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debates teóricos*
Jean-Yves Rochex
Université Paris-VIII
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Jean-Yves ROCHEX
33, rue de la Ville Neuve
93600 - Aulnay-sous-Bois - France
e-mail: rochexjy@wanadoo.fr
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 637-650, set./dez. 2006 637
The notion of relation to knowledge: convergences and
theoretical debates*
Jean-Yves Rochex
Université Paris-VIII
Abstract
Keywords
Contact:
Jean-Yves ROCHEX
33, rue de la Ville Neuve
93600 - Aulnay-sous-Bois - France
e-mail: rochexjy@wanadoo.fr
*
Published by Elsevier SAS for the
French Society of Psychology. 2004.
Portuguese translation by Lólio Lou-
renço de Oliveira.
638 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 637-650, set./dez. 2006
Nos últimos 20 anos, a noção de rela- sobre a história de nossa equipe e, portanto,
ção com o saber difundiu-se e foi usada ampla- sobre seus debates internos e, mais amplamen-
mente, tanto na esfera da pesquisa em educa- te, sobre os suscitados pelo uso, em perspec-
ção quanto nas da formação de docentes e de tivas e quadros teóricos distintos, e por dife-
profissionais do sistema educacional ou do rentes pesquisadores e coletivos de pesquisa,
debate social relativo à escola. Objeto de uma de noções semelhantes (de relação com o sa-
dezena de obras, algumas das quais tiveram um ber , mas também de experiência escolar, por
êxito assaz inesperado em sua divulgação, ela exemplo), meu objetivo é tentar esclarecer os
se impôs, não sem alguns efeitos perversos de desafios teóricos, empíricos e sociais desses
que trataremos mais tarde, como sintagma de debates e de neles haurir novos recursos para
grande poder de evocação para todos os que pensar e agir.
refletem sobre as questões de escola e de edu-
cação. Nada menos que novo paradigma para Breve reflexão sobre os
alguns (Chabchoub, 2000); para outros, a no- trabalhos e os debates da
ção de relação com o saber antes se apresenta Escol
como uma noção cujos “contornos parecem [...]
bem mal delimitados ainda que seu poder Quando a equipe Escol se constituiu e
heurístico seja pouco contestável, tanto pelo realizou a pesquisa de que resultaria a publica-
que ela critica, quanto pelas possibilidades que ção da obra École et savoir dans les banlieues...
abre” (Laterrasse et al., 2002), apreciação esta et ailleurs [Escola e saber na periferia... e alhu-
última de que me inclinaria a compartilhar, res] (Charlot; Bautier; Rochex, 1992), ela reto-
assim como compartilho da prudência de mou a noção de relação com o saber das aná-
Beillerot (1996) que propõe trabalhar com essa lises teóricas anteriores de Bernard Charlot, com
noção, mantendo-lhe o valor de conceito pro- as quais procurou combinar abordagens pro-
blema e não fortalecê-la como conceito solu- vindas das ciências da linguagem e da psicaná-
ção, conceito explicativo suscetível de dar lu- lise, para melhor pensar e estudar a questão da
gar a toda sorte de vulgatas e extensões mais produção/reprodução das desigualdades sociais
ou menos controladas. O êxito teórico e na escola. Tratava-se, para nós, de tentar ir mais
institucional e até mesmo mediático do além das explicações, profanas ou eruditas, des-
sintagma, relação com o saber, indica, creio eu, sa produção feitas com a ajuda de visões unila-
convergências reais que, no entanto, não de- teralmente e globalmente deficitárias (explicações
vem minimizar as questões e os debates teóri- em termos de handicap sociocultural) ou de con-
cos e sociais por ele suscitados. Destes, preten- ceitos muito gerais e hegemônicos, tais como o
do tratar mais adiante neste artigo, a partir de conceito de código em Bernstein (e sobretudo em
um exame retrospectivo sobre as problemáticas alguns de seus epígonos norte-americanos) ou o
e os trabalhos da equipe Escol da Universida- conceito de habitus em Bourdieu, visões e con-
de de Paris-VIII, fundada em 1987 por Bernard ceitos estes que mal consideram a diversidade
Charlot, e que tem sido – com o Cref da Uni- interna dos diversos grupos sociais e pouco
versidade de Paris-X, em torno de Jacky espaço deixam para a especificidade, a produ-
Beillerot, e o Irem de Aix-Marseille, em torno tividade e a historicidade das atividades e ins-
de Yves Chevallard – um dos coletivos de pes- tituições sociais e das biografias dos agentes ou
quisa em que essa noção, utilizada desde a sujeitos sociais. Gibson (1984) censurará assim
década de 1960 nas esferas da psicanálise e da Bernstein por “um uso cada vez mais
sociologia, tornou-se, nas décadas de 1980- hegemônico e exclusivo desse conceito [...]: o
1990, organizadora de uma problemática e de código deixa de ser um conceito com cuja aju-
perspectivas de pesquisas empíricas. Refletindo da procuramos compreender certas coerências,
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certas regularidades nas práticas, para tornar-se o estudo e a análise dos processos que permiti-
uma espécie de realidade onipotente, uma força ram a existência desses casos, certamente minori-
organizadora ou instigadora, um princípio ati- tários, mas tão mais interessantes de decifrar, de
vo, uma causa primeira e como que uma êxito escolar atípico – que observamos nos
‘enteléquia’ no sentido leibniziano” (Forquin, collèges ZEP e nos bairros ‘desfavorecidos’ em
1987). Não se pode pensar que essas observa- que trabalhávamos –, podiam revelar-se ricos de
ções valeriam igualmente, e nos mesmos ter- ensinamento, por um lado, para compreender
mos, com referência ao conceito de habitus e melhor os processos de fracasso ‘comum’ e, por
ao postulado da homogeneidade de esquemas, outro, para trabalhar, como outros também fazi-
disposições e práticas de um mesmo agente que am (Lahire, 1996; Laurens, 1992; Terrail, 1990;
lhe serve de base, postulado amplamente dis- Zéroulou, 1985), os espaços impensados dos tra-
cutido desde então, entre outros, por Lahire balhos de sociologia crítica com os quais nos ha-
(1998). Esperemos que isso não venha a ser o víamos formado para a pesquisa em Educação.
caso – guardadas as devidas proporções – da Desse modo, tentamos mobilizar os tra-
noção de relação com o saber. balhos clínicos e as elaborações teóricas da
Uma experiência profissional anterior psicanálise, particularmente as relativas à ques-
como conselheiro de orientação fizera com tão das identificações e à dos projetos famili-
que, muito cedo, me confrontasse com a im- ares, para começar a tentar compreender me-
portância de processos e determinantes sociais lhor os processos de gênese das relações com
na produção de desempenhos e percursos es- o saber e dos modos de experiências escolares
colares e com a impossibilidade de destruir o das crianças provindas de ambiente popular
caráter singular de cada história escolar, esta, (sobre isso, cf. particularmente Rochex, 1995;
por sua vez, entrelaçada numa história familiar Charlot; Rochex, 1996), poderíamos, assim, ir além
que a ultrapassa nas regularidades estatísticas e das noções muito gerais de interiorização, de in-
nos determinismos sociológicos e, portanto, com corporação e até de condicionamento, com as
a necessidade, para melhor compreender e melhor quais Bourdieu se livrava algo apressadamente da
agir, de uma convocação mútua e uma compro- questão da gênese do habitus que, nele, é bem
vação recíproca das teorias e conceptualizações mais explicativo do que explicado (Barthez, 1980;
próprias das disciplinas do social e de suas cor- Héran, 1987), o que torna bastante desequilibra-
respondentes próprias das disciplinas do da a dialética ‘da interiorização da exterioridade e
psiquismo. Donde nosso cuidado em trabalhar da exteriorização da interioridade’ que ele se em-
não só sobre percursos e modos de experiênci- penha em empregar.
as escolares e de relação com o saber e com a De modo mais geral, em Bourdieu como
escola que permitam compreender processos em grande número de sociólogos, nem o corpo
‘comuns’ de seleção e de fracasso dos alunos nem o psiquismo possuem qualquer realidade ou
provindos de ambientes populares, mas também leis próprias. Concebidos como mero substrato
sobre casos de êxitos escolares excepcionais, da modelagem das disposições, não podem
atípicos relativamente às correlações estatísticas. pois nada comportar ou produzir que não seja
Certamente, nosso objetivo não era, devido à sua exterioridade. Concepção ‘amorfa’
como nos atribuíram certos comentaristas do psiquismo e de seu funcionamento que
apressados, desmentir ou denegar as ‘teorias da absolutamente não resiste ao estudo e à aná-
reprodução’ ou os trabalhos de Bourdieu, mas lise das modalidades concretas dos processos
sim voltar os olhos para territórios em que estes de escolarização e de aprendizagem e da diver-
sequer se haviam aventurado e, com isso, pro- sidade das relações com o saber, com a lingua-
curar pensar a partir desses trabalhos. Tínhamos gem e com a escola, que nele se encarnam e se
então (e mantemos sempre) a hipótese de que transformam.
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massificação do acesso ao lycée e democratiza- aqui os processos pelos quais os indivíduos soci-
ção do acesso aos saberes e aos modos de tra- al e escolarmente subordinados põem o mundo
balho intelectual que, em princípio, são ali exigi- em ordem e não aqueles pelos quais se constrói
dos. Fizemos isso, por um lado, recorrendo a uma história escolar singular” (Charlot, 1997), as-
metodologias e dados de natureza diversa – e sim escreve ele na obra em que relata a pesquisa
não exclusivamente declarativas, aliando, à cole- realizada em lycées profissionais.
ta de entrevistas e de provas de conhecimento, Daí a crítica dirigida, para além das
observações em classe – e um trabalho de aná- convergências reais entre as duas pesquisas, ao
lise de diversos trabalhos de alunos e, por outro, trabalho que Elisabeth Bautier e eu havíamos
dando grande importância ao trabalho de escri- dedicado a ‘expérience scolaire des nouveaux
ta, como recurso para aprender e pensar, e às lycéen’: nele teríamos feito uma hierarquização
negociações consigo mesmo que ele ao mesmo implícita das diversas formas do aprender e da
tempo exige e torna possíveis. Por seu lado, subjetividade e, relacionando a relação com o
Bernard Charlot empenhava-se numa nova pesqui- saber dos jovens de ambientes populares aos
sa que, em suas próprias palavras, visava menos requisitos das aprendizagens e do trabalho de
estudar as condições de escolarização nos lycées escrita específicos do lycée, não teríamos toma-
profissionais da periferia nos quais pesquisou, do do suficiente cuidado para não nos deixarmos
que ‘a relação com o saber dos jovens de origem encerrar em ‘uma leitura em negativo da reali-
popular confrontados com o que se chama fra- dade social’. Advertência revigorante e que exi-
casso escolar’, e isso a partir de materiais exclu- ge um exame sério, mas que me parece basear-
sivamente declaratórios (entrevistas e provas de se, ao mesmo tempo, sobre uma diferença, até
conhecimento). Essa relação com o saber era mesmo um mal-entendido, quanto às duas ori-
definida de maneira extremamente ampla como entações de pesquisa, e sobre uma parte de
desacordo real, que merece ser explicitado, por
[...] o conjunto (organizado) de relações que um dizer respeito a desafios a meu ver essenciais,
sujeito humano (portanto singular e social) man- para além dos trabalhos em questão. Por um
tém com tudo que provém do ‘aprender’ e do lado, trabalhar, como Bautier e eu tentamos fa-
saber: objeto, ‘conteúdo de pensamento’, ativi- zer, sobre as condições de uma escolarização
dade, relação interpessoal, lugar, pessoa, situa- bem-sucedida não se pode fazer sem levar em
ção, ocasião, obrigação etc., de algum modo li- consideração as exigências normativas próprias
gados ao aprender e ao saber. (Charlot, 1999) da escola; por outro lado, se é evidentemente
necessário questionar os modos de funciona-
Uma definição como essa, retirada de uma mento da instituição escolar e a parte que lhe
pequena obra teórica publicada dois anos antes, cabe na produção das desigualdades sociais,
atesta que o que interessa a Bernard Charlot é desde a construção de seus currículos até as
menos o estudo das condições concretas de práticas comuns de seus agentes, não nos parece
escolarização, nas quais se combinam os proces- que, por isso, essas exigências devam reduzir-se
sos de produção/reprodução das desigualdades inteiramente apenas ao registro do arbitrário e
sociais de acesso ao saber e ao êxito escolar, do do elitismo e sejam dissolvidas no ácido de uma
que uma reflexão bem mais ampla, de orientação visão relativista radical, que corre o risco de
antropológica, sobre aquilo que ele chama de as negar toda necessidade e toda normatividade
formas ou as figuras do aprender e os processos própria dos saberes e das técnicas intelectuais
que permitem ‘compreender o mundo’, cuja diver- constitutivas da cultura escolar2 . De nossa par-
sidade, segundo ele, a escola e os pesquisadores te, tememos que a legítima preocupação de
que por ela se interessam muito ganhariam em
reconhecer, mais do que o fazem: “Interessam-nos 2. Cf., a este respeito, Forquin, 1989.
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mum das classes, das escolas e dos estabeleci- duo isolado ou a seu grupo social nem puro arte-
mentos, as modalidades concretas das situações fato construído pela instituição escolar isolada, a
e das práticas de ensino e de aprendizagem, não relação com o saber deve então ser pensada e
só por elas mesmas, mas enquanto aí se impor- estudada, numa abordagem relacional, como o
tam, confrontam-se, põem à prova e podem produto de uma história e do confronto entre
transformar modos de interpretação, disposições modos de socialização e universo de práticas de
e relações com o saber e com os saberes, com natureza necessariamente diferente. Uma das vir-
o estudo ou com o ensino, que não se reduzem tudes heurísticas da noção de relação com o sa-
ao aqui e agora dessas situações. ber, noção-encruzilhada como já se disse, poderia
Apropriar-se de tal problemática tem vá- ser então a de nos induzir a superar o que parece
rias conseqüências. Implica em dotar-se, para es- ter-se estabelecido como uma espécie de divisão
tudar essas modalidades concretas, de uma teoria de trabalho entre sociologia da educação e soci-
da aprendizagem e dos saberes escolares e, a ologias da família ou da juventude, por exemplo,
nosso ver, em considerar o fato de que esses sa- mas também, no seio da pesquisa em Educação,
beres escolares (no sentido de saberes que exigem entre uma sociologia das desigualdades escolares,
o tempo e o trabalho do estudo) requerem (e insuficientemente preocupada com as modalidades
permitem) um trabalho de retomada, de descon- das atividades de transmissão dos saberes e das
textualização-recontextualização, de distancia- técnicas intelectuais, e uma pesquisa didática,
mento, de redescrição dos saberes pragmáticos da pedagógica ou psicológica, insuficientemente pre-
experiência comum na qual a intenção de êxito é ocupada com os diferentes contextos sociais e
anterior à de compreensão (Piaget, 1974), traba- institucionais em que essas atividades sempre se
lho de ‘secundarização’ para o qual são essenciais situam. E de obrigar-nos, para iniciar essa supera-
a atividade e as ferramentas semióticas de repre- ção, a estabelecer relações renovadas, tanto quanto
sentação. O que obriga desde logo desligar-se da à reflexão teórica e epistemológica quanto à con-
forte reticência da Sociologia da Educação em cepção e à realização de pesquisas empíricas, entre
levar em consideração a função e as atividades de Sociologia, Psicologia (no sentido amplo de disci-
transmissão e de apropriação do saber, e da pos- plinas do psiquismo) e Didática, e a fazer com que
tura que leva inúmeros sociólogos a considerar e essas diferentes disciplinas se interessem pela es-
a tratar essa função e essas atividades como se cola em sua especificidade, tanto quanto pelo que
nada mais fossem do que ilusão, engano e misti- ela não é, para elaborar e levar a bom termo pro-
ficação, por trás das quais se ocultam as ‘verdadei- gramas e trabalhos de pesquisa baseados numa
ras funções’ (de reprodução social, de alienação, abordagem racional, dialógica (Grossen, 1999), dos
de domesticação...) da instituição escolar. E o que diferentes ambientes e das esferas de atividade
ao mesmo tempo requer desligar-se da assepsia e de experiência dos sujeitos sociais (Wallon,
social e, até mesmo, da ingenuidade e da ceguei- 1954; Baubion-Broye, 1998) e das diferentes
ra sociológicas que pesam sobre parte importante categorias de obras (Meyerson, 1948, 1987)
da reflexão pedagógica, mas também das práticas com que se defrontam.
e problemáticas de pesquisa em didática das dis-
ciplinas ou em psicologia da aprendizagem, liga- Uma noção que induz a um
das a uma concepção do aluno ou do aprendiz pensamento dialético das
como ser genérico, abstrato, universal, ou como relações entre atividade e
puro sujeito cognitivo ou epistemológico, em de- subjetividade
trimento do estudo das condutas dos sujeitos
concretos atuando em situações sociais concretas No entanto, se a noção de relação com
e não depuradas para as necessidades do estudo. o saber apresenta-se assim fundamentalmente
Nem substância ou característica ligada ao indiví- (talvez desmesuradamente?) anti-reducionista,
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onde reinam o desejo e a subjetividade; são um das atividades e processos sociais que tornam
espaço em que estes podem reconfigurar-se, to- possíveis essas evoluções e seu desenvolvimento
mar um novo curso, à prova das normas – desigual, segundo as formações e as categorias
irredutíveis às lógicas de dominação social ou de sociais. Minha tendência seria então pedir que a
distinção – que regem as atividades partilhadas sociologia se dedicasse, muito mais do que faz
com outros, e dos possíveis que essas atividades hoje, ao estudo daquilo que Lucien Sève, há
e a configuração sociohistórica em que elas se mais de vinte anos, designava, a título de um
inscrevem 6 , abrem potencialmente ao sujeito. programa de pesquisa que depois não progrediu
Mais dialético a este respeito do que o de Lacan muito, como ‘formas histórico-sociais de individu-
– porque, a meu ver, dá mais direito ao pensa- alidade’ (Sève, 1974), ao estabelecimento de uma
mento e à historicidade, por não ser ali o Eu espécie de cartografia ou topologia das provas e
somente essa instância condenada ao desco- contradições sociais, dos eventos e fenômenos de
nhecimento que é o Ego em Lacan –, o pensa- transição (Baubion-Broye, 1998), das transforma-
mento de Piera Aulagnier parece-me precioso na- ções das atividades e das temporalidades, nas
quilo que, em nome mesmo da psicanálise, ele quais os sujeitos são convocados e solicitados
se inscreve de fato de encontro a concepções como instâncias de escolha, de arbitragem e de
‘subjetivistas’ da psique e da subjetividade que, intersignificação, deixando inteiramente para as
em nome da onipotência do sujeito ou da estru- disciplinas do psiquismo (psicologia e psicanálise)
tura7 , acabam, de fato, por negar a estas toda o estudo daquilo que, no funcionamento e na his-
historicidade, por não poderem comportar os tória do psiquismo de cada um, está na origem
contragolpes, sobre a subjetividade, da inscrição das condutas que ele pode elaborar em resposta a
dos sujeitos em normas e atividades sociais inde- essa convocação e a essa solicitação.
pendentes dessa subjetividade, por não poderem
pensar de maneira realmente dialética as relações O debate, porém, tem talvez por obje-
entre os registros e as gramáticas do impessoal e to a natureza e o uso que uns e outros fazem
os processos de subjetivação ou de personalização. desses empréstimos. Se a noção de relação com
o saber remete ao que seria da ordem de uma
Uma concepção forte do disposição, de um modo de relação, relativa-
sujeito não pode dispensar uma mente estável, que o sujeito mantém com o
concepção forte do objeto saber, e que é o produto de uma história ao
mesmo tempo pessoal e social, será que essa
Que haja muito a ganhar em enriquecer a disposição e esse modo de relação poderão ser
noção de relação com o saber, tomando de em- apreendidos no essencial sobre o registro do
préstimo das aquisições e dos conceitos da psica- afeto, do prazer ou do sofrimento (Beillerot,
nálise, é um ponto sobre o qual concordo sem 1989, p.166), e referidos preferencialmente aos
reservas com os colegas do Cref, inclusive em sua começos da vida psíquica e às primeiras rela-
crítica ao projeto de Bernard Charlot de fundar ções de objeto que ali se juntam, particularmen-
uma ‘sociologia do sujeito’ (cf. Charlot, 1997 e, te quando a indagação e a investigação dizem
quanto à crítica, Mosconi, 2000). Eu próprio respeito a processos e sujeitos ‘comuns’, que
(Rochex, 2000), paralelamente, discuti a pertinência não são afetados pelas patologias graves liga-
de um projeto como esse nos seguintes termos: das às ‘deficiências’ que podem sobrevir nessas
primeiras relações de objeto? Indagação e in-
Parece-me que o que provém da esfera de inves-
tigação e de análise da sociologia é menos o
6. Cf. a este respeito Aulagnier, 1984.
estudo do sujeito e de seu psiquismo do que o 7. Como acontece com a onipotência da estrutura do fantasma no ‘velho’
das evoluções sociohistóricas da forma-sujeito e Lacan e em bom número de seus epígonos.
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objetos privados de saber por objetos do saber res e práticas, mas prioritariamente determinados
comum que valem, na sociedade, por sua institui- saberes e determinadas práticas que, ao mesmo
ção social e, em primeiríssimo lugar, pela institui- tempo, requerem e permitem um trabalho e uma
ção escolar”, e essa transformação da relação com postura de objetivação, de distanciamento do
o saber será ligada à constituição da personalida- mundo (pelo menos de certos objetos do mun-
de psicossocial, que ultrapassa pois a personalidade do), da linguagem e da experiência que temos
psicofamiliar e que a experiência do trabalho e da com ela, trabalho e postura que fazem deles
formação profissional obrigará mais tarde a novas objeto de estranheza ou de inquietude, de
reelaborações. questionamento, de reflexão, de análise e de sa-
Porém, além do risco de que tais formu- ber e que, no mesmo movimento, constituem o
lações possam fazer crer que o espaço familiar e sujeito como foco de suas atividades. Será que
a personalidade psicofamiliar teriam a ver essen- não levar em consideração ou minimizar essa
cialmente com saberes de ordem privada, o que especificidade da escola e do processo de esco-
evidentemente não é o caso, uma vez que ali se larização não levará, a partir de preocupações e
constroem aquisições, eminentemente comuns, de quadros teóricos diferentes, a adotar, ainda
entre as primeiras das quais sem dúvida figuram que sem o saber, a postura de desespecificação,
a aquisição da linguagem e a de inúmeras primei- até mesmo de desescolarização do universo e da
ras técnicas intelectuais e/ou corporais, parece-me experiência escolares, que anteriormente critica-
que seria dimensionar de maneira estreita as mos em certos trabalhos e certas pesquisas de So-
transformações da relação com o saber que, ao ciologia da Educação, postura a meu ver danosa
mesmo tempo, requer e permite a escolarização. a uma melhor compreensão dos modos de cons-
A especificidade desta, segundo penso, não resi- trução, de comprovação, de reelaboração das di-
de inicialmente na passagem de objetos de saber ferentes relações com o saber e com os saberes,
de ordem privada a objetos de saber comuns, pois que resultam da pluralidade e da confrontação das
estes últimos existem felizmente bem antes da diferentes instituições e dos diferentes ambientes
escolarização e continuam a se desenvolver em na encruzilhada dos quais os sujeitos se interpre-
grande parte fora desta, mas na necessidade, para tam, se reinterpretam e não param de se produzir?
o aluno, de construir uma relação secundária, no Se a noção de relação com o saber é
sentido do processo de secundarização anterior- uma noção-encruzilhada entre diferentes disci-
mente mencionado, com seus saberes e sua ex- plinas de pesquisa, se ela induz a um pensa-
periência comuns do mundo, da linguagem e de mento relacional do que se joga para os sujei-
si mesmo, relação secundária esta adequada ao tos em termos de saber(es) e de aprendizagem
tempo e ao trabalho do estudo. Assim, a inicia- no confronto entre ambientes e esferas de ex-
ção na escrita, a qual antropologicamente come- periência de natureza diferente e regidos por
çou ligada à escola, requer e permite transformar normas específicas, ela não conservará esse va-
sua relação com a linguagem em uma relação re- lor heurístico a não ser que tome em conside-
flexiva, na qual a linguagem, de ferramenta de ração a especificidade dos diferentes universos
ação que pode esquecer de si mesma em sua efi- de saberes e de práticas, e de saber conjugar a
cácia, torna-se progressivamente objeto de pen- uma concepção forte de sujeito, irredutível a
samento cujas regras e modos de funcionamen- uma máquina cognitiva ou a uma abordagem
to são então passíveis de serem descritos e solipsista, uma concepção igualmente forte do
objetivados (Goody, 1977; 1993; Olson, 1994; objeto, ou seja, dos diferentes tipos de objetos
Lahire, 1993a). A escola (no sentido da skholé e de práticas de saber, e da pluralidade das ins-
grega) é a partir de então a instituição e o lugar tituições que constituem nosso mundo social e
por excelência onde se visa a que possam ser fazem viver suas contradições. Vale dizer que
transmitidos e apropriados, não quaisquer sabe- isso não poderia acontecer senão colocando no
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