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O que é a desconstrução?

O QUE É A DESCONSTRUÇÃO?

What’ s deconstruction?

José Antonio Vasconcelos1

Resumo
Este artigo busca delinear uma compreensão da desconstrução como estratégia articulada à filosofia de
Jacques Derrida. Nesse sentido, cumpre destacar alguns exemplos de como a atividade desconstrucionista
trabalha, em especial a desconstrução que Derrida faz da argumentação de Lévi-Strauss em torno dos mitos.
Por fim, cumpre também esclarecer alguns equívocos em torno da desconstrução, que muitas vezes é utilizada
como conceito ou método de análise, domesticando assim completamente seu potencial de abalar as
estruturas do pensamento logocêntrico.
Palavras-chave: Desconstrução; Pós-estruturalismo; Derrida.

Abstract
This article aims to outline an understanding of deconstruction as a strategy articulated to the philosophy of
Jacques Derrida. In this task, it is important to discuss some examples of how deconstruction works, and
especially the deconstruction Derrida operates on Levi-Strauss’ arguments on myths. In the end it is also
important to clarify some misunderstandings about deconstruction, which is frequently used as a concept or
method of analysis, for this domesticates its potential of undermining the structures of logocentric thought.
Keywords: Deconstruction; Post structuralism; Derrida.

1
Doutor em História pela Unicamp e professor da Universidade Tuiuti do Paraná
E mail :. historicismo@hotmail.com

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José Antonio Vasconcelos

Introdução de, obviamente não possa esgotar um fenômeno tão


rico e, ao mesmo tempo, tão indefinido quanto o
O pós-estruturalismo tem freqüentemente pensamento pós-estruturalista, ela é útil para ilustrar
sido colocado como instância crítica frente às pre- o efeito produzido pela desconstrução, uma estraté-
tensões de objetividade nas pesquisas em ciências gia para a leitura de textos desenvolvida por Derrida,
humanas. Na verdade, quanto mais nos aprofunda- a qual, ainda que inadequadamente, tem sido fre-
mos na literatura sobre o pós-estruturalismo, mais qüentemente associada ao empreendimento pós-es-
podemos perceber o quanto este se apresenta como truturalista como um todo.
um fenômeno complexo e confuso. Em primeiro lu-
gar, o próprio prefixo “pós” pressupõe uma compre-
ensão do estruturalismo que o precedeu, e que, de- Desconstrução: um conceito?
vemos admitir, é bastante problemática. Basta dizer
que o termo “estruturalista” tem sido muitas vezes Por mais tentador que isso pareça ser, a
usado com referência a autores de áreas e perspecti- desconstrução não pode, de acordo com Derrida,
vas diversas e, por vezes, irreconciliáveis. Uma lista ser entendida como um conceito ou como um mé-
de autores estruturalistas incluindo os nomes de Fer- todo, sob pena de absolutamente não entender-
dinand de Saussure, Claude Lévi-Strauss, Fernand mos a novidade do pensamento desconstrucionis-
Braudel, Wladmir Propp e Michel Foucault, por exem- ta, que tenta subverter as próprias noções de con-
plo, já seria o suficiente para dar uma noção do que ceito e método. Eis porque Derrida (1975, P.53-
quero dizer. Em segundo lugar, mesmo que tenha- 54), em certas passagens, ao escrever sobre a des-
mos definido, grosso modo, o que entendemos por construção, prefere utilizar o termo “estratégia”:
estruturalismo, nos caberia formular uma definição
de “pós-estruturalismo” que fosse tão simples e dire- O que me interessava naquele momento [da
ta quanto possível, de modo que pudesse servir de escrita de La dissemination, La double séance
princípio para um estudo mais aprofundado, e, ao e La mythologie blanche], o que tento continu-
mesmo tempo, tão abrangente quanto possível, de ar agora sob outras vias, é, a par de uma “eco-
modo a abarcar todos os autores e escritos classifica- nomia geral”, uma espécie de estratégia geral
dos sob esta rubrica. Por fim, para complicar ainda da desconstrução. [...] É, pois necessário ante-
mais este cenário, tal lista de autores e obras pós- cipar um duplo gesto, segundo uma unidade
estruturalistas simplesmente não existe. Jacques La- simultaneamente sistemática e como que afas-
can, Louis Althusser e Michel Foucault, por exemplo, tada de si mesma, uma escrita desdobrada, isto
figuram em alguns comentadores como estruturalis- é multiplicada por si própria, aquilo a que cha-
mei em “La double séance, uma dupla ciência:
tas e em outros como pós-estruturalistas, sem que
por um lado, atravessar uma fase de derruba-
haja consenso definitivo a esse respeito. O mesmo mento. [...] aceitar essa necessidade é reconhe-
pode ser dito de Roland Barthes, pois muitos de seus cer que, numa oposição filosófica clássica, não
livros e ensaios apresentam aspectos pós-estrutura- tratamos com uma coexistência pacífica de um
listas sobre um pano de fundo estruturalista bastante vis-a-vis, mas com uma hierarquia violenta. Um
tradicional. O estudo de uma tendência tão vaga e dos dois termos domina o outro (axiologica-
difusa, portanto, soaria desanimador não fosse pela mente, logicamente, etc.), ocupa o cimo. Des-
impressionante repercussão dos escritos de Jacques construir a oposição é primeiro, num determi-
Derrida, um autor inequivocamente associado ao pós- nado momento, derrubar a hierarquia.
estruturalismo, e cujas idéias nos servirão de roteiro
para a compreensão desta corrente teórica. Para Derrida, o pensamento metafísico tra-
O pós-estruturalismo utiliza a teoria estru- dicional, por ele chamado de logocêntrico, jamais se
turalista para questionar e tornar problemáticas – mas desvinculou de uma abordagem que identifica pares
não negar – as premissas do próprio estruturalismo. de oposições – razão e sensação, espírito e matéria,
Nesse sentido, o pós-estruturalismo, em relação a identidade e diferença, lógica e retórica, masculino e
seu predecessor, poderia ser metaforicamente com- feminino etc., mas, sobretudo, fala e escrita –, esta-
parado a alguém que avança numa piscina cada vez belecendo a primazia do primeiro sobre o segundo
mais funda até que seus pés não mais possam tocar termo da oposição. Esta hierarquização das relações
o chão. Quando o estruturalismo “perde o chão”, opositivas nos remete a uma categoria fundamental,
penetramos no domínio pós-estruturalista. Embora a presença, a partir da qual podemos explicar a rea-
essa imagem, em virtude de sua própria simplicida- lidade em geral. Segundo Derrida:

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A história da metafísica, como a história do quase absoluta com Hegel [...]), o ponto de ruptu-
Ocidente, seria a história dessas metáforas e ra com a Aufhebung e da dialética especulativa”
dessas metonímias [os diferentes nomes que uti- (DERRIDA, 1975, p. 56). A prática da desconstrução,
lizamos para nos referir a um centro ou funda- portanto, consiste em inverter a hierarquia tradicio-
mento estável a partir do qual possamos pensar nalmente estabelecida entre um conceito e seu oposto
a totalidade de uma estrutura ou mesmo da re- correlato, para em seguida estabelecer, não a redu-
alidade em geral]. A sua forma matricial seria – ção de um conceito a outro, como postularia a filo-
espero que me perdoem por ser tão pouco de- sofia de Hegel, mas sim o jogo, a incessante alternân-
monstrativo e tão elítico, mas é para chegar mais cia de primazia de um termo sobre o outro, produ-
depressa ao meu tema principal – a determina- zindo, assim, uma situação de constante indecisão.
ção do ser como presença em todos os sentidos
Vejamos como Derrida apresenta essa passagem do
desta palavra. Poder-se-ia mostrar que todos os
derrubamento ao jogo, contrastando sua abordagem
nomes do fundamento, do princípio, ou do cen-
tro, sempre designaram o invariante de uma
com a de Hegel:
presença (eidos, arquê, telos, energeia, ousia
(essência, existência, substância, sujeito) alehteia, A partir daí, para marcar este desvio [isto é, a
transcendentalidade, consciência, Deus, homem, prática da desconstrução seguindo o momento
de inversão das hierarquias] [...] foi preciso ana-
etc.) (1995, p. 231).
lisar, fazer trabalhar algumas marcas, tanto no
texto da história da filosofia como no texto “li-
Num primeiro momento, a desconstrução terário” [...], marcas essas [...] a que chamei por
visa a inverter a hierarquia dos conceitos, procuran- analogia (sublinho-o) indefiníveis, isto é, uni-
do pensar o segundo termo como principal e origi- dades de simulacro, “falsas” propriedades ver-
nário. Na relação entre causa e efeito, por exemplo, bais, nominais ou semânticas, que já não se
este é tradicionalmente entendido como secundário deixam compreender na oposição filosófica (bi-
e derivado daquela. Mas, em nossa experiência, pri- nária) e que, todavia a habitam, lhe resistem, a
meiramente constatamos a manifestação do efeito, desorganizam, mas sem nunca constituírem um
para então remontarmos a suas causas. Assim conce- terceiro termo, sem nunca darem uma solução
bido, o efeito é que deveria ser tido como originário, na forma dialéctica especulativa [...]. De facto, é
contra a reapropriação incessante desse traba-
pois é por causa dele que um fenômeno pode ser
lho de simulacro numa dialéctica de tipo hege-
concebido como causa. Em outras palavras, numa liano (que chega a idealizar e a “semantizar”
perspectiva desconstrucionista, o efeito é entendido este valor de trabalho) que me esforço por le-
como a causa de sua própria causa.2 Outro exem- var a operação crítica, já que o idealismo hege-
plo: a condição masculina só é concebível em sua liano consiste justamente em superar as oposi-
relação àquilo que ela não é. A idéia de homem só ções binárias do idealismo clássico, em resolver
pode ser pensada enquanto tal na medida em que sua contradição num terceiro termo que vem
estiver em oposição às idéias de mulher ou gay. O “aufheben”, negar superando, idealizando, su-
Outro, portanto, é essencial à compreensão de Si blimando numa interioridade anamnésica (Err-
Mesmo, e, em função disso, não pode ser considera- rinerung), internando a diferença numa pre-
do como algo meramente acidental e secundário. sença-a-si (1975, pp. 55-56).
Pensar o termo inferior como principal, pro-
duzir o derrubamento da hierarquia, como sugere O termo “jogo”, empregado por Derrida
Derrida, constitui, deste modo, o primeiro passo na com relação a esta segunda fase da desconstrução,
dinâmica de uma abordagem desconstrucionista. foi proposto a princípio numa palestra – “Estrutura,
Contudo, permanecendo simplesmente neste mo- signo e jogo no discurso das ciências humanas” –,
mento de inversão, continuaremos ainda presos a apresentada na Universidade de Johns Hopkins, em
uma perspectiva logocêntrica. Uma oposição hierár- 1966, e posteriormente publicada numa coletânea
quica, mesmo sendo invertida, continua sendo hie- intitulada A escritura e a diferença. Na verdade, nes-
rárquica. Nesse sentido, e isto o próprio Derrida o se texto Derrida somente se refere ao jogo de manei-
reconhece, esta fase de derrubamento seria análoga ra indireta, sem explicar em qualquer momento o
à clássica oposição entre tese e antítese proposta pela que é o jogo, em que este consiste. E isso em função
lógica hegeliana. Em Posições, Derrida afirma: . “A de um princípio fundamental da filosofia derridiana:
diferância [tradução portuguesa de différance, um o de que não existe princípio, fundamento ou con-
conceito derridiano nesse texto associado à descons- ceito que seja anterior ou esteja fora do jogo de
trução] deve assinar (num ponto de proximidade diferenças que operam em qualquer discurso. Deste

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modo, afirmar que “o jogo é isto” ou “o jogo é de estrutura centrada – embora represente a própria
aquilo” seria reduzir essa noção ao sistema de coerência, a condição da episteme como filosofia ou
oposições que ela visa subverter. “O jogo”, de acor- como ciência – é contraditoriamente
do com Derrida, “é sempre um jogo de ausência e coerente”.(Ibidem, p. 230). Na prática da descontru-
presença, mas se o quisermos pensar radicalmen- ção, portanto, não se trata de reduzir o exterior ao
te, é preciso pensá-lo antes da alternativa da pre- interior, nem de celebrar anarquicamente o predo-
sença e da ausência; é preciso pensar o ser como mínio do conceito de fora sobre o de dentro, mas, a
presença ou ausência a partir da possibilidade do partir dessa oposição, procurar pensar o jogo que a
jogo, e não inversamente” (DERRIDA, 1971, p. 248). antecede e a torna possível.
Esta primeira oposição, na verdade, consti-
tui um preâmbulo, a partir do qual Derrida dá início
A Desconstrução em ação a uma discussão sobre o empreendimento estrutura-
lista, e, em particular, aquela versão de estruturalis-
mo representada pela obra de Claude Lévi-Strauss.
Uma das principais características da abor-
Também nas teorias desse autor, Derrida identifica
dagem desconstrucionista, tal como praticada por
Derrida, é a apropriação e utilização de conceitos pares de conceitos opostos que são submetidos à
crítica desconstrucionista: etnocentrismo e descen-
derivados de um sistema de pensamento para, ao
tramento, pensamento conceitual e pensamento mí-
final, mostrar como esse sistema não funciona. Vol-
tico, engenheiro e bricoleur, e, relacionados a estes,
tando ao exemplo a que me referi anteriormente, se
ainda os conceitos de significante e significado, e de
afirmarmos que o efeito é a causa que faz com que a
sensível e inteligível.
causa possa ser concebida enquanto tal, nós estare-
mos lançando mão de um conceito – o de causa – Para ilustrar a estratégia desconstrucionista
utilizada por Derrida, tomemos a oposição entre con-
para questionar o próprio sistema – o da causalida-
ceito e mito e observemos como ela se torna proble-
de – no qual este conceito se fundamenta. De acor-
mática na obra de Lévi-Strauss. Este, de acordo com
do com Jonathan Culler (1994), teórico do estrutura-
Derrida, reconhece que “o discurso sobre esta estru-
lismo e pós-estruturalismo literários, “este duplo pro-
tura a-cêntrica que é o mito não pode ele próprio ter
cedimento de sistematicamente empregar os concei-
tos ou premissas que se está solapando, coloca o sujeito e centro absolutos. Deve, para apreender a
forma e o movimento do mito, evitar a violência que
crítico numa posição, não de distanciamento cético,
consistiria em centrar uma linguagem descritiva de
mas de um envolvimento sem garantias, afirmando
uma estrutura a-cêntrica”. Desse modo, somos leva-
que a causalidade é indispensável ao mesmo tempo
dos à conclusão de que “Por oposição ao discurso
em que se nega a esta qualquer justificação rigoro-
epistêmico, o discurso estrutural sobre os mitos, o
sa”. E acrescenta: “este é um aspecto da desconstru-
ção que muitos acham difícil de entender e aceitar” discurso mito-lógico deve ser ele próprio mito-
morfo”.(Ibidem, p. 241) Por isso é que, em Le cru et
(p.87-88).
le Cuit, Lévi-Strauss chega a admitir que “será acerta-
Para que possamos perceber melhor essa
do considerá-lo [seu livro] como um mito: de qual-
característica da abordagem desconstrucionista, va-
quer modo, o mito da mitologia” (LÉVI-STRAUSS
mos tomar como exemplo o texto “Estrutura, signo e
apud DERRIDA, p. 242).
jogo no discurso das ciências humanas”. Nele, Derri-
da parte de uma oposição binária entre o dentro e o Esta primeira fase de derrubamento, de in-
versão de uma hierarquia previamente estabelecida
fora do centro numa estrutura. De acordo com Der-
por uma perspectiva etnocêntrica, que afirmava a
rida, “a estrutura, ou melhor, a estruturalidade da
prioridade do pensamento conceitual sobre o pen-
estrutura, embora tenha sempre estado em ação, sem-
samento mítico, do raciocínio lógico sobre a bricola-
pre se viu neutralizada, reduzida: por um gesto que
gem, e que é levada a cabo pelo próprio Lévi-Strauss,
consistia em dar-lhe um centro, em relacioná-la a um
ponto de presença, a uma origem fixa” (1971, p.230). nos força a pensar o mito como uma forma de pen-
samento original, irredutível à lógica e até mesmo
Esse centro seria então uma condição necessária para
como condição da própria episteme. Mas a descons-
a substituição dos elementos no interior de uma es-
trução derridiana vai além, questionando, em pri-
trutura, mas, ao mesmo tempo, um elemento dessa
meiro lugar, o alcance de uma abordagem que pre-
estrutura que não se presta à substituição. Nesse sen-
tende ultrapassar os limites colocados pela metafísi-
tido, podemos dizer que, paradoxalmente, o centro
está, ao mesmo tempo, dentro da estrutura e fora ca tradicional, e que, ao mesmo tempo, utiliza uma
dela. Isso permite a Derrida afirmar que o “conceito linguagem derivada dessa mesma tradição.

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Não tem nenhum sentido abandonar os con- temente visto como um teórico niilista, dando aval à
ceitos da metafísica para abalar a metafísica; livre interpretação, destituída de qualquer rigor críti-
não dispomos de nenhuma linguagem – de co. Christopher Norris, discutindo a desconstrução
nenhuma sintaxe e de nenhum léxico – que em Derrida, contrapõe-se com insistência a esse ponto
seja estranho a essa história; não podemos de vista, argumentando que “tratar a desconstrução
enunciar nenhuma proposição destruidora
como um convite aberto a formas novas e mais aven-
que não se tenha já visto obrigada a escorre-
gar para a forma, para a lógica e para as pos- turosas de crítica interpretativa é claramente equivo-
tulações implícitas daquilo mesmo que gos- car-se com relação àquilo que é mais distintivo e
taria de contestar”. (DERRIDA, 1971, p. 233). exigente nos textos de Derrida” (NORRIS, 1987, p.
20). E ainda:
Sendo assim, diante de um gesto que fa-
ria sucumbir a noção de conceito – e, deste modo, A ênfase de Derrida sobre a textualidade e a
toda a Filosofia, tal como a entendemos, sob a escrita não é, em qualquer sentido, uma rup-
primazia do mito, Derrida faz uma pausa, colo- tura com a filosofia, ou uma declaração de
liberdades interpretativas até então não so-
cando o seguinte questionamento:
nhadas sob a severa lei repressiva da clareza
e verdade conceituais. Que esta impressão es-
Contudo, se nos rendermos à necessidade do teja tão divulgada é parcialmente o resultado
gesto de Lévi-Strauss, não podemos ignorar os de que os filósofos tenham mostrado pouca
seus riscos. Se a mito-lógica é mito-mórfica, será vontade em ler Derrida, mas um zelo inco-
que todos os discursos sobre os mitos se equi- mum em denunciá-lo com base em conheci-
valem? Dever-se-á abandonar toda exigência mento de segunda mão de seu trabalho.
epistemológica permitindo distinguir entre vá- [...] Como eu já argumentei – e argumentarei
rias qualidades do discurso sobre o mito? Ques- novamente –, a desconstrução é mal servida
tão clássica, mas inevitável. Não podemos res- por aqueles fanáticos de uma “liberdade” tex-
ponder a ela – e creio que Lévi-Strauss não lhe tual ilimitada, que rejeitam as próprias noções
responde – enquanto não tiver sido expressa- de pensamento rigoroso ou de crítica concei-
mente exposto o problema das relações entre o tual (Ibidem, p. 21, 27).
filosofema ou o teorema de um lado, e o mite-
ma ou mitopoema do outro (Ibidem, p. 242).
Quando Norris usa os termos “filósofos” e
“fanáticos”, devemos entender, respectivamente, uma
Ora, se há relação entre filosofema e mi- tendência majoritária nos estudos filosóficos norte-
tema, e se sabemos que estes ocupam lugares opos- americanos, de orientação analítica, cuja recepção
tos, é porque uma distinção pode e deve ser feita de Derrida se faz por intermédio dos departamen-
entre esses dois conceitos, para que, ao invés de tos de Literatura, ao lado de uma corrente da Teoria
reduzirmos um ao outro, possamos pensar o jogo Literária americana que interpreta as idéias de Der-
existente entre ambos. Sem esta segunda fase, a rida, muitas vezes tendo apenas uma compreensão
desconstrução permaneceria incompleta. Ao que, superficial da tradição metafísica que ele critica.
Derrida acrescenta: “O que pretendo acentuar é ape- Segundo Jonathan Culller, essa tendência da Teoria
nas que a passagem para além da Filosofia não con- Literária constitui, de fato, um novo gênero nos es-
siste em virar a página da Filosofia, (o que finalmen- tudos literários, o qual geralmente chamamos de
te acaba sendo filosofar mal) mas em continuar a ler “teoria”. Mas, ao mesmo tempo, Culler observa que
de uma certa maneira os filósofos” (Ibidem, p. 243). os “estudantes de teoria lêem Freud sem se pergun-
Como podemos perceber, portanto, a des- tarem se a pesquisa posterior em Psicologia possa
construção derridiana não tem por objetivo negar, ter contradito suas formulações; eles lêem Derrida
simplesmente e levianamente, o valor da tradição sem ter dominado a tradição filosófica; eles lêem
filosófica ocidental, ou negar qualquer distinção en- Marx sem estudar descrições alternativas de situa-
tre conceito e mito, ou entre Filosofia e Literatura. O ções políticas e econômicas” (CULLER, 1994, p. 9).
que Derrida busca realizar, em todos os seus escri- Não que, segundo Culler, isso seja necessariamente
tos, é um questionamento, uma crítica rigorosa dos ruim. Pelo contrário, em seu entender a leitura de
limites de uma filosofia da representação, para que textos “canônicos” fora de sua matriz disciplinar pode
possamos vislumbrar a possibilidade de uma forma contribuir para a produção de significados novos e
de pensamento que esteja além – ou aquém – desses inusitados. Contudo, permanece o fato de que a
limites. Mas o fato, é que Derrida tem sido freqüen- estratégia desconstrucionista, tal como é levada a

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efeito por Derrida, não pode ser tomada como equi- na busca de uma Presença que o próprio pós-estru-
valente à prática da desconstrução do modo como turalismo coloca sob suspeita. Mas não podemos ig-
é realizada por seus seguidores no campo da Teo- norar que, transformando a desconstrução num con-
ria Literária. ceito ou num método de análise, acabamos domesti-
cando seu potencial de abalar as estruturas do pen-
samento logocêntrico.
Desconstrução: usos e abusos
Nota
Na verdade, o termo “desconstrução” é
2 Embora o exemplo da relação causa/efeito aqui utilizado não
apenas um entre os inúmeros neologismos cunha- tenha sido proposto propriamente por Derrida, mas sim por Ni-
dos por Derrida, tais como fonocentrismo, logocen- etzsche, ele é apresentado, acertadamente, acredito, por Jona-
trismo ou différrance. E mais: em seus escritos, Der- than Culler, como um exemplo de desconstrução característica
rida não confere a esse termo tanto destaque quanto da abordagem pós-estruturalista (CULLER, 1994, p. 86-88).
é dado não só por muitos de seus admiradores, mas
também, e talvez principalmente, pela maioria de
seus opositores. Mas o fato é que a palavra “des-
Referências
construção” ganhou espaço e tornou-se um jargão
corrente na Teoria Literária, em especial nos Estados CULLER, Jonathan. On deconstruction. Ithaca :
Unidos. É interessante notar que a difusão das idéias Cornell University Press, 1994.
de Derrida na América do Norte, dando-se a partir
DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. Campi-
dos departamentos de Teoria Literária, mais do que
nas : Papirus, 1991.
dos próprios departamentos de Filosofia, é um fenô-
meno observado por vários comentadores. _______Posições: semiologia e materialismo. Lis-
Embora a desconstrução enquanto méto- boa : Plátano, s.d.
do, conceito ou categoria de análise tenha se torna-
do uma prática corrente no estudo da literatura, prin- _______A escritura e a diferença. São Paulo : Pers-
cipalmente nos Estados Unidos, e embora o próprio pectiva, 1971.
Derrida tenha admitido que seu interesse pela litera- _______A farmácia de Platão. São Paulo : Iluminu-
tura precedeu e dirigiu suas preocupações filosófi- ras, 1997.
cas, devemos lembrar que sua filosofia desenvolveu-
se, sobretudo, enquanto crítica ao estruturalismo, e _______Gramatologia. São Paulo : Perspectiva, 1999.
em especial ao modelo lingüístico – e não literário – _______Limited Inc. Campinas : Papirus, 1991.
proposto primeiramente por Ferdinand de Saussure.
Devemos lembrar também que, apesar da imensa _______Spurs: Nietzsche’s styles/Éperons: les styles
receptividade de suas idéias no meio acadêmico norte- de Nietzsche. Chicago : University of Chicago Press,
americano, Derrida revela uma certa reserva quanto 1996.
a certos aspectos do desconstrucionismo na Améri- EAGLETON, Terry. Literary theory: an introducti-
ca. Christopher Norris, ao abordar o tema da des- on. Minneapolis : University of Minnesota Press, 1983.
construção, observa:
FREADMAN, Richard; MILLER, Seumas. Re-pensan-
às vezes Derrida se exime de toda responsa- do a teoria: uma crítica da teoria literária contempo-
bilidade por tais leituras equivocadas [que rânea. São Paulo: Editora da Unesp, 1994.
interpretam a desconstrução como se esta
fosse um ‘método’, uma ‘técnica’ ou uma es- LENTRICCIA, Frank. After the new criticism. Chi-
pécie de crítica], tomando-as como um tipo cago : University of Chicago Press, 1980.
de déformation professionelle, o resultado de
se enxertar a desconstrução numa atividade
NORRIS, Christopher. Derrida. Cambridge : Harvard
com suas próprias necessidades e pré-requi- University Press, 1987.
sitos” (NORRIS, 1987, p. 18). RAGO, Margareth; GIMENEZ, Renato Aloizio de Oli-
veira. Narrar o passado, repensar a História. Cam-
Não pretendo, com essas considerações, pinas : IFCH, Unicamp, 2000.
fazer uma apologia do “verdadeiro” Derrida ou de
uma descontrução “autêntica”, pois isto implicaria Recebido em 23/10/2003
Aprovado em 21/11/2003

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