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O ESCRITO E O VIVIDO DA ARQUITETURA BRASILEIRA VISTA POR

EDGAR GRAEFF E MIGUEL PEREIRA SOB OS FANTASMAS


DO PRESTÍGIO E DA MEDIOCRIDADE

Resumo
Conforme Miguel Pereira (1984), autodidatismo e glória prematuros levados ao
magistério a partir de experiências de escritório – empíricas e ensimesmadas – marcam o
ensino de arquitetura no Brasil, submerso em um “padrão” de escola, que na verdade
produziu meio-arquitetos. Este mesmo senso crítico em relação ao ensino de arquitetura no
Brasil tanto permeia a trajetória de Miguel Pereira quanto a de Edgar Graeff, e, provavelmente
ambos foram influenciados pela crítica fundante de Lucio Costa. Por isso é que, segundo
Pereira, a arquitetura brasileira se fez famosa em todo o mundo, já o ensino da arquitetura no
Brasil, não. Entretanto, se substituirmos esta critica dicotômica (ontológica) pela ambivalente
(hontológica), talvez possamos ampliar possibilidades de identificação das características da
teoria da arquitetura brasileira ou a ausência dela. Superando assim a abordagem do ensino
de arquitetura e atuação profissional como pares opostos. Para Graeff (1961), os objetivos
mais importantes da formação teórica do arquiteto estão implícitos em sua tarefa central, que
é a edificação de ambientes para a existência humana. Fato este que traz subentendido a
unidade entre um ensino que promova meios à percepção das condições humanas e à
consequente atuação que promova profundas transformações do ambiente edificado. Por
exemplo, o surgimento de faculdades de arquitetura teria rompido o isolamento
Escola/profissão, porém teria sido incapaz de fazer a transição de um modelo de “obra” como
foco central, para um ensino arquitetural fundamentado na reflexão, sistematização e
metodologia. É como se aí tivéssemos a figura do retornante que subsidia como um fantasma
(DERRIDA 1994). Porque aí temos não simplesmente uma figura retórica, mas propriamente
o caráter espectral da mercadoria, em seu “devir-fetiche”.
Palavras-chave: Arquitetura Brasileira, Edgar Graeff, Miguel Pereira, Fantasmas, Ensino e
Profissão.
Já é tempo de acabar-se com a Praga dos professores porventura eruditos
mas desconhecedores das exigencias reais da profissão, e que levam
o ano a se derramarem em considerações de ordem geral ou desenvolvendo
pormenores esdruxulos, para depois se excusarem, por falta de tempo,
de abordarem a materia que importa e os alunos anseiam por conhecer.
(Lucio Costa).

Introdução

As obras escritas de Edgar Graeff e Miguel Pereira têm diferenças e similaridades.


Miguel Pereira se detém fundamentalmente em elaborar teoricamente a inserção da escrita
como parte inerente do ensino e da prática da arquitetura. Graff, por sua vez, não se detém
propriamente em justificar a escrita como forma crítica ao “ensino verbalista”, mas estabelece
por meio desta, proposições teóricas que reelaboram as práticas teleológicas.

Figuras 1 e 2: Fotos de Miguel Pereira e Edgar Graeff.


Fontes: Pereira, 1984: 189; 145.

Assim sendo, essas significativas obras escritas parecem fazer propriamente os


movimentos não lineares de escape à compulsão à repetição próprios da arquitetura
brasileira. Ao mesmo tempo, ambos lideraram processos de inserção dos cursos de
arquitetura ao domínio mais amplo da universidade como locus de pesquisa. Podemos então
perceber que, cada qual ao seu modo, elabora tanto do nível suas carreiras individuais quanto
no nível organizacional, escapes à compulsão a repetição dos fantasmas do prestígio da
arquitetura brasileira e da mediocridade do seu ensino.
Seriam os fantasmas do prestígio e da mediocridade na arquitetura brasileira, na
verdade outra forma de se falar sobre o embate entre teoria e prática? E, no caso brasileiro,
a teoria, por ter inicialmente sido formulada como “ideologia histórica” apenas veio a reforçar
essa “figura do retornante”, sendo a prática do ensino da teoria uma espécie de “fantasma”
da prática profissional?
Assim, talvez possamos ampliar possibilidades de identificação das cara cterísticas da
teoria da arquitetura brasileira ou a ausência dela, superando assim a abordagem do ensino
de arquitetura e atuação profissionais como pares opostos. Porque aí temos não
simplesmente figura retórica, ou discurso, mas propriamente manifestações do caráter
espectral da mercadoria, em seu “devir-fetiche”. A hipótese é que essas fantasmagorias
conjugam uma mesma precedência, qual seja o caráter de fetiche inerente à mercadoria em
que se transformou a arquitetura após a sua desauratização, na cultura da modernidade
(BENJAMIN, 2006: 53, 54).
No limite, isto induzirá à arquitetura completamente simulada, como mostrou Otlia
Arantes (2015; 21). Mas na vivência do seu cotidiano – incluindo aí as atividades profissionais
e de ensino da arquitetura –, a arquitetura como obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica é tão somente arte de massa em uma época em que as grandes massas entram em
cena para ficar. E, nesse contexto, ocorre declínio na comunicabilidade da experiência que o
fetichismo da mercadoria promove.
Assim sendo, pensar sobre as obras de Edgar Graeff e de Miguel Pereira talvez nos
ajude a compreender que, se substituíssemos a crítica dicotômico-ontológica pela
“hontológica", poderíamos compreender que na realidade não tratam de simples figuras
retóricas ou estilísticas – mas sim da mercadoria em seu “devir-fetiche”, caráter espectral que
subsidia a arquitetura brasileira em dois espectros: os fantasmas do prestigio e da
mediocridade.

Miguel Pereira: pensamento, prática e fuga de fantasmas

No VII Encontro Nacional de Arquitetura sobre Formação Profissional, ocorrido em


1981 em Goiânia, houve a retomada de eventos para a discussão específica sobre ensino de
arquitetura. No texto Universidade brasileira, reforma e democratização, Miguel Pereira
(1984), diz que este era o afã de uma profissão que buscava o seu prestigio perdido. “uma
discussão necessária da profissão do arquiteto frente à comunidade e frente às perspectivas
de retomada de seu prestigio profissional” (Pág. 147).
Baseando-se na obra de Florestan Fernandes Universidade brasileira: Reforma ou
revolução (1975), Pereira contextualiza o caso da formação em arquitetura ao padrão cultural
da universidade brasileira, que remete à escola superior unifuncional do século XIX, de um
ensino magistral e dogmático, letrado e apto para o exercício das profissões liberais –
“a sociedade brasileira não valorizou o ensino superior, como e enquanto tal; porém, valorizou
o que entendia ser o seu produto final, nas relações pessoais” (Op. Cit., pág. 99).
Com suas estruturas tradicionais fortalecidas nessa inercia cultural, as escolas
superiores agregaram-se entre si, passando a ser chamadas – impropriamente – de
Universidade. E, nesse contexto, o saber autodidático do mestre em função da sua obra vai
perpetuar no ensino de arquitetura métodos extremamente empíricos na elaboração e
“transmissão” de conhecimentos.
Um problema talvez ainda maior. É que, além desse “padrão cultural”, no caso da
formação em arquitetura no Brasil ocorre certo desdém que leva o espirito autodidático a
prescindir da escola. Não se tratando, com isso, de um simples atrofiamento da busca pelo
conhecimento original através da pesquisa, da formação de horizonte intelectual critico, mas
da “preservação da onipotência dos profissionais liberais” (PEREIRA, 1984: 156). A que se deve
esta “onipotência” na arquitetura brasileira?
Deve-se ao fato de, no inicio do século XX os arquitetos brasileiros terem se destacado
na forte demanda pelo nacionalismo, os quais conseguiram cristalizar arquitetonicamente a
expressão orgulhosa do caráter nacional. Isso por outro lado, teve consequências com a
inanição da critica arquitetônica, inibindo o crescimento do conhecimento arquitetônico e
consolidando os discursos e influências dos mestres. “Pensamento este corroborado por Lucio
Costa: A arquitetura brasileira se fez apesar das escolas de arquitetura” (PEREIRA, 1994: 38;
2002: 57; 2005: 115).
Por consequência, “essa ‘escola’ produziu meio-arquitetos, que, ao tentarem
completar-se, através do autodidatismo, digeriu os vícios eufóricos da gloria prematura,
perenizados no reconhecimento internacional e no auto-elogio intramuros” (PEREIRA, 1984:
111). Um corolário: “sequências de raciocínio dessa ordem nos leva a uma constatação
esclarecedora e evidente: a arquitetura brasileira se fez famosa em todo o mundo. O ensino
de arquitetura, não!” (Idem: 112).
Outro aspecto adveio dessa formação endógena e autocentrada: a herança artística
das Escolas de Belas, endossando também a “não-crítica” em face da necessidade e condição
individual para o exercício da criatividade, criação na verdade isolada do indivíduo em
determinados “microclimas”. Isto, conforme Pereira (idem) gerou uma espécie de
anticientificismo dentro das escolas de arquitetura: “tudo que cheirasse à ciência teria de ser
sempre objeto de crítica e refutação, como se os processos de criação ou de criatividade, na
ciência e na arte, não pudessem ser, por analogia, muito parentes” (pág. 85).

É que a arquitetura moderna brasileira bebeu diretamente das fontes da Academia


Francesa, através das Escolas de Belas Artes, prestigiando, por isso,
dominantemente o pensamento pré-lógico ou não-lógico, tido como embrião da
criatividade artística. O anticientificismo sempre esteve presente no movimento
brasileiro da arquitetura moderna.

Focalizando no problema do anticientificismo, é que Pereira tem como eixo central de


seu pensamento a interrelação profissão/formação. E, nesta, fulcralmente pensar a
arquitetura no escopo geral da Universidade. Estando a universidade no âmbito mais amplo
da ciência, daí o papel estratégico que a pesquisa passaria a ter no ensino de arquitetura. Só
desse modo é que se romperia com o circulo vicioso do modelo atomizante, de ensino
magistral e dogmático.
Miguel Pereira teve uma trajetória profissional marcada, além da atuação com
escritório próprio, pela política de classe e pelo diálogo com as questões sobre ensino de
arquitetura – “Eu sou um arquiteto de prancheta, mas um arquiteto que tem o outro lado.
Esse outro lado da moeda eu comecei a entender na escola de arquitetura em Porto Alegre,
através do Edgar Graeff, do Demétrio Ribeiro, do Nelson Souza” (PEREIRA, 1994: 206). Desse
imbricamento biográfico-profissional, destacam-se três momentos: em 1952 participou como
representante estudantil na comissão pela reforma de ensino na Universidade do Rio Grande
do Sul;

Em Porto Alegre, na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Rio grande do Sul


poucos anos após a sua fundação (1952) a Congregação da Faculdade assume as
diretrizes da campanha pela reforma do ensino, em 1957, criando uma comissão
com assento nas reuniões dessa Congregação, constituída por três professores –
Edgar Graeff, Demétrio Ribeiro e Ivo Wolf –, um representante do IAB/RS, Irineu
Breitman e por três estudantes – Miguel Pereira, Valdyr Maggi e José Américo
Ferreira. (PEREIRA, 2002: 58).
Em 1968, participou do GT proposto pelo IAB para a reabertura curso de arquitetura
da UnB – que não funcionava desde 1965, após a demissão (expurgo) do grupo fundador do
curso (Oscar Niemeyer, Edgar Graeff, Alcides da Rocha Miranda, Lelé, Luiz Fernando
Burmeister, e outros) – com

tarefas que nos haviam sido outorgadas pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, por
solicitação da Reitoria da UnB. Fizemos todos os primeiros e necessários contatos,
dando ênfase ao encontro com o grupo de Oscar Niemeyer e Alcides da Rocha
Miranda, que dirigia o ICA-FAU, até a época do expurgo e do pedido de demissão
coletiva. (PEREIRA, 2005: 150).

Em 1973, participou da fundação da Associação Brasileira das Escolas de Arquitetura


(ABEA) e da Comissão de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (CEAU), tendo sido desta ultima
o seu primeiro Coordenador:

O crescimento acelerado do número de escolas - já atingindo a cifra de 26 – bem


como a necessidade de aperfeiçoamento dos atuais modelos de ensino, levaram o
IAB a propor ao Ministério da Educação e Cultura, a criação de um órgão capaz de
enfrentar este problema. Constituída por representantes de cinco escolas de
arquitetura, um representante do Instituto de Arquitetos do Brasil e um
representante do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo SERFHAU –, essa
comissão, com seus trabalhos já iniciados. (Trecho do texto de apresentação da
Portaria nº 699/73 do MEC in PEREIRA, 2005: 79).

A esta altura, a proliferação das escolas de arquitetura, a ponto de justificar o


surgimento da ABEA e da CEAU, também reforçaria e talvez até com maior intensidade, a
questão do aniquilamento do prestigio profissional: “a massificação da Universidade, o baixo
nível do ensino, a irrisória produção cientifica, qualificam então, como agora, a veemência de
nossa denuncia, relativa à proliferação das escolas de arquitetura e ao aniqui lamento do
prestígio profissional” (PEREIRA, 1984: 122).
Portanto, como se vê, o fantasma do prestígio perdido da arquitetura brasileira, ocorre
conjuntamente com o fantasma da mediocridade do ensino, numa compulsão à repetição que
até então jamais fora rompida. Para Miguel Pereira essa mediocridade recalcitrante tem um
cunho fundamentalmente organizacional. A qual teria advindo da organização pretérita
atomizada da universidade brasileira desde o século XIX, sendo potencializada pelo governo
dos militares. Por isso é que irá elaborar um modelo organizacional visando à superação desta
compulsão à repetição fantasmática.
Por outro lado, o reforço perene dessa atomização seria nada mais nada menos do que
o reforço da segmentação social, tendo em vista uma clas se privilegiada. Portanto, o fantasma
da mediocridade teria a sua base no interior da realidade social – a chamada “ideologia do
profissionalismo” –, do monopólio do saber profissional que desabilita as comunidades
populares. Nesse sentido, perdeu-se o prestígio internacional, porém, consolidou-se prestígio
de classe, “já que a extremada sofisticação e mistificação do conhecimento profissional
transforma-o num verdadeiro instrumento de controle social, pelo alijamento do saber e da
participação da comunidade” (idem: 161),
Por isso que, para Pereira seria tão importante pensar a arquitetura no escopo geral
da Universidade, e esta, no âmbito mais amplo da ciência. Só desse modo é que se romperia
com o circulo vicioso e o modelo atomizante de ensino magistral e dogmático. Por isso é que
no inicialmente referido VII Encontro Nacional de Arquitetura sobre Formação Profissional em
Goiânia, Pereira referiu-se a proposição de uma estratégia especulativa capaz de fundamentar
“uma profissão que busca o reencontro com seu prestigio” (idem: 146).
Nesse caso, já que o prestígio perante as classes não fora abalado, ao contrário, através
das imposições autoritárias foram consolidados e reforçados, só podemos inferir que ao falar
em “reencontro com seu prestígio” esteja na verdade falando de como romper o círculo
vicioso da mediocridade no ensino de arquitetura. Nesse caso, pensar o ensino de arquitetura
como um componente do cômputo geral da universidade seria estratégico. Por isso é que ele
vai dizer: “nenhum modelo, nenhuma proposta, poderá pretender êxito se não fundamentar
seu objetivo, através da investigação, como método capaz de modificar os velhos hábitos e
vícios que têm no ensino verbalista seu ponto de estrangulamento” (idem: 140 – grifo do
autor).
Como professor, Pereira propôs romper com o fantasma do ensino “verbalista”
habitual do mestre dogmático. Ao invés de fundamentar-se no embrião da criatividade
artística da Academia Francesa ou das Escolas de Belas Artes, propôs romper com o
anticientificismo que se perpetuou na arquitetura moderna. Assim sendo, ao invés de
perpetuar possibilidades lineares e continuístas de acontecimentos finalistas e teleológicos,
prefere a liberdade do pensar não platônico.
Pois, sendo o pensar platônico construído sobre a vontade (moral) que expulsa os
fantasmas (simulacros), o exercício platônico do pensar seria o exercício concordante e
recognitivo do modelo. O pensamento que busca a catarse do especulativo, ao contrário, não
se esquiva dos paradoxos. Nesse sentido, diz filosofia como diz Deleuze, dizendo que se é
forçado a pensar, porque o primeiro pensamento é arrombamento e violência do mundo, já
que nada supõe a filosofia, sendo esta quase misosofia (DELEUZE 1988; 210-231).
Como na teoria do trágico hölderliniano, não se trata de instaurar polaridades do tipo
dogmatismo x criticismos ou objetivo x subjetivo, etc, o que na opinião de Lacoue-labarthe
(2000: 189) não seria tão interessante porque ainda aprisionada de certa metafisica dualista.
Trata-se de estabelecer a diferença com o universo pacífico dos deuses. Como em Deleuze,
não são os deuses em seu apaziguamento que são encontrados. Encontram-se demônios da
intensidade, onde se estabelece “a disparidade no fantasma, a dessemelhança na forma do
tempo, o diferencial no pensamento” (Idem: 239), acarretando a explosão do claro e distinto
cogito ou a descoberta de um valor dionisíaco (idem: 241).
No esquema representado na figura acima 1, Pereira (2005: 153) quer mostrar que o
diálogo interativo entre Discurso filosófico, Objeto arquitetônico e Discurso da arquitetura. E,
por consequência da característica lacunar destes diálogos. Desenhos e textos tomam a forma
materializada do pensamento, em processo de crítica, destruição e construção no crescimento
do conhecimento, até chegar ao “fato arquitetônico”.
Sendo assim resultado desses diálogos escritos e desenhados que dão materialidade
ao pensamento, têm-se o fato arquitetônico como “lugar do homem com alma, com suas
utopias e seus percalços, seu drama e sua história” (idem: 153). Assim s endo, esse esquema
mostra o “valor dionisíaco” que há no contingente. Captura pela linguagem escrita e pelo
desenho a disparidade, a dessemelhança e o diferencial. Admite o processo de projeto como
atividade humana e não demiúrgica. Este “valor dionisíaco” subjacente ao homem
contingente, não demiúrgico, também se verá no pensamento arquitetônico de Edgar Graeff,
o que ainda abordaremos, adiante.

1Esse esquema foi presentado por Miguel Pereira no concurso de ingresso para a carreira docente, em 23 de
março de 1999, na FAU/USP.
Do mesmo modo que Pereira propõe romper a compulsão à repetição no pensamento
arquitetônico, propõe também esta ruptura no nível organizacional das escolas de arquitetura
– as quais compulsivamente repetiam os fantasmas da mediocridade no ensino, como já foi
dito acima. Tendo a pesquisa como ferramental do ensino, Pereira propôs esquema de uma
nova disposição das escolas de arquitetura no computo geral da ciência.
O núcleo de suas ideias foi inicialmente apresentado em 26 de janeiro de 1971 no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde funcionava o escritório do IAB da
Guanabara2. Como se vê nas figuras 5 e 6, em sua proposição a arquitetura aparece inserida
como uma dentre as demais áreas do conhecimento. Assim sendo, dispõe de infraestrutura
similar aos outros ramos da ciência, com os quais partilha do “tripé”
ensino/pesquisa/extensão.
Portanto, nesta proposta o aluno do curso aparece não como gênio ou iluminado
aprendiz de um mestre igualmente genial e iluminado. Mas como outro universitário sob a
égide das conhecidas abordagens sobre pedagogia e educação, tais como as de Paulo Freire,
Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Também, a natureza do conhecimento não é uma “caixa
fechada”, mas partilha de características similares a outras áreas do conhecimento.

2Em janeiro de 1971 o IAB do então Estado da Guanabara comemorou, so b a coordenação de Joca Serran, o
quinquagésimo aniversário de sua fundação com “depoimentos” sobre a vida profissional de arquitetos como
Lucio Costa, Alcides da Rocha Miranda, Gregori Warchavchik, Paulo Santos, Mauricio Roberto, Eduardo Knesse
de Mello, Jaime Lerner, Joaquim Guedes, Paulo Mendes da Rocha, Edgar Graeff e Miguel Pereira. O tema “ensino
de arquitetura”, centralmente focalizado por Miguel Pereira em seu depoimento, foi posteriormente escrito e
publicado nas revistas Educação (MEC/1972); C.J.Arquitetura (1973); Projeto nºs 36, 38 e 42 (1982) e Anais do
Seminário sobre Ensino no Campo do Desenvolvimento Urbano e Local (SERFHAU/OEA/COPPE-1973).
Figuras 3a - 3d: Es quema s propos to por Mi guel Perei ra , onde s e tem a a ná l i s e tri pa rti te dos discursos.Fonte:Pereira,2005:
153. Es s e model o tri pa rti te de produçã o do conheci mento, seria mais adequado à inserção da pesquisa no processo de ensino
da a rqui tetura , bem como a i ns erçã o do a l uno e do curs o de a rqui tetura no âmbito mais amplo da universidade e da ciência
Fonte: Perei ra , 2005: 106; 1984: 118.
É verdade que, focalizando no problema do anticientificismo no ensino de arquitetura
no Brasil, Pereira deseja romper com os círculos viciosos centrados fulcralmente em obras de
mestres da arquitetura, e não em pensamentos sobre a arquitetura. Porém, se faz necessário
observar que, o modo como propõe, isto é pela via da integração com a Universidade, pode
resultar em novo retorno às polaridades, supostamente platônicas.
Uma especulação que podemos fazer uma indagação é se, esta formação “integrada”
em arquitetura estaria simplesmente se adaptando ao “espirito do tempo”. E aí nesse caso,
ao invés de romper com os círculos fantasmáticos, consolidaria mais um modelo platônico.
Assim, esse foco em “integrar” duplamente o curso de arquitetura, seja por meio das
atividades de projeto, seja por meio das atividades de pesquisa, desdobra a questão do
deslocamento do ensino catedrático e da reificação da obra em uma nova dimensão e
concepção sobre Universidade.
Disse Derrida (1994: 170): “uma articulação garante o movimento deste requisitório
obstinado. Ela entra em jogo. Joga com o espírito (Geist) e o espectro (Gestpenst), entre o
espírito, por um lado; o fantasma ou aparição, por outro”. Na leitura marxiana, como mostra
Derrida, isso é o “retorno” do fetiche da mercadoria, da desauratização ocorrida após a
revolução industrial, que destitui a arquitetura de seu próprio corpo como arte e instaura um
luto por esta perda.
Trazendo este contexto para o círculo fantasmático prestígio/mediocridade,
poderíamos dizer também com Derrida, que a própria forma fenomenal do mundo é
espectral: “na direção do que Husserl identifica, (...) é justamente a condição de toda
experiência, de toda objetividade, de toda fenomenalidade, a saber, de toda correlação
noético-noemática” (Idem: 181). A obra de Edgar Graeff nos convida à reflexão sobre a
arquitetura como um campo de experiências, como veremos brevemente a seguir.

Edgar Graeff: arquitetura e o homem – do liminal ao histórico-contingencial

Em 1979 Graeff publica nos Cadernos Brasileiros de Arquitetura da Editora Projeto o


livro Edifício essencial sobre as suas analises até então apreendidas acerca da noção de
“morada do homem” – “a arquitetura só poderá recuperar efetivamente seu prestígio na
medida em que lhe for dado concentrar suas atenções no planejamento e na construção da
“morada do homem” (GRAEFF, 1979, p. 71). Este livro, tal como diz Lucio Costa em seu
prefácio, tem muitos lapsos, lacunas e excessos: “é sempre assim com as refêrencias, ou são
abusivamente exaustivas, ou deficientes demais” (COSTA, 1979: 5).
Porém, o que importa observar é o esforço empreendido nesta para recuperar o
prestígio do ensino da arquitetura brasileira, por meio do robustecimento da teoria.
Para Lara e Marques (2015: 212) há uma força fantasmagórica na reforma frustrada da
ENBA, quando se discute o ensino de arquitetura no Brasil. E então, seria a força
fantasmagórica sobre o ensino resultante em “uma metateoria da arquitetura que se esgota
em si mesma” (SALVATORI, 2015: 113)? Para Larson (2015), a fantasmagoria não estaria no
ensino em si, mas no “campo”, e o seu efeito fantasmagórico na arquitetura – “efeito de
campo” (LIPSTADT 2003).
Sendo assim, a valorização ou a consolidação da teoria no campo da arquitetura
poderia ser analisada como um “drama social” (CAVALCANTI, 2013). A teoria como ação que
instaura um estado liminal, estabelecendo maior aprendizagem do sentimento de pertença
do que a epistemológica. Pela dimensão estética operando uma cisão liminar sob influência
de uma atmosfera simbólica que ressignifica o comum e transforma seus atributos.
Então, Edifício seria como erlebnis da teoria como papel liminal, porque se
diferenciando da cesura comum entre teoria e prática remete à experiência incomum vivida
na formação em arquitetura. Não a teoria da vivência, mas o “efeito de campo” do vivido,
vivência da teoria. Que é, por assim dizer, também vivência de tensões fantasmagóricas. Tais
tensões possibilitam perceber o mecanismo produtor da dinâmica e da unidade da arquitetura
brasileira, ou seja, o “conflito” entre construção do conhecimento arquitetural e formação
profissional (MEDEIROS, 2015: 3).
É preciso perceber, como diz Mary Douglas (2007), que “quando tudo está
institucionalizado, nenhuma história ou nenhum outro dispositivo de acumulação são
necessários: ‘a instituição diz tudo” (pág. 58). Como se sabe, boa parte dos cursos de
arquitetura no Brasil atualmente se encontra “integrada” a instituições universitárias. Nestes
termos, o “drama” que aí se estabelece não é aquele hölderliniano e dionisíaco, e sim o que
fica latente das relações pela atuação constante de princípios estruturais contraditórios.
Assim como Pereira, Graeff também vai fazer uma proposta no nível organizacional,
que guarda fortes similaridades com a questão da integração à Universidade. Isto resultaria
em novo retorno às polaridades platônicas – como supomos ao que foi proposto por Pereira?
Foi o que indagamos no subtítulo anterior. É interessante, contudo, observar como trabalhou
quase obsessivamente em seus escritos para trazer o homem contingente e histórico à baila.
Como em uma “politica da escrita”, coisas e proposições fazem girar um “caosmos”
estabelecido agora como maquinaria dionisíaca, que, muitas vezes prioriza a lógica dos
sentidos, ainda que para isso tenha que se valer de paradoxos e aporias.
Despretensiosamente, poderíamos dizer como em Foucault (2007: 301): “basta reconhecer aí
uma filosofia já desprendida de certa metafísica, porque desligada do espaço da ordem, mas
voltada ao Tempo, ao seu fluxo, a seus retornos, porque presa ao modo de ser da História”.
Como Edifício seus escritos, seriam, portanto, escapes de retornos platônicos,
universalizações, leis e finalidades metafísicas. Seria então uma “reversão do platonismo” –
“como poderia Sócrates se reconhecer nestas cavernas que não são mais a sua? Com que fio,
uma vez que o fio se perdeu?” (DELEUZE, 2011:268) – toda inspirada de empirismos na medida
em que se furta à ação da Ideia, em puro devir. A antiga profundidade platônica se desdobra
na superfície do texto, fuga de fantasmagorias.
A superfície escrita se desdobra em diversas publicações antes e depois de Edifício, em
livros e revistas especializadas reunidas em um conjunto documental durante toda a carreira
profissional e acadêmica, perfazendo uma trajetória teórica-histórica. Há um “efeito de
semelhança” entrelaçado por toda essa superfície escrita.
Em fluxo histórico e na erlebnis esta teoria, como “política da escrita” é
“acontecimento puro”, sublimado, inefetuável – “pois o acontecimento não se inscreve bem
na carne, nos corpos, com a vontade e liberdade que convêm ao paciente pensador” (Idem:
229). E nesse fluxo talvez “esquizoanálitico”, de fluidez hora contínua hora descontínua de
tempo e espaço, acossado pelos mesmos fantasmas do prestígio e da mediocridade.
Essas publicações perfazem um arco temporal de aproximadamente quatro décadas e
meia, do início dos anos de 1940 até o final dos anos de 1980, além de edições e reedições
póstumas.

Figuras 4a – 4f – a seguir: Al guma s publ i ca ções de Edga r Gra eff: a rti gos na Revi s ta Horizonte (a nos de 1940);Arquiteturae
o homem (1959); Edificio (1979); Goiânia 50 anos (1985); Arte e técnica na formação do arquiteto (1996 – publ i ca çã o
pós tuma ); Uma sistemática para o estudo da teoria da arquitetura (1959 [2006] reedi çã o pós tuma ); Fontes : Acervo do
a utor; Dupra t (2013: 104).
Não seria possível compreender essa trajetória intelectual, sem fazermos uso da
desconstrução arquitetônica como ferramenta heurística. Pois, embora em sua obra existam
algumas regras de convergência ou de monocentragem, onde sempre se exclui o divergente,
a sua compreensão melhor se elabora como organização do sentido com o não senso: exclui -
se o que é sem significação e absurdo do núcleo noemático. Caminho pela lógica do sentido e
não pela lógica da significação.
A maneira como Graeff expôs o seu pensamento em publicações é de aparente
aleatoriedade. A qual pode ser interpretada como concomitante modo retrospectivo e
prospectivo. As diversas publicações em livros e revistas especializadas reunidas em um
conjunto documental durante toda a carreira profissional e acadêmica perfaz uma trajetória
de seu pensamento arquitetural. Não seria possível compreender essa trajetória intelectual,
e, por consequência, a compreensão do seu pensamento arquitetônico, se lançássemos sobre
o mesmo apenas visadas de um olhar temporal retilíneo, já que o desenvolvimento das suas
ideias não segue necessariamente a cronologia das datas em que cada livro ou revista fora
publicada, podendo justapor-se ou espaçar-se no tempo.
Figuras 5a – 5f: Al guma s dentre i númera s outra s publ i ca ções contendo textos de Edga r Gra eff: Revistas ProjetoNºs 54e
135); Au (nº 5); Módulo (Edi çã o 61); Estudos (V. 13, nºs ½); Lua Nova (Vol . 1 nº 2/84). Fontes : Acervo do a utor; Centro de
Documenta çã o do curs o de a rqui tetura da Uni vers i da de Es ta dua l de Goiás (UEG); http://www.cedec.org.br/transicao-vol--1-
no-2---1984.

A escrita perfaz o duplo movimento do preenchimento e da lacuna. Graeff escreve


“cogitando”. Cogitar é construir o vazio em torno do qual tudo se tece. Neste, a arquitetura é
um discurso utópico-memorístico, por assim dizer: como a renda de Molly [em Ulys ses] – “as
imagens da memória são criadas à medida que o retrato do sujeito é construído”. (SILVA,
2008: 6). No caso, um “sujeito” à medida da “escala humana”: com tudo o que tem de
impreciso. “A escala humana se refere a distintos valores (...); submeter à escala humana
equivale aquilatar e dispor os elementos da composição em função das impressões que eles
vão causar no espírito dos homens” (GRAEFF, 2006: 47 [1959] – grifo do autor).
Trouxe como uma das referências de sua crítica, Sylvio de Vasconcellos, que propõe,
em meados dos anos de 1950, um paradoxo para a arquitetura: “o ideal da arquitetura, seria,
em última instância, sua inexistência” (VASCONCELLOS, 1983: 20). A inexistência a que se
refere ocorre porque o valor da arquitetura não se dá por suas soluções cabais, totais ou
absolutas, mas sim no “valor comparativo”, no valor de uma procura, de um ideal, de um
desejo, de manifestação de aspirações e intensões. Nessa lógica, não prevalece a completude
das soluções absolutas, e sim a incompletude como método.
Nesta primazia do valor relativo sobre o valor absoluto, o autor não se escusa em
deixar claro que as suas ideias não aspiram ser suficientemente provadas ou determinadas
em objetivo. Prefere defini-las como apenas indícios, sugestões, impulsos, aspirações – sem
que jamais sejam alcançados. Assim, a arquitetura, permanecendo como um paradoxo,
sobreviveria sem a dualidade da discussão ciência versus arte, ou das complicações e
complexidades das múltiplas significações dos conceitos: o nicho desses ideais seriam as
“cogitações”.
Nos entremeios de “cogitações” e teses, a obra escrita de Graeff talvez seja um
hercúleo exercício de ao mesmo tempo fugir e inspirar-se na obra de seus mestres, a fim de
que pudesse constituir o seu próprio pensamento arquitetônico – tal como diz na parte final
do texto Um arquiteto em solidão:

Desde os tempos das pranchetas escolares, na Faculdade Nacional de Arquitetura,


que eu acompanho com carinho e amor a trajetória luminosa de dois imensos
arquitetos: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Em Lúcio, encontrei o mestre, lâmpada
que ilumina um caminho, a bússola que indica uma direção. Com ele eu aprendo e
continuo sendo eu mesmo. Com Niemeyer é diferente. A sua luz deslumbra, encanta
e absorve. Ela tem feitiço. Ou você sente que a sua fantasia pressiona como um
vulcão – e deve fazer-se torre também – ou você não o sente e ao inspirar-se nele
copia, plagia, furta. E você se destrói – não dá a sua luz.
É por isso que eu amo a maravilhosa obra desse grande arquiteto e sinto orgulho
dela. E é por isso que eu fujo de nela me inspirar – porque quero beber do meu
pequeno cálice. (GRAEFF, 1959: 144)

É pertinente também considerar que, assim como Miguel Pereira, Graeff também teve
a sua carreira acossada pelos mesmos fantasmas do prestígio da arquitetura e da
mediocridade do ensino. Surpreende ver a maneira como ele, por meio de sua escrita, tenta
persistentemente romper com a compulsão à repetição já acima comentada: “a crise,
portanto, continua e se agrava. E a arquitetura só poderá recuperar efetivamente seu
prestígio na medida em que lhe for dado concentrar suas atenções no planejamento e na
construção da morada do homem” (GRAEFF, 1979: 71 – grifo do autor).
O grifo dado acima no termo “morada do homem” tem uma genealogia que remete
aproximadamente aos dez anos que antecederam à publicação do livro Arquitetura e o
homem em 1959, pela Escola de Arquitetura da UMG, e trinta anos antecedentes à publicação
de Edifício em 1979. Nesse período, como atestam inúmeras publicações, Graeff vai dar
prosseguimento à tese de que o programa arquitetônico deve atender às “exigências
humanas”. Foi nessa época que, ao formular a tese do processo composicional, fez a distinção
entre o artístico do utilitário.
Com isso, foge da inspiração dos mestres, ressignificando o sentido outrora
consagrado por Le Corbusier, de “escala humana”. Com uma inusitada mescla de citações
entre o filósofo grego Protágoras e o escritor francês Saint-Exupéry, insere nesta noção de
“escala” a medida das experiências humanas – as quais na verdade não se pode medir:

Na verdade, o módulo constitui elemento importante da proporção e da escala


humana, mas nem aquela e nem esta podem ser definidas apenas por valores
extensivos. Julgar, como fazem alguns, que se esgota a questão da escala humana
com o simples estabelecimento de um modulo deduzido da estrutura do homem ou
de um ou alguns dos seus membros constitui sério equívoco. (GRAEFF, 2006: 46
[1959]).

Como se vê, a “escala” para Graeff não era apenas medidas extensivas, no caso
exposto acima, o “módulo” corbuseano seria um “sério equívoco”. Para melhor entender essa
escala humana com múltiplos valores para além dos extensivos, Graeff cita uma fala do
Príncipe, personagem do livro Cidadela de Saint-Exupéry: “eu sempre aprendi a distinguir o
importante do urgente. Pois é urgente, na verdade, que o homem se alimente (...) mas o amor
e o sentido da vida e o gosto de Deus são mais importantes” (apud GRAEFF, 2006: 27 [1959]).
Atendendo às “exigências humanas” ao elaborar o programa, é que o arquiteto
poderia compor o espaço dotado de “vida” – “capaz de solicitar esteticamente e despertar
emoções; pode ser denominado ESPAÇO ANIMADO, espaço dotado de alma, (...) aspiração de
ser” (GRAEFF, 2006: 38; 41). Dentre inúmeras outras características do processo
composicional, é a “escala humana” – expressa por vínculos culturais e sociais – que distingue
o arquitetural do tecnicista ou utilitário. Sendo o arquitetural, portanto, “natureza
essencialmente artística” (idem: 93-102; 103).
Para Graeff, um belo exemplo de projeto bem afeito à consciência humana, e à “escala
das percepções estéticas dos homens” é o proposto por Lucio Costa para Brasília. No artigo
Brasília, dois caminhos para a arquitetura contemporânea, ao mesmo tempo em que
esclarece um pouco mais o que seria esta “escala humana”, também volta à questão dos
fantasmas. Comparativamente, enquanto a proposta de Lucio Costa seria “o triunfo da vida”,
a de MM Roberto seria uma “fantasmagoria futurista” (GRAEFF, 1957: 178; 1959: 125; 1979:
37).
Ao contrapor essas duas visões de projeto para uma cidade nova, Graeff torna a tocar
no retorno do fantasma do academismo. O qual retornaria travestido de tecnicismo e
formalismo. Ambos teriam se originado no divórcio entre formas e conteúdos históricos que
geraram espaços sem vida: “MM Roberto calculou a estrutura urbana como calcularia o
esqueleto de um edifício; não especulou no vago, mas jogou com precisões. Isto indica,
sem permitir dúvidas, que o arquiteto não foi um intérprete do ser humano
em toda a sua gigantesca estatura” (1957: 165; 1959: 103; 1979: 24).
A desconexão com o “ser humano em toda a sua gigantesca estatura”, teria a ver com
a desconexão entre arquitetura e urbanismo e história. Esta desconexão histórica, proposta
por MM Roberto teria origem na ascendência das ideias de Le Corbusier sobre MM Roberto,
sobretudo o “decreto de morte” da morfologia histórica das cidades (1957: 176; 1959: 122;
1979: 36). A edição de 1957 vem ilustrada com essa suposta proposta de morte à “escala
humana”, feita por Le Corbusier.
Sabemos que há outras propostas desse tipo, feitas por Le Corbusier como negação da
“escala humana”, em todo o mundo: por exemplo, para o Rio de Janeiro, Barcelona,
Argel e Montevidéu.
Figuras 6a – 6e: Proposta de MM Roberto ao concurso de escolha de projeto para a nova Capital federal, retiradas
do texto Brasília, dois caminhos para a arquitetura contemporânea; intervenção proposta por Le Corbusier para
São Paulo, a qual, segundo Graeff, seria morte à “escala humana”. Croqui s de Le Corbus i er onde apresenta propostas
de gra ndes i ntervenções terri tori a i s pa ra o Ri o de Ja nei ro, Ba rcel ona , Argel e Montevi déu. Fontes:Fonte:Graeff(1957;
1959); http://ca s a vogue.gl obo.com/Mos tra s Expos /noti ci a /2012/08/o -gi ro-s ul -a meri ca no-de-l e-corbus i er.html ;
https ://www.meta l ocus .es /en/news /l e -corbus i er-a tl a s -modern-l a nds ca pes -ca i xa forum-ma dri d;

Ao fazer isso, Graeff identifica as fantasmagorias, discute-as e até faz uso delas para
alcançar estágios liminais no ensino de arquitetura. O problema maior é identificar qual seja
o conteúdo desses “valores humanos”, ou seja, permanecer no âmbito contigencial histórico-
cultural, sem mistificações:

Quando o poeta relatou de que maneira o técnico tornou posse do terreno,


distraidamente espargiu nos ares um certo cheiro de incenso – e em todo o país as
pessoas animadas pelos críticos de arte e comentaristas, começaram a ver, no plano
LÚCIO COSTA, não sei que essência ou resíduo místico. Por este caminho, entretanto,
não se irá além da mais barata demagogia e se velará o verdadeiro conteúdo da
cidade proposta com um tecido feito justamente do mistério que ela repele. O fato
de o traçado de LÚCIO COSTA ser algo parecido com uma cruz ou com um avião nada

significa. (GRAEFF, 1957: 179; 1959: 126-127; 1979: 38-39).


Talvez melhor interpretado pela curiosa hermenêutica com recursos literários como o
Pequeno Príncipe, citando novamente Saint-Exupéry.

Figuras 7a – 7c: Propos ta de Luci o Cos ta vencedora pa ra o concurs o de Bra s íl i a , a qua l Graeffpressupõe como grande referência de
“conteúdos huma nos ”, pa ra a l ém de gra fi s mos . Lus tra ções de Sa i nt-Exupéry fei ta s ori gi na l mente pa ra narrativa de Opequeno
príncipe, uti l i za da s por Gra eff pa ra mos tra r di da ti ca mente que uma forma pode s er a e xpressão de um conteúdo.Fonte:GRAEFF,
1979.
Estes desenhos de Saint-Exupéry foram utilizados por Graeff para que o leitor
compreendesse por meio da visualização didática, que um projeto que contenha em seu
programa a “escala humana” com seus diversos matizes de valores, não se resumirá apenas à
sua forma. Antes, a sua forma expressa o seu conteúdo: “parece fora de duvida que LUCIO
COSTA pretendeu fazer isto e indiscutivelmente o alcançou em elevado grau, assegurando
para Brasília, até o fim, um profundo e muito claro conteúdo humano” (1957: 179; 1959: 126;
1979: 38).
Então, podemos entender que o problema das fantasmagorias seria na verdade a
morte do humano. Seria a negação do humano, pelo viés da sobreposição do tecnicista,
material, extensivo, o desfavor das muitas escalas de valores pelos valores modulares
corbuseanos. O desenho que expresse apenas a forma sem conteúdo humano, seria,
conforme já dito na critica feita ao projeto de MM Roberto, uma “fantasmagoria futurista”.
Graeff explica que essas fantasmagorias surgem de projetos cujos programas não
tiveram na consciência do arquiteto as defrontações entre o técnico e o filósofo, cuja síntese
arquitetural necessária é a “entrada triunfal da vida”:

O conteúdo essencial da cidade é decidido, em última instânci a, quando


o arquiteto é capaz de reconhecer o momento exato em que as relações entre os
homens e a cidade já dispensam seu intérprete; quando a técnica e a filosofia, tendo
realizado seu ato preparatório, devem curvar-se diante dos homens e deixar a cena
livre para a entrada triunfal da vida. É o momento em que devem cessar as
cogitações sobre como serão as relações entre os homens e a cidade, para que estas
relações se estabeleçam efetivamente num processo de mútuo condicionamento. É
no desenvolvimento deste processo que o esqueleto urbano articulado pelo
arquiteto vai ganhando as carnes e as cores da vida.

Considerações finais: Edgar Graeff e Miguel Pereira, colecionadores de futuros

Os fantasmas do prestígio e da mediocridade são eventos contingentes, no sentido em


que Rüsen (2014: 256) atribui à experiência temporal, ou seja, “na medida em que representa
um desafio ao trabalho interpretativo da consciência, (...) porque exercem influência na vida
dos respectivos sujeitos”, influencia que exige uma relação interpretativa que exceda à mera
experiência, “porque por si só ela ainda não está suficientemente relacionada com o seu agir
para dar-lhe sentido”.
Compreendendo “sentido” como Rüsen, ou seja, como a quarta dimensão do
tempo, “sem a qual as outras três – passado, presente e futuro – não podem ser
humanamente vividas” (idem). Aceitando o desafio interpretativo que as fantasmagorias
impuseram, e superando, tanto a obra de Miguel Pereira quanto Edgar Graeff são como
espécies de coleções “defantasmagóricas”, onde ocorre a “iluminação profana” (KANG, 2009).
Porque aí temos não simplesmente figuras retóricas, mas propriamente o caráter espectral da
mercadoria em seu “devir-fetiche” sendo interrompido do fluxo do espetáculo do mercado
pela crítica.
Como explica Kang (2009) na figura do "colecionador" Benjamin identifica alguém
batalhando contra a fantasmagoria, nas formas de subjetividades advindas da percepção tátil
e da memória prática, ou seja, do mundo vivido. Não se entregando ao mero prazer flâneur
da aparência ou do visual, e menos afeito ao teórico do que ao crítico que interrompe o fluxo
do espetáculo, o colecionador arregimenta conhecimentos históricos e "joga luz sobre os
sonhos do indivíduo com a ajuda da doutrina dos sonhos históricos da coletividade”
(BENJAMIN, 2004: 908 apud KANG, 2009: 233; BENJAMIN, 2006: 434; 588). Edgar Graeff e
Miguel Pereira tornaram-se colecionadores de futuros.

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