos como Christo e Jeanne-Claude), colonizaram o
Central Park de Nova York em fevereiro de 2005 com mais de 7,5 mil passagens com tecido de
nylon.

A sucessão lírica de umbrais, que trazia um sentido poético do ir e vir infinito da vida -
nascimento e renascimento, mortalidade e eternidade - só poderiam, como um reflexo, ter sido
tingidos em um açafrão ativo.

Para alguns, a cor ecoa as roupas dos monges budistas. Mas, na minha cabeça, Christo e
Jeanne-Claude (que morreram quatro anos depois) estavam reanimando uma chama sagrada,
convidando aqueles que quiserem trazer suas almas cansadas ao poder transformador da
tintura mais antiga e mística: o laranja.

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