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Resumo
Conforme Miguel Pereira (1984), autodidatismo e glória prematuros levados ao
magistério a partir de experiências de escritório – empíricas e ensimesmadas – marcam o
ensino de arquitetura no Brasil, submerso em um “padrão” de escola, que na verdade
produziu meio-arquitetos. Este mesmo senso crítico em relação ao ensino de arquitetura no
Brasil tanto permeia a trajetória de Miguel Pereira quanto a de Edgar Graeff, e, provavelmente
ambos foram influenciados pela crítica fundante de Lucio Costa. Por isso é que, segundo
Pereira, a arquitetura brasileira se fez famosa em todo o mundo, já o ensino da arquitetura no
Brasil, não. Entretanto, se substituirmos esta critica dicotômica (ontológica) pela ambivalente
(hontológica), talvez possamos ampliar possibilidades de identificação das características da
teoria da arquitetura brasileira ou a ausência dela. Superando assim a abordagem do ensino
de arquitetura e atuação profissional como pares opostos. Para Graeff (1961), os objetivos
mais importantes da formação teórica do arquiteto estão implícitos em sua tarefa central, que
é a edificação de ambientes para a existência humana. Fato este que traz subentendido a
unidade entre um ensino que promova meios à percepção das condições humanas e à
consequente atuação que promova profundas transformações do ambiente edificado. Por
exemplo, o surgimento de faculdades de arquitetura teria rompido o isolamento
Escola/profissão, porém teria sido incapaz de fazer a transição de um modelo de “obra” como
foco central, para um ensino arquitetural fundamentado na reflexão, sistematização e
metodologia. É como se aí tivéssemos a figura do retornante que subsidia como um fantasma
(DERRIDA 1994). Porque aí temos não simplesmente uma figura retórica, mas propriamente
o caráter espectral da mercadoria, em seu “devir-fetiche”.
Palavras-chave: Arquitetura Brasileira, Edgar Graeff, Miguel Pereira, Fantasmas, Ensino e
Profissão.
Já é tempo de acabar-se com a Praga dos professores porventura eruditos
mas desconhecedores das exigencias reais da profissão, e que levam
o ano a se derramarem em considerações de ordem geral ou desenvolvendo
pormenores esdruxulos, para depois se excusarem, por falta de tempo,
de abordarem a materia que importa e os alunos anseiam por conhecer.
(Lucio Costa).
Introdução
tarefas que nos haviam sido outorgadas pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, por
solicitação da Reitoria da UnB. Fizemos todos os primeiros e necessários contatos,
dando ênfase ao encontro com o grupo de Oscar Niemeyer e Alcides da Rocha
Miranda, que dirigia o ICA-FAU, até a época do expurgo e do pedido de demissão
coletiva. (PEREIRA, 2005: 150).
1Esse esquema foi presentado por Miguel Pereira no concurso de ingresso para a carreira docente, em 23 de
março de 1999, na FAU/USP.
Do mesmo modo que Pereira propõe romper a compulsão à repetição no pensamento
arquitetônico, propõe também esta ruptura no nível organizacional das escolas de arquitetura
– as quais compulsivamente repetiam os fantasmas da mediocridade no ensino, como já foi
dito acima. Tendo a pesquisa como ferramental do ensino, Pereira propôs esquema de uma
nova disposição das escolas de arquitetura no computo geral da ciência.
O núcleo de suas ideias foi inicialmente apresentado em 26 de janeiro de 1971 no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde funcionava o escritório do IAB da
Guanabara2. Como se vê nas figuras 5 e 6, em sua proposição a arquitetura aparece inserida
como uma dentre as demais áreas do conhecimento. Assim sendo, dispõe de infraestrutura
similar aos outros ramos da ciência, com os quais partilha do “tripé”
ensino/pesquisa/extensão.
Portanto, nesta proposta o aluno do curso aparece não como gênio ou iluminado
aprendiz de um mestre igualmente genial e iluminado. Mas como outro universitário sob a
égide das conhecidas abordagens sobre pedagogia e educação, tais como as de Paulo Freire,
Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Também, a natureza do conhecimento não é uma “caixa
fechada”, mas partilha de características similares a outras áreas do conhecimento.
2Em janeiro de 1971 o IAB do então Estado da Guanabara comemorou, so b a coordenação de Joca Serran, o
quinquagésimo aniversário de sua fundação com “depoimentos” sobre a vida profissional de arquitetos como
Lucio Costa, Alcides da Rocha Miranda, Gregori Warchavchik, Paulo Santos, Mauricio Roberto, Eduardo Knesse
de Mello, Jaime Lerner, Joaquim Guedes, Paulo Mendes da Rocha, Edgar Graeff e Miguel Pereira. O tema “ensino
de arquitetura”, centralmente focalizado por Miguel Pereira em seu depoimento, foi posteriormente escrito e
publicado nas revistas Educação (MEC/1972); C.J.Arquitetura (1973); Projeto nºs 36, 38 e 42 (1982) e Anais do
Seminário sobre Ensino no Campo do Desenvolvimento Urbano e Local (SERFHAU/OEA/COPPE-1973).
Figuras 3a - 3d: Es quema s propos to por Mi guel Perei ra , onde s e tem a a ná l i s e tri pa rti te dos discursos.Fonte:Pereira,2005:
153. Es s e model o tri pa rti te de produçã o do conheci mento, seria mais adequado à inserção da pesquisa no processo de ensino
da a rqui tetura , bem como a i ns erçã o do a l uno e do curs o de a rqui tetura no âmbito mais amplo da universidade e da ciência
Fonte: Perei ra , 2005: 106; 1984: 118.
É verdade que, focalizando no problema do anticientificismo no ensino de arquitetura
no Brasil, Pereira deseja romper com os círculos viciosos centrados fulcralmente em obras de
mestres da arquitetura, e não em pensamentos sobre a arquitetura. Porém, se faz necessário
observar que, o modo como propõe, isto é pela via da integração com a Universidade, pode
resultar em novo retorno às polaridades, supostamente platônicas.
Uma especulação que podemos fazer uma indagação é se, esta formação “integrada”
em arquitetura estaria simplesmente se adaptando ao “espirito do tempo”. E aí nesse caso,
ao invés de romper com os círculos fantasmáticos, consolidaria mais um modelo platônico.
Assim, esse foco em “integrar” duplamente o curso de arquitetura, seja por meio das
atividades de projeto, seja por meio das atividades de pesquisa, desdobra a questão do
deslocamento do ensino catedrático e da reificação da obra em uma nova dimensão e
concepção sobre Universidade.
Disse Derrida (1994: 170): “uma articulação garante o movimento deste requisitório
obstinado. Ela entra em jogo. Joga com o espírito (Geist) e o espectro (Gestpenst), entre o
espírito, por um lado; o fantasma ou aparição, por outro”. Na leitura marxiana, como mostra
Derrida, isso é o “retorno” do fetiche da mercadoria, da desauratização ocorrida após a
revolução industrial, que destitui a arquitetura de seu próprio corpo como arte e instaura um
luto por esta perda.
Trazendo este contexto para o círculo fantasmático prestígio/mediocridade,
poderíamos dizer também com Derrida, que a própria forma fenomenal do mundo é
espectral: “na direção do que Husserl identifica, (...) é justamente a condição de toda
experiência, de toda objetividade, de toda fenomenalidade, a saber, de toda correlação
noético-noemática” (Idem: 181). A obra de Edgar Graeff nos convida à reflexão sobre a
arquitetura como um campo de experiências, como veremos brevemente a seguir.
Figuras 4a – 4f – a seguir: Al guma s publ i ca ções de Edga r Gra eff: a rti gos na Revi s ta Horizonte (a nos de 1940);Arquiteturae
o homem (1959); Edificio (1979); Goiânia 50 anos (1985); Arte e técnica na formação do arquiteto (1996 – publ i ca çã o
pós tuma ); Uma sistemática para o estudo da teoria da arquitetura (1959 [2006] reedi çã o pós tuma ); Fontes : Acervo do
a utor; Dupra t (2013: 104).
Não seria possível compreender essa trajetória intelectual, sem fazermos uso da
desconstrução arquitetônica como ferramenta heurística. Pois, embora em sua obra existam
algumas regras de convergência ou de monocentragem, onde sempre se exclui o divergente,
a sua compreensão melhor se elabora como organização do sentido com o não senso: exclui -
se o que é sem significação e absurdo do núcleo noemático. Caminho pela lógica do sentido e
não pela lógica da significação.
A maneira como Graeff expôs o seu pensamento em publicações é de aparente
aleatoriedade. A qual pode ser interpretada como concomitante modo retrospectivo e
prospectivo. As diversas publicações em livros e revistas especializadas reunidas em um
conjunto documental durante toda a carreira profissional e acadêmica perfaz uma trajetória
de seu pensamento arquitetural. Não seria possível compreender essa trajetória intelectual,
e, por consequência, a compreensão do seu pensamento arquitetônico, se lançássemos sobre
o mesmo apenas visadas de um olhar temporal retilíneo, já que o desenvolvimento das suas
ideias não segue necessariamente a cronologia das datas em que cada livro ou revista fora
publicada, podendo justapor-se ou espaçar-se no tempo.
Figuras 5a – 5f: Al guma s dentre i númera s outra s publ i ca ções contendo textos de Edga r Gra eff: Revistas ProjetoNºs 54e
135); Au (nº 5); Módulo (Edi çã o 61); Estudos (V. 13, nºs ½); Lua Nova (Vol . 1 nº 2/84). Fontes : Acervo do a utor; Centro de
Documenta çã o do curs o de a rqui tetura da Uni vers i da de Es ta dua l de Goiás (UEG); http://www.cedec.org.br/transicao-vol--1-
no-2---1984.
É pertinente também considerar que, assim como Miguel Pereira, Graeff também teve
a sua carreira acossada pelos mesmos fantasmas do prestígio da arquitetura e da
mediocridade do ensino. Surpreende ver a maneira como ele, por meio de sua escrita, tenta
persistentemente romper com a compulsão à repetição já acima comentada: “a crise,
portanto, continua e se agrava. E a arquitetura só poderá recuperar efetivamente seu
prestígio na medida em que lhe for dado concentrar suas atenções no planejamento e na
construção da morada do homem” (GRAEFF, 1979: 71 – grifo do autor).
O grifo dado acima no termo “morada do homem” tem uma genealogia que remete
aproximadamente aos dez anos que antecederam à publicação do livro Arquitetura e o
homem em 1959, pela Escola de Arquitetura da UMG, e trinta anos antecedentes à publicação
de Edifício em 1979. Nesse período, como atestam inúmeras publicações, Graeff vai dar
prosseguimento à tese de que o programa arquitetônico deve atender às “exigências
humanas”. Foi nessa época que, ao formular a tese do processo composicional, fez a distinção
entre o artístico do utilitário.
Com isso, foge da inspiração dos mestres, ressignificando o sentido outrora
consagrado por Le Corbusier, de “escala humana”. Com uma inusitada mescla de citações
entre o filósofo grego Protágoras e o escritor francês Saint-Exupéry, insere nesta noção de
“escala” a medida das experiências humanas – as quais na verdade não se pode medir:
Como se vê, a “escala” para Graeff não era apenas medidas extensivas, no caso
exposto acima, o “módulo” corbuseano seria um “sério equívoco”. Para melhor entender essa
escala humana com múltiplos valores para além dos extensivos, Graeff cita uma fala do
Príncipe, personagem do livro Cidadela de Saint-Exupéry: “eu sempre aprendi a distinguir o
importante do urgente. Pois é urgente, na verdade, que o homem se alimente (...) mas o amor
e o sentido da vida e o gosto de Deus são mais importantes” (apud GRAEFF, 2006: 27 [1959]).
Atendendo às “exigências humanas” ao elaborar o programa, é que o arquiteto
poderia compor o espaço dotado de “vida” – “capaz de solicitar esteticamente e despertar
emoções; pode ser denominado ESPAÇO ANIMADO, espaço dotado de alma, (...) aspiração de
ser” (GRAEFF, 2006: 38; 41). Dentre inúmeras outras características do processo
composicional, é a “escala humana” – expressa por vínculos culturais e sociais – que distingue
o arquitetural do tecnicista ou utilitário. Sendo o arquitetural, portanto, “natureza
essencialmente artística” (idem: 93-102; 103).
Para Graeff, um belo exemplo de projeto bem afeito à consciência humana, e à “escala
das percepções estéticas dos homens” é o proposto por Lucio Costa para Brasília. No artigo
Brasília, dois caminhos para a arquitetura contemporânea, ao mesmo tempo em que
esclarece um pouco mais o que seria esta “escala humana”, também volta à questão dos
fantasmas. Comparativamente, enquanto a proposta de Lucio Costa seria “o triunfo da vida”,
a de MM Roberto seria uma “fantasmagoria futurista” (GRAEFF, 1957: 178; 1959: 125; 1979:
37).
Ao contrapor essas duas visões de projeto para uma cidade nova, Graeff torna a tocar
no retorno do fantasma do academismo. O qual retornaria travestido de tecnicismo e
formalismo. Ambos teriam se originado no divórcio entre formas e conteúdos históricos que
geraram espaços sem vida: “MM Roberto calculou a estrutura urbana como calcularia o
esqueleto de um edifício; não especulou no vago, mas jogou com precisões. Isto indica,
sem permitir dúvidas, que o arquiteto não foi um intérprete do ser humano
em toda a sua gigantesca estatura” (1957: 165; 1959: 103; 1979: 24).
A desconexão com o “ser humano em toda a sua gigantesca estatura”, teria a ver com
a desconexão entre arquitetura e urbanismo e história. Esta desconexão histórica, proposta
por MM Roberto teria origem na ascendência das ideias de Le Corbusier sobre MM Roberto,
sobretudo o “decreto de morte” da morfologia histórica das cidades (1957: 176; 1959: 122;
1979: 36). A edição de 1957 vem ilustrada com essa suposta proposta de morte à “escala
humana”, feita por Le Corbusier.
Sabemos que há outras propostas desse tipo, feitas por Le Corbusier como negação da
“escala humana”, em todo o mundo: por exemplo, para o Rio de Janeiro, Barcelona,
Argel e Montevidéu.
Figuras 6a – 6e: Proposta de MM Roberto ao concurso de escolha de projeto para a nova Capital federal, retiradas
do texto Brasília, dois caminhos para a arquitetura contemporânea; intervenção proposta por Le Corbusier para
São Paulo, a qual, segundo Graeff, seria morte à “escala humana”. Croqui s de Le Corbus i er onde apresenta propostas
de gra ndes i ntervenções terri tori a i s pa ra o Ri o de Ja nei ro, Ba rcel ona , Argel e Montevi déu. Fontes:Fonte:Graeff(1957;
1959); http://ca s a vogue.gl obo.com/Mos tra s Expos /noti ci a /2012/08/o -gi ro-s ul -a meri ca no-de-l e-corbus i er.html ;
https ://www.meta l ocus .es /en/news /l e -corbus i er-a tl a s -modern-l a nds ca pes -ca i xa forum-ma dri d;
Ao fazer isso, Graeff identifica as fantasmagorias, discute-as e até faz uso delas para
alcançar estágios liminais no ensino de arquitetura. O problema maior é identificar qual seja
o conteúdo desses “valores humanos”, ou seja, permanecer no âmbito contigencial histórico-
cultural, sem mistificações:
Figuras 7a – 7c: Propos ta de Luci o Cos ta vencedora pa ra o concurs o de Bra s íl i a , a qua l Graeffpressupõe como grande referência de
“conteúdos huma nos ”, pa ra a l ém de gra fi s mos . Lus tra ções de Sa i nt-Exupéry fei ta s ori gi na l mente pa ra narrativa de Opequeno
príncipe, uti l i za da s por Gra eff pa ra mos tra r di da ti ca mente que uma forma pode s er a e xpressão de um conteúdo.Fonte:GRAEFF,
1979.
Estes desenhos de Saint-Exupéry foram utilizados por Graeff para que o leitor
compreendesse por meio da visualização didática, que um projeto que contenha em seu
programa a “escala humana” com seus diversos matizes de valores, não se resumirá apenas à
sua forma. Antes, a sua forma expressa o seu conteúdo: “parece fora de duvida que LUCIO
COSTA pretendeu fazer isto e indiscutivelmente o alcançou em elevado grau, assegurando
para Brasília, até o fim, um profundo e muito claro conteúdo humano” (1957: 179; 1959: 126;
1979: 38).
Então, podemos entender que o problema das fantasmagorias seria na verdade a
morte do humano. Seria a negação do humano, pelo viés da sobreposição do tecnicista,
material, extensivo, o desfavor das muitas escalas de valores pelos valores modulares
corbuseanos. O desenho que expresse apenas a forma sem conteúdo humano, seria,
conforme já dito na critica feita ao projeto de MM Roberto, uma “fantasmagoria futurista”.
Graeff explica que essas fantasmagorias surgem de projetos cujos programas não
tiveram na consciência do arquiteto as defrontações entre o técnico e o filósofo, cuja síntese
arquitetural necessária é a “entrada triunfal da vida”:
Referências