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Utopias, eutopias e distopias

Por: JOSÉ LUIZ FERREIRA


Nada do que é social e humano é mais real que as utopias. Na sua vertente
eutópica, as utopias constituíram sempre o fundamento simbólico e mítico sem o
qual nenhuma forma de organização social se sustenta, justifica ou sobrevive. E
criam, tanto na vertente eutópica como na distópica, o vocabulário da revolução
e da mudança: sem os amanhãs que cantam (ou choram) teríamos, em vez de
História, um presente intemporal e eterno - como o dos faraós ou o de Francis
Fukuyama.
Aldous Huxley publicou o seu Brave New World em 1932. George Orwell, que
não tinha em grande conta este livro ou o seu autor, publicou 17 anos depois a sua
própria distopia, Nineteen Eighty-Four. Entre estas duas datas interpôs-se a
Segunda Grande Guerra: não admira que na primeira a técnica básica da opressão
do Estado fosse a manipulação genética e que na segunda, depois do descrédito
em que o regime nazi lançou o eugenismo, as técnicas principais da opressão
sejam a lavagem ao cérebro, a crueldade gratuita e a manipulação da linguagem.
Apesar desta e de outras diferenças, os dois textos foram muitas vezes lidos, nas
décadas seguintes, como os dois pólos - um hedonista, outro o oposto disto -
duma mesma distopia, a que os sinais dos tempos davam e dão plausibilidade.
Esta distopia bipolar é identificável em grande parte com a ideia de modernidade;
e hoje a invocação da modernidade, sempre na boca dos políticos e dos capitães
da indústria, soa aos nossos ouvidos tanto a ameaça como a promessa.
Do texto de Aldous Huxley, o que entrou na linguagem corrente, traduzido para
todas as línguas, foi o sobretudo o título: "admirável mundo novo". A expressão é
utilizada em toda a parte mesmo por quem nunca leu a obra: das mesas dos cafés
aos blogues, das crónicas dos jornais aos debates nos media. Do texto de Orwell,
toda a gente utiliza, própria ou impropriamente, expressões como Big
Brother, newspeak (que até teve, em português, honras de tradução:
"novilíngua"), ou ainda doublethink. Uma coisa é certa: nenhuma destas
expressões se teria conservado até hoje no uso corrente se não tivesse referentes
no real quotidiano.
A mesma sorte não teve 1985, de Anthony Burgess, publicado em 1978. Um texto
anterior de Burgess, também ele distópico, é de longe mais conhecido, talvez pela
versão filmada que dele fez Stanley Kubrik: A Clockwork Orange. 1985 recupera
alguns temas e tropos deste texto e apresenta-se como um balanço crítico
de Nineteen Eighty-Four. Divide-se em duas partes: um ensaio sobre o texto de
Orwell e a construção duma distopia alternativa, imaginada por Burgess 29 anos
mais tarde. A frase final da primeira parte do livro é: 1984 is not going to be like
that at all. Frase corajosa, vinda dum escritor que admirava e respeitava o objecto
da sua crítica. E é com ela que Burgess nos autoriza a fazermos nós também o
balanço crítico da sua alternativa, decorridos mais que outros tantos anos desde
a sua publicação.
Vejamos então o que sobreviveu melhor ao curso da história: se Nineteen Eighty-
Four aos últimos 60 anos, se 1985 aos últimos trinta e um.
As diferenças entre as duas distopias não surpreendem, sabendo que uma foi
escrita por um socialista libertário, pouco à vontade no seu estatuto social de
nascença que o colocava nas franjas do poder, e a outra escrita por um
conservador a quem o facto de pertencer a uma elite social e intelectual não
incomoda minimamente. Na primeira, o opressor é um Estado por assim dizer
anti-utilitarista, ou seja: inteiramente dedicado à prossecução do maior mal do
maior número. Burgess faz notar, na sua crítica a Orwell, que um Estado assim
nunca existiu nem pode existir. Mesmo os regimes que mais se aproximam deste
modelo são intrinsecamente instáveis: Calígula acabou assassinado, e o Império
nazi, que era para durar mil anos, durou doze. Reconhece Burgess, contudo, que
Orwell tem bons modelos para a sua terrível invenção: o franquismo contra o qual
lutou, o estalinismo que assassinou na Catalunha os seus camaradas anarco-
sindicalistas, ou o nazismo, de cujos horrores se começava a tomar conhecimento
quando o livro foi escrito. Bastou a Orwell absolutizar e levar ao extremo do
concebível estas realidades históricas, et voilà: aí temos o Ingsoc, abreviatura
de English Socialism, ou seja: Socialismo Inglês.
Burgess nota, com a indulgência a que as suas próprias contradições o obrigam,
a ironia de um socialista chamar socialismo ao regime mais monstruoso que
consegue imaginar; mas não precisa de explicar, e não explica, as razões óbvias
desta opção. Nós, habitantes do Século XXI, habituados pela propaganda vigente
a equacionar "esquerda" com "estatismo", também podemos ver ironia na escolha
deste nome. As razões de Burgess para notar esta ironia são, contudo, um pouco
diferentes das nossas. Burgess não era um anti-estatista doutrinário, mas sim um
conservador na tradição burkeana, a quem a ideologia anarco-capitalista e
revolucionária representada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan repugnaria
tanto como a qualquer militante da esquerda dita radical. Não acredita que o
Estado seja a emanação do Mal, mas exige dele essa coisa fora de moda que é a
responsabilidade moral. No capítulo "Clockwork oranges" de "1985", declara os
seus pressupostos ético-políticos:
A chemical substance injected into [Alex's] blood induces nausea while he is
watching the films, but the nausea is also associated with the music. It was not
the intention of his State manipulators to introduce this bonus or malus: it is
purely an accident that, from now on, he will automatically react to Mozart or
Beethoven as he will to rape or murder. The State has succedeed in its primary
aim: to deny Alex free moral choice, which, to the State, means choice of evil.
But it has added an unforeseen punishment: the gates of heaven are closed to
the boy, since music is a figure of celestial bliss. The State has commited a double
sin: it has destroyed a human being, since humanity is defined by moral choice;
it has also destroyed an angel.
O Estado aqui descrito não é imoral, como o de Orwell, por opção metafísica da
oligarquia que o dirige: é, mais realisticamente, um Estado amoral. Há, e houve,
Estados imorais, mas nunca houve nenhum que se definisse exclusivamente pela
imoralidade. Burgess tem razão neste ponto. Monstros desta natureza relevam
mais de ficções como Harry Potter ou Lord of the Rings do que da realidade
política que vivemos. O Mal absoluto, diz Burgess, é tão desinteressado como o
Bem; e todas as tiranias estáveis estão ao serviço de interesses.
Não é que não nos sintamos tentados, por vezes, a elaborar fantasias
deliciosamente assustadoras sobre os "Senhores do Mal"; mesmo nós,
portugueses, cá no nosso cantinho, detectamos um eco distante destas fantasias
quando ouvimos um político, um economista ou um empresário deixar no ar a
ideia de que tudo o que é impopular é necessariamente justo e acertado e tudo o
que beneficia o cidadão comum é injusto e desastroso. Levada inteiramente a
sério, esta ideia implicaria uma negação total e radical da democracia; mas
somos, tal como Burgess, demasiado sensatos para levar muito a sério ou muito
à letra tudo o que diz o poder, e é por isso que não confundimos José Sócrates ou
Maria de Lurdes Rodrigues com Voldemort.
Ao contrário de Thatcher e de Reagan, Burgess não via no Estado a única, nem
necessariamente a principal, fonte de opressão. O Estado que Burgess denuncia
não é o pesadelo de Orwell, que para Burgess não passa disso mesmo: dum
pesadelo. Nem é o Moloch burocrático da lenda negra anti-socialista. É, acima de
tudo, o Estado de Ivan Petrovitch Pavlov e de Burrhus Frederic Skinner:
The Soviet State wished to remake man and, if one knows Russians, one can
sympathize. Pavlov deplored the wild-eyed, sloppy, romantic, indisciplined,
inefficient, anarchic texture of the Russian soul, at the same time admiring the
cool reasonableness of Anglo-Saxons. Lenine deplored it, too, but it still exists.
Faced with the sloth of the waiters in Soviet restaurants (sometimes three hours
between taking the order and fulfilling it), the manic depression of Soviet taxi-
drivers, the sobs and howls of Soviet drunks, one can sometimes believe that
without communism this people could not have survived. But one baulks, with a
shudder, at the Leninist proposal to rebuild, with Pavlov's assistance, the entire
Russian character, thus making the works of Chekhov and Dostyevsky
unintelligible to readers of the far future.
B. F. Skinner foi um behaviourista radical, bem conhecido pelos professores como
teórico da Educação cujas teses ainda hoje têm influência política no nosso País
e noutros. Mas tem outras facetas menos conhecidas: como filósofo político,
produziu em 1948 Walden Two, uma eutopia - ou distopia, conforme o ponto de
vista - em que as técnicas de psicologia do comportamento conduzem a uma
harmonia social perfeita; como filósofo moral, produziu em 1971 Beyond
Freedom and Dignity, título este que não pode deixar de dar calafrios a Burgess
- e, creio bem, a muitos de nós. Burgess denuncia o Estado Soviético não tanto
por pretender privar o homem da sua liberdade económica como por pretender
privá-lo, na esteira de Pavlov e Skinner, da sua liberdade moral.
Mas se o Estado não é a única nem a principal fonte potencial de opressão, então
não basta a Burgess denunciar o Estado, como em A Clockwork Orange; é preciso
enumerar e denunciar as outras forças potencialmente hostis à liberdade (leia-se:
liberdade moral) do ser humano:
There are, indeed, forces always ready to diminish State power, though
oppressive enough in their own ways. Multinational companies that can make
and break governments but don't give a damn about matters of responsibility
to thought, art, sentiment, health, morality, tradition. The manipulators, the
true investigators into the power of propaganda, meaning doublethink,
subliminal suggestion, rendering us unfree in the realm of what we consume.
Trade unions. Minority groups of all kinds, from the women's liberationists to
the gay sodomites. And where we expect the State, that takes our money, to
protect us from the more harmful of the anarchic forces of the community, there
we find the State peculiarly powerless.
Se Burgess soa aqui como um cruzamento anti-natural entre um manifestante
anti-globalização e um moralista reaccionário, reflictamos que o texto foi escrito
antes de, quer o neoliberalismo, quer o movimento politicamente correcto terem
adquirido o estatuto de verdades dificilmente questionáveis.
Na segunda parte de 1985, Burgess já não toma como alvo o Estado de Pavlov e
Skinner, mas sim uma das forças que enumera nos capítulos anteriores. O vilão
principal de Burgess é, nesta narrativa, o movimento sindical. Não o movimento
sindical tal como existiu nos países democráticos ao longo dos séculos XIX e XX,
mas aquilo em que ele parecia estar a tornar-se no Reino Unido em 1978: um
sindicalismo totalitário que se substitui ao Estado e regula despoticamente todos
os aspectos da vida em sociedade. Este retrato do movimento sindical era em
parte, mesmo naquele tempo e lugar, pura e mal intencionada propaganda; mas
propaganda em que Burgess acreditou. Tal como Orwell se tinha alegrado, trinta
anos antes, com a vitória avassaladora do partido Trabalhista nas primeiras
eleições que se seguiram à Guerra, é possível que Burgess se tenha alegrado com
o triunfo de Margaret Thatcher, no ano seguinte ao da publicação de 1985, com
base num programa explicitamente anti-sindical. Se assim foi, esta alegria deve
ter durado pouco.
Na novela de Burgess, a personagem principal é um professor de História e
línguas clássicas, desafecto a um sistema que não lhe permite ensinar nada que
possa ser considerado "elitista". Esta dissidência leva-o primeiro à demissão e à
escolha de um trabalho manual (pasteleiro) que não lhe suscita problemas
deontológicos, depois à clandestinidade e por fim à prisão perpétua.
Em Nineteen Eighty-Four a personagem principal é um burocrata chamado
Winston Smith; o professor que protagoniza 1985 chama-se Bev Jones. A escolha
dos nomes não é trivial, como assinala explicitamente Burgess a propósito do
nome que escolheu para o protagonista de A Clockwork Orange: Alex,
diminutivo de Alexander, ou seja, em grego, "salvador de homens". " Smith" e
"Jones" são os sobrenomes mais banais do mundo anglo-saxónico. O nome
próprio "Winston" produz, associado a "Smith", um efeito dissonante que se
repercute em " Bev Jones. O nome próprio dado à personagem pelo pai pode
constituir uma homenagem a uma de três figuras históricas: Ernest Bevin,
organizador sindical, dirigente do Partido Trabalhista e Ministro do Trabalho a
partir de 1940 no governo de coligação de Winston Churchill; Aneurin Bevan,
Ministro da Saúde a seguir à vitória trabalhista de 1945, arquitecto do Serviço
Nacional de Saúde, e Ministro do Trabalho a partir de 1951, cargo de que se
demitiu em protesto contra a introdução de taxas moderadoras destinadas a
financiar a participação britânica na Guerra da Coreia; ou William Beveridge,
parlamentar do Partido Liberal cujo relatório, apresentado em 1942, veio a servir
de base à instituição do Welfare State no Reino Unido.
Bev Jones é, assim, simultaneamente a continuação e o oposto de Winston Smith,
facto que se reflecte nas óbvias diferenças e nas surpreendentes semelhanças
entre os dois textos.
Ambas as tiranias descritas são pavlovianas ou skinnerianas: Winston Smith e
Bev Jones são ambos "reeducados" a dado passo. Em ambas está presente, como
de resto em Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, a aversão do intelectual a qualquer
poder de facto ou de direito que se dedique à destruição de livros; mas o que
imediatamente salta à vista quando lemos os dois textos é o relevo que Orwell e
Burgess dão à manipulação da linguagem. Em 1985 proibe-se às escolas que
ensinem a norma culta da língua inglesa e impõe-se em vez dela o
chamado Worker's English; em Nineteen Eighty-Four o consenso artificial de
que a tirania necessita é construído recorrendo ao Newspeak.
Apesar de partirem de princípios ideológico-políticos aparentemente opostos, os
dois textos partem de princípios morais muito semelhantes e de concepções
muito próximas da liberdade. Para a personagem principal de Orwell, ser livre
significa poder acreditar que 2+2=4; para Burgess, ser livre significa ser capaz de
escolhas morais.
Hoje, olhando à nossa volta, podemos concluir que o erro e a ingenuidade que
Burgess aponta a Orwell podem não ter sido erro nem ingenuidade: o
hiperfascismo de Nineteen Eighty-Four pode ser uma figura retórica, uma
hipérbole, da qual não se espera que o leitor faça uma interpretação literal, mas
tem afloramentos numerosos e óbvios nas sociedades actuais, mesmo nas mais
democráticas.
Já o erro de Burgess é mais difícil de levar à conta de retórica. O Alex de A
Clockwork Orange reaparece em 1985 sob a forma de um gang juvenil
particularmente violento que acolhe e protege Bev Smith em troca de lições de
História, Latim e Grego. Faz rir a ideia dum bando de skinheads ou equivalente a
interessar-se pela cultura clássica, mas Burgess justifica esta implausibilidade
pela irreverência e pela revolta "naturais" na adolescência: se a autoridade proíbe
o ensino da História, das línguas clássicas e da língua materna na sua norma
culta, então a oposição dos jovens à autoridade levá-los-á a procurar o que lhes é
proibido.
Hélas, não foi isto que aconteceu nos últimos trinta anos. É verdade que certas
tribos urbanas, como os "góticos" ou os "emos", dão alguns sinais de ter
consciência da falta de alguma coisa essencial na herança que nos preparamos
para lhes deixar; mas não sabem que coisa é essa, e muito menos lhes passa pela
cabeça que possa ter alguma coisa a ver com o ensino da História ou do Latim.
Mais grave ainda: o populismo anti-elitista e anti-intelectual que Burgess temia
acima de tudo veio-nos, não pela mão dos sindicatos, mas pela mão daqueles de
quem ele esperava protecção. O apelo à rebeldia, ao individualismo, à mudança
rápida, à ruptura com o passado, vem-nos hoje, como mostra Thomas Frank
em One Market under God, já não da contra-cultura dos anos sessenta, mas sim
da publicidade com que as grandes empresas inundam os media. Os bilionários
já não são uma elite gananciosa e exploradora: usam jeans, comem hamburgers e
são vítimas, como qualquer pessoa vulgar, da perseguição que lhes move uma
casta privilegiada, snob, elitista, intelectual e académica que tem a veleidade de
"saber mais que os mercados" e não aceita submeter-se a eles com a mesma
confiança simples e cega com que um bom muçulmano se submete a Allah.
E assim se restaura a luta de classes: do lado dos oprimidos vemos Bill Gates, de
braço dado com o nosso vizinho do lado: se não os une a condição económica,
une-os a condição de "homens simples" a fé comum num catecismo (orwelliano
que baste) que afirma, entre outras coisas, que a verdadeira prosperidade está em
trabalhar cada vez mais por cada vez menos dinheiro e que a verdadeira igualdade
é a desigualdade extrema. Do lado dos opressores estão todos os que se atrevem
a pôr em dúvida estas verdades sagradas; e em representação destes
"privilegiados" surgem, em primeiro plano, os professores e os académicos.

Nota: Durante os longos dias que demorei a escrever este texto, não deixei de
acompanhar os textos a todos os títulos notáveis que o Ramiro Marques tem
estado a publicar no ProfEducação, nomeadamente a série "Há um plano para
imbecilizar as novas gerações" Não é paranóia: há mesmo esse plano. Espero
que a leitura ou releitura dos livros que aqui comento ajude a clarificar as
estratégias de marketing político que o apoiam.
Publicada por JOSÉ LUIZ FERREIRA à(s) 18:30 1 comentário:

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