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A MEMÓRIA DE SHAKESPEARE

Mais importante que o rosto de Daniel Thorpe, que


minha cegueira parcial me ajuda a esquecer, era sua notória
infelicidade. Ao longo dos anos, um homem pode simular
muitas coisas, mas não a felicidade. De modo quase físico,
Daniel Thorpe exalava melancolia.
Depois de uma longa sessão, a noite encontrou-nos em
A MEMÓRIA DE SHAKESPEARE uma taverna qualquer. Para sentir-nos na Inglaterra (onde já
estávamos), apuramos em rituais jarras de peltre, cerveja morna
e negra.
- No Punjab - disse o major - mostraram-me um mendi-
Há devotos de Goethe, das Eddase do tardio cantar dos go. Uma tradição do Islã atribui ao rei Salomão um anel que
Nibelungos; Shakespeare foi meu destino. Ainda é, mas de lhe permitia entender a língua dos pássaros. Era fama que o
um modo que ninguém teria podido pressentir, salvo um mendigo tinha em seu poder o anel. Seu valor era tão inesti-
único homem, Daniel Thorpe, que acaba de morrer em Pretó- mável que nunca pôde vendê-Io e morreu em um dos pátios
ria. Há outro cujo rosto nunca vi. da mesquita de Wazil Khan, em Lahore.
Sou Hermann. Soergel. O curioso leitor talvez tenha Pensei que Chaucer não desconhecesse a fábula do prodi-
folheado minha "Cronologia de Shakespeare", que achei ser gioso anel, mas dizê-Io teria sido o mesmo que estragar a his-
necessária certa vez à boa inteligência do texto e que foi tradu- torieta de Barclay.
zida para vários idiomas, inclusive o castelhano. Não é impos- - E o anel? - perguntei.
sível que recorde também uma prolongada polêmica sobre - Perdeu-se, segundo o costume dos objetos mágicos.
certa emenda que Theobald intercalou em sua edição crítica de Talvez esteja agora em algum esconderijo da mesquita ou na
1734 e que, desde essa data, é parte não discutida do cMone. mão de um homem que viva em algum lugar onde faltem
Hoje, surpreende-me o tom incivil daquelas quase alheias pássaros.
páginas. Por volta de 1914 redigi, e não entreguei à publicação, - Ou onde haja tantos - disse - que o que dizem se confunde.
um estudo sobre as palavras compostas que o helenista e dra- - Sua história, Barclay, tem alguma coisa de parábola.
maturgo George Chapman forjou para suas versões homéricas Foi então que Daniel Thorpe falou. Ele o fez de modo im-
e q~e retrocedem o inglês, sem que ele pudesse suspeitar disso, pessoal, sem olhar-nos. Pronunciava o inglês de modo peculiar,
a sua origem (Urprung) anglo-saxônica. Nunca pensei que sua que atribuí a uma longa permanência no Oriente.
voz, que esqueci agora, ser-me-ia familiar... Alguma separata - Não é uma parábola - disse ele -, e, se o for, é verdade.
assinada com iniciais completa, creio, minha biografia literária. Há coisas de um valor tão inestimável que não podem ser
Não sei se é lícito acrescentar uma versão inédita de Macbeth, vendidas.
que realizei para não continuar pensando na morte de meu As palavras que tento reconstruir me impressionaram
irmão Otto Julius, que caiu na frente ocidental em 1917. Não a menos do que a convicção com que as disse Daniel Thorpe.
concluí; compreendi que o inglês dispõe, para seu bem, de dois Achamos que diria algo mais, mas de repente calou-se, como
registros - o germânico e o latino -, enquanto nosso alemão, que arrependido. Barclay despediu-se. Juntos, nós dois volta-
apesar de sua melhor música, deve limitar-se a um só. mos ao hotel. Era muito tarde, mas Daniel Thorpe propôs-me
Nomeei Daniel Thorpe. Apresentou-o a mim o major que prosseguíssemos a conversa em seu quarto. Após algu-
Barclay, em certo congresso shakespeariano. Não direi o lugar mas trivialidades, disse-me:
nem a data; sei muito bem que tais precisões são, na realida- - Ofereço-lhe o anel do rei. É claro que se trata de uma
de, imprecisões.
metáfora, mas o que essa metáfora encobre não é menos pro-

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digioso que o anel. Ofereço-lhe a memória de Shakespeare desde Apenas um princípio de fadiga, talvez imaginária.
os dias mais pueris e antigos até os do início de abril de 1616. Lembro claramente que Thorpe me disse:
Não acertei em pronunciar uma palavra. Foi como se me - A memória já entrou em sua consciência, mas é preciso
oferecessem o mar.
descobri-Ia. Surgirá nos sonho,s, na vigília, ao virar as folhas
Thorpe continuou: I de um livro ou ao dobrar uma esquina. O senhor não se impa-
- Não sou um impostor. Não estou louco. Rogo-lhe que ciente, não invente lembranças. O acaso -pode favorecê-Io ou
não julgue até depois de ouvir-me. O major deve ter-lhe dito atrasá-Io, segundo seu misterioso modo. A medida que eu vá
que sou, ou era, médico militar. A história cabe em poucas esquecendo, o senhor recordará. Não lhe prometo um prazo.
palavras. Começa no Oriente, ao alvorecer, em um hospital de O que sobrava da noite foi dedicado a discutir o caráter
sangue. A data precisa não importa. Em suas últimas palavras, de Shylock. Abstive-me de indagar se Shakespeare havia tido
um soldado raso, Adam Clay, que havia sido atingido por contato pessoal com judeus. Não quis que Thorpe imaginasse
duas descargas de fuzil, ofereceu-me, pouco antes do fim, a que eu o submetia a uma prova. Comprovei, não sei se com
preciosa memória. A agonia e a febre são inventivas; aceitei alívio ou com inquietação, que suas opiniões eram tão acadê-
a oferta sem dar-lhe crédito. Além disso, depois de uma ação micas e tão convencionais como as minhas.
de guerra, nada é muito estranho. Mal teve tempo de explicar- Apesar da vigma anterior, quase não dormi na noite
me as singulares condições do presente. O possuidor tem de seguinte. Descobri, como em outras tantas ocasiões, que eu
oferecê-Io em voz alta e o outro, de aceitá-Io. Aquele que o ofe- era um covarde. Pelo temor de ser defraudado, não me entre-
rece perde-o para sempre. guei à generosa esperança. Quis pensar que era ilusório o pre-
O nome do soldado e a cena patética da entrega parece- sente de Thorpe. Irresistivelmente, a esperança prevaleceu.
ram-me literários, no mau sentido da palavra. Shakespeare seria meu, como ninguém foi de ninguém, nem
Um pouco intimidado, perguntei-lhe: no amor, nem na amizade, nem sequer no ódio. De algum
- O senhor, agora, tem a memória de Shakespeare? modo eu seria Shakespeare. Não escreveria as tragédias nem
Thorpe respondeu: . os intrincados sonetos, mas recordaria o instante em que me
- Tenho, ainda, duas memórias. A minha pessoal e a foram reveladas as bruxas, que também são as parcas, e aque-
daquele Shakespeare que parcialmente sou. Ou melhor, duas le outro em que me foram dadas as vastas linhas:
memórias me têm. Há uma zona em que se confundem. Há um
rosto de mulher que não sei a que século atribuir. And shake the yoke of inauspicious stars
, Perguntei-lhe então: From this worldweary flesh.
- O que fez o senhor com a memória de Shakespeare?
Houve um silêncio. Depois disse: Lembraria Anne Hathaway como lembro aquela mulher,
- Escrevi uma biografia romanceada que mereceu o des- já madura, que me ensinou o amor em um apartamento de
dém da crítica e algum sucesso comercial nos Estados Unidos Lübeck, há tantos anos. (Tentei recordá-Ia e só pude recupe-
e nas colônias. Acho que é tudo. Preveni-o de que meu presen- rar o papel de parede, que era amarelo, e a claridade que
te não é uma sinecura. Continuo à espera de sua resposta. vinha da janela. Esse primeiro fracasso deveria antecipar-me
Fiquei pensando. Não havia consagrado minha vida, não os demais.)
menos incolor que estranha, à busca de Shakespeare? Não seria Eu havia postulado que as imagens da prodigiosa memó-
justo que no fim da jornada eu desse com ele? ria seriam, antes de mais nada, visuais. Não foi o que aconte-
Disse, articulando bem cada palavra: I
ceu. Dias depois, ao barbear-me, pronunciei ante o espelho
- Aceito a memória de Shakespeare. algumas palavras que me surpreenderam e que pertenciam,
Algo, sem dúvida, aconteceu, mas não percebi. como um colega me assinalou, ao A, B, C de Chaucer. Uma tarde,

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ao sair do Museu Britânico, assobiei uma melodia muito simples um eqte abstrato e variável, ondoyant et divers, como a mágica
memória de um morto?
que nunca ouvira.
Já terá o leitor percebido o traço comum dessas primeiras A ninguém é dado abarcar em um único instante a pleni-
revelações de uma memória que era, apesar do esplendor de tude de seu passado. Nem a Shakespeare, que eu saiba, nem a
algumas metáforas, bem mais auditiva do que visual. mim, que fui seu parcial herdeiro, ofereceram esse dom.
De Quincey afirma que o cérebro do homem é um palimp- A memória do homem não é uma soma; é uma desordem de
sesto. Cada nova escrita encobre a escrita anterior e é enco- possibilidades indefinidas. Santo Agostinho, se não me enga-
berta pela seguinte, mas a todo-poderosa memória pode no, fala dos palácios e cavernas da memória. A segunda metá-
exumar qualquer impressão, por mais momentânea que fora é a mais justa. Foi nessas cavernas que entrei.
tenha sido, se lhe derem o suficiente estímulo. A julgar por Tal como a nossa, a memória de Shakespeare incluía
seu testamento, não havia um único livro, nem sequer a zonas, grandes zonas de sombra repeli das voluntariamente
Bíblia, na casa de Shakespeare, mas ninguém ignora as por ele. Não sem algum escândalo lembrei que Ben Jonson
obras que freqüentou. Chaucer, Gower, Spenser, Christopher fazia-lhe recitar hexâmetros latinos e gregos e que o ouvido, o
Marlowe, a Crônica de Holinshed, o Montaigne de Florio, o incomparável ouvido de Shakespeare, costumava errar uma
Plutarco de Nortp. Eu possuía de maneira latente a memó- quantidade deles,'em meio às risadas dos colegas.
ria de Shakespeare; a leitura, quer dizer, a releitura desses Conheci estados de felicidade e de sombra que transcen-
velhos volumes seria o estímulo que procurava. Reli dem a comum experiência humana. Sem que eu soubesse, a
também os sonetos, que são sua obra mais imediata. Em al- longa e estudiosa solidão havia-me preparado para a dócil
gum momento encontrei a explicação ou várias explicações. recepção do milagre.
Os bons versos impõem a leitura em voz alta; depois de Depois de uns trinta dias, a memória do morto animava-
alguns dias recuperei sem esforço os erres ásperos e as vo- me. Durante uma semana de curiosa felicidade, quase acreditei
gais abertas do século XYI. ser Shakespeare. A obra renovou-se para mim. Sei que a lua,
Escrevi na Zeitschrift für germanische Philologie que o sone- para Shakespeare, era menos a lua que Diana e menos Diana
to 127 referia-se à memorável derrota da Armada lnvencível. que essa obscura palavra que se demora: moon. Anotei outra
Não lembrei que Samuel Butler, em 1899, já havia formulado descoberta. As aparentes negligências de Shakespeare, essas
essa tese. absencedans l'injini de que apologeticamente fala Hugo, foram
. Uma visita a Stratford-on-Avon foi, previsivelmente, estéril. deliberadas. Shakespeare tolerou-as, ou as intercalou, para que
seu discurso, destinado à cena, parecesse espontâneo, nem
Depois ocorreu a transformação gradual de meus sonhos.
Não me foram oferecidos, como a De Quincey, pesadelos burilado nem artificial demais (nicht allzu glatt und gekünstelt).
Essa mesma razão levou-o a misturar suas metáforas.
esplêndidos nem piedosas visões alegóricas, à maneira de seu
mestre, Jean Paul. Rostos e quartos desconhecidos adentraram
minhas noites. O primeiro rosto que identifiquei foi o de my way of life
Chapman; depois, o de Ben Jonson e o de um viz~nho do poeta, Is fall'n into the sear, the yellow leaf
que não consta nas biografias, mas que Shakespeare veria com
freqüência. Certa manhã discerni uma culpa no fundo de sua memó-
Quem adquire uma enciclopédia não adquire cada linha, ria. Não procurei defini-Ia; Shakespeare o fez para sempre.
cada parágrafo, cada página e cada gravura; adquire a mera Para mim, basta declarar que essa culpa nada tinha em co-
possibilidade de conhecer algumas dessas coisas. Se isso acon- mum com a perversão.
tece com um ente concreto e relativamente simples, tendo em Compreendi que as três faculdades da alma humana,
vista a ordem alfabética das partes, o que não acontecerá com memória, entendimento e vontade, não são uma ficção esco-

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lástica. A memória de Shakespeare não podia revelar-me outra angustiavam, confundindo-se às vezes: a minha e a do outro,
coisa que as circunstâncias de Shakespeare. É evidente que incomunicável.
estas não constituem a singularidade do poeta; o que importa Todas as coisas querem perseverar em seu ser, escreveu
é a obra que executou com esse material inconsistente. Spinoza. A pedra quer ser uma pedra, o tigre, um tigre, eu
Ingenuamente, eu havia premeditado, como Thorpe, uma queria voltar a ser Hermann Soergel.
biografia. Não demorei em descobrir que esse gênero literário Esqueci a data em que decidi libertar-me. Dei com o
requer condições de escritor que por certo não são minhas. Não método mais fácil. No telefone marquei números ao acaso.
sei narrar. Não sei narrar minha própria história, que é bem Vozes de criança ou de mulher respondiam. Achei que meu
mais extraordinária que a de Shakespeare. Além do mais, esse dever era respeitá-Ias. Dei por fim com uma voz culta de
livro seria inútil. O acaso ou o destino deram a Shakespeare as homem. Disse-lhe:
triviais coisas terríveis que todo homem conhece; ele soube - Você quer a memória de Shakespeare? Sei que o que lhe
transmutá-Ias em fábulas, em personagens muito mais vividos ofereço é muito sério. Pense bem.
que o homem cinza que sonhou com eles, em versos que as Uma voz incrédula replicou:
gerações não deixarão desaparecer, em música verbal. Para que - Enfrentarei esse risco. Aceito a memória de Shakespeare.
destecer essa rede, para que minar a torre, para que reduzir às Declarei as condições da dádiva. Paradoxalmente, sentia
módicas proporções de uma biografia documental ou de um . ao mesmo tempo a nostalgia do livro que eu deveria ter escri-
romance realista o som e a fúria de Macbeth? to e que me foi proibido escrever e o temor de que o hóspede,
Goethe constitui, segundo se sabe, o culto oficial da Alema- o espectro, nunca me deixasse.
nha; mais íntimo é o culto a Shakespeare, que professamos com Desliguei o telefone e repeti como uma esperança estas
nostalgia. (Na Inglaterra, Shakespeare, que tão distante está dos resignadas palavras:
ingleses, constitui o culto oficial; o livro da Inglaterra é a Bíblia.) Simply the thing I am shall make me live.
Na primeira etapa da aventura senti a felicidade de ser Eu havia imaginado disciplinas para despertar a antiga
Shakespeare; na última, a opressão e o terror. No início, as memória; tive de buscar outras para apagá-Ia. Uma entre tan-
duas memórias não misturavam suas águas. Com o tempo, o tas foi o estudo da mitologia de William Blake, discípulo rebel-
grande rio de Shakespeare ameaçou, e quase afogou, meu de de Swedenborg. Comprovei que era menos complexa do
modesto caudal. Percebi com temor que estava esquecendo a que complicada.
língua de meus pais. Já que a identidade pessoal baseia-se na Esse e outros caminhos foram inúteis; todos levavam-me
memória, temi por minha razão. a Shakespeare.
Meus amigos vinham visitar-me; assombrou-me que não Encontrei, enfim, a única solução para povoar a espera: a
percebessem que eu estava no inferno. estrita e vasta música, Bach.
Comecei a não entender as coisas cotidianas que me ro-
deavam (die alltiigliche Umwelt).! Certa manhã perdi-me entre P.S. 1924 - Já sou um homem entre os homens. Na vigília
grandes formas de ferro, de madeira e de cristal. Aturdiram- sou o professor emérito Hermann Soergel; manuseio um
me assobios e clamores. Demorei um instante, que pôde pare- fichário e redijo trivialidades eruditas, mas na aurora sei, algu-
cer-me infinito, em reconhecer as máquinas e vagões da esta- mas vezes, que aquele que sonha é o outro. De vez em quan-
ção de Brêmen. do, surpreendem-me pequenas e fugazes memórias que tal-
À medida que transcorrem os anos, todo homem é obri- vez sejam autênticas.
gado a s,uportar o crescente peso de sua memória. Duas me

1 "O meio ambiente cotidiano." (N. da 1.)

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