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O princípio da impessoalidade e a pessoalidade sem nenhum princípio:

a Administração Pública de conveniência

José Antoniel Campos Feitosa1

Numa era dominada por egos, personalismos e interesses, nunca um princípio


constitucional foi tão necessário à Administração Pública. E nunca um princípio foi tão
ignorado e agredido. O resultado disso, ao contrário, é visível, mensurável e danoso.
Quando Sócrates foi visitado por Critão2 na calada da noite, com argumentos
vários tentando convencê-lo a fugir da prisão e assim salvar a própria vida, já que a pena
capital estava prevista para a manhã seguinte, o filósofo de Atenas dá, senão a mais bela,
certamente uma das mais antigas lições registradas sobre o que conhecemos hoje como
princípio da impessoalidade, ao engendrar junto ao seu solícito amigo o diálogo
hipotético que com ele travaria as Leis e a Cidade que, confrontando o sábio, assim lhe
dizia:
"Dize-nos, Sócrates: que pretendes fazer? Que outra coisa
meditas, com a façanha que intentas, senão destruir-nos a
nós, as Leis e toda a Cidade, na medida de tuas forças?
Acaso imaginas que ainda possa subsistir e não esteja
destruída uma cidade onde nenhuma força tenham as
sentenças proferidas, tornadas inoperantes e aniquiladas
por obra de simples particulares?"

Ainda que com o prejuízo da própria vida, cumpriria o preconizado na Lei, no


exercício extremo da impessoalidade, sob pena de ser condenado a viver em uma cidade
sem lei, o que seria equivalente à própria morte. Não importa fosse ele, Sócrates, que
viesse a perecer, pois o seu ponto de vista pessoal era irrelevante em contraponto à ruptura
ali proposta e iminente.
Todavia, “O tempora, o mores!” —, convém relembrar Cícero. Sócrates não há
mais, só critãos é o que se tem.
O princípio da impessoalidade está gravado no caput do art. 37 da Constituição
Federal de 1988:

1
José Antoniel Campos Feitosa é engenheiro civil e Analista em Infraestrutura de Transportes (DNIT).
Possui especialização em Gestão Pública e MBA em Infraestrutura de Transportes e Rodovias e em
Avaliações e Perícias de Engenharia. É certificado em Lean Six-Sigma (Green Belt).
antonielcampos@uol.com.br
2
Critão, extraído do livro Diálogos, de Platão (séc. IV a.C.)
Art. 37. A administração pública direta e indireta de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência.

Ensinam Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo3 que esse princípio costuma ser
tratado pela doutrina sob duas vertentes: i) como determinante da finalidade de toda
atuação administrativa e ii) como vedação a que o agente público se promova às custas
das realizações da administração pública. Na primeira acepção, vincula-se o princípio à
finalidade que deve ser buscada por todo e qualquer ato da administração. Visa-se o fim,
e o fim deve ser sempre o interesse público, sendo, por isso, o seu viés mais característico.
Desviando-se desse farol, incide em desvio de finalidade, vício que o anula. No segundo
olhar, é vacina das mais eficazes contra a promoção ou acomodação de interesses de
agentes públicos ou de terceiros àqueles jungidos.
É idêntica, nesse sentido, a lição de Hely Lopes Meirelles4, para quem o princípio
da impessoalidade
impõe ao administrador público que só pratique o ato para
o seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a
norma de Direito indica expressa ou virtualmente como
objetivo do ato, de forma impessoal.
Esse princípio também deve ser entendido para excluir a
promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos
sobre suas realizações administrativas (CF, art. 37, § 12)

O princípio da impessoalidade assemelha-se a uma linha reta sobre a qual caminha


o administrador, tendo de um lado a Administração Pública e, do outro lado, o
administrado, de tal forma que sempre que o administrador se desviar dessa linha,
abandonando seu curso, estará prejudicando uma parte e beneficiando a outra. Como não
há previsão legal nem para beneficiar e nem para prejudicar quem quer que seja, o desvio
não é só questão retórica, mas legal: o agir viciado, como dito, é desvio de fim. O
caminhar reto, por isso, mais do que qualquer figura de linguagem, é condição necessária
à observância do interesse público.
É nessa esteira o pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello5, quando diz
que é no princípio da impessoalidade que se traduz
a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os
administrados sem discriminações, benéficas ou
detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são
toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas
ou ideológicas não podem interferir na atuação
administrativa e muito menos interesses sectários, de
facções ou grupos de qualquer espécie.

3
Resumo de Direito Administrativo Descomplicado. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 12
4
Direito Administrativo Brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 97
5
Curso de Direito Administrativo, 32 ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 117
Não é, no entanto, o que se observa.
No fundo da bateia, fundidos no cadinho das contribuições genealógicas de nossa
formação, emerge o administrador mediano, misto de homem cordial — debalde o alerta
de Sérgio Buarque de Holanda6: “Estado não é ampliação do círculo familiar (...). Não
existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade
e até uma oposição.” — e senhor da casa grande — o senhor de engenho na expressão de
Gilberto Freyre7 —, o suserano em sua “vida de rede. Rede parada, com o senhor
descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a
passeio debaixo de tapetes ou cortinas”. Paternal para uns e carrasco para outros, tem
nessa bipolaridade a sua principal ferramenta de gestão. Imagina sobre si certa aura
messiânica, que a qualquer tempo virá em seu socorro quando a tomada de decisão se lhe
vier cobrar posicionamentos. Amalgamando interesses privados com interesses públicos
por desconhecer-lhes os limites ou, conhecendo-os, tomá-los por irrelevantes, atrai para
seu entorno aqueles de sua afeição ou de fácil obediência. Despiciendo é o arcabouço
técnico desses, porque mais vale as suas inclinações à subserviência. Sem traquejo com
o contraditório, com o choque de opiniões e a diversidade de pensamentos, busca naqueles
a concordância silente que oblitera a criatividade, mãe das soluções.
O princípio da impessoalidade, em cenário tal, há muito que agoniza.
É contundente o impacto na engrenagem que movimenta a Administração Pública:
Inexistem processos. Métricas são negligenciadas. Transparência somente para poucos.
A insegurança jurídica campeia e o que se tem, ao fim, é uma nau à deriva, ao talante do
administrador-navegante que sequer percebe o mar revolto em que navega.
Instala-se, por fim, o “modelo de administração por susto”, no dizer de Antônio
Carlos Orofino8.
É alto o preço que paga a Administração Pública em cenário tão pantagruélico e
ao mesmo tempo tão esquálido: é que o recurso, cuja escassez é caractere próprio9, uma
vez mal gerenciado, resta desperdiçado. Não há recebimento do objeto contratado, pois
não há execução de objeto. A impessoalidade afasta o capaz e banca o néscio. E esse, que
decerto desconhece o altruísmo socrático daquela madrugada histórica, tem em seus pares
meros critãos que, antevendo a responsabilização final por seus atos temerários, ajustam
entre si a fuga em massa por absoluto instinto de sobrevivência.

6
Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 141
7
Casa Grande & Senzala. 48 ed. São Paulo: Global, 2003, p. 275
8
Processos com Resultados. Rio de Janeiro: LTC, 2014, p. 4
9
Rodrigo Luís Kanayama, in Orçamento público brasileiro, democracia e accountability, Revista dos
Tribunais, 2014, p.140.

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