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Título: Não sou uma só: diário de uma bipolar;

Autor: Marina W;
Dados da edição: Editora Nova Fronteira, 2006, Rio de Janeiro;
Gênero: Relato;
Digitalização e correção: Vera Lúcia Figueiredo;
Estado da obra: corrigida;
Numeração de página: rodapé.

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Marina W.
não
sou
uma

DIÁRIO
DE UMA BIPOLAR
Consultoria
Dr. Olavo de Campos Pinto Jr., psiquiatra

EDITORA NOVA FRONTEIRA

(c) by Marina W
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O maior pecado? Abandonar-se.


Madre Teresa de Calcutá

É como se minha vida fosse magicamente dirigida


por duas correntes elétricas: contente positiva e
desesperançada negativa - a que estiver em ação
no momento domina minha vida, inunda-a. Agora
estou inundada de desespero, quase histeria, como
se estivesse sufocando. Como se uma grande coruja
musculosa estivesse sentada em meu peito.
Sylvia Plath

De vez em quando Deus me tira a poesia.


Olho pedra, vejo pedra mesmo.
Adélia Prado

Notou que os ladrilhos formavam pequenos desenhos no chão da cozinha, como


flores desmaiadas. Usava um vestido de algodão, com pequenas riscas. Os cabelos
estavam presos por minúsculas travessas de tartaruga e o batom era cor-de-rosa
claro. Sorriu. Era bom estar ali, ao lado dos seus três amigos: O garagista, a
manicure e a dona-de-casa. Entraram no restaurante e ela se dirigiu ao
proprietário, um português de bigodes imensos.
- Se eu der um pequeno show para seus clientes, posso jantar aqui com meus
amigos, como cortesia?
Olhou ao redor, era o melhor restaurante da cidade. Um salão grande com
mesas cobertas por toalhas xadrez e pequenos enfeites no centro.
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- Que tipo de show? Ontem esteve aqui um rapaz fazendo discursos.


- Vou mostrar para o senhor. Veja.
Com os braços encostados nas paredes do pequeno corredor, deu um impulso
que fez com que tirasse os pés do chão e alguns segundos depois estava
sobrevoando
a sala. Seus amigos estavam rindo e batendo palmas. Ela sabia que eles nunca
haviam experimentado tanta felicidade. Puxou um a um pelas mãos, e logo todos
estavam
voando. Como num passe de mágica, agora voavam sobre um enorme lago, dando vôos
rasantes na água.
Podem voar! Não tenham medo! Isto é um sonho!
De repente lembrei que tinha de voltar. Eram oito da manhã e precisava
tomar os remédios. Aquela era a pior hora do dia, porque significava recomeçar.
Escovei
os dentes sem olhar para o espelho e voltei pra cama, me cobrindo inteira com o
edredom. Pontualmente a empregada levava leite com chocolate que eu bebia
envergonhada.
"Estou com depressão, falta um componente no meu cérebro", eu explicava. Ela
dizia que eram os vultos, que o quarto dos fundos, por ter se transformado num
depósito
de9 coisas que ninguém queria mais, estava cheio de espíritos ruins. Sabia que
não era isso, mas gostava que ela

pensasse assim. De vez em quando trazia uma espécie de azeite sagrado que
passava sobre minha testa, enquanto pronunciava palavras que dizia ser a língua
dos anjos.
Os dias se arrastavam, meu marido estava no trabalho, meus filhos no colégio ou
jogando videogame. Todos tocavam suas vidas, independentemente de mim. A dor da
depressão
não pode ser compartilhada.

Na primeira consulta, dr. Olavo, meu psiquiatra, perguntou se algum dos meus
dois médicos anteriores tinha dito que eu era bipolar. Respondi que ambos,
embora tenham
demorado muito a chegar a esta conclusão. Ele disse que os psiquiatras em geral
demoram a dar este diagnóstico, como fica comprovado em vários estudos.
A maior parte das pessoas que têm depressões é tratada como se fosse
unipolar, quando na verdade não é. Isto faz um estrago enorme, o mesmo que
qualquer outro
diagnóstico errado, como pneumonia ser tratada como uma gripe comum. Normalmente
demora-se, em média, dez anos para que o bipolar seja diagnosticado de maneira
correta.
Comigo também foi assim.
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Ele precisava saber se eu tinha tido um quadro de euforia, para ver se a


doença tinha dois pólos. Então contei sobre uma viagem que fiz a Nova York
quando
era bem jovem, e também disse que, certa época, eu chegava em casa todos os dias
cheia de sacolas de lojas caríssimas, nas quais normalmente nunca ousaria
entrar.
Foram informações suficientes para precisar o diagnóstico: eu era mesmo bipolar.
Gastos compulsivos são uma característica marcante da doença. Além disso,
quando a euforia aparece, o bipolar se torna um aventureiro. Por isso, quando
olho
pra trás, nunca sei se alguns perigos que enfrentei, e foram muitos, tinham sido
ocasionados pelo meu jeito de olhar a vida ou pela euforia que tomou conta dela.
É muito difícil separar o que faz parte de mim e o que faz parte da doença. O
espírito de aventura é um temperamento pré-bipolar.
A euforia faz parte da doença, é o outro lado da moeda, e o que ocorre
quando uma pessoa está maníaca deve ser visto como um descontrole mental. É o
oposto
da depressão. A tristeza cede lugar a uma felicidade febril. Uma pessoa em
estado de mania é capaz de comprar três carros em apenas um dia, como o jogador
Robert,
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do América, que em fevereiro de 2006 declarou que era bipolar, em uma entrevista
para o jornal O Globo. O jornalista colocou o nome antigo da doença, maníaco-
depressivo.
Quando se trata de termos médicos, os repórteres sempre cometem deslizes. A
expressão maníaco-depressivo já deveria ter ido para o espaço, mas é muito
forte. Não
é errado, ainda existe esse termo, porém os jornalistas, em geral, desconhecem a
troca de nomes.
Como já mencionei, gastos excessivos e normalmente inúteis são
características regulares do transtorno bipolar. Carrie Fischer - a princesa
Leia de Guerra
nas estrelas - relata em seu livro The Best Awful que, aos 14 anos, começou a
achar que as coisas estavam meio esquisitas em casa quando seu pai, Eddie
Fischer,
a chamou para ver as roupas que havia comprado em Hong Kong. Quando abriu o
armário, mostrou 175 ternos de cores diferentes, passando por laranja e verde
limão.
A psiquiatra Kay Redfield Jamison, autora de Uma mente inquieta, comprava
dezenas de livros da coleção francesa Penguin, para formar uma "comunidade de
pingüins"
na sua estante. E também kits e mais kits para picadas de cobra, já que se
imaginava ungida por Deus para alertar o mundo sobre o ataque de serpentes
assassinas
que aconteceria em breve - isto é psicose.
Outro exemplo de psicose na bipolaridade: Mary Pat Gleason levou para o
palco sua doença, com a peça
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Stopping Traffic [Parando o trânsito], encenada no Vineyard Theater, em


Manhattan. A atriz fez mais de cem filmes. Durante as filmagens de O óleo de
Lorenzo via
uma luz queimando dentro dos olhos de Nick Nolte. Sua primeira experiência com a
doença foi quando, na fase maníaca, imaginou que durante cinco dias um homem
suicida
estava no parapeito de sua janela - e que depois acabou desaparecendo como uma
luz. Um crítico americano elogiou a mensagem da peça (a necessidade de haver
abertura
em relação a doenças mentais), além de considerá-la cativante e divertida.
O que aconteceu na minha viagem a Nova York, aos 21 anos, poderia ser
chamado de euforia? Não sei se esse episódio não teria acontecido se eu não
estivesse
com problema nas famosas sinapses.
O que se conhece hoje do cérebro é que ele funciona através de comunicação
e, portanto, através de uma linguagem. Quanto mais as células se comunicam, mais
o cérebro vai render. Quando se fala em linguagem, está se falando de um
aglomerado de células, empilhadas, formando um tecido.
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A sinapse está ligada aos neurônios, só existe na célula nervosa. E o


interessante da célula nervosa é que uma não toca na outra. Ela quase toca na
outra,
quase
encosta. A sinapse é a ligação entre duas células que, através de uma gigantesca
conversa química, vai reger, literalmente, de 5 a 7 bilhões de células. Uma
envia
informação e outra recebe, e isso se dá por meio desse quase contato.
Talvez a alma, que o homem procura há milênios, esteja justamente nesse
quase toque. E, quem sabe, a sinapse possa explicar os diversos dons artísticos,
como
compor, pintar, escrever. Além de ser responsável por sentimentos religiosos e
místicos. A sinapse é uma coisa bem romântica.
A sinapse do bipolar é uma sinapse alterada e os sintomas se manifestam a
partir dela. Hoje, o que se acredita que exista no transtorno bipolar é um
conjunto
de genes envolvidos, e não apenas um, como se pensava. Não seriam menos de seis
nem mais de vinte genes. Sempre se tentou simplificar, como se todas as doenças
fossem
determinadas por apenas um gene, como a hemofilia, por exemplo.
No final dos anos 1970, eu estava sozinha, sem dinheiro, e faltavam cinco
dias para retornar ao Brasil. Eu era ingênua para a idade, não burra, mas meio
inocente.
Minha mãe nunca me deixaria viajar sozinha pra Nova York. Além de ela ser
superprotetora, a cidade americana
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era a primeira no ranking das mais violentas do mundo. Estava indo para a
Europa, com um grupo, e a agência de viagens oferecia um opcional por um preço
bem baixo.
Uma família que já tinha viajado comigo em outra ocasião estava indo pra lá,
então pude ir também. Era um casal com filhos da minha idade, e dava uma
sensação de
segurança. Pra minha mãe, no caso.
Na Europa, me distanciei do grupo a fim de viver minhas próprias
experiências, como andar sem rumo ou tomar um café sozinha em Paris. Na
cafeteria, um rapaz
perguntou se poderia se sentar à mesa comigo. Disse oui, meu vocabulário só
permitia isso. Poderia também dizer Je t'aime, mas não era o caso. Ele ficou
horas
falando
coisas que não entendi. Tentávamos nos comunicar usando um pouco de inglês, o
que não facilitava muito a conversa. Nunca soube o que tanto conversamos. Se
chamava
Patrick, e, quando nos despedimos, me deu uma medalhinha de presente.
Em Viena minha grana acabou. Eu era muito orgulhosa para pedir dinheiro
emprestado. Certa noite, morta de fome, sem ter comido absolutamente nada o dia
inteiro,
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juntei todas as minhas moedas e fui à lanchonete mais próxima. Coloquei o


dinheiro em cima do balcão, e a garçonete começou a separar os xelins das moedas
francesas,
inglesas e de outros países por onde eu havia passado. Sobraram poucas e,
olhando o cardápio de palavras incompreensíveis, chegamos à conclusão de que
havia uma
coisa que eu poderia comprar: um saquinho de batatas fritas.
Estavam frias e oleosas. Carreguei as batatinhas para o hotel como se
fossem jóias. Assim que entrei no hall, onde um tapete vermelho começava nos
degraus
de mármore da entrada e ia até o elevador, tropecei, e elas voaram para todos os
lados. Ignorei o gerente e os outros funcionários e fui catando uma a uma,
voltando
para o meu quarto, onde lia Entre quatro paredes e escrevia diários. Todo o
grupo tinha se programado para assistir aos espetáculos de valsa e conhecer a
maior montanha-russa
da Europa. Fiquei sozinha com Sartre. Ainda não sabia que o inferno somos nós.
No ônibus, completamente eufórica, improvisei um leilão e vendi grande
parte das compras que fiz durante a viagem. Minha mãe mandou dinheiro para a
casa do
filho de uma amiga, em Roma, e, quando fui buscar, vi que o lugar parecia uma
comunidade, que se parecia comigo. Ele insistiu que eu ficasse por ali, e não
fosse
ao Vaticano: "Que careta!" Mas peguei os dólares e fui embora. Passamos por
outras cidades e outros países, e
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meu dinheiro ia sumindo como cubos de gelo na palma da minha mão.


Parênteses: eu estava eufórica. Era muito tímida para fazer um leilão, e
comportada demais para querer ficar naquela comunidade. Mas não se pode
confundir
a delícia de ter 21 anos e estar vivendo uma aventura com a doença. Hipomania é
euforia, porém mais branda. Se eu estivesse em estado de mania, ficaria com
certeza
com os rapazes em Roma.
Mas é bom que se esclareça que se uma pessoa optar em ficar com os
descolados, e ainda cometer uma variedade de excessos, não quer dizer que ela
seja bipolar.
Claro que não. O espírito aventureiro, a atração por adrenalina, a ousadia são
temperamentos que podem estar ligados ao transtorno ou não. Para formar um
quadro
de bipolaridade, é preciso que exista a depressão. A depressão é o avesso da
euforia. No transtorno bipolar os dois pólos devem estar presentes, para que a
pessoa
possa ser diagnosticada assim.
No caminho para Nova York, me desentendi com a tal família, e fomos cada
um para um lado. Tínhamos mesmo que nos separar. Eles iam se hospedar no Hilton,
enquanto eu não fazia a menor idéia do que me esperava.
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Nem sei quem me deu a dica do Taft, hotel bacana de Nova York, com diárias
bem abaixo do normal. No quarto havia uma cama cheia de travesseiros, lençóis e
cobertores gostosos. O chuveiro era quente, tinha ar-condicionado, uma televisão
grande e cinco pega-ladrões na porta. Fiz os cálculos e vi que tinha dinheiro
para
pagar uma diária e meia. Fora isso, restavam uns trocados. Supondo que a diária
custasse cem dólares, sobravam cinqüenta. Entrei num supermercado e gastei boa
parte
em batons. É uma atitude estranha. Faz parte da mania sair comprando, mesmo sem
ter dinheiro.
Mas não estava preocupada. Passaria uma noite no hotel e, no dia seguinte,
quando vencesse a diária, iria até a Varig para antecipar minha volta ao Brasil.
Tudo
muito simples. Entrar no escritório da Varig foi um grande conforto. Eram todos
brasileiros e me senti em casa. Porém me informaram que eu poderia adiar minha
viagem
por tempo indeterminado, mas que antecipá-la era impossível. Aí, sim, fiquei
nervosa.
insisti o máximo que pude, expliquei minha situação - estava sem dinheiro
e não tinha onde ficar. Nada adiantou, era assim que funcionava. Meu desespero
deve
ter chamado a atenção das pessoas que aguardavam nas
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cadeiras azuis, grudadas umas nas outras, como as dos aeroportos. Sugeri ir em
pé no corredor, sentada no chão, ou na cabine do piloto. Afinal, era uma
emergência.
Saí do guichê sem saber o que fazer e analisando a hipótese de ficar o resto da
semana sentada no aeroporto, aguardando o dia do meu embarque, ou bater na porta
de uma igreja que, por questões óbvias, eu imaginava que me acolheria. Claro que
essa opção do aeroporto é inviável, ninguém pode permanecer lá dentro quando
fecham
as portas, a não ser que você seja o Tom Hanks - ou o cara que serviu de
inspiração para o filme etc. etc.
Voltei para o hotel para pegar minhas malas na portaria. Era noite e ouvi alguém
assobiando. Achei que não era pra mim, óbvio. Mas, com a insistência, olhei pra
trás e dois homens se aproximaram.
- Você poderia me fazer um favor? - perguntou um deles.
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Deus é Cassiano Gahus Mendes, as coincidências de fato existem. Eu não


conhecia a incrível Teoria dos Seis Graus, que me faria compreender melhor o que
se
seguiu.
A Teoria dos Seis Graus foi criada por Stanley Milgram, em 1967. Ele
juntou alguns voluntários e fez um estudo para provar que todos ali poderiam
conhecer
todo mundo através de conexões com outras pessoas. Queria provar que apenas seis
pessoas nos separam de qualquer outra do planeta. Ele se inspirou em Marconi,
inventor
do telégrafo sem fio, que afirmava que, se o mundo estivesse interligado pela
sua invenção, qualquer pessoa podia encontrar outra, numa distância de 5,83
graus.
Milgram arredondou. Acredito nisso, sempre achei que todas as pessoas do planeta
estão interligadas.

- Você não está voltando para o Rio, sábado? "Como eles poderiam saber?"
- Vimos você na Varig.
"Ah."
- Que favor?

- Você poderia entregar uma encomenda pra mim?


- Que encomenda?
- Um secador.
- Claro que posso.
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Eu faço essa linha Amélie Poulain. Ele era cabeleireiro e, mais tarde,
saberia que namorava uma loura escultural.
- Meu amigo pode ligar pra você e buscar na sua casa. Você mora onde?
O bairro era o mesmo.
- Que rua? - perguntei.
A rua era a mesma.
- Que número?
O número do prédio também era o mesmo.
- Que coisa! Qual o número do apartamento?
Se ele falasse o número do meu apartamento, ia
virar Ionesco. Mas falou o número da minha vizinha de
porta. A encomenda era para o irmão dela.
Achei que poderia confiar nele, pois tínhamos um elo em comum. Uma teoria
furada, eu sei. Mas era inocente e tal. O diálogo se deu com o mais velho, que
deveria
ter uns trinta e poucos anos, o outro tinha 29, saberia depois. O mais velho era
meio grande e um pouco gordo. O outro se chamava Gabriel, carregava uma mochila
verde-camuflada e uma mala que não era dele. Não falou nada em momento algum. O
que conversava comigo se chamava Ricardo, e carregava duas malas grandes.
Estavam
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se mudando de um hotel, onde dividiam um quartopor total falta de grana, para um


apartamento no Queens. Achei bacana um cara só ter uma mochila.
- Você não tem pra onde ir, o que vai fazer?
- Não tenho idéia, acho que vou dormir em alguma igreja.
- Por que você não vem morar com a gente?
Eu não era uma garota descolada. Não podia ficar num apartamento com dois
caras desconhecidos. Agradeci meio rindo, como se fosse uma gracinha. Mas ele
refez
o convite e, quando notei que era sério, vi o absurdo da questão.
- Imagina, eu nem conheço vocês.
Ao contrário de Gabriel, um cosmopolita, Ricardo era um brasileiro típico.
Tinha um conservadorismo clássico e achava meu argumento extremamente válido.
- Pode ficar tranqüila, nós vamos te respeitar - disse.
- Não somos tarados. - Gabriel se manifestou pela primeira vez e, de certo modo,
foi antipático.
- Então faz o seguinte - prosseguiu Ricardo. - Vamos lá em casa, a gente deixa
as malas, e saímos para comer uma pizza. Você deve estar com fome.
De fato estava, e com muita. Tinha gastado mais um pouco de dinheiro
almoçando num restaurante brasileiro
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na rua 46. Fiz amizade com um garçom cearense, que tinha colocado o resto da
comida numa quentinha para mim. Quentinha que, nessa altura, já estava gelada
no hotel.
Que problema. E se me atacassem no apartamento? Eram dois estranhos,
afinal, poderia tranqüilamente acontecer. Pensei nos prós e contras, Ricardo
parecia tão
simpático, e a imagem da mussarela borbulhando me deixava sem muita escolha.
Concordei. O segundo gesto antipático de Gabriel foi jogar uma das alças da mala
na
minha direção, para que eu pudesse ajudá-lo a carregar.
Levamos a bagagem até o metrô. Eu e o cabeleireiro ficamos conversando
sobre a Cláudia Lessin, a garota que havia sido recentemente assassinada no Rio,
de
maneira brutal, manchete em todos os jornais.
- Ela procurou resumiu Ricardo.
Fiquei indignada. Que absurdo era aquele?
- Não fala besteira resmungou Gabriel. E minha antipatia por ele
diminuiu.
Entrei no apartamento apreensiva. Deviam ser umas onze da noite quando
largamos as malas no chão. Ricardo caiu duro em cima do colchonete.
- Você se importa de ir só com o Gabriel? Estou pregado.
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O cara era hostil sair pra comer uma pizza que ele próprio pagaria era uma
situação embaraçosa. "OK", respondi.
Fomos a uma trattoria, onde conversamos e acabamos nos divertindo muito.
Ficamos horas. Depois me levou a um bar punk, onde as garçonetes tinham cabelos
verdes e usavam flechas espetadas na cabeça. Fiquei deslumbrada, nunca tinha
visto nada parecido. Muitos anos mais tarde, Rita Lee apareceria na televisão
com a
tal flecha de borracha, dando a impressão de que está atravessada na cabeça da
pessoa. Era um lugar pequeno e divertido, cheio de músicas e mulheres
equilibrando
bandejas de um lado para o outro. No bar, Gabriel pediu várias cervejas. Só dei
um primeiro gole e deixei de lado. Gabriel bebeu umas oito, e cada vez que pedia
uma pra ele, pedia outra pra mim. Então de um lado da mesa havia oito copos
cheios e do outro, oito copos vazios. Adoro essa imagem, achei superelegante.
Não sei se influenciado pela bebida, ele começou a contar sua vida.
Repórter de um conceituado jornal paulista, tinha largado tudo para viajar. Foi
açougueiro
e lanterninha em Paris, cozinheiro na Itália, garçom na Holanda e catador de
uvas em Roraima. Aquilo foi me encantando de uma maneira incrível. Acho que
qualquer
mulher ficaria encantada.
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- Hoje eu vi uma coisa, mas tenho vergonha de contar - falei.


- Conta...
- Fico sem graça...
- Pode contar.
- Hoje na rua vi um garoto de programa.
Dãn. A frase parece ainda mais idiota nos dias de hoje, mas na época eu
só tinha visto tal coisa em Midnight Cowboy.
Ele riu. E foi um pouco depois que ele disse, olhando pra mim:
- Estou apaixonado por você.
Ele também tinha sido garoto de programa em Nova York. Caramba.
Durante a minha vida, alguns homens se encantaram por mim pelo mesmo motivo:
minha espontaneidade e um certo ar inocente. Além disso, na bipolaridade existem
alguns
elementos fascinantes.
Eu não sabia o que dizer, não estava apaixonada, mas encantada por ele,
suas histórias, o país estranho e a madrugada alta.
Saímos de lá por volta das quatro da manhã. Chegamos a uma pracinha
minúscula, onde só havia uma
27

pequena árvore e um banco de madeira. No trajeto, senti medo algumas vezes,


quando alguns sem-tetos mexiam com a gente. Toda hora aparecia algum maluco. Ele
me abraçava
para me proteger, e eu dizia "Ei, tenho namorado!", brincando, e cada vez mais
com menos convicção.
Sentamos na pracinha, eu não deixava ele me beijar nem nada. Uma cena que
ficou gravada pra sempre na minha memória: quando olhei pra trás vi um enorme
outdoor
do filme Drácula, de John Badham. Senti uma mistura de adrenalina e excitação. O
que eu fazia com aquele homem ali, no centro de Manhattan, num lugar onde eu nem
conhecia a língua, com aquela imagem enorme de um vampiro atrás de mim?
Não sabia, mas o inesperado era irresistível, e minha confiança nele era
total. Agora, enquanto escrevo tudo que passou, vejo que eu era infinitamente
mais
inocente do que imaginava.
O dia clareou e algumas pessoas já circulavam pelas ruas.
- Preciso deitar um pouco.
- Tenho de trabalhar às oito e preciso dormir pelo menos umas duas horas.
28

- Você se importaria se eu dormisse um pouco no seu hotel?


Não esperava mesmo por aquilo. Voltei à realidade rapidamente. Eu tinha um
namorado, não conhecia aquele cara e ele estava me pedindo uma coisa com a qual
eu não sabia lidar.
- Sério, só pra eu deitar um pouco.
Eu confiava nele. Na euforia você é capaz de acreditar no pior dos
bandidos.
- Está bem.
O Taft ficava bem perto e, quando chegamos ao meu quarto, ele pediu para
tomar um banho. Banho?
- Eu só te peço uma coisa, Gabriel, que você saia do banheiro vestido.
Ele riu, eu não.
Enquanto estava no chuveiro, eu ia me dando conta do que estava fazendo:
Cláudia Lessin tinha morrido.
Gabriel abriu a porta e apareceu com uma toalha branca enrolada na
cintura. Gelei, ele estava sendo desleal comigo e não merecia mais a minha
confiança. Então
repentinamente arrancou a toalha e vi que ele estava de calça Lee. Não é preciso
dizer que me apaixonei no mesmo instante.
Ele se deitou e coloquei sobre seus olhos uma compressa Yves Saint-
Laurent, que havia comprado na
29

passagem por Paris. Era um homem que desprezava a burguesia, mas acabou cedendo
àquela espécie de conforto. Eu tinha tomado um banho e colocado um jeans com uma
camiseta do Mickey, recém-adquirida. Mickey, veja você.
Fico bonita após tomar banho, com o cabelo escorrendo. Peguei os três
travesseiros que sobravam e fiz um murinho entre nós dois, como num filme com
Doris
Day. Ele ria e dizia:
- Não posso acreditar num lance desses.
Para mim, estávamos apaixonados.
Logo precisou ir para o trabalho. Era vendedor de
uma loja especializada em bugigangas para turistas. "Otários", era assim que ele
falava. Insistiu para que eu fosse morar com eles, eu disse que não, mas já
estava
certa que iria. Tomamos café preto com torradas no McDonald's.
Gabriel então pediu que eu não fosse com ele até a loja. Ia chegar atrasado, seu
chefe era esquentado e poderia perceber que ele tinha se atrasado porque
estávamos
juntos. Porém, pouco depois que Gabriel subiu a escada velha de madeira que ia
dar na loja, subi também. Como o dono estava lá, ele não podia falar nada, nem
reclamar.
Comprei um rádio em formato de lata de Coca-Cola e outras bobagens, que ele
vendeu chateado, enquanto eu
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me divertia. Colocou tudo numa sacolona, desaprovando as compras - eram coisas


vagabundas e para otários. Seu chefe era gordo e parecia um mafioso. Agradeci e
fui
embora. E assim acabaram os últimos centavos. Na rua, flutuava a meio metro do
chão. Meg Ryan não estava à minha altura.
De repente alguém me abraçou por trás, e um pouco de sangue manchou minha
camiseta. Levei um susto horrível. Mas era ele. Desceu correndo as escadas e sua
mão tinha esbarrado num prego no corrimão.
- Vem morar com a gente - falou.
"Sim, sim, sim!", eu concordava, eufórica. Por dentro.
- Vou pensar - respondi. Mulheres.
O edificio era igual ao dos filmes, poucos andares, tijolinhos aparentes e
escadas de incêndio cruzando as janelas. Fomos morar no térreo. Tiraram par ou
ímpar
para saber quem dormiria no único quarto. O cabeleireiro ganhou e ficamos na
sala, onde só havia um saco de dormir.
Todas as noites, Gabriel preparava pratos maravilhosos, e meu predileto
era arroz francês. A hora do jantar era sempre o momento quando conversávamos
sobre
o que tinha acontecido durante o dia. Minha incapacidade de me fazer entender ao
tentar comprar uma cortina para
31

o boxe e a dificuldade de lidar com as máquinas da lavanderia, coisas assim.


Antes de dormir acendiam um baseado, e, quando passavam pra mim, sempre jogava
longe,
porque queimava meus dedos. Aquilo me divertia muito.
Da sala, pude ver Ricardo arrumando suas coisas. Colocou encostado na
parede e perto do colchão tudo que havia num saquinho no chão: santinhos,
bandeira do
Vasco, fotos da namorada, medalhinhas e porta-retratos com sua mãe e seus
sobrinhos. Éramos uma família.
Eles tinham vários passaportes falsificados e o cabeleireiro era conhecido
por ter invadido, de madrugada, a joalheria de um famoso hotel do Rio. No seu
bairro,
era conhecido por ser o doido que viajou dentro de uma asa de avião. De fato,
contou que a primeira vez que foi a Manhattan fez isso, entrando escondido. Eu
nunca
pensei que um troço desses fosse possível. Quando o avião pousou, ele foi direto
para o hospital.
Gabriel era exilado político, e só cheguei a essa conclusão bastante tempo
depois, no Brasil. Um dia fiz um arroz que ficou grudado na panela e despejei
todo
na lixeira.
- Nunca mais faça isso, tem muita gente passando fome no mundo - disse.
Eram como Butch Cassidy e Sundance Kid, sendo que cabia a mim o papel de
Katharine Ross. Não existia realmente felicidade maior.
32

De manhã saíam para o trabalho e deixavam dinheiro para que eu pudesse


comprar coisas como frango e Coca-Cola, e levar as roupas para lavar. Eram
minhas únicas
tarefas. Não era raro Ricardo voltar e estender uma nota, pela janela da
cozinha:
- Toma, pra você comprar cigarro.
Depois eu tomava um banho de espuma, como uma estrela. Saía de casa e ia
direto para a rua 46, ficando no restaurante brasileiro até Gabriel ir me
buscar.
Lá, clientes me ofereciam empregos informais, de baby sitter ou arrumadeira, e
alguns se mostravam interessados em mim. Faz parte da euforia um poder de
sedução.
Eu apenas ria, e ali se tornou uma espécie de segundo lar, aonde eu ia
todos os dias. Uma tarde, apareceram quatro senhoras mineiras que estavam
passeando.
Fiquei conversando na mesa delas, realmente pareciam indignadas com a minha
situação. Como eu poderia estar naquela cidade sem ter sequer um dólar? Pediram
o telefone
da minha mãe, que evidentemente não dei, e insistiram para que eu aceitasse um
dinheiro emprestado, que recusei de imediato.
- Fico pensando se fosse minha neta - disse uma delas, consternada.
- Tenho certeza que ela estaria curtindo muito respondi animada. Outra colocou
escondido uma
33

nota de cem dólares na minha bolsa. Uma pena eu ter visto e devolvido. Elas eram
bem ricas.
- Como você pode ficar assim sozinha, minha filha?
- Ela não está sozinha, está comigo disse Gabriel, chegando e me dando um beijo
nos cabelos. Parece cinema, mas não é. Acho que elas ficaram mais preocupadas
ainda.
Minha vida era um filme.
Passava algumas tardes em uma pizzaria, onde um italiano louro e bonito
dava em cima das mulheres, mesmo na frente da sua, que trabalhava no caixa.
Ficava
escrevendo meus diários em uma das mesas e às vezes ele me oferecia uma fatia de
pizza com Coca-Cola. Certo dia, quando me viu dormindo com o rosto encostado na
mesa, me chamou para descansar lá dentro. Era um depósito cheio de caixas e
garrafões. Deitei num sofá e ele improvisou uma mesinha, virando ao contrário
uma lata
grande de massa de tomate. Me deu uma colcha e adormeci. Quando Gabriel passou
para me buscar na cantina, estranhou minha ausência, até o dono do lugar dizer
onde
eu estava. Acordei bem-disposta.
- Cara, você é totalmente maluca - ele disse. Eu era mesmo.
Gabriel namorava uma garota que morava em Santos, e dizia que entre eles
não existiam pactos de fidelidade.
34

Ela poderia namorar quem quisesse e Gabriel também. Uma vez fiz uma coisa muito
desleal, enquanto ele trabalhava. Abri sua mochila, porque sabia que lá
dentro havia coisas escritas por ele. Encontrei fotos e cartas da namorada que
realmente relatavam seus casos amorosos, de maneira divertida, e repetindo
sempre
que era Gabriel que ela amava. Na fotografia, estava bonita, com os olhos
semicerrados e os cabelos lisos despenteados. Na verdade, a mochila tinha um
monte de cartas
de amor, de mulheres de várias partes do mundo. Também deixei uma foto lá, além
de uma historinha.
No fim da tarde, depois do trabalho, enquanto tomava vodca, Gabriel
começou a me contar coisas sobre a menina, coisas muito íntimas, ela tinha um
problema
sério e ele estava me contando tudo. As coisas que eu não entendi nas cartas
fizeram sentido e fiquei muito envergonhada. Quando terminou a história, ele me
disse:
- Mas você já sabia, né? Você leu as cartas.
Eu neguei, mas ele tinha certeza que sim.
Na mochila também havia folhas datilografadas, nas quais ele tinha
escrito uma espécie de autobiografia. Pedi para ler, ele não se importou. Nunca
mais conheci
ninguém que escrevesse tão bem.
Olhando de longe, tantos anos depois, penso que Gabriel também poderia ser
bipolar. Quem sabe. Tinha
35
repentinas mudanças de humor, principalmente quando lia O Globo em pé, no metrô.
O quente era o Jornal do Brasil, mas era dificil de encontrar. "Não me aluga",
costumava
dizer, quando eu comentava alguma coisa que tinha visto. Nunca tinha ouvido essa
expressão, que se tornaria moda. Um dia brigamos muito feio, de forma violenta,
e fiz uma bola de papel com a historinha que tinha escrito pra ele.
Não faz isso, por favor. É meu - pediu ele. Era amável, e algumas
vezes hostil. No dia seguinte, me deu de presente um engradado de madeira com
seis garrafas
caçulas de Coca-Cola.
Enfim, os cinco dias se transformaram em dois meses, o que pra mim era
pouco. Esta história é imensa e daria um outro livro. Então vou pular logo para
o último
dia, quando os dois foram me levar até o terminal do ônibus que me conduziria ao
aeroporto. No táxi, eu usava uma saia de lã abaixo do joelho, uma camiseta e por
cima a jaqueta verde, muito maior do que eu, presente dele.
Muito tempo depois eu iria com aquela jaqueta à Cinelândia, num comício
pela Anistia.
Meus óculos estavam tortos, porque uma das hastes tinha caído e estava
presa com durex. Gabriel comentou:
- Parece que você está voltando da guerra. - Riram. Também disse: - Você
não conheceu Nova York, conheceu a rua 46.
36

Eu queria que o trajeto não acabasse nunca.


- Você é uma menina muito rara - me falou Ricardo.
Que nada, como ela existem dúzias nas Lojas Americanas. - Riram. -
Agora nós vamos voltar a comer sanduíches.
Era como se eu fosse uma princesa.
Quando chegamos, ele me deu um dólar:
- Pra você assistir ao filme do avião. - E completou: - Fala pra tua mãe
não te deixar mais assim, largada no mundo.
Mal sabia ele que minha mãe tinha ligado para todos os hotéis de Nova
York, chorava sem parar e ficou de cama. Eu nunca quis fazer isso com ela,
simplesmente
estava embriagada. Não assisti ao filme, custava dois dólares. Era Síndrome da
China, de James Bridges. Em vez disso, chorava.
Guardei o dólar por muito tempo, mas desapareceu, assim como a jaqueta
verde. Me deu seu Timex, tão usado que a correia estava puída nas pontas. Também
sumiu.
Mas tenho uma fotografia onde ele parece entediado, numa prisão na África.
Gabriel37 me entregou um saquinho cheio de relógios roubados da loja onde
trabalhava. Pediu que eu ligasse

para seu irmão quando chegasse ao Rio, eram presentes pra ele e os sobrinhos. O
irmão era um alto executivo de uma empresa e mandou o motorista ir buscar. As
pessoas podem ser muito diferentes umas das outras.
Para finalizar, logo que cheguei da viagem liguei para o irmão da minha
vizinha, para avisar do secador. Um cara simpático, e muito gente fina. Disse
que passaria
lá em casa imediatamente. Minha família tinha acabado de se mudar para a Barra
da Tijuca, era longe, mas em pouco tempo ele estava lá. "Cadê o secador?" Só
notaria
o porquê da sua aflição meses depois, quando apareceu sua foto no jornal, em uma
matéria sobre traficantes.
O secador estava cheio de drogas.
Ter vivido um romance em Nova York, com 21 anos, cheio de emoções, andando de
metrô de madrugada na cidade mais violenta do mundo, foi um episódio de euforia?
Acho
que essa pergunta jamais será respondida. Mas é certo que se jogar de abismos
sem nem sequer olhar para baixo é típico do bipolar.
Vivi muitos outros perigos, porque neste estado você confia em todas as
pessoas, mesmo as que nunca viu antes. A falta de medo afasta o perigo. Todas as
pessoas
são bacanas, todas as gramas são verdes.

As montanhas do lado avesso


recebem relâmpagos furiosos.
Murilo Mendes

Sei muito pouco de tudo. Sobre minha família, quase nada, e sobre minha doença,
menos ainda. Vou descobrindo coisas enquanto escrevo. Trata-se de um livro quase
em tempo real. Acabei de conversar com o meu psiquiatra. Ele estava chegando de
uma visita a uma bipolar.
- Ela está muito deprimida? pergunto. - Não, está muito maníaca.
Me surpreendo. Se está maníaca precisa ter atendimento domiciliar?
Precisa, porque se sair "cometerá um monte de besteiras". Digo que, eufórica,
nunca me arrependi
de nada do que fiz. Pelo contrário, minha vida teria sido bem menos excitante do
que foi. Foi nesse momento
42

que eu soube que não tinha mania, mas hipomania, que é uma euforia branda. O
livro vai sendo escrito e reescrito. Está aos pedaços, em várias páginas do
Word. Junta-los
está sendo dificil. E agora essa novidade. Que coisa. Está explicado por que
nunca fui muito além do que me permitia.
Dr. Olavo é categórico quando diz que a psicanálise ainda não mostrou sua
eficácia no tratamento da doença bipolar. Para mim é útil, porque separo as duas
coisas:
ele cuida da minha doença, e Angela, minha psicanalista, das minhas inseguranças
e tudo o mais. Duas coisas diferentes. Angela não acredita só em química, e não
posso escrever sobre a doença sem falar de mim. Ela acha que a infância e tal
também tem a ver. Não aceita a hipótese de o meu transtorno estar ligado apenas
às
sinapses e diz que existem coisas, escondidas ou não, que desencadearam a
doença. Não pretende me ajudar opinando sobre o livro. Tenho que me lembrar de
tudo e chegar
a conclusões sozinha. Como quando conto meus sonhos no consultório e ela faz
questão que eu mesma interprete.
Meu psiquiatra fala que traumas e o modo como fui criada atuam sobre essa
vulnerabilidade, que é herdada.
- Quando se fala que uma célula nervosa conversa com outra quimicamente,
não quer dizer que as doenças
43

são puramente biológicas, e o psi não influencia. Se uma pessoa vai tratar de
uma depressão leve numa terapia cognitiva comportamental, e o terapeuta
recomenda,
por exemplo, uma caminhada de uma hora todos os dias de manhã, a pessoa pode
melhorar, porque a química do cérebro mudou. A resposta é sempre química, mesmo
quando
a intervenção não é. Não quer dizer que a doença seja 100% química. Fatores
externos, como o estresse, os traumas e condições relacionadas ao meio ambiente
também
influenciam no aparecimento da doença - explica.
Não posso fazer um livro sobre bipolaridade a doença e as técnicas. Só
posso escrever sobre minha experiência pessoal, e isso deve incluir algumas
coisas.
Minha infância, inclusive.
Minha mãe não gostava de falar do passado. Na minha família mentia-se para que
as crianças fossem poupadas. De tudo. Existem tão poucas peças que seria mais
prático
inventar. Em vez disso, volto no tempo e vou gravando conversas e anotando tudo
que me contam em guardanapos de papel.
A psiquiatra bipolar Kay Jamison, que prefere o termo maníaco-depressivo
ao atual bipolar - por achar que esvazia a gravidade da doença -, relata sua
infância
44

e adolescência e descreve com minúcias histórias sobre seus pais, seus avós etc.
Não tenho muito para dizer. Sobre toda essa história só posso contar: em
Portugal, um antepassado, no dia do seu casamento, estava terminando de se
arrumar,
quando um gato selvagem entrou pela janela. Os dois travaram uma luta e o noivo
acabou morrendo. O pai do meu bisavô viu uma sereia. Meu pai me salvou de um
raio.
Estas são as três histórias que mais ouvi durante a vida e talvez por isso eu
seja assim, como o poeta Murilo Mendes, alguém que prefere a nuvem ao ônibus.
Pudera.
Quando meu pai morreu, eu tinha cinco anos, meu irmão dez, e minha irmã
apenas três meses. Na minha casa, morte era uma coisa que não se comentava com
crianças,
era como se nem existisse.
Quando uma menina tem essa idade, seu pai pertence só a ela. Não existe
mãe, não existem irmãos. Com a demora, provavelmente perguntei por ele. Minha
mãe
então me disse que meu pai tinha ido viajar. Para me poupar. Na certa, fiquei
esperando inutilmente que ele voltasse. Em determinado momento, deve ter ficado
claro
para mim: meu pai havia me abandonado.
Eu não guardo sequer um flash do seu rosto, nem de algum momento que
passamos juntos. No entanto,
45

era um pai amoroso. Depois de ele ter feito isso comigo, rompi com ele. Noto
isso agora. Outro dia tive uma crise de choro, enquanto olhava um retrato dele.
E o
perdoei, sem saber que ele precisava ser perdoado dentro de mim. Na verdade,
quem perdoou foi aquela criança aflita. Meu pobre pai.
Durante toda a minha vida, sempre pensei nele com amor e orgulho. Era um
homem de coração generoso, todos me dizem. Mas não guardei nenhuma imagem,
gesto,
nenhum beijo, nada. Tudo esquecido. E a raiva que devo ter sentido nunca se
manifestou, mesmo acreditando que ela sempre existiu dentro de mim. Sei
pouquíssimo sobre
ele: era jornalista, América fanático, e apostava em cavalos.
Sempre achei que minha memória não chegava antes dos cinco anos, não é de
todo incomum. Mas, conversando com meu irmão, cinco anos mais velho, tive
incríveis
revelações. Ele me perguntou se eu me lembrava das férias que passávamos na Ilha
do Governador, na praia da Rosa. Sim, claro que eu lembrava. Lembrava inclusive
de uma aldeia de pescadores, claramente.
- Lembro das cadeiras da varanda, do mar, do vira-lata, da casa cheia de
amigos - completei.
- A mamãe era viúva... - Meu irmão interrompeu meu pensamento.
46

- Não, claro que ela não era viúva. Papai sempre estava com a gente.
Aquilo realmente me deixou impressionada. Como eu podia me lembrar da
aldeia e até de uma cadeira de ferro branca, com almofadas xadrez? Como poderia
me lembrar
de tantas coisas sem importância e não lembrar do meu pai, o tempo todo ali com
a gente?
Percebi que, no momento que ele me abandonou, apaguei tudo que havia sobre
ele da minha memória e o abandonei também. Meu pobre pai.
(Quando tinha vinte e poucos anos, estava assistindo a um filme e, num
determinado momento, num flashback, a personagem principal se lembra de quando
era pequena.
Na cena sem som, ela e seu pai estão no Jóquei e a menina olha com admiração
para ele, que está vibrando, torcendo para o cavalo no qual apostou. Eu comecei
a chorar
compulsivamente, meus amigos nem entenderam, o filme era bem ruim. As coisas que
o inconsciente apronta: quando pequena, meu pai me levava às corridas.)
Durante a produção deste livro, me apaixonei muito pelo meu pai. E ainda
tenho esperança de um dia, durante uma sessão de terapia, ou mesmo andando pelas
ruas,
me lembrar de coisas escondidas, ou pelo menos do seu rosto.
47

Vou e volto no tempo, e é natural que seja assim, escrevo enquanto vou
lembrando. São intimidades que estou compartilhando. Não todas. Quase todas.
Porque, mesmo
nunca tendo me arrependido de nada que fiz durante meus momentos de euforia,
algumas coisas precisam ser guardadas. E, enquanto lembro, escrevo. E saio
procurando
pessoas que possam me ajudar a desencavar o passado.
-Zé, vou te perguntar uma coisa, não diga "Não", porque assim você vai
destruir a história mais romântica da minha vida.
Meu irmão perguntou o que era.
- É verdade que o papai me salvou de um raio?
Minha mãe contava que, uma vez, eu estava no jardim do sítio, onde minha
avó paterna morava. Ficava em Barão do Amparo, perto de Vassouras. A história
que
cultivei durante tanto tempo era assim: estaria chovendo fino e trovejava. Meu
pai, então, antevendo o perigo, correu e, me agarrando, entrou na casa. Um raio
caiu
no lugar onde eu estava e fulminou o canteiro.
- Não foi assim - disse meu irmão. - O que eu não lembro, não lembro, mas
as coisas que lembro são muito nítidas. - E continuou: - A história é a
seguinte:
nós estávamos na varanda da casa, eu, você, o papai e a
48

mamãe. Se lembra daquelas pitas que tinham no jardim? Uma grande e outras duas
menores?
Nunca tinha ouvido falar no nome dessa planta. Sempre que contava essa
história, dizia que era uma espécie de cacto, larga e com folhagens pontudas e
espinhosas.
Mas me lembrava muito bem delas; cheguei a ir adulta para o sítio, então me
lembro de todos os detalhes. Bem próxima do portão baixinho, a perigosa linha de
trem.
- Eram três pitas e o jardim era forrado de pedras brancas. Um raio partiu
a planta maior ao meio. Com o choque, as pedras voaram para a varanda. O papai
agarrou
você e correu para um dos quartos. O raio entrou pela casa, passando pelo
corredor, e saiu pela porta da cozinha.
Fiquei atordoada. Como assim, o raio disparando pelo corredor? Pedras
voando? Estávamos falando de George Lucas? Meu irmão disse que é possível
acontecer.
Disse também que, se a porta da cozinha não estivesse aberta, talvez tudo
explodisse. Uau. Então a história era melhor do que eu imaginava, era
sensacional. Pedras
se lançando contra nós, imagina.
(Procuro o professor Carlos Portela, da Coppe/ UFRJ, especialista em
raios, e ele me diz que esse tipo de
fenômeno de fato existe.)
49

- Você se lembra da vela? - emendou ele.


Vela? Não, não lembrava mesmo. Mas sabia que não havia luz no sítio. Que
história de vela era essa?
- Você devia ter uns dois anos, estava no colo da mamãe e inclinou a
cabeça indo de encontro a uma vela. O papai estava no sofá e voou até você, te
agarrando
e apagando o fogo dos teus cabelos.
Fiquei emocionada e queria saber mais coisas. - Zé, fala da morte do papai...
Ele recordava tudo. E me contou uma história tão maluca que só não duvidei
porque ele é médico. Eu sabia que meu pai tinha morrido do coração, na Copa de
1962,
e mais nada. Ele sofria da Síndrome de Stoke-Adams, e seu coração funcionava de
modo imperfeito.
Estávamos na casa da minha avó materna. Era uma casa linda e enorme, na
Zona Norte. Lembro-me de muitas coisas que aconteceram ali quando eu era
pequena, e
outras coisas quando eu já tinha mais de vinte anos.
Uma árvore de Natal que brilhava e girava, e ficava numa sala onde nunca
podíamos entrar, porque era restrita às visitas: com uma vitrola antiga, um
piano
e sofás de veludo. A copa contígua à cozinha era grande, e no quintal delicioso
tinha uma parreira, sempre carregada de uvas verdes. Na sala havia uma televisão
em frente a
50

uma poltrona, e uma cadeira de balanço, além da mesa de muitos lugares. As


janelas de madeira azul-claro, que davam para o jardim, jamais eram abertas.
Quando pequena dormi lá diversas vezes, minha mãe parecia estar sempre
viajando, nunca sabia para onde ela ia, eu rezava terços sem parar, temendo que
algo
acontecesse a ela. Minha avó exigia que dormíssemos cedo, e eu ficava deitada e
insone, aterrorizada com as notícias que vinham da sala, direto do telejornal.
As
cortinas muito finas de voile, que balançavam com o vento, também me deixavam
com medo. Tinha um relógio de cuco quase na entrada da sala. Me lembro do quarto
de
costura e do escritório, onde meu pai morreu.
Meu irmão contou mais do que eu esperava, e tudo era novo pra mim. Papai
morreu aos 36 anos, durante o último jogo da Copa. Eram as duas coisas que eu
sabia.
O que me impressionou foi que ele morreu "cinco vezes". Seu irmão Fernando
fez massagens cardíacas todas as vezes que o coração do meu pai parava, e,
quando
tudo voltava ao normal, meu pai pegava o radinho de pilha para continuar ouvindo
a transmissão do jogo. Mas não na quinta vez. O marca-passo entraria no Brasil
no
ano seguinte, o que poderia tê-lo feito viver por muitos anos.
51

Quando ele parou de respirar para sempre, bateram no portão. Meu irmão,
que ainda não tinha completado dez anos, foi correndo atender. Era um amigo
querendo
trocar figurinhas. Ele conta que sentiu uma mistura de desespero e culpa
enquanto brincava. Sabia que papai estava morto a dez passos dali, mas não podia
suportar
a realidade. Quando olhou para cima, o céu estava coberto por centenas de balões
de gás, anunciando a vitória do Brasil.
Sofri minha primeira depressão aos 18 anos. Aconteceu de repente e, sem
mais nem menos, adoeci. Não tinha forças nem ânimo, só sentia um enorme cansaço
e
nenhuma compreensão das coisas que se passavam ao meu redor. Não me lembro de
quase nada durante esse período. Devo ter pensado: finalmente enlouqueci. Como
disfarçar?
Ficava deitada na cama lendo, embora não conseguisse nunca sair da primeira
página.
Ler é um ótimo álibi. Porque todo mundo vê a leitura como uma coisa nobre.
Você não pode ficar deitado olhando pro teto, o que daria no mesmo, mas pode
ficar
deitado lendo um livro. Vão achar que você é preguiçoso, mas pelo menos é um
leitor. Se você pegar um Shakespeare no original, ninguém vai te incomodar
nunca.
Às vezes minha mãe pedia aos meus amigos que fossem me visitar, como quem
não quer nada. A pessoa
52

está deprimida mas não é burra. Cada caso é um caso, mas, no meu, receber
visitas era como estar na ante-sala do inferno. Porque eu não sabia juntar a +
b.
Não me recordo bem como as coisas se passaram e quanto tempo durou. Só sei
que precisava esconder o que sentia e era um sacrifício estar com alguém. Não
foi
uma depressão tão forte como todas as outras que viria a enfrentar na vida, mas
foi impactante: eu não conhecia aquele sentimento. Sempre soube que havia algo
errado
comigo e aquela sensação, sem dúvida, significava alguma coisa.
Minha mãe era uma mulher inteligentíssima, no entanto, não teve como me
ajudar. Acho que depressão era a última coisa que passava pela sua cabeça.
Depressão
e euforia eram palavras que pareciam estar restritas aos meios acadêmicos.
Segundo o dr. Olavo, por incrível que pareça, ainda estão. Não sei como fiquei
boa, nem
mesmo de nenhum fator externo que possa ter desencadeado a doença.
Ontem encontrei Beth Michelsen, minha melhor amiga de adolescência.
Perguntei a ela como eu era vista pelos outros. Nunca tinha feito essa pergunta
a ninguém.
Ela não sabia responder.
- Jamais pensei que você estivesse triste ou com depressão, mesmo porque
nem sabia que isso existia.
53

Você sempre foi diferente, sempre foi livre, por isso considerei normal sua
reclusão. Achei que você quisesse se recolher um pouco - contou.
O tempo passou. Tinha vinte anos e há três namorava José Antônio. A faculdade de
direito, que eu odiava, "fazia parzinho" com a de jornalismo. No primeiro dia de
aula me apaixonei por Sidney, que viria a ser meu marido.
Mais do que isso, quando nos falamos pela primeira vez, pensei: "Vou me
casar com esse homem." Ainda não era um desejo, mas uma constatação. Fazia tudo
para
chamar sua atenção, usando táticas erradas. Ficava com Anistia no colo, uma
cachorrinha preta do DCE, e às vezes levava minha beagle para assistir às aulas.
Que
maluquice - como permitiam isso, não sei.
Sidney não me dava bola, estava interessado em mudar o país, Glauber ainda
não tinha dito que Golbery era o gênio da raça e vivíamos a pré-abertura
política.
Ele resolveu fazer uma revista, mas nem todos os alunos tiveram coragem de
se arriscar. Quando, junto com um amigo, marcou uma reunião para saber quem
estava
a fim de participar, fui a primeira a levantar o braço. Queria ficar perto dele,
esse era o meu objetivo, eu não estava ligando para as coisas que o governo
aprontava.
54

Me tornei sua secretária, embora também escrevesse de vez em quando.


Alguns alunos foram impedidos pelos pais de continuar o projeto, inclusive eu.
Minha mãe,
como num folhetim, me ofereceu a tal viagem à Europa, em troca do meu trabalho
na revista. Aceitei. Mas, quando voltei, não respeitei o trato e retomei minha
função
junto ao Sidney.
Ela dizia que eu estava diferente, ia para a faculdade com roupas mais
ousadas do que o convencional. Eu me achava extremamente capaz de fazer qualquer
coisa.
Supergirl. Porém, minha mãe estava preocupada. Via que alguma coisa estava fora
da ordem, mas nunca poderia imaginar que eu estava passando por um transtorno de
humor. Agora entendo sua preocupação, porque o que eu via como alegria, aos
olhos dos outros era um distúrbio.
Então me levou a um centro espírita, indicado por uma amiga de trabalho,
que não serviu de nada, a não ser ouvir que eu tinha sido inglesa em uma outra
encarnação,
e naquela vida namorava José Antônio, o mesmo de agora. Disse também que ele
iria me perseguir por todas as minhas vidas, viesse ele "mendigo ou rei", e essa
busca
só cessaria quando finalmente ficássemos juntos.
55

Parênteses: é importante dizer que fui levada a um centro espírita, porque


essa é a maneira incorreta de se tratar de um distúrbio. É a mesma coisa que um
carro
ficar sem combustível no meio de uma avenida. O motorista pode implorar a N.S.
de Fátima para que ele ande. Mas não adianta, o carro só vai andar se você
colocar
gasolina. Ou por um milagre, mas as possibilidades não são grandes.
Eu disse à entidade que iríamos terminar nesta encarnação também, e ela
ponderou, pedindo que eu esperasse mais três meses. Não perguntei por quê. Falou
também
que havia muitos extraterrestres na Terra e eu era um deles. Assim que saí da
sessão terminei o namoro. Talvez tenha sido o homem que mais me amou. Aos 22
anos me
casei com Sidney.
Invejo quem viveu intensamente os anos de faculdade. Eu não vivi. Este
período não representou pra mim um momento de descobertas, nem de aprendizados.
A maior
parte do tempo era como se eu não estivesse ali, e sim muito distante, talvez no
mesmo lugar onde estive durante todas as aulas de todos os colégios que
freqüentei,
desde o primeiro dia. Apenas quando estive eufórica fiquei mais empolgada com as
aulas, mas na verdade só o amor que eu sentia me interessava realmente.
A faculdade também perdia um pouco a graça porque minha mãe ia me buscar
ao final da aula. Era
56
constrangedor. Eu estudava à noite e ela achava super-perigoso que eu voltasse
para a Barra sozinha. Toda a revolta que eu sentia, por perder sempre a melhor
parte,
geralmente filmes de arte que só conseguia ver pela metade -, nunca foi
manifestada. Sempre aceitei. Desde criança aceitei tudo. Não poder fazer isso e
aquilo. Por
isso não me surpreendo que, quando adulta, me tornei adolescente. E o ódio, que
provavelmente sentia, minha analista ainda está procurando.
A revista fez com que eu e Sidney nos aproximássemos muito, e, quando
demos conta, já estávamos namorando. As coisas corriam bem, as reuniões de pauta
eram
vibrantes e divertidas, nosso namoro era quente, e vivíamos sempre juntos. Tudo
era bliss.
(Lembrei agora de Bliss, o conto de Katherine Mansfield. Não existe
palavra em português para esse sentimento. Foi traduzido como felicidade, porém
é alguma
coisa mais plena, como êxtase. Diz Berta Young, a personagem principal: "Oh! Não
haverá um meio de exprimir essa sensação sem falar em embriaguez e desordem?" A
alegria interior narrada por Berta é o que mais se parece com a hipomania.)
Não sei precisar quantos meses se passaram até eu cair no abismo de novo.
Tudo mudou de maneira vertiginosa.
57

Passei a não entender as aulas, me sentia diferente de todas as pessoas, não


tinha assunto, e tentava mais uma vez disfarçar, coisa que nunca aprenderia
a fazer. O importante era que ninguém soubesse de nada que se passava dentro de
mim. Gabriel ligou de Santos e disse que estava indo para a Índia, com a
namorada.
Era seu grande sonho. Fiquei apática, em vez de ficar feliz por falar com ele
outra vez. "Estou um pouco triste", consegui dizer. Ele falou para eu sair
dessa, que
eu deveria dar um mergulho no mar. Gabriel sempre achou que tínhamos domínio do
nosso corpo e humor. Mas eu não tinha vontade de ir à praia, me sentia
profundamente
triste, exausta, tinha medo de que achassem que eu era louca.
Gastava toda a minha energia tentando enganar a todos. Ficava deitada o
tempo inteiro, fingindo que estava lendo, demorando um tempo calculado pra virar
a
página. Fingir não é bom. Porque você junta a dor ao segredo, sem ao menos poder
desabafar com alguém. E ainda precisa fazer um esforço além da sua capacidade, o
que te esgota mais ainda.
Não tive mais condições de enganar tanta gente - família, amigos,
professores, namorado - e terminei com Sidney. Nosso romance estava no auge,
éramos muito
apaixonados um pelo outro e, muito tempo depois
58

de casados, ele confessaria que nunca conseguiu me amar com a mesma intensidade,
depois do que "fiz com ele". Ninguém pode realmente entender. Eu não tinha
condições
de namorar, estudar, bater papo. Eu era oca por dentro, nada tinha a oferecer e
não conseguia entender o que acontecia em volta de mim. Eu não era nada.
Quando tudo voltou a fazer sentido, ficamos juntos outra vez. E depois de
um ano resolvemos nos casar. Mas na época o meu humor já não era o mesmo, tinha
tido
uma pequena recaída, a sensação de bem-estar havia desaparecido, estava
alienada, e era com profundo desânimo que decorava nosso pequeno apartamento num
condomínio
horizontal em São Conrado. "Forre os sofás de verde-água", sugeria alguém, e eu
forrava. "Coloque esse quadro aqui ou ali", eu obedecia. Para mim, nada disso
tinha
muita importância. O sentimento que me envolvia era desconfortável e me
incomodava, mas o que eu poderia fazer? Eu era assim.
Lembro dos períodos de felicidade, mas nada que pudesse ser chamado de
mania. Os momentos de depressão branda foram muitos, era uma espécie de
melancolia.
Até na lua-de-mel me senti assim, e tentei forjar uma felicidade maior do que
sentia, naquela pousada cheia de passarinhos chatos. Não fiquei entusiasmada com
a
59

roupa que iria usar na cerimônia, aliás não fazia idéia. Minha mãe também não
dava muito espaço, era centralizadora. Talvez notasse meu desinteresse, e
providenciou
um terninho branco de linho.
No dia do casamento, estava feliz e triste. Minha mãe estava internada,
fazendo quimioterapia, e não pôde estar presente.
(Estava doente, com câncer de mama, e só soubemos disso na véspera da
operação. Ela não contou nada pra gente, nem mesmo para o meu irmão, que já era
médico.
- Você vai ser operada? De quê? - ele perguntou preocupado.
- Vou fazer uma mastectomiazinha - disse ela. Essa era a minha mãe.)
Casei num cartório em Copacabana, nunca quis usar véu e grinalda. Na
véspera, liguei para José Antônio, conversamos bastante tempo, e chorei muito -
mas não
era de tristeza. Antes de viajar, passei no hospital para ver minha mãe. Será
que uma pessoa normal ficaria feliz com a viagem? Acredito que não. Mas quando
você
é bipolar, é muito difícil distinguir o que é tristeza ou depressão, o que é
alegria e euforia.
O início do meu casamento foi complicado. Eu trabalhava num lugar que
odiava, e quando fiquei grávida
60

acumulava as tarefas de ir à faculdade e cuidar da casa. Quando chegávamos da


Puc, eu fazia o jantar, que geralmente se resumia a ovos com bacon, já que não
sabia
cozinhar nada. Tinha um ciúme doentio, e chorava muito.
Meu marido se encantou por uma garota que estudava na nossa sala. Era de
fato encantadora. Tinha a pele muito branca e era extremamente sexy. Eu gostava
dela, o que não gostava era do que ela despertava nele. Quando soube dessa
paixão platônica, que ele mesmo me contou, a garota passou a ser um fantasma pra
mim.
Certa vez, quando ia mandar um terno para a lavanderia, achei um papel
com o número do seu telefone. Fiquei transtornada e transformei um zero num
oito, para
que, no caso de ele telefonar, que pelo menos desse engano. Tsc.
Ela sempre foi muito bacana comigo, leal, me fazia confidências, mas
pouco adiantava. Anos e anos mais tarde, quando meu marido nem sequer se
lembrava mais
dela, fiquei feliz ao saber que havia se mudado para Nova York, onde posava nua
numa escola de pintura, como modelo vivo. Agora, de longe, vejo sua euforia,
seus
decotes em vestidos de seda que usava na faculdade, as

roupas elegantemente provocantes, sua coragem de fingir que conhecia a matéria e


ir enrolando o professor com uma história inventada e cheia de nuances.
61

O tempo passou e nunca mais ouvi falar dela. Mas quando meus filhos já estavam
adolescentes, recebi o telefonema de sua melhor amiga, dizendo que ela havia
morrido.
Estava morando com o marido e seu bebezinho em Florença, quando um dia se
levantou bem cedo e se deitou na linha do trem. Tive uma crise de choro.
Quando estava alegre, fazíamos reuniões e era sempre muito divertido.
Sidney tinha acabado de completar 22 anos e era destemido em relação ao mundo.
Um dia,
ao espiar um livro da Adélia Prado, aberto em cima da mesa, sorriu e comentou:
- Este sou eu. Senti uma pontada de inveja, a frase que tinha chamado sua
atenção era: "Não tenho tempo para nada, ser feliz me consome".
O fato de estar sempre triste por ter ciúmes exagerados se mistura aos
momentos de distimia (depressões brandas) que passei. O ciúme, quando é
destemperado,
é parente da depressão, porque envolve tristeza e nada mais. Eu não sabia
diferençar uma coisa da outra. Não sabia que tinha uma doença, só achava que era
neurótica.
O ciúme me deixava exausta, negativa. Quando meu marido foi cobrir o
Carnaval na Sapucai, eu estava pesada. Quem é ciumenta sabe o que é isso. Um
casal de
amigos me ligou pra jogar buraco na casa deles. Quando
62

cheguei, fui olhar o aquário, e quando acabamos de jogar o peixe tinha morrido.
Eu não soube como me desculpar. Achei que tinha sido por minha causa.
Passei a trabalhar em duas assessorias de imprensa, uma do estado e outra
do município. Isso é tudo o que menos se parece comigo. Eu tinha que inventar
coisas
para fazer a fim de me livrar do tédio. Uma vez abri um livro e minha chefe
"nazista" me deu uma bronca. Disse o quanto era absurdo ler no trabalho. Sempre
achei
estranho não poder ler mas poder ficar olhando para as paredes, já que não havia
tarefa alguma. Passei a ler escondido, colocando o livro dentro da gaveta. Li
Boquitas
pintadas aos pedaços, durante o expediente. Realmente não posso ter um trabalho
como esse, que não precise de criatividade, desestimulante, tipo das nove às
seis
numa repartição pública.
Quando fiquei grávida, foi muito tranqüilo, ouvia música clássica porque
sabia que faria bem ao bebê, escrevia poesias, nadava. Quando Maria Clara nasceu
tive
depressão pós-parto e, graças à ajuda da mãe do meu marido, pude cuidar do bebê.
Odiava visitas, estava feia e muito magra, e todas as mulheres me pareciam
lindas. As pessoas me afligiam, diziam o que eu deveria e não deveria fazer, que
estava usando a pomada errada, que a fralda não deveria ser
63

trocada daquele jeito, e tudo aquilo me deixava tonta e cansada. Sentia muito
sono e não tinha estímulo algum para cuidar de um bebezinho, apesar de amá-lo
muito.
Quando passeava com o carrinho pelo condomínio, que era agradável e se
misturava à reserva florestal, encontrava outras mães que tiveram bebês na mesma
época
que eu. Estavam sempre sorridentes e orgulhosas. Um dia, sentadas a uma mesa em
volta da piscina, enquanto contavam como seus filhos tinham mudado sua visão do
mundo,
uma delas declarou que não sentia nada disso. Estava mal, com depressão pós-
parto. Percebi que eu estava com o mesmo problema, e falei que também estava
triste,
mas nossas palavras eliminavam a harmonia da conversa e foram ignoradas.
Essa depressão não demorou muito a passar, só fiquei triste quando a
licença-maternidade acabou e tive de deixar Maria Clara para voltar ao trabalho.
Normal.
Sentia muita saudade. Hoje, é certo que eu não voltaria. Não havia nada para
fazer lá, além de o meu salário ser baixíssimo. Mas existem erros que só
percebemos
muitos anos depois, as coisas são assim.
Meses depois, minha mãe foi para o hospital, seu estado já estava grave
demais. Sentei-me na parte de trás da ambulância. Ficamos ao seu lado quando ela
estava
no
64

quarto, em coma. Foram alguns dias assim. Ela estava tão mal que sabíamos que
morrer seria o melhor conforto que poderia receber. Eu ficava numa poltrona
lendo revistas
em quadrinhos.
Eu não estava lá. Não estive lá hora nenhuma. Apenas olhava o que
acontecia, enquanto meus irmãos conversavam sobre seu quadro clínico, usando
termos que eu
não conhecia. De vez em quando algum de nós saía para comer alguma coisa ou
tomar um café. Quando, finalmente, estávamos todos juntos no quarto, ela abriu
os olhos
e olhou pra nós, fechando-os logo a seguir. Era fevereiro de 1984.
Rosana, minha amiga de infância, providenciou tudo com carinho e eficácia.
Fomos para o velório, e levei flores que arrancamos das árvores nas ruas. Meu
filho
Francisco nasceu nesse mesmo ano, no Natal. Não tive depressão pós-parto. Queria
ir ao Rock in Rio, e ele foi amamentado aos embalos de Rod Stewart.
Quando as crianças tinham por volta de cinco anos, nos mudamos para o
Horto, um apartamento com janelas verde-esmeralda que davam para a floresta. Num
pequeno
terraço, mantínhamos um jardinzinho selvagem. Eu era redatora da TV Globo, me
sentia ótima e ganhava bem. Saía com minhas amigas várias vezes porsemana, e
conversávamos
65

horas nos botequins da redondeza. Calamares, aquelas coisas. Nosso ponto era o
Real Astória, no Leblon. Como tínhamos o horário ideal - meio-dia às nove ,
qualquer
hora era hora de voltar pra casa. Éramos casadas, tínhamos filhos e
responsabilidades, daí a graça.
Nada impedia nossos almoços no Vaticano, restaurante do jornalista Daniel
Más em Botafogo. Diante das comidas deliciosas, dizíamos que "Deus trabalhava na
cozinha". A Globo era líder absoluta, e, por isso, podíamos nos dar ao luxo de
ter mais de duas horas livres. Comíamos no Plataforma e incluíamos sempre no
pedido
a famosa farofa Dolabella. Minhas amigas bebiam muito e bolachas de chope
formavam torres surreais sobre a mesa. Um dia especialmente representativo
resume nosso
estilo: depois de passarmos uma noite cheia de adrenalina, carro cheirando a
maconha, tentando escapar de uma série de blitze, de Copacabana ao Leblon, por
um triz
não atropelamos o José Lewgoy.
Por que ser tachada de eufórica, se todas as minhas amigas tinham o mesmo
ritmo? Então acho que era só alegria mesmo. Nunca se sabe.
Alegre ou eufórica, nossa casa vivia cheia de amigos. No finalzinho dos
anos 1980, duas semanas depois de sair da emissora, comecei a trabalhar no
Centro Cultural
66

Candido Mendes, em Ipanema, como programadora de cursos. Eu era criativa e


rapidamente consegui fazer com que as inscrições subissem de trezentos para mil
alunos
por mês. Estava aceleradíssima e em dois dias bolava mais de quarenta cursos:
Gringo Cardia ensinava sobre cenografia e Afonso Beato, fotografia de cinema.
Maneco
Quinderé dava aulas de iluminação e Rubens Corrêa se encarregava de workshops
para atores profissionais. Carlos Henrique Escobar falava de Sartre e Fernando
Gabeira
sobre jornalismo. As aulas de Antonio Cicero tinham como alunos convidados
Caetano Veloso e Marina Lima. Sem falar das inesquecíveis aulas de filosofia,
onde Luiz
Carlos Maciel narrava o mito da caverna de Platão e Junito Brandão contava
histórias sobre Helenas e Narcisos. Marília Valls era a vitalidade em estado
bruto e dava
aulas de moda. Modéstia à parte, era bacana.
Mas quando as aulas já estavam em andamento, era angustiante ficar na
sala. Eu estava energética, inquieta, e não conseguia ficar fazendo um trabalho
que
qualquer outra pessoa poderia fazer. Gostava de entrar escondido no cinema, onde
Fred Pazos programava festivais de Bergman e filmes franceses. Acho que a
euforia
gosta de coisas ilícitas, porque aumentam a adrenalina. Disse ao diretor que não
suportava ficar trancada, e ele não só concordou, como insistiu que eu saísse
pelas
67

ruas, entrasse nas livrarias e fosse ao cinema, a fim de ter idéias novas.
Grande Candido José.
Nossa casa vivia sempre cheia, bolava festas que terminavam no café da
manhã e Sidney estava sempre reunindo jornalistas e criando programas de rádio
que se
tornavam sucesso. Tudo parecia perfeito, nossos filhos eram saudáveis e eu
dançava com eles como nos musicais da Broadway. Fazia mingau enquanto cantava
canções
que criava na hora, passeávamos no Jardim Botânico, inventávamos personagens e
eu contava histórias sobre Leila Diniz e Jacqueline Onassis. Vivia eufórica.
(Claro que brincar com os filhos traz grande alegria, não faz parte de uma
doença. O que marcava minha euforia era a superaceleração, falar pelos
cotovelos,
a falta de sono e o dinheiro que eu gastava com pilhas de presentes.)
Ainda não tinha começado a ter a série de depressões profundas que
devorariam parte de minha vida. Fazia muitas coisas malucas com minhas amigas,
nem é bom
citar. Com certeza por insistência minha, pois não conseguia permanecer parada.
Num almoço de Natal, eu e Luciana fomos à praia e entramos no mar com roupa e
tudo.
Era perfeito, até que, no início dos anos 1990, meu tapete voou pelos ares.
68

Foi meu primeiro colapso violento. Eu era adulta e agora cabia a mim
tomar as providências. Havia perdido toda a energia, não tinha ânimo,
compreensão das
coisas, nada. The horror, the horror. Apenas meus amigos do trabalho sabiam que
eu estava mal. Não tinham como não saber. Eles me davam chocolates, santinhos,
orações
e afeto. Euciana, que viria a ser minha melhor amiga, fazia minha sobrancelha e
minhas unhas.
Como eu não queria incomodar ninguém, não tinha quem me ajudasse a tomar
decisões, assim como não sabia quais deveriam ser tomadas. Meu marido estava
ocupado
ganhando a vida e não o culpo por ele não ter me dado todo o apoio que eu
precisava naquele momento. Além de trabalhar muito, Sidney não compreendia a
doença e não
tinha noção da sua gravidade. Ele é de natureza feliz, deve ser estranho e
perturbador encarar o oposto.
Sem ter idéia do que estava acontecendo comigo, percorri todo o circuito
esotérico, além de entrar em todas as igrejas e me entregar a todos os segmentos
do espiritismo. Fui a um lugar onde se limpam auras; cartomantes; tarólogos;
videntes; mães-de-santo. Tomei passes em igrejas messiânicas. Fiz simpatias,
massagens
indianas, promessas, macumba e até exorcismo.
Todas as vezes que fiquei deprimida nunca me conformei, e sempre tentei
tudo que fosse possível, por mais
69

absurdo que parecesse, para me livrar daquela sensação.


Meus amigos se ofereciam para ir comigo a todos os lugares, mas eu sempre
agradecia e dizia que não. O que parecia uma qualidade, hoje vejo como grave
defeito -
é uma espécie de orgulho e onipotência.
(O legal é o contrário. Chamar os amigos, convocar os parentes e dizer que
a vida está barra pesada. Receber abraços e beijos traz conforto.)
O mundo ficou negro, não havia nada de bom. Eu tinha emburrecido, perdido
a capacidade de comunicação, estava profundamente triste, não tinha luz no fim
do
túnel.
Também não tinha idéia do que estava acontecendo comigo. Ia trabalhar
todos os dias, mas, quando o ponteiro marcava três horas, era como se fosse um
relógio
biológico, eu precisava largar tudo o que estivesse fazendo e sair correndo pra
casa. Porque era insuportável continuar. Eu me jogava na cama, e apertava o
edredom
contra o meu peito, a sensação era que ele estava completamente aberto, sem
nenhum tipo de proteção, e coisas poderiam escapulir dali. Doía muito, e o
cobertor me
dava segurança. Pouco depois soube que isso se chama angústia.
Mário, meu padrasto, ia à nossa casa todos os dias ficar com as crianças.
"Cuida da Maria Clara", foi a última
70

coisa que minha mãe disse a ele. Tomava conta dos nossos filhos enquanto
trabalhávamos, e é certo que via meu comportamento como o de uma mulher
preguiçosa.
Tinha como modelo minha mãe, que trabalhava muito e, com bom humor, dava conta
de qualquer coisa que acontecia. Eu não falava nada, os jantares eram longos.
Não
conseguia pensar em algo trivial que pudesse comentar e estava constantemente de
cama. Cinco anos depois, meu padrasto foi acometido por um câncer no estômago.
Não
contamos nada a ele, que viveu exatamente o tempo previsto pelo médico, três
meses.
Como era a única pessoa que poderia se ausentar do trabalho, e sua melhor
amiga, fui encarregada de ser sua acompanhante no hospital, durante todos os
períodos
em que esteve internado. Ficava sentada numa poltrona, e era muito dificil
manter algum tipo de diálogo com as enfermeiras. Além do mais, em uma das
internações,
alguns lençóis haviam sumido e incluídos na nossa conta, como se estivéssemos
ali para roubar roupas de cama. Minha família, envolvida em conversas com
médicos,
me deu a tarefa de reclamar na recepção. Não pelo dinheiro, evidente, mas pelo
absurdo da questão. Era uma coisa que eu não tinha condições de fazer, não sabia
manter
um tipo de diálogo onde eu fosse a parte que reclama. Mas precisei
71

ir, e meus argumentos foram tão débeis - se é que usei algum - que os lençóis
permaneceram na nota.
O pior momento de todas as minhas depressões, o mais assustador, foi
durante essa época. Mário era alto e magro e já estava muito afetado pela
doença, se tornando
uma pessoa extremamente ossuda e pesada. Fui levá-lo para fazer um exame de
sangue. Não tinha condições de acompanhá-lo, estava muito além do meu alcance.
Mas não
podia contar pra ninguém que estava passando por um colapso. Quando saímos do
laboratório, ele estava muito fraco. Fomos atravessar a rua, e meu padrasto
começou
a desmoronar em cima de mim. Um pesadelo se juntou à dor secreta, e eu sentia
vontade de gritar. Ele se apoiava em mim para não cair no chão, e não sei
comparar
o que senti com nenhum outro momento da minha vida.
Fui à psicanalista que me recomendaram, Julia. Nas primeiras sessões não
pude falar nada, não que não quisesse, mas não conseguia parar de chorar, meus
olhos
pareciam dissolvidos. Ela achou que seria melhor procurar um médico, já que não
podia receitar antidepressivos. Médico? Sabia que médico significava psiquiatra,
que significava que eu era maluca. A idéia me pareceu hum ilhante, mas fui. Na
sala de espera havia um rapaz com graves problemas de paranóia. Peguei uma
revista
em cima da mesa, mas não tive forças para folhear.
72

Sei que às vezes o texto parece melodramático, mas quem nunca sentiu
depressão não pode compreender esse sentimento, que já foi definido como "a dor
em estado
bruto".
O psiquiatra me receitou um antidepressivo que não funcionou. Porque
nesses casos a pessoa se torna uma espécie de cobaia, experimentando todo o tipo
de droga,
até encontrar uma que lhe sirva. Ligava pra ele o tempo inteiro, para avisar
como estava me saindo, sempre mal. O médico, a quem agradeço toda a paciência e
o carinho
que teve comigo, disse que eu estava com depressão, mas não era uma questão de
química. Era uma depressão reativa, o que fez todo sentido pra mim. Experimentei
uma série de remédios. Um deles me deixava incapaz de dormir, minhas pálpebras
simplesmente não fechavam.
Eu continuava na mesma. Muitas vezes chegava à análise às dez da manhã,
quando o horário era uma da tarde. Porque aquela sala de espera era o único
lugar
onde eu me sentia bem. Seria capaz de passar o resto da vida ali, lendo várias
vezes a mesma página de um livro, até conseguir entendê-la.
Um dia disse à minha analista, quando a sessão terminou:
Não vou embora.
73

Nunca tive uma atitude assim, sabia muito bem o que estava dizendo, o
absurdo e o constrangimento. É como uma pessoa bêbada que começa a dançar em
cima da
mesa: ela sabe o que está fazendo, mas não se importa. Talvez fosse um recado do
tipo: "Não vou embora, livre-se de mim como achar melhor, me interne, minhas
forças
acabaram, me coloque numa camisa-de-força, mas não me faça voltar lá pra fora."
Não sabia como me comportar. Era como se todo mundo tivesse nascido com
um roteiro, menos eu. Não queria sair de perto daquela mulher de quem eu não
precisava
esconder nada. Ela me levou pra casa, de carro. Ainda sou uma pessoa muito
envergonhada, do tipo que não gosta de incomodar os outros. Mas não tinha
coragem de
pegar ônibus, sentia medo.
As vezes precisava entrevistar um ou outro professor que aparecia com
propostas. Ficava tensa, porque não sabia conversar. Simplesmente não entendia
nada do
que as pessoas falavam. Ficava monossilábica, tentando captar alguma coisa. Um
rapaz apareceu dizendo que queria dar um curso sobre Jesus Cristo, com quem já
havia
conversado diversas vezes. Embora pareça surreal, ele não passava nenhuma
espécie de loucura, pelo contrário, transmitia uma certa sabedoria. Fiquei muito
tentada
a fugir com ele.
74

Num certo momento, não havia outra saída a não ser pedir demissão. Não
conseguia mais trabalhar, estava desesperada, o mundo era hostil pra mim, e eu
não
somava um com dois. Candido, no entanto, não aceitou. E abriu mão de horários.
Disse que eu estava com depressão química e tudo aquilo ia passar com remédios.
Química. Gostei muito de ouvir aquilo. Não era minha culpa, meu corpo é
que havia dado problema. Pelo menos era involuntário, meu corpo era o culpado, e
não
eu. No dia seguinte o psiquiatra me telefonou e pediu que eu fosse até seu
consultório.
- Você é maníaco-depressiva.
Não sei dizer o que senti. Foi como ser soterrada
viva. Não podia ser verdade, aquilo não podia estar acontecendo comigo. Por que
comigo? Minha alma se desgrudou do corpo. Por que ele estava dizendo aquilo?
Então
sou louca mesmo. Nem sequer chorei porque não podia aceitar o que ele estava me
dizendo. Era demais pra mim. Ele tentou me consolar com o que parece ser o
mantra
dos psiquiatras:
- Me admiro, uma mulher tão inteligente como
você. É o mesmo que ter diabete.
Não era. Era como ter um carimbo na testa escrito
"zona perigosa". Eu era diferente das outras pessoas, não
76

era normal. Enfim alguém tinha nomeado aquela série de sensações, eu era uma
farsante no meio das pessoas normais. Me receitou lítio.
A única pessoa para quem contei o que se passou foi meu marido, mesmo
porque não tinha outra escolha. Não podia enganar até mesmo o homem que eu amava
e era
casado comigo.
Tive muito pudor para contar, não conseguia dizer o nome da doença, era
horrível demais.
- Aconteceu uma coisa terrível. Eu tenho um problema sério. E
disse.
Ele sorriu, carinhoso:
- Você deve estar feliz! Você sempre quis ter sopro no coração.
De fato, sempre quis ter sopro no coração, teoricamente, porque é nome de
filme do Louis Malle. Ele não fazia idéia do que fosse aquilo e não tinha muito
tempo para pesquisar. A vida borbulhava, tinha um monte de empregos. Se estou me
tratando, vou ficar boa. Foi aí que passei a ser a mulher que a todos engana. A
louca.
Se a rosa tivesse outro nome, teria o mesmo perfume? Talvez. Se a
expressão "psicose maníaco-depressiva" já tivesse sido trocada por "transtorno
bipolar de
77

humor" minha reação poderia ter sido outra. Ninguém merece ajunção dessas três
palavras que, na minha avaliação infantil, me remetia ao filme de Hitchcock e
outras
paradas ainda mais sinistras. Ninguém nunca poderia saber disso. E guardei o
segredo por quase vinte anos.
No início dos anos 1980, o nome da doença deixou de ser Psicose Maníaco-
Depressiva e passou a ser Transtorno Bipolar de Humor. A psiquiatria descobriu
que
nem todo maníaco-depressivo é psicótico. Além disso, mania é derivado do grego e
significa loucura. Então a expressão se transforma em um estigma. Psicose
envolve
delírios, e também pode envolver alucinações.
A divisão de subtipos e espectros bipolares é uma volta a uma idéia do
finalzinho do século XIX, início do século XX, que foi bem caracterizada pelo
psiquiatra
alemão Kraepelin. Especialistas nos Estados Unidos foram quem fizeram renascer
essa idéia, quase 60, 70 anos depois.
Repare: em 2002, pesquisadores da Usp lançaram o primeiro livro sobre o
tema no Brasil. O título ia direto ao ponto: Transtorno bipolar. Com a ampliação
do
diagnóstico, lançaram uma segunda edição, em 2005, e o título mudou para Do
espectro bipolar à psicose maníaco-depressiva.
78

"Ampliar os subtipos é importantíssimo para identificar, por exemplo,


bipolares que parecem não ter a doença, pois a depressão é muito forte, mas a
parte
da excitação (mania, hipomania) pode ser tão sutil que se confunde com o
temperamento da pessoa. Não é pouca gente que acha que depressão nada tem a ver
com bipolaridade,
o que é um problema capaz de levar a diagnósticos errados e perigosos. É preciso
que se saiba que o transtorno bipolar trata não apenas, mas principalmente, das
depressões", explica dr. Olavo, meu psiquiatra.
É de cair pra trás: em cada duas depressões, uma é bipolar. Ou seja, em
cada um milhão de depressões, 500 mil são bipolares.
Os subtipos facilitam identificar o bipolar que, por outras
classificações oficiais, não seria identificado. Você sabe, a medicina trabalha
com um diagnóstico,
e se ele estiver errado o tratamento não tem a mínima chance de dar certo.
O tipo 1 é a antiga psicose maníaco-depressiva, quando o bipolar na fase
de mania fica tão excitado que todo mundo percebe que ele está péssimo. Muitos
apresentam
o estado psicótico, e começam a acreditar em coisas que não estão acontecendo.
Quase sempre, coisas grandiosas. Geralmente essas pessoas são identificadas como
79

achando-se num estado anormal e são tratadas. Muitos têm delírios e alucinações,
mas nem sempre. Porque a mania não envolve necessariamente psicose. Embora se
pensasse
que houvesse um certo equilíbrio entre as fases maníacas e depressivas, hoje se
vê que as depressões ocupam pelo menos três a quatro vezes mais tempo que as
excitações.
No tipo 2 existe um estado de excitação marcada-mente menor, e as pessoas
conseguem viver em sociedade. São hipomaníacas e apenas aceleram. Algumas ficam
mais
produtivas, e é comum falar demais, dormir pouco, se enrolar na parte financeira
e nas relações amorosas. E a depressão consome o maior tempo da doença. Em
muitas
pessoas, um "estilo aventureiro" se confunde com esses períodos de euforia. É aí
que a pessoa se dá mal. O temperamento aventureiro já é um temperamento pré-
bipolar.
No entanto, é preciso que fique muito claro: para que exista o diagnóstico de
transtorno bipolar, depois da euforia tem que haver a depressão. A mania só é
identificada
porque, um tempo depois, se transforma em depressão. Se isso não acontece, não é
uma doença, trata-se apenas de um tipo de temperamento. Os tipos 1 e 2 são
indiscutíveis e incorporados às classificações universais.
A bipolaridade do tipo 3 é interessante (se é que uma doença pode ser
chamada assim), porque é desencadeada
80

por fatores externos. Exemplo: se uma pessoa mora no Alasca, que no inverno tem
duas horas de sol, e vem ao Rio de Janeiro no verão, pode ficar hipomaníaca.
O fuso horário (pra mais) também incita o quadro de ativação. O tratamento com
antidepressivos, caracteristicamente, pode fazer com que ela fique hipomaníaca.
O tipo 4 englobaria os pacientes que foram a vida inteira muito ativos,
geralmente homens com muita energia e muito poder - um quadro comum em
lideranças
políticas, por exemplo - e, nas últimas décadas de vida, geralmente quando
perdem o poder, entram em depressão.
O tipo 5 é delicado, porque se confunde com o jeito de ser do doente. O
quadro de mania não fica muito claro e, por isso, a maior parte das pessoas se
trata
como se fosse uma depressão unilateral. Considero o mais difícil de ser
diagnosticado, pois se a pessoa for muito impulsiva, ou excessivamente ligada a
sexo, muito
estourada, ou agressiva os sintomas podem ser confundidos com seu temperamento.
É um quadro difícil de ser diagnosticado. O grande problema do tipo 5 é que
quando
pinta uma depressão, ela é tratada como se fosse unipolar. Isto é incrivelmente
comum. "Na grande maioria dos casos são usados apenas antidepressivos e, sem a
participação
de reguladores de humor, as depressões se tornam cada vez mais fortes e
presentes", resume o psiquiatra.
81

A coisa mais importante, presta atenção, é que o tema deste livro é transtorno
bipolar de humor. Mas nem todas as pessoas que têm depressão são bipolares. Isto
tem
de ficar bem claro. Muitas sofrem de depressão unipolar e, portanto, não estão
representadas aqui.
A única vez que alguém comentou comigo sobre essa doença foi em uma festa,
quando um jornalista me disse que a mulher de um senador da República era
"maníaco-depressiva".
Ele falou baixo, bem baixo, mesmo não havendo ninguém por perto.
Fui melhorando com o remédio, e volta e meia precisava fazer exames de
sangue para a contagem de lítio. Odeio injeção, mas, quando você está gravemente
deprimido,
aquela picada não significa nada.
Tornei a ficar bem. Sonhei que tinha uma empregada gorda e um sebinho no
Jardim Botânico. Contei para o Sidney e ele perguntou por que eu não abria um.
Fiquei
animada com a idéia e, dois dias depois, achei um imóvel para alugar. Ele me
ajudou a montar a loja, correr atrás dos livros usados e organizar a festa de
inauguração.
Foi tudo tão rápido que em menos de um mês eu já era uma livreira. A empregada
do sonho também não demorou a aparecer.
82
Sempre achei que a minha depressão estivesse ligada ao fato de não me
realizar profissionalmente. Nunca consegui ter uma carreira porque passava
longos períodos
de cama. Ou porque não tinha talento pra isso. Gostava de trabalhos temporários
- tive três, que foram o tempo exato das minhas euforias. Trabalhos temporários
são
ideais para bipolares.
Em 1992 me sentia realizada com meu sebinho, numa galeria do Jardim
Botânico, chamado Vira-lata. Era muito bom, o astral tão leve que coisas bacanas
não paravam
de acontecer.
Algumas pessoas estavam sempre por lá, muitas passavam depois do trabalho,
antes de voltar pra casa. Eu tinha um cliente cinegrafista que de vez em quando
aparecia para conversar. Um dia estava tendo uma noite de autógrafos, na
livraria porta-com-porta com a minha, quando entrou um senhor muito velhinho.
Ele ficou
lá um tempão, olhando livros antigos. O cinegrafista estava me contando que
pretendia fazer um média-metragem sobre seu bisavô, um dos fundadores da Padaria
Espiritual,
movimento modernista cearense que antecedeu a Semana de Arte Moderna de 1922.
Disse que o nome dele estava na Enciclopédia Inglesa e me mostrou o verbete.
Pretendia
ir ao Ceará, a fim de tentar encontrar alguém
83

que o tivesse conhecido. De repente o velhinho se aproximou e disse que conheceu


bem seu bisavô, assim como o pessoal da Padaria. Foi uma festa. Era uma grande
festa
e eu vivia num mundo onde só coisas boas aconteciam.
Até coisas desagradáveis, capazes de acabar com o humor de qualquer um,
pareciam divertidas. Uma vez dei uma saída até o supermercado - na porta tinha
sempre
um aviso de volto já, quando eu enjoava de ficar trancada ou ia buscar as
crianças no colégio. Quando voltei, a caixa d'água havia transbordado e a água
escorria
pela galeria. Depois de muito tempo, os vizinhos conseguiram arrombar a
fechadura. Eu achei esse episódio muito divertido. Pessoas com rodos e panos de
chão enrolados
em vassouras. Duas coleções verdes do Monteiro Lobato foram destruídas, assim
como uma pilha de livros franceses. Lamentei, mas muito mais legal era estar com
a
calça jeans dobrada, quase escorregando naquele chão alagado.
Que bom que fiquei boa, pensava. A livraria era toda charmosa, tinha um
jornalzinho de papel kraft, e uma rádio que levava o seu nome - na verdade uma
coletânea
de músicas de que eu gostava. As embalagens eram saquinhos finos e pardos,
iguais aos de pão francês. Um estudante da Puc, que comprava Jack Kerouac e
Bukowski,
me dizia que as duas coisas mais legais do

bairro eram o Mil Frutas e a Vira-lata. "Sendo que em primeiro lugar a Vira-
lata." As coisas aconteciam assim. Eu era feliz, e claro que sabia.
Não me lembro de nenhum fator externo responsável pela depressão seguinte.
Tudo tornou a desmoronar em volta de mim. Foi a crise mais forte que já havia
tido
até então, embora na anterior eu tenha sofrido muito, em parte pela aflição de
não saber do que se tratava. Tomando lítio, pensei que finalmente estivesse
estabilizada
para sempre. Nunca me dei com esse remédio. Mas meu psiquiatra, dr. Olavo, diz
que não posso, sob hipótese nenhuma, falar mal do lítio, porque ele é muito
eficiente
para um grande número de bipolares.
O médico Aretaeus da Capadócio foi o primeiro a perceber a doença. Ele
observou que algumas pessoas tinham ciclos de profunda tristeza que se
alternavam
com
momentos de tremenda felicidade e excitação. Ele sugeria que as pessoas se
banhassem nas águas que continham li-tio, e as expressões "Vou tomar um banho de
sais"
ou "Ai, meus sais" têm essa origem. Aretaeus da Capadócio também descreveu os
sintomas da diabetes e da enxaqueca.

Aqui estou encadeada à minha rocha: forçada a não fazer


nada; condenada a deixar cada preocupação, despeito,
irritação e obsessão arranhar e rasgar e tornar a voltar.
Virgínia Woolf

Foi um golpe saber que voltaria a entrar naquele túnel dos horrores. Eu tinha um
office-boy e ansiava por ficar sozinha. Ele vivia me perguntando coisas que eu
não
sabia responder. Perguntava o que eu tinha, e sempre ouvia: "Estou com dor de
cabeça", quase me desculpando por existir. Estava lunática, cansada e mal
conseguia
me manter em pé. Deixava de ir à loja e ficava debaixo do edredom, os sintomas
eram idênticos aos da depressão passada, porém mais fortes.
Uma vez o rapaz abriu um livro e perguntou o que era separar o joio do
trigo. Eu não soube responder. Tinha a sensação de que ele estava sempre me
testando,
e fiquei aliviada quando ele trocou de emprego. A livraria era
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comprida e através da porta de vidro Só se podia enxergar um pedaço dela. Então


eu apagava as luzes e me deitava no chão de borracha preta, sem conseguir parar
de
chorar. Eu era péssima mãe, péssima esposa e também não sabia ser uma livreira.
Com as portas trancadas, ficava imaginando como seria bom desaparecer de vez.
Em casa costumava me esconder no quarto de empregada, onde havia uma cama
e uma televisão, que eu mantinha sempre desligada. Ficava deitada e encolhida,
tentando
ter um mínimo de privacidade, embaixo de um monte de cobertores. Dizia que
estava adoentada e tinha vomitado sem parar. Porque isso não dá motivo para ir
ao hospital
e, ao mesmo tempo, entende-se que a pessoa está debilitada.
- Mamãe não está passando muito bem - dizia eu para os meus filhos. Não
sei o que eles guardaram de tudo isso. Com certeza, se um dia fizerem terapia,
terão
muitas coisas para falar sobre mim durante esses períodos. Faz pouquíssimo
tempo, meu filho me disse que eu só tinha sido mãe na época em que eles tinham
sete, oito
anos, quando passeávamos diariamente no Jardim Botânico. Eu expliquei que foi
justo quando fiquei doente, e não tinha culpa de não ter forças por causa da
depressão.
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Racionalmente ele entendeu, mas as marcas emocionais permanecem de outra


maneira. Sempre fiz tudo que pude, e não pude fazer muitas coisas.
Dois anos depois de ter sido inaugurada, fechei minha livraria para
acompanhar meu marido, que tinha sido transferido para a sucursal da rádio CBN
em Brasília.
Brasília era um tédio sem começo, meio e fim. Não era um lugar hostil, mas
uma cidade onde se depende de outras pessoas para ser feliz. A ausência de praia
e esquinas faz de reuniõezinhas quase diárias um hábito. As pessoas são muito
ligadas umas nas outras e criam fortes laços de amizade. Esta é a parte boa de
lá.
O problema não era Brasília, era eu. Não trabalhava, tinha acabado de
deixar minha livraria, meus amigos não moravam lá, e eu estava sempre em estado
de depressão
branda, mesmo medicada.
Morávamos numa casa de sete quartos, sem contar outros dois que ficavam
fora dela e davam para a varanda do térreo. Nunca soube para que serviam, talvez
para
acumular coisas, que ficavam no meio-termo entre usar e jogar fora. Mas
permaneceram vazios durante o tempo que moramos lá.
Um deles tinha um quadro-negro que pegava toda uma parede, mas fazia muito
calor lá dentro, então se tornava inútil. Era uma casa de três andares, com uma
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suíte e mais seis quartos: das crianças, dois de hóspedes e um que transformamos
em escritório. Nossos filhos acabavam sempre dormindo no mesmo andar que o
nosso,
num outro quarto com teto pontudo de madeira, como um sótão. Tinha piscina,
horta, jardins, uma enorme churrasqueira e um pomar. Um cachorro e três gatos.
Era uma
casa feita para uma família feliz. Mas eu estava sempre trancada no quarto,
dormindo ou chorando. "Não estou me sentindo bem", justificava.
Como somos Simpsons de cabo a rabo, nossa piscina vivia cheia de
escorpiões. Quem nasce pra Homer não chega a Flanders. Questão de essência :)
Nos momentos em que estive legal, aprendi a dirigir, tirei carteira,
ficava lendo na piscina, gostava de regar as plantas e cozinhar. Tínhamos um
motorista
que, quando nossa empregada foi embora, passou a fazer os serviços da casa. Não
faltaria muito para eu vir a detestar aquele homem. Eu tinha vergonha dele,
porque
não fazia nada, enquanto ele fatiava os legumes, fazia mousses de maracujá -
odeio - e cuidava da casa inteira, além de levar as crianças para a escola.
Eu tinha tanta vergonha dos seus olhares críticos que me tornava
patética. Pegava o telefone e fingia estar falando com alguém sobre frilas que
eu andava
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fazendo,que estava esgotada, mas não sei se cheguei a convencê-lo. Usava o


computador para escrever cartas, imprimi-las e enviá-las para os meus amigos do
Rio, como
se fossem garrafinhas jogadas ao mar. No entanto, nunca falava de depressão. Se
tivesse internet, minha vida poderia ter sido diferente. Conheceria pessoas e,
quem
sabe, teria um namorado virtual.
Tínhamos uma husky siberiana, e fui a única contra a idéia de comprá-la.
Maria Clara, minha filha, tinha pedido um cachorro no seu aniversário de 12
anos.
Fomos à loja de animais e na vitrine tinha apenas dois tipos de cachorros. Não
lembro qual era a raça do outro, mas não interessava a ela. Fiz o que pude para
convencer
todos, era um cachorro grande, gostava do frio e, qualquer hora, acabaríamos de
volta ao calor do Rio. Esperaríamos até o dia seguinte e ela poderia escolher
outro,
entre os vários que estavam para chegar.
Mas ansiedade é um dos sobrenomes da nossa família. Meus apelos começaram
a perder força, além do que ela era linda e em poucos minutos já estávamos
apaixonados.
Seu nome era Loba, e será surpreendente se eu conseguir escrever sobre ela.
Porque não posso pensar nela. Nunca. É como casca de cebola, se for tirando uma
por uma
chego até ela, que está muito escondida, e quando vem à tona me deixa muito mais
triste do que posso suportar.
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Muito tempo depois de adquiri-la, li sobre sua raça e nada podia ser pior.
Dizia, por exemplo, que se um ladrão entrasse na casa, ela abanaria o rabo. As
laterais
dos jardins eram de cerca baixa de arame farpado. De um lado havia outra casa, e
do outro, um terreno vazio.
Às vezes, ela fugia, o que deixava todos doidos. Roubava comida de cima da
mesa, e comia tudo que via pela frente. Depois de varrer o chão, podíamos fazer
casacos
com os pêlos recolhidos. Nosso sonho era ter um cachorro que, quando
viajássemos, colocasse as orelhas para fora do carro, mas ela tinha medo da
janela e precisava
ir no meio. Sujava a casa inteira. Não podíamos colocá-la no canil, que ficava
no pomar, porque tínhamos pena. Tenho uma calça Lee que tem um rasgo, que um dia
foi muito moderno, no joelho. Uma vez, quando estávamos descendo a rampa da
garagem, Loba começou a correr e tomei um tombo, roçando os joelhos em cima das
pedras.
Éramos malucos por ela.
Depois eu conto o que aconteceu com minha cachorra, se tiver coragem pra
isso.
Peço licença para reproduzir uma pequena crônica que fiz sobre Brasília.
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Hoje acordei pensando nela. Seu nome é Renata. Eu morava em Brasília e os


dias eram secos e intermináveis. Não chovia nunca, e eu sentia tanta saudade da
chuva
que, quando ela caía, eu pegava meus filhos, ia pra rua e ficávamos girando de
braços abertos, como numa música do Jorge Benjor. Nossa casa ficava no final do
Lago
Sul e era longe de tudo. Acho que se não parei de fumar nessa época, não vou
parar mais, pois cada maço que terminava era uma novela pra comprar outro.
Às vezes, eu pegava o fusquinha e ia até o armazém mais próximo, que
vendia todo o tipo de coisa considerada de emergência. As crianças serviam de
buzina e
sempre que era preciso colocavam suas cabecinhas do lado de fora e gritavam
biiiiiiiii! biiiiiii!. Em alguns momentos pareciam trêmulas de medo, eu dirigia
como
se estivesse
num bate-bate de um parque de diversões. Olhando agora, não posso deixar de
sentir saudades e também de agradecer a Deus por nunca ter atropelado um
cachorro sequer.
Renata era razoavelmente bonita. Acho. Na verdade, nunca vi seu rosto
direito. Vestia sempre um jogging branco - ela vai me perdoar por eu não me
lembrar da
grife -, lenço da mesma cor em volta dos cabelos e chapéu. Usava várias camadas
de filtro solar, e sua pele, branquíssima, mostrava o resultado de tanto
cuidado.
Nunca a vi de outro
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modo e acho que seus cabelos eram pretos. Tinha obsessão por caminhar e fazia
isso cinco horas por dia. Eu costumava encontrá-la no meio do caminho para me
exercitar
com ela.
Acontece que Renata era esnobe, mas tão esnobe, que parecia uma personagem
de teatro, numa peça onde eu era uma simples coadjuvante, melhor dizendo, uma
espectadora.
Minha participação se limitava a alguns "ohs!" e muitos "puxa!". Às vezes
iniciava uma frase: "Eu também, uma vez...", mas ela nunca me deixava passar
disso. Renata
era uma dessas pessoas que adoram dizer quanto são formidáveis.
- Fui arrumar meu maleiro, minha Vuitton estava mofada; tenho um armário
só de jeans; coloquei tudo pra lavar e também minhas duas pilhas de abrigos; meu
ex-marido
deu um carro para o seu filho de 14 anos, mas não um carro qualquer, um último
modelo, importado; quando eu estava na faculdade tinha de fazer o trabalho de
grupo
sozinha porque era a única que falava inglês e francês, uma loucura! tive uma
proposta pra morar nos Estados Unidos, um amigo do meu sogro é banqueiro em Nova
York,
me convidou pra morar lá, numa casa fantásssstica, uma vista maravilhooooooosa,
um emprego fantáááááástico, mas eu preferi ficar; o inglês do Rodrigo é
perfeeeeeeito,
o pai dele é inteligentíííííííííííssimo, a pessoa
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mais inteligente que eu já vi; Londres é uma cidade fantááááááástica; não vejo
tevê nunca, só sei que existe o Jornal Nacional - o nome não é Jornal Nacional?
- Um carro pra uma criança de 14 anos?! conseguia eu dizer, chocada.
- Importado - dizia ela, com um tom de voz que me lembrava que aquilo era
apenas um detalhe e que eu não tinha captado o espírito da coisa. Palavra de
honra
que Renata era assim.
- De dezembro pra cá fiz três viagens: NY, Bélgica e Disney World, com o
Rô. Quando vou à Europa, fico na casa dos meus sogros, que moram num castelo.
Sou
muito criativa, gosto de almoçar nos fins de semana quando já está anoitecendo,
aí acendo as velas dos castiçais; o melhor corte de cabelo que eu fiz foi em
Milão,
sem querer, do meu lado estava aquela princesa e algumas modelos da Lancôme.
Gosto de fazer um brunch aos domingos, sabe, aquele café enorme, convidar os
amigos
pra degustar vários pratos, trago temperos de viagens, as pessoas amam; gosto de
tomar banho de banheira - banheira para dois
com o Rodrigo, meu marido, a gente toma um uisquinho, trago sais de banho de
viagens; meu marido não é de lugar nenhum, quer dizer, é filho de diplomatas,
nasceu
na Iugoslávia e foi criado em Londres e nos Estados Unidos. Em junho, vou dar
uma festa medieval.
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O fôlego de Renata era uma coisa que realmente me impressionava. Quando


eu chegava em casa não sabia se estava exausta da caminhada ou de ouvi-la contar
o
seu dia-a-dia. Entrava na ducha e imaginava que Renata devia estar se preparando
para tomar champanhe na sua banheira de espuma.
Brasília é uma cidade muito dooooooooooooida!
(Os diálogos acima são ipsis verbis, porque, quando eu voltava pra casa,
corria para reproduzir tudo no meu diário.)
Claro que se vocês quiserem conhecer mesmo a cidade, devem correr e ler a
crônica "Brasília", de Clarice Lispector. Porque nunca ninguém descreveu tão bem
uma cidade, bárbara. E por falar em diário: quando li Agosto, de Rubem Fonseca,
me senti desconfortável porque uma das personagens é maníaco-depressiva. Eu
ainda
não sabia que tinha a doença, mas achava que aquele nome se encaixava em mim. A
personagem tinha um diário, eu idem, e comecei a pensar que todos os maníacos-
depressivos
também tinham. E ainda acho que a maioria devia ter, e que agora, com o
surgimento dos blogs, foram substituídos.
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Sempre que possível, Sidney curtia a casa, como ela deveria ser curtida.
Pegava frutas no pomar, tratavada horta e dava enormes caminhadas em torno do
lago.
Perto da nossa casa tinha uma coruja branca, que estava sempre no mesmo lugar.
Manoel, o dublê de motorista e cozinheiro, não respeitava minhas
determinações, só as do meu marido. Ele era um cara tão atrasado e machista, que
não aceitava
receber ordens de mulher. Ainda mais de uma mulher fraca, talvez fosse o certo
dizer.
Ficávamos sozinhos em casa e, na época, eu já não gostava dele, por isso
passava o dia inteiro no quarto, na maior parte do tempo com depressão. Quando
meu
marido chegava, eu corria para o nosso banheiro, que era enorme. Ficava lá
dentro, sentada na borda da banheira, para que ele não me visse chorando. Às
vezes tomava
banho de banheira, e uma vez estava tão fraca que saí da água, me enrolei em uma
toalha e me arrastei para a cama. Quando Sidney chegou, estranhou que a água
ainda
estivesse lá. "Por que você não esvaziou?", perguntou. Eu não tive coragem de
dizer que foi por fraqueza, e disse que foi por preguiça.
Mas que coisa mais louca, a mentira. Escolhi ficar com a parte pior, uma
mulher preguiçosa que mal tem paciência para tirar a tampinha do ralo da
banheira.
Preferia isso a reconhecer minha fraqueza e pedir ajuda.
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Apesar das angústias que sentia, e das muitas outras que viria a sentir no
decorrer da minha vida, felizmente nunca precisei de tratamentos mais radicais,
como eletrochoques. E jamais tentei o suicídio, a atitude definitiva para se
livrar da dor. O suicídio é a dor que extrapola.
Então alguma coisa desceu sobre mim e me agarrou, sacudindo-me como se o
mundo estivesse desabando. Eu ouvi um guincho no ar, um estalar de luzes azuis,
e
a cada lampejo eu era sacudida por um grande espasmo. Pensei que meus ossos
estavam se partindo e que a seiva jorraria de mim, como uma planta cortada ao
meio. Fiquei
me perguntando que coisa terrível eu teria feito. - Sylvia Plath
Dr. Olavo acha que, se devidamente tratadas, Virginia Woolf e Sylvia Plath
certamente não seriam levadas ao suicídio. Falamos sobre eletrochoques. Digo que
considero
um tratamento pré-ansiolítico, pré-histórico e selvagem. Sei que algumas pessoas
precisam disso, e a única resposta que encontro é que os remédios já não dão
mais
conta, e elas são obrigadas a suportar o horror. Sylvia Plath preferiu o gás do
forno a ter de se submeter a outro choque elétrico.
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O psiquiatra diz que estou redondamente enganada. E procura deixar as


coisas em pratos limpos:
- Eletrochoque é ótimo para tratar de transtorno bipolar. Não é pré-
histórico, é uma coisa moderna. Hoje é feito de outra maneira, não há nenhuma
necessidade
de ser barra pesada. Porque as máquinas são muito avançadas e a corrente
elétrica que passa pelo cérebro é muito menor, e por um tempo muito menor.
É feito com a pessoa anestesiada, se você não contar que ela sofreu um
eletrochoque, ela não sabe.
- Ainda existem no Brasil lugares que fazem a seco, mas é um absurdo -
continua o dr. Olavo. - É a mesma coisa que você operar o apêndice numa pessoa
acordada.
O eletrochoque é extremamente benigno, dá uma alteração de memória recente que
não é contínuo, é seu único efeito colateral. É seguro, é rápido, eficaz e
resolve.
Ele pode ser usado na fase de mania e de depressão.
Aproveito para tirar a dúvida que sobra:
- Mas não é usado apenas quando os remédios já não funcionam mais?
- Geralmente, sim, mas não necessariamente. É recomendado nos casos em que
a idéia de suicídio é muito intensa, uma depressão onde há uma lentificação tal
que a pessoa entra em catatonia e pára, literalmente, de comer,
100

de ir ao banheiro, de beber, e, se você não tirar a pessoa do quadro, ela vai


morrer. E aí o eletrochoque é salvador.
Em relação ao suicídio, ele não está necessariamente ligado à intensidade
da depressão. Dr. Olavo explica:
- Às vezes a pessoa que se mata não está mais deprimida do que outra.
Porque uma das características da depressão bipolar é a impulsividade. A bebida,
apenas
para dar um exemplo, multiplica sua impulsividade por três. Então, a pessoa nem
está sofrendo tanto, mas vê uma janela, um vidro de pílulas, uma coisa dessas e
pronto.
Enquanto outros bipolares podem passar por uma depressão tenebrosa, duradoura e
não acontecer nada. Existe quem ache que o suicídio é uma coisa filosófica: a
pessoa
é muito sofisticada intelectualmente e acha que não vale a pena viver. Não é
verdade. Estudos em várias culturas (indígena, oriental, chinesa) mostram que
quem se
mata está doente. O instinto de preservação da vida é muito forte. Os números
variam de 6% a 20%, e são dados bem recentes. Estes números são principalmente
americanos,
mas têm fontes asiáticas, européias. Um trabalho de Kay Jamison, de suicídios
completos - que eles usam para diferençar das tentativas - chegou a 6%. Existem
vários
tipos de cânceres que não têm 6% de mortalidade. Outros estudos mostram uma
cifra maior. Assustador
101

também é saber que 70% dos bipolares tentam o suicídio, o que é muito grave e
triste.
Eu tinha um ciúme louco do Sidney. Ele chegava em casa por volta das sete
e meia, e, se voltava uma hora mais tarde, tinha a sensação de que iria
enlouquecer.
Parecia essas mulheres alucinadas dos filmes, uma Glenn Close de papel passado.
Certa vez, meu marido fez um churrasco para seus alunos da faculdade de
comunicação onde dava aulas, e fechei a janela do quarto para não ouvir as vozes
femininas
que se misturavam com as dos rapazes. Poderiam cortar meu ciúme à faca, de tão
sólido.
Mas vivi alguns momentos de alegria: banhos de piscina com as crianças;
quando recebíamos hóspedes do Rio ou partes das nossas famílias iam nos visitar;
ou
quando saía dirigindo o fusca sem freio, como num filme amalucado.
Por sorte, uma vez por mês, tinha direito a uma viagem de avião para o
Rio. E usava as passagens sempre que a euforia começava a se insinuar. Então
minha
amiga Denise telefonava e me chamava para ir ao seu sitio, em Miguel Pereira.
É um dos meus lugares preferidos no mundo. Logo na entrada de cercas
brancas, ficava a casa da sua
102

mãe, uma espécie de sede, e, por dentro, tudo era kitsch e colorido, como num
cenário de Almodóvar. Na mesa larga da cozinha fazíamos as refeições, mas o
resto
do
dia passávamos na casinha da Denise, que ficava mais acima. O paraíso.
Nesta temporada, também estavam hospedados Viviane, sua namorada, e
Claudio e Mariozinho, outro casal. Um dos empregados nos mostrava todo o
processo de preparo
do café, as sementes secando ao sol, e nos ensinava a moê-lo. De manhã ficávamos
sentados na grama, tomando cerveja e lendo ou conversando. No finalzinho da
tarde,
mergulhávamos num lago de água escura, e, às vezes, subíamos um barranco íngreme
e sentávamos lá no alto, admirando a floresta formando um vale. No clipe da
minha
vida tem essa cena. A comida era deliciosa, sempre havia couve no almoço e café
preto no bule da cozinha.
Um dia, um dos rapazes beliscou a bunda de um jovenzinho que trabalhava na
horta. Deu uma confusão dos diabos. Denise tinha pulso firme, apesar de seus
empregados
serem seus grandes amigos, mas achava graça da reclamação. Ele foi falar com
ela, na frente de todos que trabalhavam lá, o que se transformou numa pequena
reunião.
Denise estava doidona, e não sei como deu conta do problema. O caso é que o
rapaz se posicionou:
103

- Eu sou pobre, mas não admito pouca-vergonha.


Mariozinho baixou a cabeça depois que ela deu a reunião por encerrada,
pediu desculpas e disse que aquilo não tornaria a acontecer. Estávamos com uma
crise
de riso engasgada. E, depois que passou, a gente não parava de rir.
De noite, os moradores locais iam tocar forró até tarde. Na hora de me
deitar, madrugada alta, ia para a casa central e, antes de ir pra cama, pegava
minhas
meias, que passavam a noite penduradas na lareira.
Em vários períodos de euforia fui encontrar com as meninas. Em uma das
viagens, cheguei a Miguel Pereira ao meio-dia, e Denise e Viviane me esperavam
na estação.
Os planos eram: comprar tochas e ir para o sítio, arrumar tudo para uma festa de
aniversário. Mas a felicidade bagunça as previsões. Então fomos direto conhecer
um bebê que tinha acabado de nascer, naquele mesmo dia. Entramos pela cozinha de
um restaurante, o que já achei inusitado. A mãe do bebê morava no andar de cima.
Depois da visitinha, fomos a tantos outros lugares que não conseguiria me
lembrar na ordem, e nem fora dela. Fomos ao clube da cidade fazer sauna. Tomamos
cerveja
e comemos fatias de pizza num boteco. Lavamos o carro num lava-jato, enquanto lá
dentro fumávamos e batíamos um "papo-cabeça".
104

Já eram altas horas da noite quando passamos de carro por uma estradinha
sem luz, para conhecer uma casa abandonada e mal-assombrada, quase um castelo,
onde
num passado muito distante havia acontecido uma coisa que amaldiçoaria o lugar
para sempre: um motorista levava uma moça muito bonita (sempre as moças são
superbonitas),
e, quando chegou em frente à casa, ela disse que ia pegar o dinheiro para pagá-
lo. E não
voltou mais. Demorou tanto, que o motorista tocou a
campainha para saber o que estava acontecendo. Quando entrou na sala havia um
enorme quadro da mulher (existe sempre um quadro, blablablá). Ele apontou o
retrato
e disse que ela havia pedido para ele a esperar etc. Quem o recebeu ficou
atônito (imagino) e falou: "Mas ela morreu há muito tempo."
Ouvi essa história milhares de vezes na vida, mas isso não importava. E
sim o fato de estar numa estrada onde não se enxergava um palmo, com a luz e os
faróis
acesos, olhando uma casa mal-assombrada e caindo aos pedaços. Chegamos ao sítio
à meia-noite. E tudo acontecia assim. Eu não queria ir embora nunca mais.
O que é preciso que se compreenda é que minha felicidade não era real. Era
mais do que felicidade, era como estar no topo. Estava quimicamente alterada, o
que ficaria
105

demonstrado tempos depois, com outra depressão. A euforia vai além da alegria, é
como uma droga permitida por lei.
Denise vendia legumes na Maromba, em Visconde de Mauá. Numa outra
temporada, fui com elas pra lá. Carregando caixas de ovos no colo e tomando
conta das caixas
de tomate sob os meus pés, num jipezinho aberto atrás. Ela alugou um quarto para
as duas e outro pra mim, na casa de um menino lindo de 19 anos. Fazíamos uma
refeição
por dia, sempre composta de vários tipos de legumes refogados. O dono da casa e
sua namorada passavam o dia dançando músicas do Cidade Negra.
Paramos em uma pousada em Maringá, para vender goiabas. Depois fomos andar
de balanço. A euforia é uma superexcitação. Atrás da casa havia uma árvore
enorme
com um pequeno quadrado de madeira, sustentado por duas cordas grossas. Com
certeza foi idéia minha, e não lembro qual das duas não quis se arriscar. Era
muito alto
e dava para um abismo. Significa dizer que se alguém caísse, até achar o corpo
seria difícil. Era o mesmo que voar. Depois de me esbaldar, a proprietária
perguntou
se não queríamos pegar uma sauna. Aceitamos de cara. A parede era de vidro, e
dava para um bosque nublado, como aquelas ilustrações das caixas de lápis de cor
suíças.
106

E aconteceu uma coisa poética. Coisas assim sempre aconteciam comigo durante a
euforia. Quando saímos de maiõ, embrulhadas em toalhas brancas, a dona da
pousada
nos ofereceu doce de goiaba. Eram as mesmas frutas recém-chegadas.
A casa onde estávamos hospedadas era cercada por enormes abóboras. Eu não
estou inventando. Abóboras de verdade, como nos contos de fada. Eu dormi num
ateliê
onde o dono da casa pintava camisetas com vários tipos de duendes. Havia uma
pilha delas sobre uma mesa de madeira, com certeza feita por um carpinteiro
amador;
os pregos saltavam como flores enferrujadas. Na parede, Cindy Crawford usava
tranças e uma jaqueta de camurça marrom, entreaberta.
- Alguns caras de lá se interessaram por você - disse Denise meses mais
tarde. Não me surpreendi. A euforia nos torna atraentes.
Essas viagens, onde eu aproveitava cada segundo, representaram picos de
felicidade - e me faziam esquecer que em breve eu entraria em outro ciclo,
pronta para
passar mais uma temporada no inferno.
Depois de um ano, o dinheiro havia acabado e a empresa de comunicação que
meu marido tinha foi arruinada pela má administração no Rio. O resto do tempo
que
107

passamos na casa foi contraditório: sete quartos e nenhum dinheiro para comprar
Coca-Cola nem Hollywood.
Nos mudamos para a Asa Sul, e Manoel finalmente foi embora. Eu agora
cozinhava, lavava, passava e arrumava a casa. Meu assunto era o "removedor X12".
Nos
momentos em que estava bem, sempre tirava fotos. Ir pegar os envelopes na loja
de revelação era meu único divertimento. Não existem tantas coisas para se fazer
em
Brasília.
De repente, comecei a ter colapsos, e aconteceram coisas terríveis. Eram
depressões violentas. Tudo poderia ser resolvido de uma forma tranqüila se eu
não
estivesse naquela situação.
Loba destruiu o sofá a mordidas e não parava de latir um instante. Teve
gravidez psicológica e seus uivos, próprios da raça, traziam queixas de todos os
vizinhos. No andar de cima morava uma senhora doente, e as reclamações eram
constantes. Tudo piorou quando, estressados com a mudança, os gatos começaram a
cruzar
e tiveram um filhote atrás do outro, todos natimortos.
Eu pegava aqueles bichinhos, enrolava num pano e ia jogando lixeira
abaixo, aos prantos. A casa se transformou num inferno, e resolvi dar a Loba
para meu
cunhado, que morava numa casa enorme e tinha vários cachorros.
108

Acho que nunca mais fui totalmente feliz depois disso. Íamos visitá-la
sempre, mas não era a mesma coisa. Ela teve filhotes, e chorei quando soube como
ela
fez para dar à luz. No terreno imenso, ela construiu, sem ajuda, uma cabana
usando folhas secas de uma bananeira. Quando aparecíamos para ver os
cachorrinhos, estava
sempre de olho. Foi uma mãe exemplar e solitária, e um dia salvou um dos seus
filhotinhos de uma coruja.
Estou escrevendo como se nada disso tivesse acontecido, como se fosse uma
história inverossímil, de ficção. Porque se começar a pensar na minha cachorra,
entro num túnel de culpa, cheio de curvas e sombras. Também levamos os gatinhos
embora, para um sítio. Eles não tinham mais edredom, nem camas gostosas para
dormir.
Absolutamente não posso mais escrever sobre isso. Foi uma das piores coisas que
já fiz na vida.

Sob o sol do nunca, do ninguém, do nada,


meu peito liso sem rumo ou barco
busca o riso a esmo,
essa cortina que esvoaça
na luz trêmula da tarde,
nuvens, nuvens
ainda que ásper,
cintilo à deriva.
Ledusha Spinardi

Voltei de Brasília meio ano antes de Sidney, para alugar um apartamento e


procurar escola para os filhos.
Impulsiva, decidi pelo primeiro que vi, na Lagoa. Estava acelerada,
pilhadíssima.
Imediatamente comecei a trabalhar em uma campanha política. Muito
maníaca, me apaixonei por um cara do comitê, dois anos mais novo do que eu e
surfista
Ele também se apaixonou por mim - a euforia nos torna sexy. Tivemos uma espécie
de namoro platônico. Essa não é uma revelação bombástica, já que depois contei
para o meu marido. Acordar, me arrumar e ir para o comitê era muito bom, não só
por saber que iria encontrá-lo, mas porque o trabalho era de fato estimulante.
Era como um fla-flu.
112

Achei que era hora de contar à Luciana sobre minha doença. Estava
confiante porque tinha acabado de comprar o livro de Kay Jamison, e pela
primeira vez pude
me identificar com alguém que sofria do mesmo mal. Apesar do ritmo de trabalho
ser frenético - não pra mim, que poderia ficar 24 horas acordada sem me dar
conta
-, puxei minha amiga pelo braço e fomos até uma sala vazia. Sempre que a
depressão passava, eu achava que finalmente estava livre do transtorno. Fechei a
porta.
- Lu, preciso te contar uma coisa.
Ela esperou, mas não tinha jeito de eu conseguir falar o nome da doença.
Eu tenho uma coisa pra te contar...
- O quê?
- Não posso falar...
- Fala logo.
- Não consigo.
- Matou alguém?
Ri. Ela falou uma série de opções, mas nenhuma certa.
- É uma doença, Lu.
- Que doença?
- É uma coisa no meu cérebro... Sabe, falta um elemento pra ele funcionar
direito...
113
Ela citou várias doenças de maluco. E não entendia por que tanto drama.
- Lu, sabe, uma doença... a pessoa fica deprimida, depois alegre...
- Não estou entendendo nada, por que você não diz logo o nome da doença?
Eu não conseguia, era demais pra mim.
- Lu, eu sou maníaco-depressiva.
Ela não achou a revelação nada de mais e falou:
- Pior eu, que sou gorda.
Hahahaha.
Para se ter idéia de como eu estava eufórica, já na reta final da campanha fomos
até uma comunidade vertical no Leblon. Levamos bolas para as crianças e os
imprescindíveis
bonés e camisetas. Um negão rastafári veio saber o que estava havendo e contei
que estávamos apenas distribuindo brindes. Quando dei por mim, ele estava
contando
coisas da sua vida, das vezes que tocou "com a Gal", sua paixão pela música, os
shows nos quais tocava percussão.
Eu estava encantada, todas as pessoas me encantavam, até mesmo as chatas.
Mas não era esse o caso, era divertido ouvir suas histórias. Fiquei tão
envolvida
que não percebi que o resto do grupo já me esperava na van.
114

Começaram a buzinar e fazer sinais e me despedi dele, que se ajoelhou, beijou


minha mão e disse:
- Você é uma princesa.
Fiquei toda feliz, e, quando entrei no carro, uma das meninas me
perguntou, misturando censura e medo:
- Você sabe com quem estava conversando?
- Anh?
Você estava conversando com o chefão do tráfico daqui!
Ooops.
Comento com Thiago, um amigo bipolar, sobre esse lance de se interessar
por todo o tipo de gente, e ele concorda que na euforia vemos o mundo de uma
outra
maneira:
- Na mania, eu acho que esse negócio de gostar do perigo, da adrenalina, é um
sintoma clássico. A gente tende a olhar as coisas muito pelo lado positivo.
Maníaco,
eu tinha essa necessidade de entrar em contato com gente maluca, umas figuras
inusitadas, mas também é porque a gente fica interessado, e puxa o lado bom da
coisa.
O bipolar, não sei se é porque ele vai com tanta franqueza, tanta sinceridade,
talvez até pela superioridade dele, naquele momento, de estar se sentindo tão
seguro,
que passa uma
115

coisa meio no olho, essa coisa de peito aberto. Eu lembro de conversar sobre
essa história com uma pessoa muito agressiva, perigosa, muito barra pesada, e eu
tinha
consciência disso, não era idiota, e olhava no olho. Essa postura peito aberto,
que é uma postura meio louca.
Thiago tem 28 anos e teve quatro depressões, uma hipomania e um surto
psicótico. Para ele, as depressões foram descobertas fundamentais para sua
transformação
e seu amadurecimento.
Durante a escrita do livro conversei com ele várias
vezes, em pizzarias, bares, por e-mail. Já estou quase terminando de escrevê-lo
e saímos para caminhar na praia.
Faz frio e estamos encasacados. Ele conta sua experiência.
- Em 1998 tive uma crise de depressão, tomei antidepressivo e, no ano seguinte,
mais ou menos na mesma época, aconteceu a mesma coisa. Com o remédio saí mais
ou menos rápido da depressão. Era sempre a mesma coisa: começava em outubro,
novembro. Dois ou três meses depois eu estava saindo. Meu diagnóstico é
considerado
claríssimo. Foram quatro anos consecutivos, e minha caracterização de bipolar,
maníaco-depressivo modelo, vem daí também, da minha regularidade nos ciclos. Na
terceira
depressão, em 2000, eu saí como sempre bem, mas só que comecei a ficar bem
demais. Foram os dias mais fantásticos
116

e alucinantes da minha vida. Tive uma hipomania que durou uns quatro meses, e
depois a coisa foi ficando mais intensa. Então tive um surto psicótico, barra
pesadíssima.
Chove fino e atravessamos a rua. Sentamos numa lanchonete e pedimos café
com creme.
- Me fala dos seus delírios...
- Eu acreditava em coisas absurdas, a polícia teve que me pegar, no final
das contas, de tanta confusão que eu arrumei. A história que inventei sobre mim
mesmo, sobre o que eu estava fazendo no mundo, é uma história complicadíssima,
elaboradíssima. Me sentia onipotente, e carregava o mundo nas costas.
Grossíssimo
modo, meus delírios eram assim: crianças haviam sido embaralhadas. Filhos tinham
sido trocados, por uma série de razões políticas, vamos dizer assim. E eu tinha
descoberto a regra de funcionamento do mundo, que acontecia desde os tempos
imemoriais. Tinha descoberto a regra que permitia repor aos pais as crianças que
tinham
sido trocadas, é basicamente isso.
Thiago toma o café, e logo a seguir pede outro.
- O fato de ter feito esta descoberta me atribuía uma série de poderes. O
mundo inteiro me agradecia por ter sido capaz de fazer isso. E, na verdade, isso
justificava toda a minha história, a infância um pouco complicada, justificava
meu sofrimento como o preço que eu tinha de
117

ter pago para realizar essa grande missão, que seria permitir que os pais
localizassem seus filhos perdidos. Era um delírio, mas eu acreditava de fato
nisso, trabalhava
em função disso. Achava inclusive que eu era uma dessas crianças que tinham sido
trocadas. Cismei que não era filho dos meus pais, na verdade eu gritava para o
mundo,
mas é óbvio que estava falando com as paredes.
O garçom traz xícaras e envelopes de adoçantes e açúcar. Thiago continua:
- A forma como a minha cabeça estava funcionando era peculiar demais pra
eu hoje em dia ser capaz de recuperar todos os detalhes dessa história, a
própria
dinâmica, a lógica de como funcionava. Tinha ido para Tocantins, pra um
acampamento, e foi naquele lugar que detonou. Foi lá que vivi os dias mais
esfuziantes, a
maior fase da mania. Da grande mania, antes de entrar no delírio. Eu tenho um
grande carinho por tudo que aconteceu.
- Seus delírios têm tudo a ver com a sua infância. Óbvio, né?
- Isso é verdade. Quando criança eu era muito estudioso, retraído, muito
responsável, talvez fechado demais em casa, preocupado em satisfazer os adultos,
pouco
criança, nesse sentido. Na verdade, acho que as coisas que emergiram quando eu
fiquei maluco estavam todas elas
118

relacionadas à pouca atenção que eu dei àquela criança, tinha contas ainda a
prestar com a criança que eu fui; estou falando uma grande obviedade, acho, pra
qualquer
um que acredita em psicanálise.
O dia está nublado e surfistas se equilibram nas ondas enormes. Peço
torradas com manteiga e mel.
- A mania coincidiu muito com o momento que comecei a pensar sobre a
minha infância. Quando estava começando a dar atenção a ela, fui entrando na
mania. Tanto
que o interior do Tocantins, onde vivi esses dias malucos, me despertou muita
coisa doida e, por uma série de coincidências, me remeteu a lugares da minha
infância.
Encontrei uma casa abandonada, que se parecia com a da minha avó, e achava que
já tinha estado ali.
Na calçada, rapazes descalços passam vendendo amendoins em cones de papel
cor-de-rosa.
- Logo depois disso, comecei um movimento, quase obsessivo, para
descobrir coisas da minha própria infância. Isso envolveu conversar com os meus
pais, ver
fotos, visitar lugares. Foi nesse ano que fiquei meio sem fazer nada na vida, só
me recuperando. A maior parte desse tempo acho que eu estava dedicado a inserir
minha infância na trajetória da minha vida e fazer as pazes com ela. A minha
própria loucura, vamos dizer assim, foi o primeiro movimento.
119

Na verdade, eu justificava essa coisa de ter descoberto a regra de organização


do mundo, da seguinte forma: só fui capaz de descobrir isso porque fui criado
pra
descobrir essas regras quando fosse mais velho. Meus sentimentos da infância
foram o resultado de um projeto de determinadas pessoas que escolheram aquilo e
me
falavam: "Olha, esse menino vai salvar a geração dos pais mais pra frente, esse
daqui foi o escolhido". Então eu teria que passar por uma série de provações e
dificuldades, porque era um predestinado. Sei lá por quem, por algum grupo, uma
seita secreta, uma coisa assim. Por alguém que estava interessado que os pais
recebessem as crianças de volta.
- Minhas depressões foram mais pesadas do que as tuas, acho...
- Devem ter sido, tive contato com pessoas que ficaram piores, eu relativizo.
Tem muito pior. A mãe de uma amiga é diagnosticada como bipolar, mas está há
trinta
anos deprimida. Tentou-se de tudo com ela. Claro que eu tinha aquela dor física,
dor no peito, não conseguia falar direito, gaguejava. Tive um problema de sono
muito
sério na última depressão. A princípio não dormia, acordava no meio da madrugada
e depois eu só queria dormir, o tempo inteiro, chegava a dormir vinte horas
seguidas.
E tive muito apoio da minha família, meus pais foram muito
120

legais, sempre. Quando fiquei psicótico poderia ter sido internado, dado o meu
nível de agitação, mas eles optaram por fazer uma coisa diferente. Sempre
estiveram
do meu lado, sempre foram meus grandes companheiros nessa história toda.
A chuva aperta e algumas pessoas se abrigam sob o toldo da lanchonete.
Pingos estalam na calçada de pedrinhas portuguesas.
Durante as depressões, fiquei num sítio em Minas e, por sorte, era uma
época que a maior parte dos meus amigos estava à toa, então eles fizeram uma
espécie
de rodízio para ficar ao meu lado. Meu pai ia lá, uma vez ou outra, vi minha mãe
uma ou duas vezes durante todo esse período, ela estava muito assustada. Foi um
pouco traumatizante pra eles. Mas por outro lado teve uma coisa muito boa,
porque me aproximei do meu pai. Foi muito bacana.
- Minha vida é cheia de intervalos - digo -: a gente pára de raciocinar
por um tempo, sente que perdeu anos com isso. Você não sente isso?
- A gente perde, sim - concorda. - Quando tudo aconteceu, eu estava
fazendo mestrado em Belo Horizonte. Foi na época do delírio, eu tranquei e vou
defender
minha tese semana que vem. Estou reclamando que o meu mestrado era pra ter sido
feito em dois anos e acabei fazendo
121

em seis. Eu tenho uma visão muito positiva do bipolar, mas sei que fui
privilegiado. Porque conheço outros bipolares que têm uma vivência péssima da
doença, e têm
todas as razões pra isso. Não sou representativo, não sou a regra, outras
pessoas que eu conheço que já passaram por isso, diagnosticados como bipolares
clássicos,
passaram por dificuldades, tiveram suas vidas muito desestruturadas, sofrem
muito. Não gosto de ficar generalizando a partir da minha experiência, porque
acho que
é muito particular. Tenho essa coisa da família, acho que eu tenho até uma certa
estrutura, mesmo mental, psicológica, enfim, lar estabilizado, relação positiva
com o remédio.
Thiago acha que, sendo bipolar, teve mais ganhos do que perdas. E, como Kay
Jamison, prefere o nome antigo da doença.
- Prefiro a expressão maníaco-depressivo, porque acho que transtorno
bipolar é um eufemismo e a intensidade da coisa não fica clara. Eu faço
referência a isso
no meu perfil do Orkut (risos), nunca tive problema. É um problema de identidade
complicada. Sempre fui o certinho, nerd, e o fato de ser reconhecido como louco
me permitiu um equilíbrio, uma identidade, essas coisas. Nunca me envergonhei,
as pessoas ficavam admiradas com isso, de como eu não tinha vergonha de falar.
- E você gastava muito?
122
- Nunca fui de gastar, nunca tive nada de consumista, e acho que isso
contribuiu. Eu diferencio no meu caso três estágios. A hipomania, a mania e o
delírio.
A diferença entre o delírio e a mania é que no delírio eu entrava num mundo
totalmente paralelo. Este mundo das crianças perdidas, onde as pessoas não
morriam, elas
hibernavam, onde havia extraterrestres, e eu me comunicava com outros seres,
enfim, todas essas coisas. Mas nesse período entre mania e delírio, uma vez fui
a um
posto de gasolina e gastei oitocentos reais, com besteiras, chocolates, e
distribuí para as pessoas. Eu me lembro de ter comprado também um livro inútil,
gigantesco,
caríssimo, enfim, vários volumes. Mas logo, logo tiraram meu cartão.
- Thiago, você reagia rapidamente aos remédios ou demorava para se
adaptar?
- Em 2001, iniciozinho de 2002, comecei a tomar a medicação e de lá pra
cá nunca mais tive nem depressão nem mania. Comecei com um antipsicótico e
funcionou
rapidinho. Em 2002 comecei a tomar lítio, me dei muito bem, não tive nenhum tipo
de efeito colateral. Nunca tive
mais nada. O ciclo foi quebrado.
- De vez em quando você transita entre os dois pólos, costuma sentir
euforias brandas?
- Hoje em dia flutuo no meu humor, mais do que antes. Mas as flutuações
estão bem dentro da esfera da normalidade.
123

Sempre procuro ficar atento. Às vezes, quando estou no bar com meus amigos, e me
sinto meio eufórico, agitado, resolvo ir pra casa dormir. Pra mim ta sendo
muito bom, porque nesse período de 1998 a 2001 eu não ganhava em continuidade,
porque a depressão corta, a gente tem que meio que começar de novo, se
reestruturar,
se organizar. Hoje em dia eu faço análise com uma psicanalista lacaniana, que é
psiquiatra também. E controlo a dosagem de lítio. Dormir bem também é essencial
pra
mim. Se fico duas noites sem dormir, já começo a me sentir meio estranho.
Exercício físico me ajuda muito, faço com regularidade, todo dia, eu gosto, e
acho que
isso me ajudou bastante.
- Não sei se com você era assim, mas eu tinha dificuldade de saber o que
fazia parte da minha personalidade e o que era a doença...
- Eu sou assim mesmo ou é porque sou bipolar? Você só pode pensar em você
própria levando em consideração esse fator. Não é?
- Claro. Com o fim dos ciclos você acha que se tornou uma outra pessoa?
- Eu estou sempre querendo fazer um novo Thiago. Engraçado, tenho essa
obsessão de sempre me tornar uma pessoa diferente, mudar. Outro dia eu estava
pensando
nisso, estava precisando de uma depressão.
124

Bato na madeira, ele ri.


- Que fosse uma fraquinha. Porque todas as vezes que eu saí da depressão,
tinha essa dificuldade de recomeçar, mas tinha uma vantagem, que era sentir que
a
pessoa que eu estava começando a ser era diferente da anterior. Sempre era
diferente. A depressão exige que eu me reinvente, que eu seja outro. É óbvio que
eu posso
me transformar, virar outra pessoa sem a depressão, faz muito mais sentido, vai
ser uma coisa muito mais definitiva. Mas eu tava pensando nisso: a depressão,
nem
que fosse como um rito, uma coisa que marcasse uma passagem, sei lá, bobagem
minha.
- Você é um sortudo.
- Sou. Tudo me ajudou muito a me entender. Muito, muito. E me possibilitou lidar
com uma série de questões, tomar consciência de outras que eu nunca tinha
atinado,
foi uma coisa boa na minha vida. É um pouco presunçoso, mas é aquela coisa que
às vezes a gente fala para os outros: "Eu estive num lugar onde vocês nunca
estiveram."
Eu passei por coisas, eu vi coisas que ninguém sonha.
A chuva já foi embora e também precisamos ir. O garçom traz a nota, que
Thiago faz questão de pagar. Nos despedimos com beijos e aquela coisa carioca de
"Vamos
marcar! Vamos marcar!"
125

Assim que o surfista chegava, ia direto pra minha sala, inventando uma desculpa
qualquer. E eu estava sempre na sala dele, onde ficava o material da campanha,
para
pegar panfletos e bandeirinhas, mesmo sem precisar. Era uma relação platônica,
mas maliciosa. Às vezes pedia que eu escolhesse os números da mega sena, toda
semana
apostava na loteria.
- Se der os números, o que você vai me dar? - perguntava eu.
- Um beijo na boca - respondia ele. Eu me achava.
Trabalhávamos de domingo a domingo. E nos fins de semana, quando passava
em casa pra trocar de roupa, meus filhos perguntavam:
- Quando vamos voltar a jantar?
Já com o dedo no botão do elevador, eu respondia: - Esquentem a comida que
está pronta no fogão. - E voltava para o comitê.
Quando o candidato a prefeito ganhou as eleições, houve uma grande festa
na cobertura de um hotel do Rio. A primeira coisa que fiz quando cheguei foi
checar
se o nome do surfista estava marcado na lista da recepção.
Beijei todas as pessoas que conhecia (e conhecia todas mesmo), e fui
falar com ele. O surfista segurou meu braço e disse:
126

- Vamos sair daqui.


Eu achava que esse tipo de cena só existia no cinema, e mal pude
acreditar. Mas logo fui tomada por uma aflição, como se tivesse acordado de um
sonho. Sentamos
à mesma mesa, mas não consegui responder a nenhuma das suas perguntas. Me chamou
para dançar e não fui. Não que não quisesse, mas não sei dançar separado. Acabei
dançando samba com um dos motoristas da campanha, o que o deixou furioso.
- Você disse que não sabia dançar.
Não sabia mesmo, mas o cara estava bêbado e inconveniente, e aceitar seu
convite foi o único modo que encontrei para fazê-lo sossegar. O surfista chamou
outra
mulher. Quando a música parou, brinquei:
- Já vi que você está se divertindo muuuito. Ele me olhou:
- Eu estava dançando com você.
Era um filme no qual eu não podia participar, mas gostava dos diálogos.
Eu quero viver uma história de amor com você - falou. Mas eu não disse
nada. E quando a festa acabou ele estava atracado no sofá com uma garota
gorducha.
Achei que talvez significasse "estava beijando você", mas talvez não. Homens não
são muito confiáveis.
127
Foi uma paixão boa de sentir, mas hoje vejo que não foi um sentimento real, mas
uma fantasia, uma excitação própria da doença.
Em janeiro, quando a campanha terminou, cada um foi para o seu lado. Eu
ainda estava hipomaníaca quando mandei um cartão de ano-novo para sua casa, um
poema
de Brecht. Embaixo, escrevi um recado: "Saudades de você."
Luciana me disse que eu deveria colocar um s no final da palavra você. Eu
sabia, mas não quis. Me sentia ousada. Não estava nem aí.
Com o fim do trabalho e apaixonada, caí em depressão outra vez. Depois
dessa vieram muitas. Pela primeira vez foi detonada por um fator externo.
Porque, veja
hem: quando tive um colapso no início de 1990, eu era dona de uma livraria,
sonho de todas as pessoas que adoram livros.
Nesses momentos de dor, jamais gostei de ter contato com pessoas, e fugia
disso. Mas com a minha família era diferente. Me sentia bem, era como uma cerca
protetora. Ficava quieta, ouvindo conversas para tentar saber o que estava
acontecendo no mundo. Não entendia nada. E, enquanto as pessoas iam dando sua
opinião,
eu falava: "Também acho" ou perguntava: "É mesmo?", para disfarçar.
128

Disfarçar sempre, exaustivamente, durante anos. Quando eu resolvia contar alguma


história que tinha lido ou que tinha acontecido comigo, nunca conseguia
completá-la. Eu vivia no vácuo.
Uma pessoa saudável contaria para sua família o que estava acontecendo. Da
vontade de morrer, da dor, pediria ajuda. Afinal, minha família - sem contar os
nossos filhos - se resume aos dedos de uma mão, e sempre nos amamos muito. Rosa,
médica que era casada com meu primo, sempre estava disponível para ouvir minhas
confidências. Qualquer coisa importante que acontecia comigo eu contava a ela,
que ria muito das minhas histórias malucas. Mas nem pra ela tive coragem de
contar.
Viajei para Saquarema, com minha prima, seu marido e seus filhos. Sidney
ficou apenas um fim de semana, estava preso ao trabalho na televisão e na rádio,
onde
fazia incansáveis plantões. Era massacrante pra ele. Continuei lá. Ninguém sabia
de nada, mas meu desânimo era total. Gostava de dormir no quarto sozinha e
detestava
acordar para ir à praia, embora sol e mar sejam combinações interessantes para
quem está deprimido. Ninguém tocava no assunto, e eram afetuosos o tempo
inteiro.
Sempre achava que no dia seguinte estaria boa, e era frustrante acordar do
mesmo jeito. Sou uma leitora compulsiva,
129

e fiquei lendo Saudades do século XX, de Ruy Castro, pela milésima vez, porque
já conhecia seu conteúdo. Como crianças que assistem ao mesmo filme várias
vezes. Talvez por terem a segurança de saber o que vai acontecer.
132

Todas as noites, deitada na cama, imaginava a mesma história. Parece


evidente que havia um esforço mental para tentar criar uma ponte que me fizesse
passar
da depressão para a euforia, da dor para a recompensa.
Voltei de Saquarema ainda mais deprimida. Já havia trocado de médico,
para tentar um novo tratamento. O novo psiquiatra era um homem interessante, e
uma das
pessoas mais corretas que já conheci. Charmoso, as estantes do consultório eram
cobertas por livros manuseados e no original; não sabia usar a internet e nem
tinha
interesse. Não tinha e-mail; só usava celular por obrigação profissional; e
odiava os americanos, coisa que ainda não tinha voltado à moda. Na pior das
depressões
sempre consegui me expressar bem quando conversava com terapeutas ou
psiquiatras, porque eram os únicos que compreendiam o que eu sentia.
Uma nova ciranda de remédios. Finalmente comecei a tomar Efexor, remédio
recém-lançado, e um Rivotril antes de dormir. Rivotril cria muita dependência, e
conheço pessoas que usam sem controle. Se um dia esqueço de tomá-lo, minha
cabeça amanhece oca e parece que não dormi. Nunca deixo de seguir a medicação
indicada,
é a única regra que eu levo realmente a sério.
Troquei de psicanalista também: eu e Julia já estávamos muito íntimas,
como se ela fosse minha mãe ou
133

melhor amiga, e a terapia já tinha deixado de funcionar. Angela Podkameni, com


quem me consulto até hoje, me conheceu no auge da depressão e aos poucos fomos
percorrendo
os caminhos onde coisas estavam escondidas. Ela me ajudou muito, e sempre, a
dizer sim para a vida.
Quando chegava alguma visita, eu pedia ao Sidney para dizer que eu estava
dormindo. Impossível me reunir com outras pessoas. Minha aparência era péssima e
eu não
sabia o que falar. Estava constantemente de mau humor.
Tinha ódio das pessoas dos comerciais, da revista Caras e de todas que apareciam
sorrindo felizes na televisão.
Ao retornar, a depressão te pega desprevenido, te dá um nocaute, e você
volta a ser uma pessoa que nada sabe, tem certeza de que aquele é seu estado
normal,
e que jamais vai sair daquela cilada. Eu pedia a Deus que ficasse doente, alguma
doença visível que me desse motivo para chorar e ficar acamada. Que os outros
pudessem
entender, ficar ao meu lado e dizer: "Vai passar". Ou que acontecesse alguma
coisa muito grave, que fizesse com que minhas lágrimas fossem consideradas
normais.
Ficar na cama durante meses é como tirar férias forçadas da vida. Estive
ausente de muitas coisas importantes que aconteciam em volta: a morte da mãe de
um
amigo, sobrinhos que se formavam na faculdade, pessoas
134

próximas que haviam sido operadas, casamentos e separações. Quando voltava à


normalidade, ficava sabendo de pedaços de acontecimentos que me deixavam
constrangida.
Eu simplesmente não sabia de nada. Meu sobrinho tinha sido operado há meses? Me
surpreendia: "De quê?" "Por quê?" Não é à toa que, na minha família, sempre fui
tachada
de "a desligada".
Me lembrava sempre de uma história: quando minha mãe dava aula no Sacre
Coeur, no Alto da Boa Vista, uma freira de 40 anos largou o hábito e foi morar
em Copacabana.
E não sabia abrir uma lata. Minha mãe dizia isso como figura de linguagem,
porque ela mesma nunca soube usar o abridor. Eu me identificava muito com aquela
mulher,
porque estava no mundo e não sabia como me comportar.
Toda minha família observava que havia alguma coisa errada comigo, mas era
algo velado. Muitas vezes ouvi cochichos vindos da sala. Nunca aprendi nada com
as depressões anteriores. Quando surgia uma nova, era sempre como se fosse a
primeira.
Uma das coisas que me deixava aborrecida era não conseguir ler. Ao mesmo
tempo, não poderia ficar dias na cama, presa aos meus pensamentos - todos
sombrios.
Descobri que reler crônicas antigas do Drummond de
135

Andrade aliviavam minha angústia. Eram tão inocentes que me transportavam para
um mundo irreal.
Kay Jamison conta que, desesperada com sua total falta de concentração
para entender qualquer livro que pegasse pra ler, precisou apelar para os livros
infantis.
Mas por que será que a pessoa fica tão burra?
- Hoje está se vendo - explica dr. Olavo - que essas doenças, como o
transtorno bipolar, a depressão, afetam áreas cerebrais que têm a ver com
aprendizado,
atenção, memória, as funções chamadas executivas. O lobo frontal tem a função de
coordenador. A doença faz um desarranjo e as funções ficam meio bobas, soltas
como
se fossem balões de ar, e não conseguem fazer uma figura, não conseguem fazer
nada.
"Tem mais: a pessoa supera a depressão, mas essa função executiva do lobo
frontal ainda demora para voltar ao normal. E algumas pessoas não entendem por
que
não estão mais deprimidas, mas continuam desanimadas: é uma apatia cerebral, o
cérebro ainda está rateando."

Vamos todos pra Barra da Tijuca


pegar uma onda maluca
Vai a Adriana
Vai a Claudinha
Vai a Isabela
Vai o Zé Luiz
Vai a Rosana
Vai o Carlinhos
Vamos todos dar uns mergulhinhos
Rá rá.

E tão nítido: eu, criança, vestida de baiana, numa festa de carnaval no jardim
interno do nosso condomínio. Em determinado momento todas as contas de todos os
colares
rolaram pelo chão.
No ônibus escolar, a madre superiora me pedia que a ajudasse a rezar o
terço, enquanto no banco de trás as meninas suspiravam pelo Paul McCartney.
Quando
chegou o Natal, recebi um presente, por ter sido tão comportada. Abri a caixa,
curiosa: era um terço dourado. Loser.
Só me recordo de mim muito quieta. Estudava numa escola onde freiras
andavam pra lá e pra cá com molhos de chaves nos bolsos, e faziam listas dos
pecados
que jamais poderíamos cometer. Minha mãe dava aulas
140

em vários colégios e, para minha proteção, não deixava que eu fosse brincar na
rua. Era uma rua sem saída que terminava num morro cheio de casinhas, onde todos
os meninos soltavam pipas e jogavam bola. Eu ficava na área de serviço, com um
quadro-negro, brincando de professora com uma outra menina que morava no andar
acima
do meu, na área lateral do prédio. Eu era quieta, e é essa a imagem que eu tenho
de mim quando dou uma espiada no passado.
Minha irmã, Isabela, era pequena quando viu na ficha escolar que o nome do
nosso avô era outro. Minha avó ficou viúva e se casou outra vez. Seria crime?
Não
tínhamos acesso às informações dos adultos. Talvez por isso eu nunca tenha tido
vontade de crescer. Não tive a excitação do primeiro sutiã - ao contrário, a
idéia
me apavorou e tudo se desenrolou como um ritual às avessas. Nunca quis sair de
baixo das asas da minha mãe. Eu era obediente, entendia que existiam coisas que
eu
não deveria saber e para manter o conforto que a alienação nos dá, aceitava.
Também sempre tive a sensação de não ser normal.
A fim de tornar a história da minha infância menos fantasiosa, corro atrás
da minha única amiga dessa época, Rosana. Nos conhecemos aos cinco anos. Ela
disse
que lembrava de tudo e com detalhes. Realmente: citou
141

nomes de vizinhos que eu nunca conseguiria lembrar. Ela descrevia nosso passado
como se fosse uma sessão
da tarde:
- Você não pode falar nada da nossa infância. Nós tivemos a melhor infância
que alguém pode ter. Mas e aquela garota quieta, presa?
- Presa nada, a gente roubava rosas escondido na casa dos vizinhos,
viajávamos demais, íamos pra Barra tomar banho de mar [escrevi banho de mãe,
olha que ato
falho], enquanto sua mãe, no volante, cantava músicas
pra gente.
Verdade, minha mãe era viúva e tinha um Hillman preto. Íamos tomar banho
na Barra da Tijuca e, como não existia o túnel Lagoa-Barra, era uma viagem
chegar
até lá, a começar pelo Alto da Boa Vista engarrafado. E, por falar em Alto da
Boa Vista, agora já são lembranças minhas, íamos para o gramadinho, um lugar
onde havia
um lago com peixes e grama em que podíamos rolar. Fazíamos piqueniques na sombra
das árvores.
Sendo professora, minha mãe tinha meses de férias, e nossos passeios eram
quase todos de graça. Não pensem que estou por aqui há mais tempo que na verdade
estou, mas sabe onde tomávamos banho de mar? Bem na entrada da Barra, no canal,
onde tem aquelas casinhas lindas
142

de gente rica. Não havia nada ali, só areia, e do outro lado, na pista onde
passam os carros, mais areia. Mergulhávamos e nadávamos de uma margem para a
outra. A
Barra cresceu muito rápido. Aos domingos, íamos à Floresta da Tijuca e tomávamos
chá no Esquilos.
Mamãe estava sempre fazendo reuniõezinhas e bolos de aniversário para os
amigos, bolos comuns que ela enfeitava com flores de verdade, e no Natal, para
desespero
da minha avó, colocava bolas de vidro por cima. Eram coisas bem modernas. A sala
da nossa casa tinha um monte de plantas; isso não era comum, minha avó dizia que
elas iam roubar todo o nosso oxigênio.
Tudo que a Rosana falou eu lembrava. Ela fazia músicas para cada um de
nós e tínhamos uma exclusiva para ir à praia, na qual íamos citando todo mundo
que
estava presente. A lista de crianças ia se modificando de acordo com as que
estavam no carro.
Foi uma intelectual, embora distante da esquerda, e chorava ao assistir
às montagens de Morte e vida severina, do João Cabral, ou Gritos e sussurros, do
Bergman,
por exemplo. Estava sempre lendo. Jorge de Lima se misturava com Jacqueline
Susann e estamos conversados.
Rosana se tornou presidente de uma empresa criada por ela, quase um
monopólio, e poderia estar na capa da
143

Exame. Minha mãe é a figura principal da sua vida. Diz que cria suas filhas
seguindo as regras que aprendeu com ela. Aí é que está. Ela não era sua mãe.
- Eu via a tia Lucy como uma executiva, uma mulher que saía para
trabalhar, moderna - me diz.
Na nossa casa sempre havia rosas, minha mãe dava aulas de francês em um
colégio de freiras, e arrumava a mesa do chá com louças de família e talheres de
prata,
mesmo que estivesse sozinha. Na pequena cristaleira do quarto, muitos vidros de
perfumes franceses.
Rosana faz tudo igual. É louca por Paris, sabe francês, adora rosas, chás,
talheres de prata, e trabalha à exaustão. A diferença é que a Rosana não era a
filha
da Lucy. Minha mãe era uma mulher moderna e uma mãe conservadora. Se fosse ao
contrário, talvez eu estivesse escrevendo outro livro. Minha amiga pegou um lado
dela
diferente do meu. Choro ao ler João Cabral, mas não sei usar os talheres
direito, mesmo com as aulas que ela dava
pra nós duas.
Eu era pequena ainda, e posso ver claramente minha mãe chegando em casa e,
percebendo que esquecera a chave da porta, passar da varanda da vizinha para a
nossa.
Meu Deus, essa cena aconteceu tantas vezes, era assustador. Também me lembro de
outras coisas: um porteiro do prédio escorregou enquanto lavava o corredor e se
cortou
144

com a garrafa de água sanitária. O homem ensangüentado ao meu lado no automóvel


era apavorante. Mas era muito legal o que ela fazia. Estava sempre levando
ensangüentados
para o hospital, no banco de trás.
Quando se casou com meu padrasto, eu tinha dez anos. Fizemos um coralzinho
improvisado na igreja e cantamos "Senhor juiz, por favor, pare agora...", com
coreografia
e tudo. Ele viria a ganhar dinheiro, era atuário, dava consultoria para várias
empresas, além de min istérios.
Dos meus dez aos 15 anos, viajamos várias vezes de carro e conhecemos
Minas Gerais quase inteira. Festival de Inverno em Ouro Preto, as esculturas de
Sabará,
Mariana. Viajávamos de carro para todos os cantos. Rosana romantiza e às vezes
se confunde:
- Nós brincávamos com os meninos de salada
mista.
Eu não, ela. Eu tenho certeza que não, se tivesse brincado me lembraria.
Hohoho.
A primeira vez que vi a mentira eu era bem pequena. A vizinha do
apartamento ao lado deu um tiro no ouvido, e minha empregada me puxou pelo braço
pra gente
ver. Ela era uma mulher de cabelos lisos e pretos, interessantíssima, e suas
três filhas também eram bonitas.
145

Seu corpo estava no chão da sala e do ouvido saía uma pequena poça de sangue. No
jantar, perguntei à minha mãe do que ela tinha morrido. Minha mãe disse: "Ela
estava
doente." Pensando agora, não era uma mentira como pensei a vida inteira, era
verdade.
Já adulta, fui a uma festa de fim de ano do Colégio dos Santos Anjos, onde
minha mãe estudou. De tempos em tempos os ex-alunos se reuniam. Ela já havia
morrido
e Max, seu melhor amigo da época, me convidou para ir. Max era um intelectual
peso-pesado que freqüentava os saraus que reuniam Pedro Nava, Drummond de
Andrade e
aquela turma toda. Ele me disse: "Nunca conheci uma mulher tão inteligente
quanto a Lucy."
Minha mãe gostava de escrever Luci, porque achava o y colonizador. Na
reunião fui muito festejada por ser filha dela. E quando começaram a falar sobre
sua
maneira de ser, parecia que estavam falando de uma outra pessoa. Perguntei à
diretora:
- É verdade que a minha mãe namorou o Heleno de Freitas? - O jogador era o
Raí da época, e o namoro era uma coisa que se especulava na família. Ela ficou
na
dúvida, olhou pro lado para pedir ajuda e, desistindo,
suspirou:
146

Difícil é saber quem a Lucy não namorou. -Quase caí pra trás. Minha
mãe era uma sereia.
Quando uma mulher tem uma filha, é comum que a eduque de maneira oposta à
que foi educada. Minha avó não gostava da minha mãe, e ela podia fazer o que bem
quisesse. Então foi pra Europa com a irmã, aos 18 anos, com dinheiro contado. E
dirigia caminhões. Me educou do jeito que gostaria de ser educada.
Eduquei Maria Clara conforme as fases da sua vida; e ela começou a sair
de noite na hora que sentiu vontade, e era a hora certa. Nunca impedi que ela
fizesse
nada, pular 16 horas de abadá em Salvador, viajar com amigos e namorado.
Acampar, nunca, por causa da violência. Mas ela sempre se virou acampando em
terrenos de
pousadas, como as de Paraty. Como Maria Clara educará sua filha? Provavelmente,
nem ela sabe ainda. Tirando as
exceções que confirmam a maioria, as mães cuidam dos
seus filhos da maneira que sabem e que acreditam que seja para o bem.
Escrevendo, vejo que tudo isso é bobagem. Tantos anos lamentando que não
me deixaram brincar na rua, pêra, uva ou maçã, namorar antes de uma certa idade,
acampar, e todo esse excesso de cuidados que tivemos. Tudo isso junto criou o
que sou, e não desgosto do resultado.
147

A superproteção, quando eu já era quase uma adulta, me fez engolir tantas coisas
que, quando o primeiro psiquiatra disse que minha depressão era reativa, achei
um diagnóstico feito pra mim.
Mas já foi. Todas as marcas, inclusive o pai que nunca conheci, foram
necessárias para que eu me tornasse eu mesma. Cada um é de um jeito. Minha mãe
achava que
amor era isso; minha filha certamente tem queixas de mim. Cada um faz o que
pode, e assim caminha a humanidade. Acho que não quero mais saber quanto minha
mãe me
prejudicou ao mentir sobre a morte do meu pai. Estou pensando nisso agora.
Porque sinceramente acho que depois de um tempo você precisa estar ok com seus
pais. Você
já é adulto e a fila anda. Não tem cabimento nessa altura do campeonato procurar
saber por que mentiam tanto pra nós. Mentiam por achar que era a única forma de
nos resguardar do lado ruim da vida, e foi isso que nossa família fez, achando
que era o melhor.
Descobri na análise que minha mãe sempre impediu que eu crescesse, o que de
fato pode ser verdade. Mas e daí? Eu cresci, sou adulta. E como todos os
adultos,
tenho mil coisas pra resolver, mil problemas para enfrentar, isso sem falar no
imposto de renda. Se minha mãe queria
148

que eu fosse sempre uma criança, o problema é dela, e agora vou falar uma coisa
rapidinho:
Quando se diz numa sessão de análise "dane-se minha mãe", coisa que nunca
consegui falar, não estamos falando da mãe de verdade, de carne e osso, que nos
alimentou,
aquela. Mas de uma mãe figurativa, quase uma entidade. Você sabe.
Então estou vendo agora que o peso da nossa infância e dos nossos traumas
devem ser colocados numa malinha e deixados de lado. A análise serve para me
ajudar
a resolver minhas inseguranças de adulta e supervisionar minha doença.
Já conheço meu pai, minha mãe, amo demais os dois. Tchau, Freud.
Como a probabilidade de a doença ser hereditária é muito alta, e como não
tenho informações para resumir a história da minha família, recorro a minha tia
Alda, 79 anos. Vou à casa dela pensando em sair dali com pilhas de informações.
- Tia, fala do meu avô.
Comecei de maneira bem simples.
- Ah, não lembro...
- Não lembra?
- Eu tinha 12 anos quando ele morreu justificou.
149

- Com essa idade dá pra lembrar de muita coisa, tia.


- Não lembro de nada - me falou desanimada. - Pra que diabos você quer saber
tudo isso?
Perguntou se era um livro, eu disse que sim, perguntou o tema, respondi que
não podia dizer. Dificilmente ela entenderia.
- Tia, a mamãe falou que ele era delegado e poeta. Sempre considerei uma mistura
interessante.
- Delegado?
Ela se surpreendeu.
- É, tia, delegado. Você não sabe a profissão do
seu pai?
Eu estava boba.
- Eu não, faz tanto tempo.
- Caramba.
Realmente eu estava de queixo caído.
Quando a pessoa vai envelhecendo, ela tem tendência a se lembrar do passado
com nitidez. Minha tia se lembra, mas só de uma parte que interessa, e que não
vem ao caso.
- Minha filha, pra que você quer saber disso...
( Repare que as coisas estão difíceis pra mim. Minha tia é a memória da
família, depois dela vem meu irmão, de 53 anos. Já viu uma coisa assim?)
150

- Fala então da sua avó, a mamãe dizia que ela era o máximo.
Minha tia se anima.
- Ah, minha avó era muito bacana, nos levava aos bailes vespertinos.
- Como ela era?
Pergunto cheia de esperanças.
- Uma mulher grande, a lembrança mais clara que eu tenho é ela trabalhando
muito. Lavava, passava, cozinhava, varria a casa. Vivia o tempo inteiro pra lá e
pra cá.
- Ahn? Mas a mamãe sempre contou que ela esperava o marido com um bordado na
mão, feito pela empregada, que ela tirava das mãos dela assim que ele chegava do
trabalho.
De acordo com a versão da minha mãe, minha bisavó dizia: "Estava dando o
último ponto!" Para mostrar que era prendada.
Eu imaginava minha bisavó com vestidos lindos, empregados, o maior luxo.
Por conta dessa história do bordado.
- Sei disso não, a imagem que eu tenho dela é
150

sempre trabalhando, fazendo os serviços domésticos sem parar.


- A mamãe também dizia que ela comia antes de o meu bisavô chegar e durante o
jantar colocava no prato
151

pouquíssima comida. Quando ele comentava a respeito, ela respondia:


"Estou sem apetite." Para mostrar que era "fina".
Eu quase podia ver uma mesa enorme com copos de cristal, e talvez
castiçais. Minha tia riu dessas histórias.
Não das minhas observações, mas do que a minha irmã contava.
É ou não é uma família pirada? E só agora me dou conta disso.
Desisto.
- Minha avó era portuguesa - conta ela - e meu avô espanhol. Como a
família dela não gostava dele, vieram para o Brasil. "Onde meu marido
não entra, não entro eu", disse ela.
Adorei ouvir isso. Mas minha tia não tinha muito mais coisas a fazer.
- A vovó, eu sei, tinha muita disposição para o trabalho. Muita, muita
mesmo.
Deu exemplos de trabalhos exaustivos, como a tarefa de fechar caixas e
caixas de papelão num breve período em que trabalhou numa fábrica e,
durante uma madrugada, quando fez mil sanduíches para uma festa.
E isso é tudo que consegui apurar.

No dia seguinte: Chamamos de terra,


o poema te leva,
te dana, te agita,
te vinca de cruzes,
te envolve de nuvens
quem sabe aonde vai
parar no outro dia?
Jorge de Lima

Meses depois de carregar uma dor insuportável, tive outro processo de aceleração
e vertigem, e a euforia tomou conta de tudo. Viajei para São Paulo com Ana, uma
amiga, para uma festa de natal.
Estava completamente pirada. Dividimos o mesmo quarto, um flat da alameda
Lorena. Ana tinha um comprimido de ecstasy na bolsa e perguntou se eu queria
dividir.
Ué, claro! A euforia sempre quer mais, e a maior alegria do mundo é pouca. É uma
doença de excessos.
- O suicídio não é mais a única causa mortis excessiva no transtorno bipolar -
explica dr. Olavo. - Existem
156

doenças físicas vinculadas a ele. Muitas vezes a pessoa energizada impõe um


ritmo ao corpo, e o corpo não está preparado para esse ritmo. Está se observando
o excesso
de mortalidade de bipolares por enfartes, acidentes, alguns tipos de cânceres e
outras doenças, e não só o suicídio. Existem doenças físicas ligadas ao
transtorno
bipolar. Porque são pessoas que gostam de excesso. Por isso muitos bipolares
bebem tanto, se drogam muito e comem demais.
Ingerimos a droga e fomos para a festa, numa boate. Passei a noite inteira
sentada numa cadeira, observando as pessoas. Estava ligada por dentro, muito
acordada,
mas por fora estava calada e pálida. Para todos os efeitos, estava me sentindo
mal por um motivo desconhecido. Tinha um dentista no grupo que de vez em quando
parava
de dançar para checar minha pressão.
Hanks, um rapaz superbacana, ficou sentado comigo à mesa. Era tímido
demais para dançar, e de madrugada pediu ao garçom uma sopa de aspargos, o que
não me
fez sentir melhor, mas pelo menos me alimentou. A festa mal tinha começado
quando Ana me disse que não se sentia bem. Pensei que fosse um código, pois ela
estava
saltitante e tinha encontrado Cláudia, sua melhor amiga. Achei que elas fossem a
outra boate, porque Ana adorava
157

dançar e estava tudo chatíssimo. Continuei na minha, como se estivesse em outro


plano e aquilo tudo fosse virtual, observando o comportamento das pessoas e
achando
todas esquisitas. Mas ela não tinha ido a outra boate. Ela realmente estava mal.
Começou a ter visões no hotel, seu secador de cabelo pegou fogo e sua amiga
precisou
impedi-la de pular a janela.
Quando cheguei, Cláudia tinha conseguido amenizar a situação, mas Ana
ainda ria descontroladamente. Não importava o que falássemos, nos entendíamos
sem precisar
completar uma frase. Estávamos em fina sintonia.
Deitei-me de bruços no sofá, peguei um bloco e comecei a escrever a
história da humanidade, desde o Big Bang. Saquei como tudo começou depois de, às
cinco
da manhã, observar da janela um funcionário do hotel varrendo o pátio interno.
Nhé.
Às seis da manhã, quando nos olhamos no espelho, estávamos brancas como
pessoas mortas. Ela tinha sido modelo, conhecia vários truques de beleza, e
rapidamente
preparou uma máscara de argila para nós duas. Saímos para tomar café, mas todas
as cafeterias da redondeza ainda estavam fechadas, assim como todas as padarias.
Voltamos ao hotel famintas, e quando entramos no restaurante havia toda espécie
de pães, queijos, omeletes e
158

sucos. Café da manhã de hotel, todo mundo sabe como é: são todos iguais.
Comíamos e engasgávamos de tanto rir.
Fomos para o aeroporto. Eu já estava bem, embora me sentindo um pouco
estranha. Ana tinha ataques constantes, como se estivesse drogada, o que de fato
estava.
Quando voltamos, ela procurou um psiquiatra, que afirmou que ecstasy não teria
aqueles efeitos colaterais. E, como veio dentro de uma cápsula, a droga
provavelmente
continha vários tipos de remédios de tarjas pretas, que tinham efeitos
alucinógenos e, se misturada com uísque, poderia levar uma pessoa à morte. Olha
que coisa.
Não bebi nada, mas ela tinha bebido quatro copos. Minha memória impede que eu me
lembre de detalhes e ela me envia um e-mail, explicando o que de fato aconteceu:
Alucinada no banheiro, eu tive a exata sensação de que estava morrendo,
e, na verdade, estava tendo o começo de uma overdose. Não sei o que houve
(aliás,
no caso, sei, porque acredito nas coisas além da matéria). Felizmente a Cláudia
estava comigo. Ela tem uma força espiritual muito grande e passou a noite
inteira
rezando e pedindo por mim. Quando voltamos para o Rio, um amigo fez uma sessão
de reiki, que durou muitas e muitas horas. O cara que me deu a cápsula é louco,
e
eu não
159

sabia. Atualmente está internado e não reconhece mais ninguém.


Olha que história sinistra. Eu não acredito nem duvido dos detalhes, só
sei que jamais viveria uma aventura assim se estivesse no meu estado normal.
Parece
divertida, mas foi arriscada, além de fazer parte de uma doença.
Lorena mora em Milão, e por isso nos vemos muito menos do que gostaríamos.
Tenho sorte de ela estar no Rio enquanto escrevo este livro. Consultamos o mesmo
psiquiatra. Marcamos um almoço num pequeno restaurante do Leblon e Lorena me
conta o tipo de bipolar que ela era. Medicada da forma correta, seus ciclos
terminaram.
Sua bipolaridade era muito mais possante na fase maníaca, e só depois de uma
depressão é que ela notou que alguma coisa não estava bem. Demorou muitos anos
para
perceber a doença. Trabalhava na TV Globo, era muito bem-sucedida, ganhava bem e
morava num big apartamento em frente à Lagoa, caríssimo, grande demais para uma
pessoa só. Como na televisão todo mundo é meio doido - segundo uma secretária me
contou, todos os diretores têm um remédio de tarja preta na primeira gaveta -, a
euforia
160

de Lorena não chamava atenção, e suas maluquices nem eram percebidas. Gostava de
grandes riscos e nada impedia que ela cometesse toda espécie de loucura durante
esses períodos.
- Transei com 1001 homens e mulheres, das formas mais alucinantes, muitas
vezes sem ter vontade e quase nunca tendo algum tipo de prazer físico. O risco é
que era o fator excitante. Transava para conseguir o que eu queria, quando na
verdade não precisava de nada. Era pura perversão da mania ou o prazer de correr
riscos.
Comprei um carro zero-quilômetro enorme de que não precisava; e pretendia
comprar uma supercasa em São Paulo, mas o dono, felizmente, não me deixou,
percebendo que
seria loucura da minha parte. Trinta mil reais evaporaram da minha mão em uma
semana, e até hoje não tenho idéia de onde foram parar, e nem exatamente de onde
vieram.
Um total descontrole e desconhecimento, da porta de chegada e de saída. Minha
auto-estima era inexistente, e eu brincava com o perigo diariamente. É muito
fácil
dançar e se perder de vez.
- Sua euforia se confundia com a sua personalidade? Me conta como você era?
- Como trabalhava em cinema, publicidade e principalmente televisão, sempre
achei e sempre acharam
161

que eu era assim, muito hyper, e isso era até bem-vindo. Até os vinte, bebi e
cheirei muito, e isso confundiu as coisas mais ainda. Era muito ativa, tinha
muita
energia, era obsessiva e não tinha medo de nada. Trabalhava como uma
louca, horas e horas a fio, era adorada por todos, do meu 161 chefe aos
técnicos. Também era superagressiva. Agressiva meeeesmo, e impaciente. Brigava
com
todo mundo e várias vezes isso me custou trabalhos e amigos. Era uma menina má,
rebelde, sempre de preto, e isso atraía muita gente. Talvez fosse exatamente o
que
eu queria. Eu não latia, mordia. Depois fui morar em outro país pra recomeçar.
Tudo que eu conseguia, perdia, e acabava com a sensação de que era necessário
sair
dali pra recomeçar do zero, onde ninguém me conhecesse, porque eu sempre
queimava o meu filme. Foi uma das razões que me levaram a viajar tanto. Na época
não tinha
consciência disso, claro. Quando fazia alguma coisa ruim, me sentia mal, mas
colocava a culpa nos outros.
O garçom se aproxima e anota os pedidos. O restaurante está cheio, mas
pedimos coisas simples e os pratos não demoram a chegar.
- Acho que no fundo eu era muito triste, e me camuflei, vivendo só para o
trabalho. Ficou uma coisa esquisita. Eu sempre fui o meu trabalho. Não tinha
162

nenhuma relação afetiva, incluindo a minha família, com a qual passei nove anos
sem falar. Por causa de brigas, brigas e mais brigas. Eu tinha uma vida em que
tudo
ia bem, tudo estava bem, eu era bacana e de repente eu fazia uma grande
sacanagem com alguém ou aprontava alguma coisa. Do meu ponto de vista, a
sacanagem era das
pessoas. Eu sabia que havia feito algo, mas não tão grave assim a ponto de as
pessoas serem intolerantes. Não compreendia como elas não entendiam o meu ponto
de
vista. E nem me escutavam. Era muito louco. Se eu prometia alguma coisa, tinha
de ter o aval de três pessoas, porque ninguém mais confiava em mim.
Lorena prende os cabelos no alto da cabeça, usando um lápis. Está calor.
Ela fala sobre seus ciclos e sintomas.
- Eu mentia muito. Nossa, muito! Mentia pra me defender de um monte de
coisas erradas que eu tinha feito, e conseguia escapar com todas as mentiras.
Era como
se eu fosse inatingível. Como eu era muito rápida, me safava dos meus erros numa
velocidade incrível. Uma loucura. Depois de vários anos batendo de frente com
todo
mundo - família, chefes, namorados -, eu estava fazendo terapia quando recebi o
diagnóstico de bipolar, mas com uma pendência. A terapeuta queria ter certeza.
Era difícil ser diagnosticada pelo meu estilo de vida. Perguntou se eu
163

queria tomar medicação e eu disse que, até ela ter certeza da doença, não. Eu
era uma montanha-russa, entrava em depressões terríveis, mas eram muito rápidas
ou
até simultâneas com a mania, se é que isso é possível. Um caos.
Uma menina bem pequena vende Halls do lado de fora da varanda.
- Tinha todos os sintomas clássicos: agressividade, gastar grana,
impulsividade, mania de grandeza, queria "conquistar a Ava" (acho que é uma
gíria gay...
Conquistar a Ava Gardner, quer dizer, conquistar o inconquistável). Era como se
eu realmente não tivesse limites, nem para o bem nem para o mal. Eu sabia que
algumas
coisas não eram boas, mas outras, como, por exemplo, ser eficiente, não
associava a nada negativo. Na verdade, acho que não me lembro da maioria das
minhas loucuras
porque elas eram diárias. Eram os pequenos detalhes do dia-a-dia que me tornavam
exótica, inusitada. O engraçado é que, vendo de longe, eu tinha uma vida
incrível
e até invejada.
- E suas depressões?
- Bom, aos 25, acho, tive uma depressão que durou seis meses. Passei essa
temporada enchendo a cara, em Madri. Meu namoro acabou, claro, e devagarinho fui
perdendo o meu trabalho. Após seis meses, meu chefe me deu um ultimato: se eu
não mudasse, seria demitida. Não
164

sei como nem por quê, mas entrei na linha. Tudo voltou ao normal. Não só ao
normal, mas até melhor. Mas eu já tinha queimado o meu filme, já tinha feito
besteira
demais. As depressões que tive foram sérias, a auto-estima zerada, uma carência
terrível, aquela sensação de perdas e danos. A perfeita bipolar. Minha
agressividade
foi crescendo e virou física. Quando eu morava em Sampa, vivi uma época
terrível, com muita violência física envolvida, uma agressividade fodida, e
aconteceu um
episódio que foi definitivo e realmente poderia ter acabado com a minha vida.
Daí minha médica disse: "OK, vou te medicar porque sem dúvida você é bipolar e
já tá
chegando ao abismo. " Eu pedi que ela me desse mais um tempo, e foi o tempo
certo pra eu cair no tal abismo.
Comemos saladas de alface e rúcula. O dia está claro e os pombos disputam
aflitos os grãos de milho jogados na praça. Nuvens formam desenhos abstratos no
céu.
Lorena usa um vestido de flores e brincos de madrepérola.
- Quando fui diagnosticada estava quase fora do ar, não entendia muito bem
o que estava acontecendo e nem por que estava sendo medicada. Andava dentro do
meu
apartamento, sem parar, quilômetros. Dizia que tentava encontrar um caminho pra
minha vida. Já estava sem trabalho, sem grana, sem ninguém e doente. Ficava
165

acordada a noite inteira esperando o sol raiar, chorando, chorando na varanda,


que tinha uma vista maravilhosa. Existia um fator autodestrutivo impressionante,
até
degradante, como se fosse para me castigar por não conseguir realizar o que eu
queria. De certa forma, por acabar falhando, não ser honesta e ser dona da
verdade,
acabava me punindo mais ainda, fazendo coisas radicalmente perigosas e
desagradáveis.
Ela acende um cigarro, que apaga logo em seguida.
- Depois de muitas tentativas de tratamentos, eu tive muitas reações
alérgicas à medicação, foi o dueto Lamitor e Topamax (e Lamital e Rivotril) que
rompeu
os ciclos. O Lamital é muito antigo e já era usado, e o Rivotril era mais como
um band-aid, é mais um sedativo. Eu tomava o Rivotril para baixar a bola. O
Lamitor
e o Topamax eram avant-garde. O Olavo, que já era meu novo psiquiatra, me
receitou Lamitor, porque sabia que seria o melhor pra mim. Apesar de já estar à
venda,
ainda estava sendo experimentado nos meios psiquiátricos, mas ele tinha acesso
às informações porque trabalhava na Universidade da Califórnia. É o remédio que
tomo
até hoje. O mesmo coquetel molotov que preciso tomar todos os dias. Cheguei a
usar o famoso Dapakote, que teria sido perfeito. Mas quando já estava na dosagem
ideal,
com uma melhora
166

visível, tive uma reação terrível, e precisei abandoná-lo rapidamente. A


primeira promessa que fiz a mim mesma, depois que comecei o tratamento, foi
nunca mais
mentir. Nunca mais, sobre nada. Nem pra mim, nem pra ninguém. É difícil, mas foi
o que decidi. E até hoje estou praticando.
Conversamos sobre nossas vidas, que celebramos com brindes, até Lorena
precisar se despedir para, no dia seguinte, voar de volta para a Europa.
Pouco depois da viagem com Ana, caí em depressão outra vez. Meu médico
disse que tinha muito medo de eu ter uma virada, a bête noir dos psiquiatras. A
pessoa
sai da depressão fortíssima e entra numa hipereuforia, sem escalas. Queria muito
experimentar aquilo e escapar do que estava sentindo. Realmente aconteceu o que
o médico temia. Hoje me parece até cômico tudo que fiz durante esse período.
Um dia estava terminando a sessão com minha ex-analista, e Luciana me
ligou dizendo para esperá-la em Ipanema. Como perdemos o contato e eu não tinha
celular,
voltei pra casa. Então liguei pra ela e marcamos de novo. Cheguei lá, e ela não
estava. Voltei pra casa e idem. Enquanto ela não aparecia, me deitei rente à
calçada
na grama de um prédio, simplesmente não conseguia ficar em pé.
167

Minha energia era muito maior do que o meu corpo podia suportar. Todas as idas e
vindas foram feitas de táxi, e a primeira coisa que eu dizia ao motorista era:
"Posso ir deitada?" Falava meu endereço e deitava
de olhos fechados. "Se eu dormir, você me acorda?",
167

lembrava de dizer. Não conseguia ficar sentada também, acabava tombando.


Na época chegava a dormir três horas por noite, porque achava perda de
tempo. Fazia faxina às cinco da manhã. Minha disposição era inacreditável.
Comprava
tudo que via pela frente, não importando o quê. Toneladas de livros. Jeans,
camisas de paetês, sandálias, vestidos de verão, colares, sapatos, várias roupas
de festa,
tudo. Comprava três jeans numa loja, cinco sandálias em outra e em uma butique
caríssima fiz um enxoval completo de supérfluos. Achava que os pré-datados nunca
bateriam
ou, quando isso acontecesse, eu teria dinheiro suficiente para pagar. E se eu
ganhasse na loteria? Mas os cheques batiam e não sei como meu marido conseguiu
dar
conta de pagar tudo. Eu tinha medo de que o cartão de crédito explodisse na
minha mão.
Um dia Luciana e eu estávamos em Ipanema, e eu achava que ia desfalecer a
qualquer momento, não parávamos de bater perna. Luciana experimentava roupas
168

enquanto eu ficava deitada no sofá da loja. Ela então me disse que ia dar uma
passada num lugar ali do lado, que eu esperasse um minuto.
- Vai, depois você me encontra na Letras & Expressões?
Fiquei quarenta minutos na livraria. O rapaz me ofereceu uma cadeira
quando sentei no degrau da escada. Quarenta minutos num banco, só existe uma
hipótese:
o banco foi assaltado e Luciana está sendo usada como refém. Me aproximei de um
guarda.
- Seguinte: marquei com minha amiga aqui... - E contei o meu drama.
- Não esquenta, o banco está cheio - disse o policial.
- O senhor não conhece a minha amiga. Ela nunca ficaria quarenta minutos
numa fila de banco, nunca. Ela deve estar sendo usada como refém para os
bandidos.
- Vai lá, então...
- Eu? Eu que sou da polícia? - E emendei: - O senhor é guarda municipal ou
da polícia?
168
Ele mostrou o revólver como se mostra um troféu. Ou coisa pior.
- Tá grilada? Vai lá...
- Eu? Mas não sou da PM.
169

- Vou te dizer uma coisa: não existe assalto aqui em Ipanema.


- Ah, não? Por quê? Existe um acordo entre os
bandidos e o bairro?
Ele pareceu não gostar da pergunta.
- Como assim? - perguntou com a mão na cintura.
- Como assim, não existe assalto em Ipanema?
- reformulei.
- Não existe. Vamos fazer uma coisa: vamos nós dois.
Fingi não notar a audácia do policial.
- Nós dois? Piorou. Se sai um tiroteio, posso ganhar uma bala perdida!
- Que bala perdida...
- Deixa pra lá.
Fui olhar os livros. Ele se aproximou.
- Quer ir?
- Tá bom - disse eu, já desanimada.
Saímos da loja. Ele se aproximou de um outro PM e contou brevemente meu
drama. Senti que havia um
certo desdém na sua voz.
- Que roupa sua amiga está usando?
- Uma camisa branca. - Era tudo que eu lembrava.
170

Quando íamos entrar no Itaú, Luciana apareceu, sorrindo.


- Que que houve? - perguntou, preocupada ao me ver com dois policiais, que
dispensei prontamente.
- Sua amiga disse que a senhora devia estar sendo feita de refém no banco.
Luciana me olhou com cara de "tá louca?". Nos afastamos dos policiais.
- Você não tava no Itaú?
- Casa Alberto!
Veio um flashback rápido e revi Luciana dizendo: "Vou na Casa Alberto."
Saímos cambaleando pelas ruas, e entramos na butique mais próxima.
Quando ia ao psiquiatra, chegava um pouco mais cedo, para passar na melhor loja
de cosméticos do Rio, que ficava numa galeria ao lado do prédio do consultório.
Comprava
batons, rímel, perfumes, cremes, bases, pincéis. Chegava cheia de sacolas, para
desespero do médico.
- Por que você comprou tudo isso?
- Porque sou mulher.
- Você não é esse tipo de mulher.
- Você não entende de mulheres... (Note a ousadia:)
171

- Entendo.
Sua resposta pôs fim ao assunto. Ele me fez prometer que não faria mais faxina
de madrugada, promessa
que não pude cumprir.
Comecei a ficar muito fraca, já não podia me mexer, embora meu cérebro desejasse
escalar o Himalaia. Um dia estava tão debilitada que meu filho entrou no meu
quarto
para avisar que a farmácia havia chegado. Eu estava deitada, já não sentia
vergonha, porque não existe preconceito contra estafa. Pelo contrário. Minha
bolsa estava
do meu lado, em cima de um travesseiro. Não consegui virar e abri-la, não tinha
forças para me mexer. Pedi que ele pegasse o dinheiro pra mim. Ele ficou
preocupado.
- Isso que você tem é de morrer? - Respondi que não e ele foi tratar de fazer as
coisas dele. Eu estava
doidinha.
Imediatamente após a virada, tive outra depressão. Ficava quieta, calada.
Permaneci muito tempo da minha vida assim, olhando para o branco das coisas
invisíveis.
Um dia pedi ao meu marido que me deixasse morrer. Eu não suportava mais nada
daquilo, os meses se arrastando, precisava de alguém que me dissesse: "Está
certo, você
tem razão. Ninguém pode viver assim." Falei
com ele:
172

- Por favor, eu já estou morta mesmo, não faz diferença.


Então meu marido me disse:
- Você não está morta, está viva. Você está vivendo de uma outra maneira,
de um outro modo, temporariamente. Mas está viva.
Eu entendi o que ele queria dizer. Eu podia suportar um pouco mais. De
fato eu não estava morta.
Depois de ter comprado o Rio de Janeiro inteiro, meu médico admitiu que eu era
maníaco-depressiva. Fiquei arrasada.
Mas meu medicamento não mudou, então meus ciclos continuaram. Disse que
eu tinha de ficar em repouso absoluto, como se eu estivesse com a perna
engessada
e pendurada, como nos filmes. Mas não era a mesma coisa. Poderiam achar que eu
era preguiçosa. Poderiam achar isso, poderiam achar aquilo. Fui criada ouvindo
"o
que os vizinhos vão pensar?", e não faz muito tempo que me livrei disso. Que eu
deveria me alimentar, e aquelas coisas todas.
Um dia Marília, minha vizinha de porta e grande amiga, tocou a campainha.
Provavelmente para pedir um pouco de açúcar, porque morávamos no alto de uma
173

ladeirona e o comércio era longe. Então fazíamos um intercâmbio afetuoso, e


sempre batíamos na casa uma da outra. Quando abri a porta e ela me viu, eu
estava com
os
olhos vermelhos de tanto chorar. Sentia culpa por ser uma mulher assim, coitado
do meu marido, eu pensava. Coitados dos meus filhos, que não têm mãe. Coitado de
todo mundo, menos de mim.
(Sempre achei que não havia agressividade nas minhas depressões. Nunca gritei
com ninguém, nunca fui rude. Mas depois soube que a agressão do bipolar não está
necessariamente
ligada a palavras ou gestos. Bipolares podem ser agressivos escrevendo ou
dormindo pouco. Existem auto-agressões, algumas bem sutis.)
Marília perguntou se eu estava bem e eu disse que sim, como era de hábito.
Minutos depois ela voltou e olhou bem pra mim:
- Você está bem mesmo? Precisa de ajuda? - Encontrava-me tão desamparada e
sozinha que contei que estava com depressão química. Ela foi amorosa, e
compreendeu perfeitamente.
Não são muitas as pessoas que entendem essa doença que, muitas vezes, é vista
como de burgueses ou desocupados.
Me senti um pouco melhor por ter uma confidente, que me trazia palavras de
conforto. Às vezes lanchávamos
174

juntas e até hoje adoro aquele queijo prato com pãezinhos franceses quentinhos,
com café. Ela tinha muita paciência em me ouvir e contava que na sua família
havia
uma pessoa com o mesmo problema que eu. É impressionante como a dor alheia me
confortava. Como disse Brooke Shields, no seu livro sobre depressão pós-parto, a
dor gosta de companhia. É horrível, mas é verdade.
Comecei a pedir ajuda aos amigos, minha prima mandava tupperwares com
comida caseira, e uma amiga me arranjou uma empregada.
Quando comecei a ter um colapso após o outro, mesmo sem que eu precisasse
dizer, meu irmão me monitorava e, nos momentos que estive muito mal, ele sempre
corria para o meu lado. Tinha longas conversas com meu médico, pedindo mais
providências. Amo meu irmão e devo muito a ele.
Sidney estava sempre à cata de receitas, quando os remédios acabavam nos
fins de semana, e telefonava para meu psiquiatra cada vez que a situação
piorava.
Me vendo na cama, as visitas se comportavam sempre da mesma maneira, e
diziam: "Olha o sol! Olha a lagoa!"
Assim mesmo, com exclamações não sei quantas vezes ouvi essas frases. Eu queria,
no mínimo, que a lagoa se abrisse em magma e me puxasse para dentro dela.
175

Alguém foi me visitar e disse: "Vi no Jô uma família inteira com Aids."
Piorei: aquilo era mais uma prova de que a vida não valia a pena. A intenção das
pessoas,
claro, era fazer com que eu colocasse minha dor no seu devido lugar. Porque
existem dores maiores, subentende-se. Mas enquanto elas desfiavam uma lista de
horrores,
eu ficava mentalmente formulando bilhetes de adeus.
Passava as manhãs deitada, sem poder me levantar, sem ter como me
alimentar e levando sustos horríveis cada vez que o telefone tocava. Nem sempre
tinha forças
para atendê-lo e recados em tempo real me deixavam nervosa, como se eu tivesse
praticado um crime e precisasse me manter escondida.
Não gostava de receber visitas porque era a sra. Sem Assunto. Às vezes
começava a falar sobre alguma coisa, mas não sabia me expressar, e era
constrangedor.
Meus pensamentos estavam fragmentados, nada fazia sentido, e se eu via um filme
na tevê não conseguia prestar atenção no enredo. Ficava pensando: "Será que um
dia
isso tudo
vai passar?"
Quando se tornava impossível dispensar um compromisso social, era terrível
tentar manter uma pose, fingir que estava feliz, rir de mentirinha, puxar um
assunto.
Fui ao casamento de um amigo; se depressão fosse febre,
eu estaria com cinqüenta graus.
176

Tentava me esconder das pessoas, me sentia jogada às feras. Preferia


sentar à mesa com estranhos porque podia inventar que eu era outra pessoa, uma
pessoa
meio esquisita, mas como eram estranhos, eu não ligava. Minha cabeça estava
ocupada o tempo inteiro pensando: "Sou maníaco-depressiva." Fiquei sentada
àquela mesa
com um monte de sobremesas, vinhos e talheres, enquanto um grupo dançava rock
and roll. Como as pessoas conseguiam ser felizes assim?
Quando eu tentava lembrar de episódios alegres do passado, achava que
todos eram artificiais. Nem sempre eu conseguia sair de casa. Muitas vezes
estávamos
indo para algum lugar, eu achava que ia conseguir ficar com outras pessoas, mas
no meio do caminho começava a chorar e pedia ao meu marido que voltássemos pra
casa.
Liguei para uma taróloga hippie, chamada Tati. Fui logo dizendo que eu
era "maníaco-depressiva", para facilitar o baralho. Era quase uma confissão,
sempre
achava que alguém me salvaria com algum truque de mágica. Ela começou a me levar
a lugares onde eu pudesse obter alguma forma de conforto espiritual.
Quando a dor passa, podemos olhar pra trás e achar graça de algumas
situações. Como no dia que ela me levou a um centro, em Jacarepaguá, para limpar
minha
177

alma das coisas impregnadas das vidas passadas. O que é o desespero. Fundada por
um médico muito conceituado, a casa
não parecia com nada que lembrasse um centro espírita. Era bonita, tinha jardins
e piscina, e pertencia a alguém que, de tão grato, ofereceu-a aos voluntários.
Foi
lá que eu, deitada numa maca na sala azulada, com muitas pessoas silenciosas
vestidas de branco ao meu redor, descobri que fui queimada numa fogueira durante
a Inquisição,
aos 18 anos. A pessoa incorporada falava como se fosse
eu mesma, na vida passada. Uma coisa.
Mas o que eu queria contar mesmo foi um dos
maiores constrangimentos que já passei na vida. Tati é o esoterismo. Sua vida se
resume a viajar em busca de pessoas com poderes paranormais. Conhece todos os
cantos,
já foi a todos os lugares e chegou a se curar de um câncer graças a
mentalizações a longa distância. Vai à Argentina constantemente se juntar a uma
turma que faz
contatos
imediatos de primeiro grau.
Bem, fomos lá, e era noite. Eu topava qualquer coisa que me tirasse daquela
tristeza profunda. Havia uma fila na minha frente com pessoas sentadas em dois
bancos
enormes. Tati sabia que levaria horas até que me atendessem. Aquele pessoal
tinha problemas de estômago, dor no joelho e coisas assim, que me causavam
inveja.
178

Ao preencher a ficha, um senhor me perguntou bem baixinho o meu nome e


meu problema. Naquele tom que um lugar sagrado exige. "Depressão", eu disse,
como
se dissesse: "Sou uma assassina sem caráter." Naquela época eu era assim.
Descolada, a taróloga me disse pra falar com o cara que eu estava
querendo me matar.
- Eu não vou falar isso, imagina. Você tá louca? Ela continuou:
- Se você não inventar uma coisa bem desesperadora, vamos sair daqui de
madrugada, pode crer.
Fui e disse bem baixinho ao homem, que anotou no caderno. Um tempão
depois ele me chamou, usando um tom de voz altíssimo, naquela varanda tão
pequena:
- Pode entrar a mulher que quer se matar.
Ahahahaha. Foi uma situação horrível, sabe?, todo mundo espantado, e eu
realmente com vontade de me matar. De vergonha.

"Todos os bipolares são gênios... Ou só eu?"


182

Dick Cavett, apresentador de televisão


Agatha Christie, escritora
Winston Churchill, político
Cary Grant, ator
John Clare, poeta
Patricia Cornwell, escritora
Francis Ford Coppola, cineasta
Emily Dickinson, escritora
Virginia Woolf, escritora
Ray Davies, músico
Herman Melville, escritor
Eugene O'Neill, dramaturgo
Robert Evans, produtor de cinema
Carrie Fisher, atriz
Robert Frost, poeta
F. Scott Fitzgerald, escritor
Larry Flynt, editor da Hustler
Connie Francis, cantora
Marilyn Monroe, atriz
Linda Hamilton, atriz
Kristin Hersh, cantora
Victor Hugo, escritor
Jack London, escritor
Robert Lowell, escritor
183

Mozart, músico
Hermann Hesse, escritor
Kate Millett, feminista
Spike Milligan, humorista
Isaac Newton, físico
Platão, filósofo
Edgar Allan Poe, escritor
Charley Pride, cantor
Phil Graham, editor do Washington Post
Abbie Hoffman, ativista político
Francesco Scavullo, fotógrafo de celebridades
Mary Shelley, escritora
Rod Steiger, ator
Robert Louis Stevenson, escritor
Elizabeth Taylor, atriz
Máximo Gorki, dramaturgo
Ted Turner, empresário
Jean-Claude van Damme, ator
Vincent van Gogh, pintor
Graham Greene, escritor
Sidney Sheldon, escritor
Charles Dickens, escritor
Walt Whitman, poeta
Margot Kidder, atriz
184

Ernest Hemingway, escritor qNicolai Gogol, dramaturgo


William Faulkner, escritor qAbraham Lincoln, político
Leon Tolstoi, escritor
Fernando Pessoa, poeta
Axl Rose, roqueiro
Elvis Presley, cantor
Janis Joplin, cantora
Jimi Hendrix, guitarrista

A lista de bipolares célebres inclui vários nomes da pesada, como Mozart,


Abraham Lincoln e Walt Whitman.
- Cuidado para não escrever um livro sobre o clubinho dos gênios - alerta
minha amiga Leandra. - Não se esqueça de Stalin!
Verdade, o ditador soviético era um bipolar clássico.
Acho que porque fiquei praticamente vinte anos escondendo a doença, quando
assumi foi com um certo glamour. Sentia algum orgulho por compartilhar o mesmo
transtorno
com Platão. Evidente que sei que, para uma lista tão pequena, existem milhões de
bipolares fracassados ou, por necessidade, presos a uma desconfortável
185

repartição pública. Mas bipolaridade e criatividade são palavras que estão


sempre juntas. Ou não?
- Os bipolares, em geral, são pessoas medianas. - diz dr. Olavo.
185

O psiquiatra lembra que é muito importante constar no livro que é comum o


bipolar achar que, só porque é bipolar, é um gênio. Além disso, criatividade
é uma palavra muito abstrata, e os americanos estipularam um critério de
avaliação para não ficar uma coisa frouxa.
Então usaram como parâmetro o seguinte: se você é um dramaturgo, precisa
ter uma peça que já tenha sido encenada; se é músico, precisa ter um álbum
gravado;
no caso de ser um cientista, ter pelo menos um trabalho publicado em uma revista
conceituada. Saindo da psiquiatria, e dando apenas minha opinião, acho que este
é um critério capitalista. Muitas pessoas podem escrever peças espetaculares,
geniais, que por algum motivo não saem da gaveta. Mas um dos critérios é esse, e
os
psiquiatras devem ter suas razões.
Pause. Os Estados Unidos serão citados aqui diversas vezes, pelo fato de
o meu psiquiatra e consultor ter se formado e clinicado nesse país durante
muitos
anos. Apesar de ter conexões de trabalho na Europa e na Austrália,
186

por exemplo. Os americanos não poderiam estar com a bola mais baixa. E as
pessoas têm antipatia pelo país.
Eu concordei com o Caetano quando ele disse que os americanos são
responsáveis por grande parte da alegria desse mundo. Pense na nossa vida sem
Fred Astaire,
Frank Sinatra ou David Lynch. Meryl Streep, Cole Porter, Woody Allen.
Perderíamos muito. Coca-Cola, internet, Chandler Bing, Matthew Scudder. Quero
que fique claro,
no entanto, que não estou defendendo os Estados Unidos. Sei da exploração em
todos os níveis, da Nike usando trabalho escravo infantil na Coréia, por
exemplo, entre
várias outras barbaridades. Diogo Vilela disse que os americanos têm inveja de
Deus, o que resume bem a história. Mas o critério de definição do que seja
criatividade
é deles, assim como (quase) todas as estatísticas e novas descobertas da ciência
incluídas neste livro.
O psiquiatra continua:
- Em um dos vários estudos sobre bipolaridade chegou-se à conclusão de que
os bipolares são mais criativos do que a população em geral. Ou invertendo: você
pega os notoriamente criativos e vai ver o percentual de bipolares entre eles.
Como Kay Jamison fez no doutorado dela, em Oxford. Ela analisou todos os poetas,
escritores e dramaturgos irlandeses, de 1700 até 1900, e chegou à
187

conclusão que o índice de pessoas com transtorno bipolar nesse grupo de


criativos era de 40%, no mínimo, quarenta vezes mais do que a população em
geral.
O índice de 10% de criativos com transtorno bipolar foi encontrado em vários
estudos. Porém, a esmagadora maioria de bipolares não é mais criativa do que as
outras
pessoas.
- É um número pequeno - completa o psiquiatra -, mas que é maior do que o
número pequeno na população de não-bipolares. O número de criativos na população
em geral talvez gire em torno de 1%, mais ou menos. Então, se o bipolar for
três, quatro, cinco vezes mais, já é um número gigantesco.
Resumindo: o número de bipolares criativos não é muito grande, mas torna-
se imensamente grande quando comparado ao número pequeníssimo de criativos na
população
em geral.
- A lista de geniais é bárbara, porém é muito importante dizer que a
doença bipolar não é uma bênção, é uma tragédia, um desastre - diz dr. Olavo. -
A doença
bipolar é tão ruim quanto o câncer de pulmão, quanto
um infarto do miocárdio. O transtorno bipolar é uma DO-EN-ÇA. Que tem de ser
combatida como tal. Não
188

pode ser glamourizada nem tratada como uma coisa maravilhosa só porque Van Gogh
pintou aqueles quadros.
Meu médico acha que, se fosse tratado, Van Gogh teria pintado melhor.
- Ele teve uma vida miserável, basta ler as cartas dele para o irmão. A
vida dele foi um horror, e ele como artista foi um fracasso total, nunca vendeu
um
quadro. Então o que se discute é se ele teria pintado aqueles quadros se não
fosse bipolar. Eu não sei, acho que ele teria pintado melhor. Se fosse tratado,
acho
que teria pintado os quadros bonitos como são, geniais como são, e teria pintado
mais - diz ele.
Digo que conheço alguns intelectuais que evitam tomar remédio por medo de
perder criatividade.
- Precisa ser desmitificado que tratar a doença acaba com a criatividade.
Não é verdade. As pessoas doentes não têm criatividade. Ou têm uma criatividade
vazia. As pessoas que vivem às voltas com os sintomas da doença não conseguem
produzir. É só acompanhar a vida dos notórios bipolares. Quando eles estão no
final
188

da vida, os últimos anos são trágicos. Não têm produtividade nenhuma, é uma
coisa horrível, um filme de terror. É quando a doença tomou conta da pessoa.
Schumann
se jogou num rio. Então essa discussão de criatividade e
189

não-criatividade é uma bobagem, porque nós não podemos querer que uma pessoa, ou
um grupo de pessoas, seja responsável pela beleza, pela arte que você vai
saborear,
tendo, ao mesmo tempo, que viver um inferno para poderem te prover isso.
"Outra coisa: uma pessoa que está gravemente doente, sofrendo da doença
sem interrupção, dificilmente consegue criar uma obra com começo, meio e fim.
Van
Gogh produziu no olho do furacão, mas ele pintava. Não sei quanto tempo ele
levava para pintar um quadro, mas, por exemplo, se a criatividade de um artista
é produzir
uma peça no Metropolitan, e ele não tiver o mínimo de disciplina, de conceito de
princípio, meio e fim, de data, de ensaio, vai ser um fracasso. Vai ser um
fracasso
porque não vai nem estrear."
Equilibrar a doença não significa que o bipolar vai perder a
criatividade. A não ser que ele não receba o tratamento certo.
- Claro que se você deixar essa pessoa num quarto escuro, impregnada com
o remédio, é um crime. Por isso que há o que chamam de arte de tratar do
paciente
bipolar. O médico que não sabe tratar, primeiro diagnostica como outra doença. É
o primeiro erro. O segundo erro é que esses excessos do transtorno bipolar são
podados
até
190

a raiz. Tratar é uma coisa, acabar com o temperamento da pessoa, com um


medicamento totalmente inadequado que a deixe na cama por meses e meses é outra
coisa. Então
quando se fala do fim da criatividade, estamos falando em tratar errado, e
tratar errado não é tratar.
Muitas pessoas criam mais durante a depressão. - Por quê? - pergunto eu.
- A hipomania é como se você fosse ver um final de tarde na praia, um
caleidoscópio de cor, uma coisa muito legal, você pode ficar mexido com aquilo,
mas
precisa da depressão para pegar toda essa informação sensorial, que te marcou
emocionalmente, e organizá-la. A depressão permite organizar, você se senta pra
escrever,
produz. Existe um estudo muito importante sobre Schumann. O estudo mostra a
produtividade da vida dele em termos de música: quando ele estava na fase muito
acelerada
a produção não era tão grande, ele tinha de estar levemente deprimido para
produzir mais. Quando estava muito deprimido ou muito excitado não produzia
nada.
"Uma coisa que as pessoas não entendem é que a aceleração pode ser tão
paralisante quanto a depressão. Por exemplo, se eu pegar um trem para passear no
interior
da Itália, na Toscana, e ele não sair do lugar, não vou ver nada. Isso seria
depressão. Se eu pegar o trem e em vez
191

de ele andar a vinte, trinta quilômetros por hora, for um TGV (trem mais rápido
do mundo) e correr a 220 por hora, também não vou ver nada. É como se eu tivesse
ficado parado na estação. No entanto eu fiz o percurso todo, mas fui muito
rápido. Então não consegui metabolizar nada, não consegui ver nada. O meio-termo
é necessário,
e até um pouco de depressão, para você realizar um poema, uma música - conclui.
Em Nova York, um rapaz usa a camiseta: "Sai da frente, está chegando um
bipolar." Do tipo não-tem-praninguém. Também não é por aí. É preciso temperar as
coisas,
afirma dr. Olavo. A pessoa não deve ficar dentro do armário, sofrendo e perdendo
sua vida, mas também não é o caso de ostentar uma medalha no peito.
O mais espantoso é perceber que a bipolaridade está menos ligada à
criatividade do que à criminalidade. O psiquiatra conta os detalhes:
- O que apareceu muito no encontro de psiquiatria de Toronto, em 2006, e
já vinha aparecendo, são estudos avaliando a predominância assustadora do
transtorno
de humor na população carcerária. Está se vendo que a predominância bipolar é de
seis a dez vezes maior do que na população em geral. É um número
assustadoramente
alto. Em vários países, em várias prisões, não só nos Estados Unidos.
192

Estudiosos estão percebendo que o número de criminosos é o dobro do


número de criativos. Porque uma das marcas da doença é a impulsividade. Vários
pesquisadores
americanos estão entrando nas penitenciárias para observar o transtorno bipolar
e estão assustados com o resultado. Cerca de 40% a 50% da população carcerária
sofre
desse mal.
- A maior parte dos presos não é feita de criminosos contumazes. É gente
que levava uma vida mais ou menos normal, uma pessoa estourada que um dia mata
a mulher, se envolve numa briga de trânsito e fere ou acaba com a vida de
alguém. Pessoas que cometeram um crime na vida por impulso - conclui.
Bipolares não formam um clubinho de gênios, mas sua ousadia e
impulsividade foram responsáveis pela criação de Hollywood, por exemplo. Dr.
Olavo conta que
acabou de ler um livro americano chamado Um pouquinho de hipomania, muito
sucesso, e um dos capítulos é dedicado ao cinema.
- O autor percorre áreas fundamentais que foram
192

básicas para estabelecer os Estados Unidos como potência e mostra, por exemplo,
que a criação de Hollywood foi feita por pessoas de famílias totalmente
bipolares.
O cinema era feito em Nova York, mas resolveram criar uma
193

verdadeira indústria e se instalaram no Oeste, lugar sem nenhuma condição pra


isso. Qualquer pessoa que tivesse o mínimo de planejamento diria que era
impossível
tornar o lugar um pólo de cinema. Mas os pioneiros eram bipolares, com sintomas
característicos da doença, pessoas extremamente produtivas e criativas, que
gostavam
de realizar coisas. O livro evidencia que um pouco de hipomania criou os Estados
Unidos.
Uma pessoa normal poderia dizer que aquilo era um absurdo. Mas os caras
resolveram, num impulso, que era no Oeste que eles iam se instalar. Quebraram
várias
vezes, todos faliram. Mas me diga se não deu certo?
Morando na Lagoa tive minieuforias. Em uma delas viajei com minha prima Cláudia
para Saquarema. Ela é muito na dela, muito tranqüila. E eu queria agitar. Então
eu
tive que puxá-la. Com euforia você puxa mesmo, tem energia demais. Sobrando.
Na casa dela havia um lagarto, que às vezes aparecia de repente. Fizemos
uma feijoada e comemos no jardim lindo que ela tem, levamos mesas e cadeiras pro
lado
de fora e almoçamos embaixo de uma amendoeira. Ficava em frente ao mar, o mar
perigosíssimo de Itaúna, que só dá trégua uma vez por ano. Quando se pode pegar
altos
194

jacarés, mas sempre ligado, porque aquele mar é sinistro. Nós duas morremos de
medo de tubarão, eu tenho medo de tubarão até quando estou na areia. Então íamos
pra outra praia, com água deliciosa, mas lotada como Copacabana.
Ela bebia algumas caipirinhas, mas eu nem precisava beber, já me sentia
com duas doses acima, naturalmente.
Um dia fomos ao Museu do Rock, do Serguei. Tinha um quarto todo zen, com
aquelas músicas inspiradoras. Era psicodélico.
- É para meditar? - perguntei.
- Não, para tomar ácido.
Tshiii. Quer dizer, o museu é uma reprodução do clima dos anos 1970.
Todas as paredes eram forradas de fotografias recortadas de revistas. Metade
eram fotos
do cantor com Janis Joplin. Eles namoraram, né? Então. É todo atencioso e
educado, e às vezes formava uma filinha na porta, porque ele deixava entrar
pouca gente
de cada vez. Gostava quando passava de carro e ele estava regando o jardim. O
Serguei devia ser tombado.
Nessas fases de aceleração, tudo é bacana, porque na euforia as coisas
mais singelas se tornam especiais.
Por exemplo, no dia seguinte resolvemos ir até Búzios. Fomos à Geribá, e
quando chegamos à praia não se
195

conseguia enxergar nada. Nunca tinha passado por aquela experiência. A praia
estava coberta por uma névoa, fog, e de repente apareceu um cavalo branco. Um
cavalo
branco, do nada. De noite, enquanto dávamos uma volta na praça principal, vimos
um alemão que, de tão lindo, parecia o Sting na sua melhor fase. Antes de ir
embora,
fiz uma tatuagem de estrela cadente.
Você vai me perguntar: "E daí? Aonde está a euforia?" Eu digo: para a minha
prima, tenho certeza, foi apenas uma viagem bacana. Pra mim, um êxtase. Porque
durante
a hipomania cada detalhe é como se fosse precioso: lagarto, neblina,
possibilidade de tubarões, Sting, estrela cadente: puro êxtase. A hipomania não
tem as necessidades
que a mania tem. Uma árvore florida é uau.
Tenho um blog e, aos poucos, fui revelando que tinha depressões químicas, e a
primeira vez que fiz isso, recebi centenas e centenas de e-mails.
"16 DE AGOSTO DE 2006.
Minha serotonina caiu. Despencou. Não sei como se fala cientificamente,
mas não importa. Você sabe que serotonina é tudo, não é? A minha caiu e me
deixou
na pior. Por que sem ela, meu bem, você não toma nem um chicabom. Sem ela não há
energia, nem alegria, e nada parece realmente
196

valer a pena. Mesmo que você tenha filhos lindos, marido bacana, amigos,
blablablá. Mesmo que você seja a Jennifer Aniston e tenha tudo aquilo que ela
tem.
Mesmo assim você não se sente feliz. A felicidade é química.
Este post não é uma reclamação ou uma tentativa de me fazer de vítima
(nun-ca), por que sei que existem coisas muito, muito piores que isso. Resolvi
porque
tenho recebido muitos e-mails simpáticos, de pessoas que notam que ando meio
ausente. Um deles, de um rapaz chamado Nelson, admirava meu estilo de vida. Ah,
Nelson,
se você visse meu estilo de vida no momento, bleargh. Deitada, olhando pro teto,
esperando a minha química voltar ao normal. Controlar a ansiedade é difícil
também
e ela só atrapalha.
Eu tinha uma amiga que vivia dizendo: "Ah, nessa época eu estava nos
Estados Unidos", sabe como é? Você comenta uma novela, um show do Cazuza, uma
eleição
e ela: "Ah, nessa época eu estava
196

nos Estados Unidos." Assim que eu me sinto, depois de uma rasteira dessas. Serra
caiu? O dólar disparou? A atriz cortou os cabelos e está namorando o galã das
8? Estou por fora. Estou nos Estados Unidos.
197

Meu médico, quando eu reclamo que não agüento mais não poder fazer as coisas,
sair, me divertir, trabalhar, me diz para eu imaginar que estou com as duas
pernas
quebradas, imobilizada na cama. Pode crer que não é a mesma coisa.
Se eu estivesse engessada, ia pegar um monte de filmes na locadora ou
ficar assistindo aos filmes a cabo, feliz da vida, comendo pipoca, alugando as
pessoas
("Pega uma régua aí pra eu coçar a batata da perna, anda, rápido!", "Compra uma
Contigo pra mim e um pote de Napolitano. Duplo!"). Colocando a leitura em dia,
tanta
coisa legal pra ler! Mas não caí e quebrei as pernas, foi a serotonina que caiu.
Bem mais complicado, sabe?
Porque você pega um livro mas não consegue se ligar no que está lendo,
televisão nem pensar, (nem Os normais!), jornal não dá porque as notícias não
ajudam
(claro). No outro dia peguei uma Quem, especial Sorriso. Juro por Deus que
existe um troço desses nas bancas. Todo mundo rindo com seus dálmatas, seus
biquínis,
muito sol, muita pista de dança. Você se controla para não picar a revista em
pedacinhos e diz apenas: "A Deborah Secco parece muito cansada para 22 anos."
198

Conversar com os amigos é impossível, todos os assuntos te escapam na hora


H. Quer saber a verdade? Não há assunto. É como se você não tivesse tido nenhuma
experiência na vida, nem aprendido nada. Também não é hora de aprender algo
novo, a memória não ajuda.
Então você fica deitada na cama, os pensamentos ruins fazendo fila e se
empurrando para ver qual vai se manifestar primeiro; daí você chora, tenta
pensar
em coisas boas, mas não consegue. Etc. Este etc. é um mundo de sensações ruins.
Meus amigos me ligam muito e isso me angustia, porque eles não entendem
como esse processo demora. O exemplo que eu gosto de dar é fazer a pessoa
imaginar
um carro, um fusca ou um mustang, não importa. Ele precisa de gasolina para
andar, certo? Eu sou este carro e o combustível está sendo colocado diariamente,
porém
com conta-gotas. Conta-gotas, sabe lá o que é isso? Tem que dar um tempo para o
tanque encher, pelo menos
198

o suficiente. Um bom tempo. Não parece fácil de entender?


Estou escrevendo também porque sei que deve ter alguém que me lê que tem
o mesmo problema
199

que eu. Então também é uma espécie de "tamos aí".


Estou aqui lutando, achando tudo meio sem graça, mas esperançosa porque sei que
vai ter uma hora em que tudo voltará ao normal. Então é isso. Todo mundo tem
defeitos. Só a bailarina que não tem.

26 DE AGOSTO DE 2002.
Meu médico contou que não faz sentido dizer "minha serotonina caiu". Ele
disse que virou moda falar em serotonina e os laboratórios médicos estão
deitando
e rolando. Que agora esse neurotransmissor cura até unha encravada (sic). E,
pela quinta vez, me explicou, entrelaçando os dedos das mãos, como atuam os
neurotransmissores. Não entendi uma vírgula."
Muitas pessoas se sentiram confortáveis sabendo que não eram as únicas a
sofrer depressões ou outras doenças psiquiátricas. Algumas escreviam chorando e
relatavam
suas experiências com crises de pânico, ou Transtorno Obsessivo Compulsivo
(Toc). Outras diziam que tinham vergonha da doença.
Não é pouca gente que sofre em silêncio. Não são poucas que sofrem sem
saber o que têm. Pouquíssimas se
200
tratam. Hoje posso enxergar quanto ainda estamos presos a conceitos antigos. Se
referir ao bipolar com preconceito é uma coisa tão fora de época, tão século
passado.
É antiquado.
A mesma coisa em relação ao Toc, que, graças à Luciana Vendramini,
tornou-se uma doença com uma aura de dignidade. Por causa dela que chegava a
ficar dez
horas no banho, porque se saísse alguma coisa de muito ruim iria acontecer -
Roberto Carlos percebeu que suas até então superstições poderiam ter outro nome,
um
transtorno, e começou a se cuidar. Salve Luciana Vendramini, pela sua coragem de
expor uma doença que uma pessoa pouquíssimo esclarecida vai olhar como sendo de
doido.
Pânico é uma doença que inexplicavelmente entrou na moda e quase se
tornou um hit. Todo mundo havia tido Pânico. Era bom para o currículo. Na Caras,
atrizes
que estavam fora do mercado declaravam, posando em frente à piscina, que haviam
tido a doença.
Eu me perguntava: como elas conseguiam estar em todas as festas mostradas
na revista durante o ano todo? É uma falta de respeito com quem realmente
experimentou
essa doença. No Pânico, muitas vezes, a pessoa não consegue sequer colocar o pé
pra fora de casa. Muitas vezes se
201

separa e perde o emprego. É uma doença implacável e a sensação é de morte


iminente.
Conheci um cara que perdeu a mulher, mas não o emprego. Seu chefe tinha a
mesma doença e foi solidário. Esse rapaz tinha medo de microondas e de ligar a
tevê.
Uma amiga só conseguia passar roupa e ler livros leves. As pessoas precisam
respeitar a dor dos outros.
Ainda escondia meus sintomas, e estava com amigos em Búzios, jogando
sinuca. Uma garota de repente falou alguma coisa que não lembro, que dava a
idéia de que
estava maluca. Seu namorado zoou: "Esqueceu de tomar o lítio, é?", e depois,
"Hahaha". Eu fiquei na minha, mas hoje em dia era provável que eu dissesse: "Por
que
você está falando isso? Você por acaso tem preconceito contra lítio?" Ele
estudava psicologia. Agora vê.
I'm so happy 'cause today / I've found my friends / They're in my head /
I'm so ugly, but that's okay, 'cause so are you / We've broken our mirrors /
Sunday
morning is everyday for all I care / And I'm not scared / Light my candles, in a
daze / 'Cause I've found god / Yeah, Yeah / I'm so lonely, but thats ok / I
shaved
my head / And I'm not sad / And just maybe I'm to blame for all I've heard /
202

But I'm not sure / I'm so excited, I can't wait to meet you there / But I don't
care
I'm so horny, but that's okay / My will is good / Yeah, Yeah / I like
it / I'm not gonna crack / I miss you / I'm not gonna crack / I love you / I'm
not gonna
crack I killed you / I'm not gonna crack / I'm so happy 'cause today / I've
found my friends / They're in my head / I'm so ugly, but that's okay / 'cause so
are
you /We've broken our mirrors / Sunday morning is everyday for all I care / And
I'm not scared / Light my candles in a daze / 'Cause I've found god / Yeah, Yeah
"Lithium", do Nirvana.
Certo dia, quando ainda fazia análise com Júlia, eu tinha acabado de reler
Uma mente inquieta. Relia sempre que estava deprimida. Estava inconformada
porque
no final do livro Kay Jamison dizia que, se pudesse optar, escolheria ter
nascido maníaco-depressiva. Eu achava aquilo um absurdo.
Muitos anos haviam se passado até que Leandra Pires me indicou um médico,
especialista em bipolaridade, o dr. Olavo. Ele me receitou um remédio e tive uma
203

rápida depressão mista. Significa que eu tinha um alto componente de depressão e


uma pequena parte de euforia. A depressão foi bem tranqüila em relação às
outras.
Tinha todos os sintomas, mas não eram tão fortes. Porque dessa vez eu conseguia
fugir para o teatro e o cinema e desligar meus pensamentos durante algumas
horas.
Vi muitas peças e filmes, e Leandra foi minha companheira nessa
curta experiência.
De vez em quando, eu perguntava se ela achava a vida boa. Ela sempre
respondia: "Evidente!" Eu achava avida cruel, e só no dia que concordei com ela
vi que
estava boa outra vez. O psiquiatra mudou o remédio e passei a tomar lamotrigina.
Demorou pouquíssimo para que eu ficasse equilibrada e livre dos ciclos de humor.
Quando o dr. Olavo me diagnosticou, perguntou se eu estava disposta a
abandonar a euforia. A pergunta faz sentido. É um estado delicioso, e,
parodiando Bogart,
diria que a humanidade está um Prozac a menos. Eu disse "claro que sim". Porque
sabia que, abandonando a mania, estaria me livrando do pólo negro também.
Lorena disse que se preocupou com o tipo de pessoa que viria a ser.
Porque ela era a soma da sua essência mais a depressão e a mania. Tirando os
dois pólos,
o que sobraria? Aquilo me deixou preocupada, eu tinha medo de me tornar uma
pessoa melancólica ou desanimada.
204

- Dr. Olavo, de que jeito eu vou ser quando ficar boa? - (Não se fica
curado do transtorno bipolar, é uma doença crônica. Terei de tomar o remédio
todos
os dias, o resto da minha vida. Mas não me importo mesmo. Além disso, a ciência
não pára de descobrir coisas.) Vou ser como todas as pessoas?
(Meu sonho sempre foi ser igual às outras pessoas. Lembro que um dia,
deprimida em último grau, liguei para minha prima e perguntei o que ela estava
fazendo.
- Costurando umas roupinhas de crianças - respondeu.
Como eu queria ter aquela vida tranqüila!)
- Igual às outras pessoas, não. Você vai ser diferente.
Fiquei assustada.
- Vai ser mais alegre e criativa que a média.
Acho que nunca ouvi uma notícia que me deixasse tão animada. Assumi minha
doença, e não tinha mais vergonha. Uma tonelada caiu dos meus ombros. Descobri
que era uma doença como qualquer outra. Grave, mas
204

tratável. Também comecei a observar quantos bipolares existiam ao meu


redor. Ou pessoas com outros problemas psiquiátricos.
Durante as depressões eu me sentia em estado permanente de espera - de
que alguma coisa acontecesse
205

e me puxasse daquela indiferença profunda. E só havia duas opções: voltar ao que


eu já tinha sido ou abandonar tudo de vez, desistir, morrer. Chega-se a um ponto
que a saída parece impossível de ser encontrada, meu corpo estava cansado; como
resistir se a vida te ignora? A dor não passa nunca, os remédios demoram semanas
e semanas
para surtir um pequeno efeito.
Sendo hipomaníaca, meus impulsos sempre tiveram um certo limite. Em Nova York,
Gabriel me contou que ele e o amigo às vezes faziam festinhas. Com cocaína e
outras
drogas pesadas, e pedi a ele que, enquanto eu estivesse ali, não fizesse festa
nenhuma. Pedi que jurasse. Creio que se eu fosse maníaca continuaria o trajeto
da
euforia, sem freios.
Se fosse maníaca, teria transado com o surfista, ou
ao menos iria beijá-lo, porque me sentia apaixonada. Se não fosse bipolar talvez
tivesse ido a Nova York e voltado pra casa, numa viagem normal de turismo. Eu
posso
dizer que já estive no céu e no inferno repetidas vezes. Durante muito tempo
minha vida foi comandada por dois pólos nítidos, com a depressão tendo um espaço
muito
mais acentuado do que a mania.
Tive sorte de, com o tratamento certo, não ter perdido a alegria que pontuou
minhas aventuras. Sorte de
206

ser um tipo de bipolar (2, segundo os subtipos) que não perdeu o olhar de
encantamento diante da vida.
Minha analista sugere que, depois que a doença se manifestou, nunca me
apaixonei por ninguém sem estar eufórica. Não concordo com isso. Quando se está
apaixonado
a química do nosso corpo se altera e traz um contentamento. Me apaixonei muitas
vezes e sei que o que sempre sentia vinha da mesma substância que conheci aos 15
anos, quando tive meu primeiro namorado. Analistas e psiquiatras podem saber
muitas coisas sobre nós, mas não tudo.
O tratamento
- Se você não entende o bipolar no seu estado normal, você não vai entender
quando ele está anormal. Por exemplo, um osso que se quebra é um osso que não
estava
quebrado. Se você não entende a normalidade de um osso, você não vai perceber
uma fratura - explica o psiquiatra. - Então às vezes, para você procurar um
diagnóstico,
aquele quadro grave que está ali na tua frente te confunde, você não sabe bem o
que é. A depressão não vem com um indicativo na testa: Sou bipolar.
"O médico precisa se afastar, mudar o ângulo. Se afastar do quadro agudo e
perguntar sobre as coisas de
207

que a pessoa gosta, e como ela era antes de ficar deprimida. Se você perguntar
sobre o temperamento, durante a depressão, todos terão temperamento depressivo.
O
temperamento não é como a pessoa é durante a depressão, mas como ela era antes.
Não há nada mais maligno para o tratamento da depressão bipolar do que o uso de
antidepressivo
isolado, sem estar associado a estabilizadores de
humor.
"Existe uma associação que publica dados das farmácias, das vendas de
remédios, e uma coisa que me assustou, em um estudo de 2003, é que, apenas nos
Estados
Unidos, somente 24% dos bipolares estavam usando estabilizadores de humor. E
48%, quase metade, estavam em uso de antidepressivos. Se nos Estados Unidos já é
um
número vergonhoso e assustador, aqui certamente é pior. No Brasil, deve ser por
volta de 12% a 15%, na melhor das hipóteses. Estou falando dos que têm
diagnóstico
de bipolar. Que ninguém discute que é bipolar. Não existe um número, mas se você
extrapolar os Estados Unidos, pra cá é preocupante, muito preocupante", conclui
o psiquiatra.
Em 2004, minhas depressões já tinham desaparecido. Estava escrevendo meu
primeiro livro, O caderno de
208

cinema de Marina W., e não tinha um minuto de sossego. Cheguei a ficar 27


horas no computador, mas se você não sai de casa considera-se que você não está
trabalhando.
Então me pediam coisas o tempo inteiro: fritar ovos, correr para ver o que
estava passando na tevê, atender a telefonemas. Perguntavam onde estavam o
abridor, roupas
limpas, gravatas. Então resolvi me mandar para São Paulo e ficar sozinha.
Alguns incidentes atrapalharam meu projeto de tranqüilidade. Peguei fitas
na locadora 2001, mas o video estava quebrado. Precisava ver filmes e escrever
sobre
eles. Tive de arranjar outro rapidamente, e por dois dias seguidos derramei
Coca-Cola no teclado do notebook. Da primeira vez a empresa consertou sem
problemas,
mas na segunda me indicaram aonde eu deveria ir. Peguei ônibus e trem, e o lugar
era tão longe que tinha estrada de terra. Deixei o computador lá por vários dias
e precisei comprar um teclado novo. Era uma confusão atrás da outra.
Quando tudo se acalmou, escrevi o dobro do que escreveria no Rio, além de
ficar no quarto do flat, de roupas quentes e debaixo da coberta, vendo filmes
que
meu filho tinha gravado pra mim.
Antes de voltar para o Rio, fui beber chope com Zeca, blogueiro com quem,
de vez em quando, trocava
209

e mails. Tínhamos muito carinho um pelo outro, embora nossa correspondência


fosse irregular. Quando nos encontramos, sentimos uma empatia imediata. Ele
achava que
me conhecia de outras vidas, aquelas paradas. Foi me buscar às nove e meia da
noite, e me deixou de volta no flat ao meio-dia. Não paramos um minuto: me levou
a
vários bares bacanas da Vila Madalena, onde ficávamos conversando até fecharem
as portas, no final da madrugada.
Era dia claro quando me mostrou a Igreja de São Bento, em que tinha sido
batizado. Depois, a fachada de um hotel chamado Cineasta - maravilhoso nome,
onde
morou com os pais quando era pequeno. Fomos ao edifício Copan ver a arquitetura
de Niemeyer. A uma padaria espetacular, 24 horas, que servia sopas de madrugada
e café pela manhã. Estou percebendo que essa história é parecida com a de Nova
York, a diferença é que, na versão paulista, só viemos a namorar meses mais
tarde.
Não sentíamos sono, andávamos pra lá e pra cá o tempo inteiro. De bar em bar,
tomando um carioca ou um curto - ele realmente adorava cafés. Quando fui embora,
ficou
um encantamento no ar, e o começo de uma amizade. Foi
o que eu pensava.
No dia seguinte, fui embora no começo da noite. De tarde, fiz coisas
burocráticas como ir ao banco, providenciar
210

a entrega do videocassete e devolver os filmes à locadora. Zeca ligou, se


ofereceu para me levar ao aeroporto, mas fiquei sem jeito e não aceitei.
Meu casamento se arrastava. Sidney trabalhava muito, e eu ficava direto
trancada no escritório, escrevendo o livro. Parecíamos dois grandes amigos
dividindo
a mesma casa. No final de 2004, lancei o livro e estava felicíssima. Havia mais
de duzentas pessoas na Livraria da Travessa, e minha família e meus amigos
estavam
ao meu lado. Já tinha me livrado da depressão e estava legal. O casamento é que
estava amarrado à rotina dos casamentos longos. Por isso, depois de 23 anos de
casados,
achamos que seria bom para os dois nos separarmos. Acho deselegante manter uma
pessoa que já virou irmão ao seu lado, diante de um mundo enorme e,
possivelmente,
cheio de promessas.
Viajamos todos para Búzios. Fomos com Maria Clara e seu namorado, e
Francisco com sua namorada. Era tudo que mais queríamos durante todas as nossas
férias
na praia: que os quatro estivessem com a gente. Pela primeira vez, e meio sem
querer, estávamos todos ali. Engraçado acontecer nessas condições. Visitamos
muitas
praias e restaurantes. Foi uma despedida digna, divertida e sincera.
Nossa separação não poderia ter sido mais tranqüila. Na volta da viagem,
liguei para uma advogada, indicada
211

por uma amiga. Além de competente, cobrava preço de tabela. Separar-se é muito
caro, são caminhões de mudança, papeladas, caixotes cheios de cds e livros.
Rapidamente
estávamos assinando a sentença. Ele ficou tenso e calado no trajeto até o centro
da cidade, e, quando passamos pelo Aterro do Flamengo, começou a tocar no rádio
a música que embalou parte do nosso namoro. Eu estava tranqüila como se
estivesse indo ao cinema.
Na volta, fui conhecer sua casa e me surpreendi ao ver os lençóis floridos
- era sempre eu que escolhia essas coisas, e me senti um pouco esquisita. Ver
sua
casa semi-arrumada, quando em meia hora eu transformaria num lar, me deixou
melancólica. Além do mais, achava que ele estava desprotegido sem mim, as
crianças, os
gatos. De noite, antes de dormir, tive uma crise de choro. Chorei tanto que
fiquei com medo de voltar a ter depressões.
De madrugada, levantei e escrevi um e-mail, dizendo que não conseguia
imaginar envelhecermos separados, sem criar nossos netos. Nosso maior desejo era
estar
sempre com os bebezinhos e... estragá-los. Ele respondeu que iríamos criá-los
juntos, que nossos sentimentos estavam acima de uma assinatura. Foi uma resposta
gentil
e carinhosa. Se estivéssemos um do lado do outro seria um abraço. Éramos duas
pessoas que se amavam, mas agora
212

de maneira diferente. Acordei normal. A pessoa precisa chorar todas as perdas


para não adoecer por dentro.
Fui morar na Gávea e, pela primeira vez, em um lugar horizontal. Porque
sempre morei no alto de ladeiras ou em lugares inacessíveis, onde não havia nem
uma
padaria por perto. Com exceção de Brasília, Asa Sul, que tem todo o tipo de
comércio à disposição, como um shopping ao ar livre. Mas fiquei lá apenas seis
meses,
nem conta.
Sidney alugou um apartamento no Jardim Botânico e, por ironia, seu
trabalho na televisão mudou de horário e ele não precisava mais acordar às
quatro da manhã.
Nossa vida social juntos era muito restrita por causa disso. Embora a gente se
veja muito pouco, sei que posso contar com ele para qualquer coisa e ele sabe
que
pode contar comigo. E tomamos muito cuidado para não invadir a intimidade um do
outro. Ainda espero encontrar o homem da minha vida, típica coisa feminina, mas
Sidney
vai ser sempre o cara mais importante de todos, além de ser o pai dos meus
filhos.
As crianças vieram morar comigo, não conseguia
212

me imaginar sem elas. Não eram mais crianças e já estavam na faculdade, mas na
minha família usamos crianças como sinônimo de filhos. Chorei muito até que
tomassem
a decisão. Maria Clara me surpreendeu quando pediu
213

desculpas e disse que ficaria onde seu irmão ficasse. "Não quero ter um meio-
irmão", explicou. Nunca pensei que ela fosse falar isso e achei bonito. Eles
vieram
morar comigo e circulam pelas duas casas, de acordo com suas necessidades.
Quando estão com saudades do pai dormem lá, quando a internet fica fora do ar
também.
Foi uma separação sem traumas, mas, se já não estivesse devidamente
medicada, essa mudança brusca poderia me fazer entrar em depressão, talvez.
Afinal, tínhamos
passado muito tempo juntos, exatamente metade das nossas vidas.
Comecei a transformar sonhos em planos e a tratar da minha saúde, coisa
que nunca tinha feito antes. Comecei a caminhar, fazer ginástica e tentar me
alimentar
de modo mais saudável. É difícil descrever a sensação de liberdade: é querer
viver inteiramente tudo que sou por dentro.
Pouco depois precisei voltar a São Paulo. Me hospedei na casa da poeta
Ledusha Spinardi, com quem havia feito amizade através de dezenas de e-mails e
papos
intermináveis ao telefone. Curtimos muito. Ficávamos na varanda da casa dela,
tomando vinho tinto e contando nossas intimidades. Essas coisas que as mulheres
conversam
enquanto bebem.
214

Zeca me telefonou, e acabamos passando o resto da semana juntos. Fomos a um


galpão enorme, que reunia várias barracas, com todo o tipo de comidinhas, e
também
à feira comer pastéis fritos na hora. Estava sempre me dizendo: "Vou te levar
pra conhecer um lugar." Eram lojinhas, charutarias, restaurantes chineses,
pracinhas,
suas ruas prediletas, cinemas antigos, monumentos, galerias, chafarizes. Na
Tiffany's, fiquei percorrendo a loja usando anéis e pulseiras de diamantes,
enquanto
ele conversava com a vendedora sobre quilates e lapidações. Gostava de me
mostrar coisas e me levava para conhecer
farmácias e supermercados. Tudo foi ainda mais divertido do que da primeira vez,
e agora podia beijá-lo.
Se você quiser...
Um jeitinho diferente...
Sem ter medo do perigo...
Pode vir que a chapa é quente ...
Tati Quebra-Barraco
Nosso namoro foi feito de idas e vindas, e mais curto do que aquela paixão
poderia supor. Eu preferia ignorar seus defeitos, era o homem ideal para mim.
Com
certeza ele também não ligava para os meus. "Adoro ouvir você falar", dizia, e
essa frase, para uma mulher que foi casada tanto tempo, faz um super efeito. Nas
vezes que veio ao rio, mostrei o Arpoador e o Leblon e, no shopping da Gávea,
ele roubou uma xícara para mim. Eu tinha meia dúzias delas, além de copinhos de
cachaça e tudo que fosse possível enfiar no bolso sem ninguém perceber. Me dava
coisas adoráveis, potes de café floresta, medalhinhas para me proteger,
tercinhos, santinhos e coisas que brilham, além de objetos que pertenciam a ele,
como livros, aventais
218

de chef e meias de lã. Gostava de me ver cantar e dançar, duas coisas que não
faço bem.
Quando estive em São Paulo, pedimos sanduíches americanos de madrugada
numa padaria perto da casa dele, aliás um apartamento superbagunçado. Mas eu
adorava
me sentar no colchão do quarto e assistir à televisão ao seu lado. Andávamos de
mãos dadas pelas ruas desertas.
Gostava dos nossos silêncios, tão íntimos e quase palpáveis, como nunca
senti com ninguém. Dançamos juntos sua música preferida, e eu usava um vestido
dourado
- foi tudo muito especial e lindo. Como eu, Zeca preferia o sonho, e
imaginávamos nossa vida no interior, cuidando dos animais de dia e olhando as
estrelas de noite.
Todos os apaixonados são iguais, embora tenham certeza que não.
No automóvel, cantávamos músicas antigas do Roberto Carlos às alturas, e
tínhamos um programa de rádio de mentirinha, uma espécie de Pânico mais bem-
feito.
Estava muito feliz e nunca gostei tanto de uma cidade. Eu só pensava nele, o
tempo todo. Ele fazia planos para se mudar para o Rio a fim de ficarmos sempre
perto
um do outro.
Mas o temperamento bipolar é impulsivo, e um dia resolvi terminar tudo, de
modo inesperado e infantil. Ele
219

me acostumou mal, me tratava de modo tão delicado que fiquei aborrecida quando,
numa crise de mau humor, foi muito estúpido comigo. Não é motivo para se
terminar
um namoro, não sei por que fiz isso. Tive uma intuição de que tudo daria errado.
Além disso, o fato de Zeca também ser bipolar, e relapso em relação aos
remédios,
o que deixava seu humor instável. Foi um romance tão intenso que só poderia
mesmo ser breve.
Terminamos por e-mail, e ele ficou com ódio de mim. No reply, disparou
palavras violentas como pedradas. "Minhas únicas armas", me explicou depois.
Joguei
todas as coisas fora: pedras, medalhas, bilhetes, livros, meias, avental,
xícaras, tudo. Também me arrependi desse gesto impulsivo. Quando a raiva passou,
percebi
que sua atitude era compreensível. Eu tinha pisado na grama. Errei, me arrependi
e tentei consertar. Mas Zeca era orgulhoso, e seu encantamento parecia ter
acabado.
Meses depois, nos falamos por telefone afetuosamente. Mas o namoro tinha
terminado e nunca mais soubemos um do outro. Coisas interrompidas ficam pairando
no
ar e nosso romance tinha sido muito ardente. Ele ficou mal, mas fui salva por
uma minieuforia, que me permitia fazer mil coisas ao mesmo tempo, e a tristeza
se diluiu
no meio do corre-corre. Eu era totalmente apaixonada
220

por ele, mas, embora tivesse um lado imaturo que ele gostava de cultivar, Zeca
era um homem experiente e sabia que minha vida não cabia na dele e a dele não
cabia na minha.
Ainda carreguei aquele sentimento por um bom tempo. A paixão pesa quando
não correspondida, e se porta como um convidado que não se manca e fica rendendo
uma
conversa que passou do ponto. A pessoa não consegue ser feliz. Mas o tempo não
pára, e as lembranças que tinha aos poucos foram envolvidas em névoa, e o que eu
sentia
foi desaparecendo, até que um dia acabou por completo. É engraçado, algumas
paixões merecem champanhe duas vezes, quando te assaltam e quando deixam de te
fazer
sofrer.
Anotações no meu diário, na época:
"Me apaixonei, namorei e noivei. O noivado fica por conta das pessoas
apaixonadas gostarem das coisas lúdicas, não confundir com lúcidas. Minha vida
se transformou
numa série de coincidências felizes e eu acordava no meio da noite com achados
brilhantes, como me dar conta de que a lua que eu via no céu era a mesma lua que
ele podia ver da sua janela. Mas um dia nos distraímos, e nosso amor rolou e
caiu num abismo. E cada um
221

foi para o seu lado, porque nada poderia ser feito. Não havia como recuperá-lo.
Eu chorava muito por conta disso. Mas o tempo passa, as coisas vão se ajeitando,
tudo passa, a gente se esquece, a vida te puxa pelo braço, exige coisas, você
vai, precisa ir, a vida é curta, você se movimenta, dorme, acorda, sente
saudade, acabou,
o mundo não pode esperar, você entende, racionaliza, o amor no abismo. O amor
era falso e se quebrou, você pensa. Porque não existe nada o que pensar. A vida
não
dá espaço pra nada que dói, e te puxa, você precisa ir, acordar cedo, filas de
banco, uma casa pra cuidar, você precisa trabalhar, se distrair, tantas coisas
pra
fazer, o tempo passa, as fichas caem, o mundo te espera, você precisa se ligar,
correr atrás. E você vai."
- Namoro de bipolar com bipolar é uma festa - comentou meu psiquiatra, na
época que eu estava feliz.
Desde janeiro de 2006, tenho tido pequenos picos de alegria e tristeza químicas.
Fiquei alguns meses acelerada, falando muito, dormindo pouco e distribuindo pré-
datados
pelas lojas do shopping. Passava noites em claro, arrumando meus livros e
papéis. Comecei a tomar Seroquel, temporariamente, um remédio para me ajudar a
dormir.
222

Às vezes ainda gosto de arrumar a casa de madrugada, embora nada que


lembre as faxinas de antes. Não sei se essas minieuforias podem vir a me
prejudicar,
mas gosto de poder apreciar as coisas e ver graça em tudo. É. químico? Mas tudo
é químico mesmo. Os momentos de melancolia são mais raros, e duram muito pouco
para
eu me queixar. Fico um pouco angustiada, mas no dia seguinte estou me sentindo
bem de novo. A sensação de felicidade é quase constante e é bacana viver assim.
Espero nunca mais ter que me esconder debaixo de um cobertor. Sou a soma
de tudo que senti e, como a psiquiatra americana, gosto de ter nascido com este
transtorno. Nunca pensei que um dia falaria isso. Não consigo imaginar minha
vida de casa para o trabalho, e acho legal ter um jeito que preserva um pouco a
Marina
que andava de balanço nas alturas. O final começa a se tornar piegas, mas o que
eu posso fazer se viver vale a pena? Desisti de compreender vida, tentar
descobrir
seu significado e por que estamos aqui. A vida é segunda, terça, quarta, quinta,
sexta, sábado e domingo. Para aproveitá-la, é preciso estar bem. Se cuide.

Agradecimentos

Luciana Conde & Fred Pazos, eternamente.

Edição
Luciano Trigo
Jancy Medeiros

Revisão
Guilherme Bernardo
José Carlos Ratamero

Produção gráfica
Ligia Barreto Gonçalves

Este livro foi impresso em São Paulo, em outubro de 2006


pela Lis Gráfica Editora, para a Editora Nova Fronteira.

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