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Pesquisa: Direito, dever e justiça

O DEVER E O DIREITO
ART. I. O DEVER E A OBRIGAÇÃO MORAL
a) A ordem da reta razão. Todo dever concreto, isto é, que concerne a
um caso particular, é um juízo prático moral, formulado como conclusão de um
raciocínio baseado num princípio geral da lei natural ou positiva e que impõe
uma obrigação. Este raciocínio pode ser simplesmente implícito, e ele o é,
normalmente, nos casos em que a aplicação da lei moral ao caso concreto se.
faz sem dificuldade.
b) Definição. Pode-se, por conseguinte, definir o dever como
a obrigação moral de fazer ou não fazer alguma coisa.
2. Natureza. — A essência do dever consiste, pois, numa necessidade
moral de tal ordem que a vontade não possa fugir a ele sem perturbar a ordem
da razão, ou violar o direito de outrem.
Esta necessidade moral nada tem em comum com a necessidade física ou
com a força. É uma realidade interior, que age sobre a vontade, sem violentá-
la, mas que se impõe como a expressão de |Ma ordem que exige absoluta e
incondicionalmente a obediência e o respeito, e que subsiste imutável, apesar
de todas as transgressões, de que a vontade pudesse tornar-se culpada.
261 3. Fundamentos da obrigação moral. — A obrigação moral» dizemos,
aparece-nos como absoluta. Qual é, pois, seu fundamento? Têm-se dado
três tipos de resposta: a razão, a sociedade ou Deus,
a) A razão. Kant fundamenta a obrigação moral na razão, enquanto ela
formula uma lei universal e absolutamente necessária. Há, nesta teoria, uma
confusão: a razão nos faz conhecer a lei, mas não a cria. Ao contrário, a razão
reconhece que a lei promulgada pela consciência não possui verdadeira
autoridade, a não ser que seja por sua vez a expressão da lei eterna.
b) A sociedade. É a teoria dos positivistas. A pressão exercida pela
sociedade sobre os indivíduos acabaria, com o tempo, por interiorizar-se, e o
que não era inicialmente para nossos antepassados senão uma injunção vinda
do exterior, transformar-se-ia para nós, pelo exercício do hábito e da
hereditariedade, em obrigação de consciência.
Esta tese não pode ser admitida. Choca-se contra numerosas e graves
dificuldades, particularmente: pelo fato de que certas pressões sociais (a
moda, por exemplo) não se transformam em obrigações de
consciência. Podemos envergonhar-nos de não andar na moda, nunca, porém,
teremos o sentimento de cometer uma falta moral por não seguir a moda; pelo
fato de que as coações sociais não impõem respeito senão na medida em que
se conformam às exigências morais que lhes são, então, anteriores e distintas;
pelo fato de que a lei natural (ou o direito natural) tem uma universalidade e
uma imutabilidade tais que aparece como independente das sociedades de
formas tão diversas que se sucederam na terra. Se a lei natural se originasse
da sociedade, ter-se-ia diversificado como as sociedades humanas.
c) Deus. Enfim, aparece unicamente Deus como verdadeiro fundamento
da obrigação moral, enquanto princípio e fim último de tudo o que
existe. Obedecendo ao dever moral, obedecemos à vontade de Deus, criador e
legislador de nossa natureza.. Somente esta vontade pode exigir de nós
respeito absoluto. Por isso, devemos dizer, como o fizemos na Introdução
(246), que a Moral exige, necessariamente, uma base metafísica.

4. Os conflitos de deveres. — O dever, que nos impõe certas obrigações


graves, pode, algumas vezes, obrigar-nos a transgredir outras obrigações,
incompatíveis com este dever. É o que se chama de conflitos de deveres. Por
exemplo: Pedro deve participar de um campeonato esportivo, onde sua
presença é necessária; mas, no mesmo instante, seu dever filial o obriga a
permanecer junto a seu pai, gravemente enfermo.

Estes conflitos, que se produzem quando é impossível o cumprimento, ao


mesmo tempo, de deveres que se excluem mutuamente, são puramente
aparentes, pois todo dever vem de Deus, e é evidente que Deus, infinitamente
sábio e justo, não pode obrigar a cumprir dois deveres incompatíveis entre si.
Em cada caso, será então o dever mais importante o mais grave, e, de fato, o
único dever e o que, por conseguinte, deverá prevalecer.

5. Divisão do dever. — Divide-se o dever:


a) Em razão de seu fim. Deste ponto-de-vista, distinguem-se os
deveres para com Deus, os deveres para consigo mesmo e os deveres para
com o próximo.
b) Em si mesmo. Daí se segue a distinção entre deveres de justiça e
deveres de caridade.
ART. II. O DIREITO E O FUNDAMENTO DO DIREITO
1. O DIREITO

262 I. Noção.
a) No sentido lato, da mesma forma que se chama direito, na ordem
física, o caminho que conduz, sem desvio, de um ponto a outro, do mesmo
modo, na ordem moral, o direito é, etimologicamente, o que conduz o homem.,
sem desvio, a seu fim último.
b) No sentido próprio e técnico, o direito é o poder moral de possuir,
fazer ou exigir alguma coisa.
2. Essência do direito. — O direito é um poder moral, isto é, um poder
que se baseia na razão e na lei moral. Opõe-se, assim, ao poder físico, que se
baseia na força, A força certamente, pode ser justa, mas não é o direito.

3. Sujeito de direito.
a) Somente a pessoa é sujeito de direito. Só o ser inteligente e livre, isto é,
a pessoa, pode ter direitos, porque só ele é capaz de exercer um poder moral,
de vez que é o único capaz de conhecer a lei e as obrigações que dela
derivam.
b) As crianças e os dementes, e, em geral, todos os indivíduos que uma
debilidade congênita ou acidental priva de razão* têm ou conservam todos os
direitos próprios à sua qualidade de seres racionais e livres. Podem, somente,
ser privados, para seu próprio bem, do uso destes direitos, exercidos em seu
nome por aqueles que têm o encargo, natural ou legal, de seus interesses.
4. Objeto de direito. — É o ato moral que se pode cumprir ou exigir de
outro. O homem pode reivindicar direitos sobre a substância das criaturas
irracionais e sua atividade, porque são feitas para ele. Mas não pode reivindicar
direitos senão sobre a. atividade dos seres inteligentes, e não sobre suas
pessoas, que não têm outro fim a não ser Deus. Donde, a ilegitimidade da
escravidão absoluta.

5. Propriedades do direito. — As principais propriedade do direito são:

a) A inviolabilidade. É a propriedade essencial do direito. Quaisquer


que sejam os obstáculos exteriores a sua realização, qualquer que seja a
violência que sofra, o direito subsiste em toda a sua força, porque exprime a
ordem ideal estabelecida pela lei natural e a lei eterna, que coisa alguma, nem
ninguém, pode abrogar.

b) A coação. O direito é exigível pela força, e o privilégio da força, sua


única razão de ser, ê servir o direito. No estado de sociedade organizada,
todavia, a coação física (exceto no caso de legítima defesa) não pertence aos
indivíduos.

c) A limitação. O direito tem seus limites, porque se apóia numa lei


que, por sua vez, visa a um fim determinado. Donde se segue que o direito não
é tal senão no limite preciso da lei.

d) Os conflitos de direitos. Os direitos podem entrar em conflitos entre


si: na realidade, este conflito não é senão aparente, pois que não há direito
contra direito: o direito anterior e superior anula o direito posterior e inferior. O
direito que tenho de tocar piano é anulado, à noite, pelo direito mais importante
que têm meus vizinhos de dormir.

2. O FUNDAMENTO DO DIREITO
263 1. O problema. — Pode-se distinguir o fundamento do direito em geral, e o
fundamento dos direitos concretos: este último chama-se título legal, isto é,
o fato contingente em virtude do qual um direito dado pertence a uma
pessoa determinada. (Exemplos: uma escritura de propriedade; um título de
dívida pública, uma apólice de seguro).
A questão do fundamento do direito em geral, isto é, da causa eficiente do
direito como tal, do princípio supremo de que decorre, tem sido objeto de
discussão, que podemos assim resumir sucintamente :
a) Erros empiristas sobre a origem do direito. Os filósofos empiristas
quiseram fundamentar o direito ora na necessidade (Helvetius) : toda
necessidade cria um direito, — ora na força (Hobbes, NietzSche), — ora
nas leis da sociedade civil (Spencer, DURKHEIM).
Estas teorias devem ser rejeitadas. Com efeito, a necessidade não pode
criar o direito, pois como determinar o valor dos direitos que nascem de
necessidades opostas? Seria necessário recorrer a força. Finalmente, o direito
derivaria da força. — De outra parte, porém, a força não pode servir de base
ao direito, pois o direito é um poder moral, enquanto que a força é de ordem
física. Estas coisas são heterogêneas, e a força não pode produzir o direito
tanto quanto do carvalho não pode nascer uma borboleta! — Enfim, a
sociedade não é a fonte do direito, porque antes da sociedade civil existe a
família, que já supõe um sistema de direitos, e também (como já observamos)
porque a própria sociedade, para se fazer obedecer, apóia-se no direito, o que
quer dizer que, longe de servir de base ao direito, ela o supõe.
b) Erro racionalista. Kant quer que o direito se baseie na dignidade da
pessoa humana, dignidade que se exprime na e pela liberdade moral. A
liberdade seria, assim, o objeto de um respeito absoluto, como que
constituindo o bem supremo do homem.
Ainda aí há um erro. A liberdade não é um absoluto: nada vale por si
mesma, mas pelo uso que dela se faz. Outrossim, ela se submete à ordem
moral, e a dignidade humana consiste em obedecer, livremente, a esta ordem
moral. Definir-se-á, pois, antes, pela obediência do que pela liberdade, que é
meio e não fim.

1. A lei, fundamento do direito. — É preciso, pois, ficar na doutrina que


resulta de nosso estudo da lei, e segundo a qual o
fundamento próximo do direito não difere da lei natural ou positiva
legítima. Definimos, com efeito, o direito, como um poder moral; ora, só uma lei
pode produzir um poder moral. Quanto ao fundamento último do direito,
encontra-se na lei eterna, donde derivam todas as outras leis, naturais e
positivas, e, destas, os direitos e os deveres.
Art. III. A JUSTIÇA E A CARIDADE
§ 1. A justiça
264 1. Definição. — A justiça consiste na vontade firme e constante de
dar a cada um o que lhe é devido.
A justiça supõe, pois, duas condições necessárias:
a) A distinção de pessoas em que existem correlativamente o um direito e
um dever de justiça;
b) A especificação de um objeto, que pertence a uma delas e que deve ser
respeitado,devolvido ou restabelecido em
sua integridade pela outra.

2. Divisão. — Distingue-se:
a) A Justiça comutativa. Ê a que dirige e regula a igualdade das
transações entre os indivíduos. Ela obriga, pois, a dar a outrem aquilo que lhe
pertence, cuique sunm. Assim, devemos respeitar no operário o direito ao justo
salário, no comerciante o direito ao justo preço da mercadoria, no comprador o
direito de receber, em troca do preço justo, a quantidade e a qualidade
correspondentes de mercadoria.
b) A -Justiça distributiva. É a justiça que fundamenta, o direito que
tem a sociedade de exigir de seus membros o que é necessário para seu fim, e
de tratar cada um segundo seus méritos e suas necessidades. Ê esta a razão
pela qual o Estado distribui os impostos e os outros encargos sociais,
proporcionalmente à fortuna de cada um de seus membros. A justiça
distributiva não é satisfeita senão quando esta proporção é observada tão
equitativamente quanto possível. Tem seu correlativo por parte dos membros
da sociedade, na justiça legal, pela qual estes dão à sociedade o que lhe é
devido.
2. A CARIDADE

265 1. Noção. — A caridade consiste no amor do próximo. Vai, pois, além da


justiça, que manda somente respeitar os direitos do próximo. Ela é
essencialmente o dom de si e daquilo que nos pertence, como conseqüência
de um amor de benevolência que nos impulsiona a querer fazer o bem ao
próximo.
2. Fundamento. — O dever de caridade baseia-se na fraternidade dos
homens entre si, enquanto que o dever de justiça se fundamenta apenas nos
direitos estritos da pessoa humana. Vemos, de fato, na História, que a idéia de
caridade progrediu ao mesmo tempo que a de fraternidade humana. É o
cristianismo que, revelando aos homens sua fraternidade natural e
sobrenatural, condicionou o acontecimento histórico da caridade universal.

3. Caracteres. — Os deveres da caridade são:


a) Relativamente indeterminado nos pormenores de suas aplicações:
posso escolher (salvo caso de urgência) as pessoas a quem farei a caridade, o
momento e as circunstâncias em que a farei, e a medida em que a farei.
b) Não exigíveis pela força. Só a justiça escrita pode recorrer à força
para se fazer respeitar.
3. Justiça e caridade
266 1. Pode-se reduzir a caridade à justiça? — Certos filósofos quiseram
negar a originalidade da caridade, sustentando que não seria senão a forma
provisória da justiça. A caridade, na História, dizem eles, transformou-se
constantemente em dever de justiça, paralelamente ao progresso das idéias
morais: outrora, libertar um escravo era um ato de caridade; hoje, seria um
dever estrito de justiça. O futuro verá, da mesma forma, a caridade de hoje
tornar-se a justiça de amanhã.
Estas idéias são muito contestáveis. Erram, de uma parte, por reconhecer
apenas a esmola como forma de caridade, enquanto que existem
também dons do coração muitas vezes mais preciosos; que justiça futura os
dirigirá e regulamentará? De outro lado, se é verdade que os deveres de
caridade se transformaram em deveres de justiça, isto implica numa emenda
de certos erros de apreciação moral, mas de forma alguma na eliminação da
caridade. Ao contrário é a caridade que contribui para realizar maior
justiça, por exemplo, pela mitigação e supressão da escravidão, depois pela
ruminação da servidão e melhoria das condições de trabalho. A caridade é,
pois, bem distinto da justiça.

2. Relações entre caridade e justiça.


O que acabamos de dizer no tocante à distinção entre justiça e caridade
mostra, com evidência, que a justiça e a caridade estão estreitamente ligadas.
Com efeito:

a) A caridade implica em respeito da justiça. Quem ama seu próximo


começa primeiramente por respeitar seus direitos. Um patrão que se
dispensasse de pagar a seus operários o justo salário, reservando-se a dar
esmola aos mais necessitados, faltaria ao mesmo tempo à justiça e à caridade.
b) A justiça deve ser temperada pela- caridade. É preciso distinguir
cuidadosamente a legalidade e a eqüidade. A lei civil permite, por exemplo, que
um rico expulse um pobre do aposento que não pode pagar. Mas isto é
contrário à eqüidade, ao direito natural. É o espírito de caridade que deverá,
pois, intervir nesse caso, para impedir que se perpetre em nome da legalidade
uma injustiça real. A caridade tempera, assim, constantemente, as
reivindicações da justiça e trabalha, por sua vez, para a paz e concórdia
sociais.
A justiça é auxiliar da caridade, enquanto que contribui para tornar sua
prática racional e eficaz. A caridade, como o amor de que procede, é
facilmente cega e desliza com facilidade para a fraqueza: a esmola distribuída
ao acaso arrisca-se a encorajar a preguiça; os pais hesitam em castigar as
faltas de seus filhos; um coração muito sensível distribui perdões sem qualquer
garantia etc. 1 É preciso, pois, que o cuidado da justiça acompanhe
constantemente o exercício da caridade. Se a justiça deve ser caridosa, é
preciso, também, que a caridade seja justa.
d) A caridade é auxiliar da justiça. Como ficou demonstrado acima, a
caridade, longe de ser empecilho para a justiça, como se supôs várias vezes,
trabalha constantemente para fazer admitir e praticar os deveres de justiça,
desconhecidos ou violados pelos indivíduos e pela sociedade. Vai sempre na
frente para abrir caminho a uma justiça mais exata.

Isto não significa que ela deva desaparecer em proveito da justiça. Quando
esta fosse completamente satisfeita (seria isso verdadeiramente possível?) a
caridade teria ainda um imenso papel a desempenhar, para aliviar as misérias
morais, para fazer rei-f nar nas relações humanas, constantemente
conturbadas pelas desigualdades naturais ou sociais, este espírito de doçura e
amizade fraterna, sem o qual não há verdadeira sociedade humana.

Fonte: http://www.consciencia.org/cursofilosofiajolivet40.shtml

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