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EXPERIMENTAÇÃO NO ENSINO DE QUÍMICA

Per Christian Braathen

Este artigo procura desfazer o entendimento bastante difundido entre professores de ciências e química de que o teor
aproximado do oxigênio no ar pode ser satisfatoriamente determinado por meio da combustão de uma vela dentro de um
cilindro invertido num recipiente com água. Em seguida, resgata, com importantes adaptações, um método fácil, rápido e
econômico para esta determinação.

ar, oxigênio, teor de oxigênio

Introdução ao volume ocupado pelo gás oxigênio. e (b) que a combustão é completa. Na
Comparando-se este volume com o vo- verdade o processo de dissolução é
Durante décadas, professores de
lume total do cilindro, calcula-se o teor bem lento (Birk e Lawson, 1999) e a
ciências e de química, incluindo o autor
de oxigênio no ar em porcentagem v/v. combustão não é completa.
deste trabalho, acreditaram que se po- 43
Este assunto foi debatido repetida- A prova mais contundente de que o
deria determinar o teor de oxigênio no ar
mente no Journal of Chemical Educa- oxigênio não é totalmente (nem aproxi-
através da combustão de uma vela, afi-
tion nos últimos anos, inclusive com um madamente) removido do ar contido no
xada no fundo de uma bacia com água,
suposto refinamento do método de cilindro pela combustão da vela é uma
e sobre a qual se invertia um cilindro
combustão descrito por Fang (1998), experiência, realizada por Birk & Lawson
graduado, como indicado na Figura 1.
em janeiro de 1998. O editorial de John (1999), em que se queima uma vela sob
A explicação desta metodologia é
Moore (1999), editor chefe daquele pe- uma campânula na presença de um
que a combustão da vela consome todo
riódico, e o artigo de Birk e Lawson rato, conforme ilustrado pela Figura 2.
o oxigênio contido no ar.
(1999), no número de julho de 1999, Nesta simples experiência verifica-
Supondo que a vela seja constituída finalmente colocam uma “pá de cal” se que o rato continua bastante ativo,
apenas por pentacosano (na verdade, nesse método. e sem sinal de falta de oxigênio, muito
a vela é uma mistura de vários hidrocar- Como a composição do ar que res- depois de a vela se apagar. Ou seja, a
bonetos sólidos), a reação de combus- piramos e, principalmente o teor de oxi- vela se apaga bem antes de consumi-
tão poderia ser representado pela gênio, é de interesse evidente no ensino do todo o oxigênio contido na campâ-
equação: de ciências e de química, faremos neste nula. Além disto, é notório que, na
C25H52(s) + 38O2(g) → trabalho algumas considerações sobre
25CO2(g) + 26H2O(g) as falácias desse método e resgatare-
mos, com uma importante modificação,
Como podemos ver pela equação um método simples e reprodutível des-
sugerida, os produtos da combustão crito por Birk, McGrath e Gunter em 1981
são gás carbônico e vapor d’água. A (Birk et al., 1981).
pressuposição fundamental do méto-
do é que o vapor d’água se condensa As falácias do método
e o gás carbônico, por ser muito solúvel Muitas são as falácias deste decan-
em água, dissolve-se rapidamente. tado método de determinação do teor
Como conseqüência da remoção do de oxigênio no ar. Entre estas, as prin-
gás oxigênio, a pressão dentro do cilin- cipais são: (a) que o gás carbônico for-
dro diminui e a água da bacia sobe pelo mado se dissolve rapidamente, devido
cilindro até uma altura que corresponde à sua “grande” solubilidade em água

A seção “Experimentação no ensino de química” descreve experimentos cuja implementação e interpretação contribuem
para a construção de conceitos científicos por parte dos alunos. Os materiais e reagentes usados são facilmente encontráveis,
permitindo a realização dos experimentos em qualquer escola. Figura 1.

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Combustão de uma vela para medir teor de oxigênio no ar N° 12, NOVEMBRO 2000
componentes. Muitos métodos existem sacudida vigorosamente numa pia para
para esta determinação descritos na lite- eliminar a maior parte do vinagre e
ratura (método do pirogalol, método do rapidamente introduzida no fundo de
fósforo branco, método do cobre em meio uma proveta de 100 mL, que, logo em
amoniacal etc.1), mas a maioria não seguida, é emborcada em um béquer
atende aos critérios fundamentais para o de 500 mL contendo água. Nessas con-
ensino experimental de ciências e química dições, todo o oxigênio contido na pro-
em nível fundamental e médio, ou seja, veta é consumido na oxidação da palha
segurança, rapidez, exatidão, reprodutibi- de aço em aproximadamente 20 min, e
lidade e, principalmente, equipamentos e a água sobe para dentro da proveta até
reagentes simples, acessíveis, de fácil e um nível correspondente ao volume de
segura manipulação. oxigênio removido. Na hora de medir
Maldaner em seu livro Construção este volume, deve-se tomar o cuidado
Figura 2. de Conceitos Fundamentais (Maldaner, de ajustar a proveta (elevá-la) de modo
1992) descreve um método muito sim- que os níveis de água dentro da proveta
presença de “pouco” oxigênio (no final ples, recomendado também pelo e dentro do béquer coincidam (para
da combustão da vela), a combustão GEPEQ do Instituto de Química da USP igualar a pressão interna e externa). O
será incompleta, com formação de em livro de laboratório (GEPEQ, 1999), teor de oxigênio é então calculado, com-
monóxido de carbono, que é muito que consiste na oxidação de palha de parando-se o volume ocupado pela
pouco solúvel em água. aço no fundo de uma proveta embor- água dentro da proveta com o volume
Uma pergunta importante: por que cada num recipiente com água, que total da mesma. Todo o procedimento é
o método da combustão da vela conti- atende a todos os quesitos citados aci- ilustrado pela Figura 3.
nuou sendo usado por tanto tempo? A ma, exceto rapidez. Os autores suge- À primeira vista, poder-se-ía ter a
resposta é simples: os resultados obti- rem de dois a três dias. impressão de que o volume ocupado
dos freqüentemente são bastante coe- Entretanto, Birk et al. (1981) descre- pela bucha de palha de aço levaria a
44 rentes com o porcentual de 21% v/v de veram um método, baseado na mes- um grande erro. Este não é o caso. A
O2 no ar. Como diz John Moore no edi- ma reação, reprodutível e razoavel- densidade do ferro é de aproximada-
torial do Journal of Chemical Education mente exato para a determinação do mente 8 g/cm3 e, assim, 4 g de palha
de julho de 1999: “Mais importante do teor de oxigênio no ar, mas que leva de aço ocupariam aproximadamente 0,5
que obter a resposta certa é obter certo apenas de 20 min a 30 min. Consiste cm3 ou 0,5 mL, o que levaria então a
a resposta”. O método da combustão na oxidação rápida de ferro contido em um erro de aproximadamente 0,5%.
da vela é um excelente exemplo de co- palha de aço, previamente tratado com Obviamente, há outras fontes de erro,
mo se pode obter a resposta “certa” pe- ácido acético em variadas concen- tais como a umidade do ar (vapor
las razões erradas. Em outras palavras, trações, desde o glacial (17,5 mol/L) d’água), precisão nas medidas de volu-
o mito da combustão da vela para a de- até soluções diluídas como, por mes e assim por diante. Entretanto, o
terminação do teor de oxigênio no ar so- exemplo, 0,25 mol/L. autor e equipes de estudantes encon-
breviveu durante décadas porque uma Como o ácido acético não é um rea- traram, consistentemente, resultados
série de fatores aparentemente “cons- gente de fácil acesso aos professores entre 20% e 21%, que são perfeitamente
piram” para a obtenção de resultados do ensino fundamental e médio, o autor aceitáveis à finalidade que se destina o
coerentes com o teor esperado. Durante deste trabalho testou e modificou o pro- experimento.
a combustão ocorre aumento de tem- cedimento descrito pelos autores acima Na falta de uma proveta, esta pode
peratura, que ocasiona expansão e pos- substituindo-o por vinagre (aproximada- ser substituída por um recipiente cilín-
sível escape de gases. Depois, ocorre mente 0,8 mol/L em ácido acético) e por drico de plástico, preparado a partir de
resfriamento e contração do volume. vinagre diluído com água na proporção um frasco de xampu ou similar.
Uma parte do oxigênio é de fato consu- 1:1, obtendo os melhores resultados
mida. Uma parte do CO2 de fato dissol- com o vinagre diluído. Além disso su- Considerações sobre o papel do ácido
ve-se e, assim, o resultado obtido re- gere-se o uso de uma proveta de acético
gularmente parece revelar a “verdade”. 100 mL, em vez de 25 mL, e aproxima- Vale a pena fazer algumas conside-
damente 4 g de palha de aço, ao invés rações sobre o papel do ácido acético
Resgatando e adaptando um método
de aproximadamente 1 g, para tornar o neste experimento. Não temos dúvida
simples de se determinar o teor de
experimento mais visível e convincente. que o principal papel do ácido acético
oxigênio no ar O experimento é executado como é o de “limpar” a superfície da palha
Determinar o teor de oxigênio é im- segue. A metade de uma bucha de pa- de ácido (removendo óxido etc.). Sem
portante no ensino de ciências e de quí- lha de aço (aproximadamente 4 g) é a limpeza com ácido acético, o experi-
mica (tendo em vista a importância embebida em vinagre (puro ou diluído mento é muito lento (muitas horas e
desta substância para a vida na terra) e com água) num copo e revolvida rapi- até dias, dependendo do tamanho da
para caracterizar que o ar é uma mistura damente neste vinagre por aproxima- amostra de ar). Birk et al. (1981) rela-
em que o oxigênio é apenas um dos damente 1 min. Em seguida, a bucha é tam que ao usar ácido acético glacial

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Considerações finais • a idéia de interação entre os rea-
gentes, formando novas substâncias,
Embora não tenha
parece estar longe dos alunos;
havido neste artigo a
• os alunos sabem que o oxigênio é
intenção de abordar a
necessário para a queima, mas não con-
combustão per se, é
seguem estabelecer qual é o seu real
pertinente ressaltar que
papel;
experimentos rela-
• alunos, de várias etapas de esco-
cionados à combustão
laridade, submetidos a um problema so-
(não apenas o da com-
bre queima de combustíveis em um au-
bustão da vela, mas
também aquele do tomóvel, em sua grande maioria não
ovo que entra na gar- admitem que a massa de gases produ-
rafa, geralmente ex- zidos na combustão de gasolina em um
plicado de forma equi- veículo é maior do que a massa de ga-
vocada) devem ser tra- solina utilizada (esquecem o oxigênio).
tados com muita cau- Dificuldades desse tipo também têm
tela e reflexão, princi- sido observadas em alunos de gradua-
Figura 3. palmente no ensino ção e professores. Talvez por isso,
fundamental, no qual interpretações errôneas de experimen-
é necessário lavar a palha de aço em são introduzidos pela primeira vez. Pes- tos sobre combustão sejam aceitas com
água destilada antes de introduzi-la na quisas realizadas, por exemplo por naturalidade por todos e difundidas por
proveta, para evitar a formação de Johnson (1997), mostram que o fenô- décadas.
hidrogênio gasoso. Entretanto, enfati- meno da combustão é de difícil compre-
zam que a remoção completa do ácido ensão por parte de alunos de diferentes NOTA
é prejudicial à velocidade do experi- níveis de escolaridade. Essas dificul- 1. Veja, por exemplo, DAVENPORT e
mento, o que sugere que o ácido acé- dades estão relacionadas a diversos SABA, J. Chem. Ed., v. 39, p. 617, 1962 e 45
tico desempenha um possível papel aspectos, dos quais destacamos: LINCOLN e KLUG, J. Chem. Ed., v. 12, p.
catalisador. Esta noção é reforçada pelo • os alunos não parecem ter noção 375, 1935.
fato que Birk et al. (1981) relatam que real do que seja um gás (uma amostra
ao substituírem ácido acético por HCl de gás não é vista como uma amostra Per Christian Braathen (braathen@mail.ufv.br), licen-
ciado em química (UERJ), mestre em química analítica
6 mol/L, o experimento leva duas vezes de substância ou substâncias); (PUC/RJ) e doutor em educação científica (Univ de
mais tempo (40 min) e com H3PO4 6 mol/L • a idéia de combustão requer lon- Wisconsin, EUA), é docente do Departamento de
leva mais de 2 h, não esclarecendo se go tempo para ser desenvolvida; Química da Univ. Federal de Viçosa, em Viçosa - MG.
neste caso a palha de aço é lavada com
água após o tratamento. Em seu traba- Referências bibliográficas Journal of Chemical Education, v. 76, n. 7,
lho, originalmente apresentado no 179o p. 877, 1999.
BIRK, J.P. e LAWSON, E. The persis-
Encontro Nacional da Sociedade Ameri- tence of the candle-and-cylinder miscon- Para saber mais
cana de Química, em 1980, os autores ception. Journal of Chemical Education,
não oferecem nenhuma especulação v. 76, n. 7, p. 914-916, 1999. Embora em inglês, recomendamos
BIRK, J.P.; MCGRATH, L e GUNTER, enfaticamente a leitura do artigo de Birk e
sobre porque o ácido acético acelera a
S.K. A general chemistry experiment for Lawson (1999), que, ao nosso ver, acaba
reação mais que os outros ácidos expe-
the determination of the oxygen content de vez com o mito da combustão da vela
rimentados pelos autores. O fato de que como método para a determinação do
of air. Journal of Chemical Education, v.
todos estes ácidos liberam íons H+(aq) teor de oxigênio no ar.
58, n. 10, p. 804-805, 1981.
e que a concentração destes íons não FANG, C.-H. A simplified determination Os livros de ensino médio dedicam mui-
parece ser muito crítica, já que vinagre of percent oxygen in air. Journal of Chemi- to pouco espaço ao ar e seus componen-
diluído dá resultados praticamente tão cal Education, v. 75, n. 1, p. 50-52, 1998. tes. Livros de ciências do ensino funda-
bons quanto o ácido acético glacial, su- GEPEQ - GRUPO DE PESQUISA EM mental apresentam um pouco mais, razão
gere que os íons acetato desempenham EDUCAÇÃO QUÍMICA. Livro de labora- pela qual incluímos dois na relação de
tório – Módulos III e IV – Interações e fontes para saber mais.
um papel na aceleração do processo
transformações I. 5a ed. São Paulo: Editora BARROS, C. e PAULINO, W.R. Ciências
de oxidação da palha de aço. É um
da USP, 1999. – O meio ambiente, 5a série. São Paulo,
assunto que, sem dúvida, vale a pena Editora Ática, 1999.
JOHNSON, P. Why combustion is one
ser mais explorado, em termos de pos- of the last things we should expect chil- FELTRE, R. Fundamentos da química,
síveis mecanismos da reação. O autor dren to understand. ECRICE, York, 1997. volume único. 2a ed. São Paulo, Editora
pretende examinar mais a fundo este MALDANER, O. A. Construção de con- Moderna, 1998. Cap. 10.
aspecto do método e conta com suges- ceitos fundamentais. Ijuí: Livraria UNIJUÍ, GOWDAK, D. & MARTINS, E. Ciências
tões de colegas na elucidação deste Editora, 1992. – Natureza e vida, 5a série. São Paulo,
aparente “mistério”. MOORE, J. Getting an answer right. Editora FTD, 1998.

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