Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1. Introdução
Para além de tais usos e funções ideológicas aos quais a história volta e
meia se presta, a construção dessa imagem de um Portugal vanguardista se insere nos
marcos mais amplos de um cânone interpretativo que via no Antigo Regime o limiar da
moderna figura do Estado-nação – com sua correspondente unificação territorial e
centralização política. Quando se reconhecia a existência de certas continuidades em
relação àquelas práticas e estruturas sociais próprias dos períodos medievais, estas eram
tomadas por meras reminiscências, resíduos de uma medievalidade tardia que a
nascente “monarquia absoluta” em boa hora se encarregava de erradicar.
1
ALBADALEJO, Pablo Fernández. Fragmentos de monarquia: Trabajos de historia politica Alianza:
Madri, 1993. CLAVERO, Bartolomé. Tantas personas como estados. Por una antropologia política de
la Historia Europea. Madrid: Tecnos, 1986. HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan.
Instituições e poder político. Portugal, séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1986.
O pano de fundo dessa nova vertente historiográfica reside numa
releitura sobre a dinâmica e a estrutura das relações de poder no Antigo Regime. Em
trabalho pioneiro sobre o assunto e extensamente apoiado em fontes jurídicas e
administrativas de Portugal do seiscentos, Hespanha esboçou uma imagem
absolutamente inovadora do que passou a chamar de “Monarquias Corporativas”2. Onde
se supunha a existência incipiente de um Estado forte e centralizador, o trabalho retrata
a presença resistente de uma constelação de poderes periféricos, compondo um quadro
de funcionamento essencialmente pluralista daquele sistema político.
O Poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta
partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica (iurisdictio)
dos corpos sociais, embora esta autonomia não devesse destruir a sua
articulação natural (coherentia, ordo, dispositivo naturae) – entre a cabeça e a
mão deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os oficiais executivos
devem existir instâncias intermédias. A função da cabeça (caput) não é, pois, a
de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio
própria), mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo e,
por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada
um aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada qual
o seu estatuto (‘foro’, ‘direito’, ‘privilégio’); numa palavra, realizando a justiça.
(HESPANHA; XAVIER, 1993, p. 115)
2
Trata-se da já clássica tese de doutoramento de Hespanha publicada como As vésperas do Leviathan:
Instituições e poder político – Portugal, séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994.
da qual a lei possuía um papel francamente minoritário e subordinado. Primeiro porque
eventuais inovações legislativas eram inevitavelmente filtradas por um acervo
doutrinário que tinha no direito “natural” (em outras palavras, nos “fundamentos da
razão jurídica”) sua fonte de inspiração e legitimação. De outro lado, a concepção
corporativa da sociedade reconhecia os poderes auto-regulamentadores daqueles corpos
periféricos como anteriores à lei – justamente porque provenientes da própria natureza
da sociedade.
Essa nova matriz analítica buscou ressaltar que, por mais que o direito do
reino tenha pretendido uma validade absoluta no território imperial, fê-lo a partir e nos
limites dos modos de articulação do direito da sociedade da época. Se no centro
metropolitano o direito oficial já possuía uma incidência subordinada e minoritária,
nenhuma razão há para se supor que na vastidão do território colonial luso-americano,
separado por distâncias oceânicas da coroa, as coisas funcionassem de maneira
diferente.
O resultado seria um Império pouco “imperial” ou, nos termos da época, com
pouca “reputação”: heterogéneo, descentralizado, deixado ao cuidado de muitos
centros políticos no caso dos direitos relativamente autónomos, uns de matriz
europeia, outros de matrizes nativas, ponteado de soluções políticas bastante
diversas e onde a resistência do todo decorria da sua maleabilidade. (...)
raramente a ocupação portuguesa implicava mudanças formais na estrutura
administrativa precedente. Isto porque o regime de um auto governo, mais ou
menos tutelado, com a permanência das instituições politicas locais e a
consequente devolução para elas das tarefas de governo, era mais económico,
com a condição de não prejudicar as finalidades pragmáticas do ocupante. (...)
Tudo isto transformava o governo numa atividade pouco rigorosamente
regulada, sobretudo dependente do acaso das pessoas e das situações.
(HESPANHA, 2012, p. 105-107)
4. Considerações finais
Referências bibliográficas
______. Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro. In:
PAIVA, E. F. (Ed.). Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no
mundo português (século XVI-XVIII). São Paulo: ANNABLUME 2006. p.21-41.