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O TRANCA RUA
piero eyben
jornal de boca a boca
e-mail otrancaruajornal@gmail.com
ano 1 brasília, 04 de abril de 2018 n. 1
/otrancarua
Durante os últimos anos estive e estou a pensar que a filosofia da devoração continua, acertadamente, a conduzir
meus pensamentos. Eu já disse que a vida é devoração pura. Certas estavam as sociedades primitivas que se O Estado matou mais uma jovem negra. Raphaella levou um tiro na nuca da Polícia Civil, que de forma
orientavam por esse principio básico. A ideia messiânica e salvacionista de que há algo a ser salvo serve apenas truculenta e corriqueira continua o projeto genocida do Estado Brasileiro. A jovem negra de 22 anos segurava
para criar as servidões do corpo e do espírito, além de toda sorte de ilusões. Ainda hoje acredito na antropofagia. seu filho no colo, quando foi atingida pela ação policial, que pretendia assassinar outro jovem negro, foragido
Vendo toda espécie de violência que ainda assola o país, me parece que temos mais uma vez outra volta à da polícia por cometer delitos descritos no Código Penal, para cuja pena é de Reclusão de uns tantos anos.
censura. Resta desejar que os poetas de hoje respondam ao chamado antropofágico e não calem. Não parem a No entanto, todos sabemos, quando se é preto, pobre e favelado, neste país, a pena de morte é mandatória
produção dessa literatura de hoje que parece manipular o melancólico e o trágico, rindo das misérias humanas,
e será estendida a toda a família, esteja você ou não sentenciado pelo Sistema Judiciário. Nem falemos em
ou pelo menos fazendo alguns rirem. Bom, querida, não sei, mas ando incomodado com a contínua manutenção
contraditório ou ampla defesa. Raphaella recebeu a sentença por amar um homem marginalizado e andar
dos privilégios burgueses e da ineficácia dos argumentos lúcidos perante uma sociedade que está se mostrando
em sua companhia. Conduta que apesar de não estar descrita na nossa legislação, é prevista no Código
ainda mais extremista e burra. Você aí, por exemplo, tanto que já falou sobre a condição da mulher trabalhadora
e até hoje, muito pouco parece ter mudado. Até a turma da arquibancada é a mesma, e eu vou continuar
Moral que conduz esta sociedade e que vai dizer que Mulher de Malandro serve apenas para colocar
azucrinando, enquanto puder escrever. Eles que fiquem a pensar que podem ver uma derrota do lado de cá. mais um marginal no mundo. O que a nossa sociedade ignora, quando condena previamente a vida
Outrora, eu falava de uma certa crise na cultura, entendendo cultura como o conjunto de relações que assinalam de Raphaella, é a condição a que estamos submetidos, enquanto povo negro. Um corpo negro passante
uma certa fase na história. De alguma forma, esses movimentos de crise são também formas de progresso em não será jamais um corpo branco. As escolhas não são tão fáceis e, sim, temos exemplos de poucos que
que novas respostas são dadas aos velhos problemas, eu já dizia isso apontando para a responsabilidade do conseguem furar o bloqueio social e escolher trabalhar até morrer num subemprego, sem qualquer garantia
intelectual e mais uma vez o que vejo é que relegaram os intelectuais para os serviços práticos – pichar muros, de uma velhice tranquila. Não preciso anunciar estatísticas e não é disso que se trata esse texto. A escolha
pregar cartazes ou correspondentes, agora é o tal do lambe a ser espalhado por toda a cidade com os protestos era e ainda é a mesma de décadas atrás sobrevivência, do jeito que dá. Do jeito que é possível. Mas, dirá
manifestos. Bom, camarada pagú, escrevo mesmo pra dizer da saudade que sinto, que sempre passa por essa você que tinha a barriga cheia pra assistir sua aula,
vontade de te ler em resposta. ainda que fosse de pão com manteiga, foi escolha
dela. Não sei se eu gostaria de ler, como gosto, se
seu, não tivesse meu corpo sem fome. Uma escolha, dirá
Seu Andrade você, que não sabe o que é ver um filho passar fome,
ou que até sabe, mas acredita fielmente no sacrifício
Osvaldo, e no trabalho sem descanso, como solução. Mas
também, não é disso que se trata esse texto. É que as
Você sabe que também sinto saudade. Não à toa escrevi aquele texto em que dizia esperar que você ressurgisse escolhas que somos levadas a fazer, muitas vezes, já
enquanto pioneiro do seu Miramar. Digo, como se ainda fosse possível que você tomasse um passo diferente foram pré-determinadas pelos séculos de açoite pelos
desse seu dizer sim a tudo o que o partido impõe. Minha vida parisiense me fez repudiar ainda mais as quais passamos. Não importa se, enquanto vítimas
coisinhas tão ou menos sentimentais. Era o que pretendia com aquele meu panfletinho. Dizer que voltava da violência do Estado, acabamos por violentar as
após tantos anos encarcerada e se ainda me era possível conviver com toda gente. Muito cheia de cicatrizes. leis impostas para a garantia da propriedade de
Quanto rumor ainda teremos de levantar para que as coisas todas pudessem se revirar, na ponta cabeça das
alguns. Seja em que nível for. Importa muito dizer
nossas pragas todas. Quanta esmola ainda. Você sabe de minhas reprovações e continuo não recuando de
que o Estado não está autorizado a tirar a vida
uns tantos bofetões. Se querem continuar nossas mortes, que a tomem no meu corpo. Já que não sou mesmo
de quem quer que seja. É preciso, urgentemente,
dessas mocinhas dos dedinhos aprontados pra tocar piano, nem da sua antiga garçonnière banal tão cheia
dos hormônios de menininhos. Sou também por uma devoração, meu querido, mas a devoração ainda mais
parar com a violência policial, mas mais urgente
carnuda, daqueles que nos censuram ou daquilo que é a própria censura. Que a gente não termine como ainda, é preciso que entendamos, todos nós, que
Mallarmé que, segundo Valéry, “despreza e é desprezado”. Raphaella não tinha muita escolha, mas certamente,
não escolheu morrer com uma bala na nuca, em
a tua, mais uma ação desmedida da força policial. •
pagú •
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