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Newton Bignotto*
Faz parte do ofício dos historiadores o re- mente escapa do uso instrumental reservado às
curso a fontes documentais de toda natureza. Não ferramentas auxiliares da argumentação. Esse é o
ocorreria a um estudioso sério de um determina- caso, por exemplo, de lógicos, que inventam situ-
do período histórico recusar, por exemplo, a im- ações para facilitar a compreensão do problema que
portância de documentos conservados em arqui- estão tratando, sem, com isso, alterar o percurso
vos, ou mesmo de cartas pessoais, que se referem de suas demonstrações. Esse procedimento influ-
a seu tema. Essa afirmação, banal para os historia- encia, nos dias de hoje, várias correntes filosófi-
dores, não encontra acolhida tão favorável, quan- cas e mesmo outros saberes, como é o caso da eco-
do se trata de estudos filosóficos, mesmo entre os nomia, que fez da teoria dos jogos um instrumen-
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pla sem incorrer em falsas generalizações. Nossas dução de novas instituições sob a instigação de
pretensões, bem mais modestas, referem-se à in- Savonarola. Num terceiro momento, vamos nos
vestigação da utilidade do uso de um conjunto de perguntar pelo uso filosófico que pode ser dado
documentos conservados nos arquivos de Floren- aos textos conservados nos arquivos florentinos,
ça para a compreensão da formação e do desenvol- tendo claro que nosso objeto de fundo é o apareci-
vimento do pensamento político renascentista. mento de uma reflexão política inovadora durante
Estamos nos referindo aos protocolos das Consul- o Renascimento, e não a história italiana em sua
te e Pratiche, que eram as reuniões organizadas em generalidade. De forma mais precisa, interessa-nos
Florença para auxiliar os principais órgãos de go- estudar a relação entre linguagem política e filoso-
verno no período que vai de 1494 a 1512.1 Nesses fia no contexto aludido. Ao fim desse percurso,
encontros, cidadãos notáveis, ou representantes acreditamos que teremos chamado a atenção para
de grupos políticos ou profissionais, eram convo- alguns temas que podem contribuir para uma me-
cados para opinar sobre questões urgentes e, com lhor compreensão da questão mais ampla da rela-
isso, participar do processo de decisão, que mui- ção entre filosofia política e história.
tas vezes lidava com questões concernentes à pró-
pria sobrevivência da cidade. Essas fontes são fun- I
damentais para a compreensão do funcionamento
das instituições florentinas no final do século XV, Vamos começar delineando alguns aspec-
mas elas contêm mais do que um repertório de tos da língua política florentina. O ponto de parti-
falas que precediam a tomada de decisões. Nelas da de nossa investigação foi a constituição do
se refletia um século de cultura humanista e se republicanismo cívico renascentista e a preferên-
forjava a nova reflexão política. Para formular, no cia que foi acordada em relação à vida ativa, em
entanto, corretamente uma hipótese de trabalho, é detrimento da vida contemplativa, que constituíra
preciso clarear alguns pontos. o núcleo da doutrina cristã medieval. Sob o im-
Nossa investigação parte da ideia de que o pacto da leitura dos textos de Cícero, em especial
desenvolvimento do humanismo criou uma lin- do Tratado dos deveres, e de Tito Lívio, a primeira
guagem capaz de influenciar não apenas os estu- geração de humanistas – influenciada pelas obras
diosos da política, mas a própria vida política. Num pioneira de Petrarca e depois guiada pelo entusi-
primeiro momento, vamos tomar essa afirmação asmo de Salutati – enfrentou o problema de defi-
como plausível e tentar, de forma sumária, identifi- nir um caminho, que pudesse, ao mesmo tempo,
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. spe 02, p. 119-131, 2012
car alguns elementos dessa linguagem, lembrando manter os vínculos com o cristianismo e afirmar
alguns tempos fortes da reflexão de humanistas como os valores apregoados pelos autores romanos, que
Leonardo Bruni. Nossa segunda tarefa consiste em só podiam ser plenamente realizados com a dedi-
mostrar que, de fato, a língua dos humanistas pas- cação a atividades vinculadas à vida da cidade.2
sou a ser falada não apenas pelos que se interessa- Petrarca encontrou grandes dificuldades em aban-
vam pelos studia humanitatis, mas também pelos donar o paradigma agostiniano (1999, p.29-48),3
participantes mais ativos da cena pública, em par- hesitando, durante toda a vida, entre a herança cristã
ticular no período entre 1494 e 1512. Nesse perío- e o apelo para a participação nos negócios da cida-
do, a participação nos negócios públicos aumen- de, que lhe chegavam pelas páginas de Tito Lívio e
tou de forma expressiva, como resultado da intro- Cícero, que ele leu e comentou detalhadamente. Com
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Salutati, as coisas começaram a mudar, embora ain-
Para o estudo desses documentos, contamos hoje com
as seguintes edições: Fachard, D. (Ed.). Consulte e da seja visível a dificuldade do chanceler em ad-
pratiche. 1505-1512. Genève: Librairie Droz, 1988. 2
_______. Consulte e pratiche della Repubblica Fiorentina. Um ótimo estudo desse tema segue sendo: Baron, 1988,
1498-1505. Genève: Librairie Droz, 1993. 2v.; _______. v.1, cap 6, p. 134-157.
Consulte e pratiche della Repubblica Fiorentina.1495- 3
PÉTRARQUE. La vie solitaire. Paris: Payot & Rivage, 1999,
1497. Genève: Librairie Droz, 2002. p. 29-48.
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mitir a tese por ele mesmo defendida segundo a ou de um longo debate com as fontes medievais. Ele
qual a prática da justiça se acorda muito melhor simplesmente muda os termos do problema, apos-
com o cidadão ativo do que com o sábio tando, desde seus primeiros escritos, que sua tarefa
contemplativo (Baron, 1988, p. 144).4 principal é pensar os problemas de sua cidade e as
O que devemos reter desse movimento em dificuldades que ela e todas as repúblicas italianas
direção à cidade é que os humanistas descobriram encontravam para sobreviver no contexto turbulento
que o espaço público é lugar ideal para a prática do começo do século XV na Europa.
de virtudes. Um escrito como o Vita civile de Matteo O primeiro tema que surge de sua pena é o
Palmieri (1982)5 representa uma guinada com rela- da origem das cidades e o da criação de sua iden-
ção não apenas à contemplação, da forma como tidade. Num escrito de alto valor retórico, ele lan-
era entendida pelos medievais, mas também uma çou, nos primeiros anos do quattrocento, as bases
recusa do estoicismo, ou do sábio estoico, como para uma leitura republicana do passado florentino,
modelo de vida (Baron, 1988, p. 138-141).6 Para que já vinham germinando entre outros eruditos.
nós, a herança dos humanistas serve para atentar Seguindo a tendência de seu tempo, ele diz, logo
tanto para o risco da destruição do espaço públi- no início da Laudatio Florentine Urbis, que Flo-
co, tema recorrente na obra de pensadores con- rença era filha de Roma, da qual “temos exemplos
temporâneos como Hannah Arendt, quanto para de virtù mais numerosos do que de todas as ou-
os riscos da apatia que domina muitas sociedades tras cidades em todos os tempos” (Bruni, 1996,
democráticas contemporâneas. Ao associar valo- p.596).7 A filiação direta ao passado republicano
res como liberdade, justiça e outros à ação do ci- romano era uma tese bastante controvertida do
dadão, os humanistas criaram uma tópica essenci- ponto de vista histórico, como constataria, ao lon-
al do republicanismo moderno. go de sua vida, o próprio Bruni.
Vamos agora concentrar nossa atenção em O ponto principal da estratégia de Bruni –
alguns escritos de Leonardo Bruni, chanceler da que visava, evidentemente, a elevar Florença à con-
República Florentina na primeira metade do sécu- dição de cidade livre e gloriosa por meio do elogio
lo XV, que encarnou como poucos o espírito do de suas muitas características físicas e políticas – é
humanismo em sua vertente cívica. Essa escolha o de fornecer os fundamentos para sua liberdade e
não tem, no entanto, nada de arbitrário. Leonardo sua encarnação nas instituições republicanas atra-
Bruni legou-nos um conjunto consistente de es- vés do recurso a acontecimentos do passado que
critos nos quais explicitou, de maneira elaborada, não podiam ser postos em dúvida. Os florentinos,
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mo de toda a cidade” (Bruni, 1996, p. 614).10 Para fundação de uma cidade ou de um corpo político.
falarmos de “toda a cidade”, é preciso ter em mãos Em primeiro lugar, ao mostrar a diferença entre o
instrumentos que permitam dizer, além das fron- ato de fundação e a vida institucional, eles contri-
teiras geográficas, o que define um corpo político. buíram para a afirmação do valor simbólico do
Bruni perseguirá esse problema ao longo de sua momento inicial. Mais do que ordenar as institui-
vida. No De Militia, ele propõe uma solução bas- ções políticas, o ato de fundação, seja ele um acon-
tante simples, que se liga com a luta das cidades tecimento do passado, uma revolução, uma “mu-
italianas para ficarem livres do domínio das antigas tação de regime”, como dizia Guicciardini, ou mes-
formações com pretensões universais. Para o mo um mito, é o responsável pela ordenação sim-
humanista, “pode-se chamar (um corpo político) de bólica do corpo político.
cidade, quando ela pode manter-se por si mesma” A segunda contribuição para a compreen-
(1996, p. 660).11 Em outras palavras, o que garante
12
Idem (1996, p. 667).
13
10
Leonardo Bruni. Laudatio Florentine Urbis. p. 614. Leonardo Bruni. Oratio in funere Iohannis Strozze.
11
Leonardo Bruni. De Militia. Opere Letterarie e Politiche. Opere Letterarie e Politiche. p. 718.
14
p. 660 Leonardo Bruni. De Militia. p. 660.
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são do ato de fundação dada pelos humanistas governada por uma aristocracia que, desde o co-
advém da constatação de que as operações simbó- meço do século XV, lutava para manter o controle
licas não são elas mesmas suficientes para garantir dos principais postos de poder. A partir de 1434,
a criação de uma república. Os humanistas procu- esse equilíbrio começou a ser rompido com a as-
raram mostrar que o mito de Florença livre depen- censão da família Médici, o que distanciou ainda
dia, em grande medida, da capacidade de os ato- mais a realidade florentina dos ideais republica-
res políticos migrarem, para o terreno institucional, nos. Mesmo nesse contexto, no entanto, o
as qualidades que atribuíam às origens. Sem essa humanismo foi uma ferramenta importante não
passagem, a fundação é apenas um ato vazio, que apenas para as famílias mais poderosas.
arrisca gerar um caleidoscópio de violência, como (Martines,1980, p. 192)17 Bruni demonstra ter cons-
aquele de alguns revolucionários modernos, que ciência disso em um texto no qual descreve, para
tentaram, a todo custo, manter vivo um momento visitantes estrangeiros, a natureza do governo
cuja função é a de servir de referência simbólica, florentino, quando afirma que “a forma de gover-
mas não de se perpetuar em ações contínuas. A no de Florença não é nem aristocrática nem demo-
verdadeira obra republicana se expressa em leis e crática, mas uma mistura das duas” (Bruni, 1996,
no que modernamente chamamos de constituição, p. 776).18 A compreensão que ele demonstra da
que encontra suas raízes no momento inicial e maneira como funcionava efetivamente a distribui-
perpetua, sob a forma positiva de instituições, o ção do poder em sua cidade nos ajuda a perceber
impulso inicial de liberdade. que o republicanismo cívico dos humanistas era
Desse projeto inicial, Bruni (1996, p. 716) uma arma no combate político e uma estrela polar
retirava uma descrição da república florentina que para muitos participantes da vida pública. Os va-
vale a pena citar um pouco mais longamente: lores defendidos por Bruni, Poggio Bracciolini,19
Matteo Palmieri, Alberti20 e outros funcionaram
Nós temos uma forma de governo do Estado aten- como um programa político que demonstrou toda
ta o mais possível à liberdade e à paridade dos
cidadãos. Essa forma de governo, uma vez que é sua força em 1494, quando da queda dos Médici.
completamente igual para todos, se chama de Diante da possibilidade de reorganizar a vida polí-
popular. Nós não suportamos ninguém que seja
tica da cidade, uma boa parte dos florentinos bus-
um patrão, nem estamos submetidos ao poder de
poucos. A liberdade é igual para todos, e obedece cou, nos valores cívicos humanistas, uma referên-
exclusivamente às leis, sem medo de ninguém. cia para a reconstrução das instituições republica-
Igual para todos também é a esperança de conse-
guir elevar-se aos postos mais importantes e re- nas que haviam perdido paulatinamente suas fun-
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de como o bem maior de uma república, mas de ador recomenda cautela em seu uso como fonte
insistir na relação íntima que guardam entre si. De para a história de Florença, embora admita que:
forma esquemática, podemos dizer que os “Estudado junto com outras fontes, os protocolos
humanistas mostraram que o republicanismo não das Pratiche podem ajudar a esclarecer a origem
é uma afirmação unilateral nem da liberdade, nem das decisões legislativas e políticas e explicar seu
da igualdade e nem da participação. significado”.23 Além disso, servem como fonte so-
Como conclusão desse primeiro movimen- bre as grandes personalidades políticas do perío-
to, é possível afirmar que o humanismo cívico for- do, sobretudo aquelas mais atuantes na cena pú-
jou as bases de uma concepção de política basea- blica.24 De forma resumida, Gilbert diz: “[...] a Pra-
da na importância da ação humana na construção tica era a magistratura na qual os políticos
das cidades, que deixaram de ser o espaço de es- florentinos construíam sua reputação e se torna-
pera pelo final dos tempos. Ao ressaltar o caráter vam chefes reconhecidos”.25
ativo da relação dos homens com seu meio, os Para o historiador, há uma segunda dimen-
humanistas apontaram para o lugar de uma políti- são da vida política florentina que também está
ca cujo centro se deslocou da eternidade das for- expressa nas Pratiche e que pode ser estudada com
mas transcendentes para a imanência das cidades. muito proveito. Para ele, “uma análise desses do-
Essa maneira de pensar a política marcou profun- cumentos pode mostrar em que termos os
damente aqueles que tiveram contato com a cultura florentinos pensavam, as ideias e os valores que
humanista e ajudou a forjar a maneira como muitos os dominavam: pode-se fornecer um quadro das
participantes da vida pública florentina passaram a concepções políticas presentes em Florença”.26 A
pensar os grandes problemas de seu tempo. partir dessa consideração, o historiador mostra como
os florentinos pensavam a política externa, que pa-
II pel atribuíam à razão na deliberação política e como
pensavam a posição de Florença na cena italiana.
Feliz Gilbert, num artigo pioneiro, detectou Entre outros problemas, abordavam o papel da for-
e demonstrou a importância de estudar as ideias tuna nos negócios humanos, misturando essa ques-
políticas do período que vai de 1494 até 1512, por tão com aquela da providência divina.27
meio do recurso às Consulte e pratiche da repúbli- No plano interno, o problema da reforma
ca florentina. (1977, p. 67-114)21 Em seu trabalho, institucional era o mais importante. Preocupados
Gilbert ressalta o fato de que, nas pratiche, trava- com a instabilidade das formas de mando institu-
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va-se uma intensa batalha política. Nesse sentido, ídas depois que os Médici foram expulsos da ci-
elas se constituíam num local privilegiado do dade, os cidadãos florentinos buscaram intensa-
enfrentamento dos diversos grupos políticos que mente compreender como deveriam estruturar seu
lutavam pelo poder naqueles anos turbulentos da governo para escapar dos ataques externos, mas
república florentina. Estudar as pratiche permite, também das armadilhas postas pela fortuna.28 Es-
segundo ele, acompanhar as ações de uma aristo- ses temas se combinavam com a crença de que
cracia que se via premida entre os elementos mais Florença era uma cidade especial, escolhida por
ligados às camadas populares e os que desejavam Deus para levar a cabo uma obra a que nenhuma
o retorno dos Médici.22 Considerando, no entan- outra poderia aspirar. Mas essa aspiração e a ideia
to, o caráter consultivo do órgão e o fato de que os de que Florença fora escolhida por Deus faziam
registros do período não são completos, o histori- 23
Idem (p 77).
24
Idem (p.77).
25
21
Idem (p.79).
Felix Gilbert. Le idee politiche a Firenze al tempo di 26
Savonarola e Soderini. In: Machiavelli e Il suo tempo. Idem (p.79).
27
Bologna: Il Mulino, 1977, p. 67-114. Idem (p.95).
22 28
Idem, (1977, p. 75). Idem (p.100).
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com que os cidadãos pensassem que toda reforma na Itália quanto em outros países.
institucional deveria ser um retorno à fundação da Um segundo veio aberto pelo artigo de
cidade, ou à suas instituições, uma vez que elas se Gilbert foi aquele das análises da evolução
revestiam de um caráter divino.29 No meio de tem- institucional florentina. Antes de Gilbert, Anzilotti
pos revoltos e de grandes mudanças, a conserva- já havia se servido das mesmas fontes para estu-
ção das formas originais de governo parecia, para dar a história institucional de Florença, mas foi
muitos, o ato político mais sensato e transforma- Giorgio Cadoni quem soube compreender o alcan-
dor, mesmo se isso estivesse longe de ser possível ce teórico desse recurso e combinar os estudos
ou de espelhar a realidade política da Itália. históricos com aqueles da formação do pensamen-
Seja como for, as Pratiche eram momentos to político (1999).31 No Brasil, Gabriel Pancera com-
fundamentais da vida de Florença, e por elas pas- binou as duas heranças ao se dedicar ao estudo
saram as grandes personalidades da época. Nelas do pensamento institucional de Maquiavel (2010).32
se travaram os grandes debates que dominaram a Como nosso propósito não é o de fazer o
vida política da virada do século XV. Gilbert soube repertório bibliográfico dos últimos anos dos estu-
reconhecer não apenas a importância dessa insti- dos renascentistas, vamos nos contentar com a afir-
tuição, do ponto de vista institucional, mas tam- mação de que as indicações fornecidas pelo gran-
bém o fato de que nela se forjaram os grandes te- de estudioso e a posterior publicação dos arqui-
mas que iriam dominar o pensamento político vos abriram um campo de estudos que está longe
florentino do século XVI. Por isso, assim ele con- de ter se esgotado. Nosso propósito agora, no en-
cluiu seu artigo: tanto, não é apenas o de afirmar a fecundidade
dos caminhos abertos pelo artigo de Gilbert, mas
As Pratiche são significativas pelo fato de per- de sugerir que é possível se servir dos documen-
mitirem compreender a revolução operada por
Maquiavel no pensamento político. Maquiavel tos das Pratiche em uma direção que não foi lem-
foi um radical porque adotou sempre as ideias brada por ele e que pode se mostrar frutuosa para
mais realísticas e modernas expressas na
a história da filosofia política do Renascimento.
Pratiche; mas também foi um revolucionário
porque sistematizou essas ideias em um sistema Trata-se de fazer o movimento com o qual iniciamos
lógico, cuja pilastra fundamental é a reavaliação no sentido inverso. Ou seja, partimos da ideia de
da vontade como uma força política positiva.30
que o humanismo forjou uma nova linguagem polí-
tica e que essa nova língua impregnou, de forma
Os trabalhos pioneiros de Gilbert deram
duradoura, a cena pública florentina do século XV.
origem a uma série de estudos baseados nos docu-
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dependeram desse terreno para se constituir, mas ver, nessa instituição, o receptáculo das ideias
que, ao mesmo tempo, foi o produto de uma políticas dos humanistas e os mecanismos de trans-
interação entre a linguagem forjada pelos formação de suas ideias em operadores linguísticos
humanistas e a cena política de seu tempo. No comuns. Nesse movimento, nosso campo de pes-
fundo, reconhecemos como válida a tese de que a quisa se alarga notavelmente, pois passamos a pen-
arena pública é o terreno propício para a formação sar o problema da formação do pensamento políti-
de um pensamento que tenha por referência um co moderno em três tempos inter-relacionados, e
conjunto de ideias como aquelas expressas nas não mais como um movimento de dois tempos
Pratiche e que elas se tornam, nesse movimento movidos pelo mecanismo da influência. Esse alar-
de constituição e expansão da linguagem política, gamento do campo de estudos não destrói os re-
o local no qual os problemas da filosofia política sultados obtidos pela via aberta por Gilbert, e nem
do período são gestados e no qual se exerce a aquele seguidos, inclusive por nós,33 pelos intér-
criatividade dos grandes pensadores. Essa é, em pretes de Maquiavel que estudaram sua relação com
síntese, a tese de Gilbert. os humanistas cívicos. Nossa hipótese é de que o
Ora, se não há como negar a fecundidade reconhecimento da multiplicidade de interações
dos caminhos sugeridos por Gilbert, é mister reco- entre o pensamento político e a linguagem política
nhecer que eles deixam de lado algumas possibili- de uma época é uma maneira fecunda para se in-
dades de análise quando se adota um ponto de vestigar o problema da relação entre política e pen-
vista mais amplo no estudo das Pratiche. Para o samento político em uma época determinada. No
estudioso e muitos de seus seguidores, os proto- Renascimento, as Pratiche oferecem o material ade-
colos consolidam um terreno a partir do qual é quado para levar a cabo os estudos que estamos
possível visualizar a criação das novas teorias de sugerindo. Do ponto de vista metodológico, embo-
Maquiavel e Guicciardini, mas eles não se preocu- ra a analogia do momento vivido por Florença no
pam com os mecanismos de criação da própria começo do século XVI com a Revolução francesa
linguagem que dominava os debates políticos requeira alguns cuidados, podemos nos servir do
florentinos. De alguma forma, toma-se a linguagem debate sobre a influência do iluminismo e de
dos debates como um local de consolidação da Rousseau na preparação das ideias revolucionárias
opinião pública da época. Gilbert chega a falar de como um guia inicial para nossas pesquisas.34 Seja
linguagem conceitual dos participantes dos deba- como for, as Pratiche abrem um campo de investi-
tes, mas continua a omitir o problema da criação gação extremamente rico e que está longe de ter sido
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dessa linguagem e de seu estatuto teórico. esgotado pelos trabalhos produzidos até aqui, em
É possível, a nosso ver, encontrar, nas que pese o rigor e a riqueza de muitos deles.
Pratiche, não apenas o terreno de formação do pen-
samento político do século XVI, mas também a III
expressão do impacto direto das ideias políticas
desenvolvidas pelos humanistas na cena política Para tentar ilustrar o que sugerimos antes,
da época. Se não aceitarmos tratar os debates ape- vamos analisar alguns documentos, procurando
nas como opinião, e sua linguagem como aquela relacioná-los com a primeira parte de nosso texto,
do senso comum, podemos construir um terreno quando aludimos aos termos forjados pelos
de investigação mais amplo e que coloca a nu o humanistas em sua luta para a formação de uma
problema da relação entre os desenvolvimentos nova linguagem política em oposição à que havia
teóricos humanistas e o de seu impacto na lingua-
gem política da época. Trata-se, portanto, não ape- 33
Em alguma medida, esse foi nosso caminho em:
Bignotto (1991).
nas de reconhecer, em Maquiavel, o herdeiro das 34
Ver, a esse respeito, os livros clássicos: Chartier (1990);
Pratiche, como fez Gilbert e tantos outros, mas de Groethuysen (1956).
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sido herdada do período medieval. Para realizar estabilidade institucional da cidade, e o medo cons-
esse exercício, vamos nos deter em alguns deba- tante das invasões estrangeiras, o que levava à su-
tes, que ocorreram entre o final de junho e o come- posição de que havia um complô permanente dos
ço de julho de 1502. Referindo-se a esse período, Médici para retomar o poder.36
Cadoni diz que: “[...] a cidade se encontrava em Vamos acompanhar alguns desses debates
condições extremamente precárias, quase deses- e prestar atenção à linguagem de seus participan-
perada, também por causa da fraqueza estrutural tes. Como não estamos fazendo um estudo siste-
de suas instituições” (1999, p. 153).35 Premidos mático do período, mas apenas indicando uma
pelas circunstâncias, os florentinos tentaram, de possibilidade de pesquisa a partir de uma hipóte-
todas as formas, encontrar uma solução para a gra- se que amplia o espectro de alguns trabalhos já
ve crise pela qual passava a cidade, por meio de realizados, vamos nos contentar com a análise de
reformas institucionais que pudessem, ao mesmo alguns debates entre os dias 5 de julho de 1502 e
tempo, pacificar os grupos em luta e tornar o po- 20 de julho do mesmo ano. Nessas semanas, as
der mais eficaz para enfrentar os múltiplos desafi- conversas giraram, sobretudo, em torno da neces-
os diante do qual ele estava. O resultado foi um sidade de se realizarem reformas constitucionais.
intenso debate sobre a forma de governo, que le- Os debates se iniciaram com as ameaças feitas por
vou muitos representantes a apresentarem proje- César Bórgia, transmitidas por Maquiavel, de que,
tos de reforma, os quais, ao final do mês em ques- se não fossem feitas modificações no governo de
tão, apenas demonstraram a ruptura interna da Florença, ele o consideraria como inimigo, o que,
cidade e a sua incapacidade de encontrar rapida- na época, representava uma ameaça bastante real à
mente pontos de consenso. segurança da cidade. A primeira resposta coloca-
O aspecto principal analisado por Cadoni é va como ponto de resistência a conservação da li-
a maneira como se desenrolava, em Florença, a berdade e a necessidade de se evitar o confronto
luta pelo poder num contexto no qual a própria entre cidadãos.37 Nela, identificamos dois tópicos
sobrevivência da liberdade da cidade estava da linguagem falada na cena política florentina no
ameaçada. Interessa-nos, mais particularmente, a último século.
linguagem na qual os representantes dos diversos Em primeiro lugar aparece o medo das fac-
segmentos políticos expressavam suas opiniões e ções e dos efeitos que as lutas intestinas tinham
como sua visão de mundo era plasmada num vo- no interior da cidade. Tratava-se de uma tópica
cabulário que misturava diversas influências. Mais que, com mostrou Francesco Bruni, perdurava na
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de como participação e independência. Sabendo da essa cidade, jamais correu maior perigo, esteve
da importância que César Bórgia teve na obra de tão desordenada e teve tão pouca reputação quanto
Maquiavel e como ele tratou da questão dos confli- no presente. Peço a Deus que nos libere de tantas
tos nos Discorsi, não há como não reconhecer, nos tribulações”.39 Seguiu-se à sua fala uma série de in-
debates do mês de julho de 1502, um cruzamento tervenções nas quais se misturaram dois elemen-
entre vários atores criadores do pensamento polí- tos: o pedido de intervenção divina e a necessidade
tico do Renascimento. de recorrer às doações e empréstimos dos cidadãos
Os participantes de uma pratica falavam por para que a cidade tivesse recursos para se defender.
conta própria, ou como representantes de um ofí- O que é interessante, nesse caso, é que, apesar da
cio ou de um grupo social. A identificação dessas presença da ideia reguladora da fundação livre da
vozes é de fundamental importância para o histo- cidade estar presente nas falas de muitos partici-
riador, uma vez que permite recompor a verdadei- pantes da pratica, a necessidade de salvar Florença
ra face dos conflitos em pauta. Para nós, importa expõe uma concepção da situação que combina ele-
mais reconhecer os traços comuns da linguagem mentos totalmente díspares. De um lado, o apego a
que empregam e observar como as divergências um mito religioso que havia tido seu auge alguns
existentes entre os diversos grupos se expressa, anos antes, quando Savonarola reinava sobre os
ora por meio do recurso a uma terminologia co- espíritos. De outro, o agudo senso de realidade de
mum, ora por meio de um uso específico de um homens de negócio que temiam, sobretudo, o risco
conteúdo facilmente identificado pelos que deba- que corria seu patrimônio. Nesse caso, o humanismo
tem. Nesse sentido, não deixa de ser interessante fornece a linguagem para se compreender a identi-
o fato de que quase todos afirmam que, em primei- dade histórica da cidade, mas é deixado de lado
ro lugar, dever-se-ia recorrer a Deus como arma tanto como linguagem da esperança quanto como
primeira contra as ameaças do Duque. Reconhece- linguagem da prática política. Curiosamente, é des-
mos os traços do período dominado por se “fracasso” do humanismo do século XV em con-
Savonarola, mas também a crença humanista no solidar uma ideário político republicano baseado
destino especial de Florença. O segundo recurso na ação dos cidadãos que vão nascer tópicos cen-
mais citado é a aliança com a França, que deveria trais na obra de Maquiavel, como sua crítica à ideia
servir de proteção nos momentos mais difíceis. A de que o dinheiro é o núcleo da guerra. Retomando
concordância fundamental, no entanto, se expres- a crença humanista de que um exército de cidadãos
sa na ideia de que o que está em risco é a liberda- é o mais adequado para assegurar a defesa da cida-
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. spe 02, p. 119-131, 2012
de. Assim, o peso do pensamento humanista se de, ele garante a continuidade teórica da tradição
faz sentir na medida em que a maior parte dos republicana e realiza a crítica daqueles que, em seu
participantes da pratica iguala Florença à sua li- tempo, faziam do dinheiro o núcleo da relação dos
berdade e coloca sua defesa em primeiro lugar. À cidadãos com sua cidade. Guido Mannelli resume
luz do que sabemos sobre o emprego das tropas muito bem essa maneira de pensar, quando, depois
mercenárias na defesa da cidade e das críticas de lembrar os males de seu tempo, diz que: “para
endereçadas a esse fato por Maquiavel, devemos remediá-los, a ele ocorre que se deve pensar em
ser prudentes na interpretação do significado das todos os meios mediante os quais se possa conse-
elocuções. Não podemos, no entanto, desprezar o guir dinheiro”.40
fato de que o imaginário da cidade era aquele dos Se, nas discussões anteriores, as ameaças de
humanistas, e é dentro dele que as principais per- César Bórgia foram rechaçadas em nome da liberda-
sonalidades políticas se expressam. de da cidade, na pratica do dia 5 de julho, começa-
Na pratica do dia 3 de julho de 1502, ram a aparecer discursos nos quais o problema do
Bernardo da Diacceto resumiu o sentimento geral 39
Fachard (1993, v. 2 p. 816).
da população dizendo: “Que desde que foi funda- 40
Idem (1993, v. 2, p. 818).
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O HUMANISMO E A LINGUAGEM POLÍTICA ...
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Newton Bignotto - Doutor em Filosofia. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Tem experiência na área de Filosofia,
com ênfase em História da Filosofia. Atua principalmente nos seguintes temas: Republicanismo, Maquiavel,
Liberdade, Fundação. Publicações recentes: Um convite a pensar a liberdade. Ciência Hoje, São Paulo, SBPC,
v.1, p.76-77, 2013; Republicanismo, Constituição e percepção da justiça no Brasil. Ideias, Campinas, UNICAMP,
v.1, p.34-53, 2012; Matrizes do republicanismo (Organizador). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013. 314p; As
aventuras da virtude. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 393p v.1
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