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rn EODOR W.

ADORNO
M AX HORKHEIMER

DIALETICA
DO
li~SCLARECIMENTO
fragmentos filosóficos

Tradução:
Cuido Antonio de Almeida
I','ofossor de Filosofia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
238 dialéüca do esclarecimento notas e esboços 239

paganda fixa o modo de ser dos homens tais como eles hC I IIi massas, nem ao indivíduo, que é impotente, mas antes a uma
sob a injustiça social, na medida em que ela os colocu tostemunha imaginária, a quem o entregamos para que ele não de-
mento. Ela conta com o fato de que se pode contar COIII 'pareça totalmente conosco. .., , ,

íntimo, cada um sabe que ele próprio será transformado pul r/


num outro meio, como na fábrica. A fúria que sentem qu
deixam levar por ela é a velha fúria dirigida contra o ju v
çada pelo pressentimento de que a saída indicada pela pr
é uma falsa saída. A propaganda manipula os homens; SOBRE A G:2NESE DA BURRICE
, .
grita liberdade, ela se contradiz a si mesma. A falsidade
rável dela. É na comunidade da mentira que os líderes ( O símbolo da inteligência é a antena do caracol "com a visão ta-
e seus liderados se reúnem graças à propaganda, mesmo ti tcante", graças à qual, a acreditar em Mefistófeles.êé ele é também
conteúdos enquanto tais são corretos. A própria verdade I .apaz de cheirar, Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente
para ela um simples meio de conquistar adeptos para su retirada para o .abrlgo protetor do corpo, ela se identifica de novo
ela já a falsifica quando a coloca em sua boca. Por isso, 11 com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um
deira resistência não conhece nenhuma propaganda. A Prol' órgão independente. Se o perigo ainda estiver presente, ela desapa-
é inimiga dos homens. Ela pressupõe que o princípio "l'j&1I1 recerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará.
qual a política deve resultar de um discernimento em COIIIIII Em seus começos, a vida intelectual é infinitamente delicada. O sen-
passa de uma façon de parlerF' tido do caracol depende do músculo, e os músculos ficam "frouxos
Numa sociedade que sabiamente impõe limites à quando se prejudica seu funcionamento. O corpo é paralisado pelo
dância que a ameaça, tudo o que é recomendado' a todo ferimento físico, o espírito pelo medo. Na origem, as duas coisas
pessoas merece desconfiança. A advertência contra a puhl são inseparáveis. ' .
comercial, que chama a atenção para o fato de que ncnhut Os animais mais evoluídos devem o que são à sua maior liber-
ma dá nada de graça, vale em toda parte e, depois da 11I dade; sua existência mostra que, outrora, suas antenas foram diri-
fusão do mundo dos negócios com a política, vale sobrctud gidas em novas direções e' não foram retiradas. Cada uma de suas
esta, Quanto maiores os elogios, menor a qualidade; difcreut espécies é o monumento de inumeráveis outras espécies cuja tenta-
te de um Rolls-Royce, o Volkswagen depende da publicidnd tiva de evoluir se frustrou desde o início; que sucumbiram ao medo
interesses da indústria e dos consumidores não se harmonizam tão logo uma de suas antenas se moveu na.ríireção de sua evolu-
mesmo quando aquela tem algo de sério a oferecer. Até melil ção. A repressão das possibilidades pela resistência imediata da na-
propaganda da liberdade pode engendrar confusão, na medld tureza ambiente prolongou-se interiorrnente.rcom o atrofiamento dos.
que deve necessariamente nivelar a diferença entre a teoria órgãos. pelo medo. Cada olhar de curiosidade que- o animal lança
teresses particulares daqueles a quem se destina. O fascisn anuncia úma forma nova dos seres vivos que poderia surgir da es-
fraudou os líderes trabalhistas assassinados na Alemanha d pécie determinada a que pertence o ser individual. Não é apenas
dade de Sua própria ação, porque desmentia a solidariedad seu caráter determinado que o mantém sob a guarda de seu antigo
vés da seleção da vingança. Quando o intelectual é torturado sert., a força que vem de encontro a esse olhar é uma força cuja
morte no campo de concentração, nem por isso os trabalha cxistênciâ remonta a milhões de anos: foi ela que ç fixou 'desde
do lado de fora precisam passar pior. O fascismo' não foi O n sempre em sua etàpa evolutiva e impede, numa resistência sempre
para Ossietzky e para o proletariado. A propaganda engut rerroyada, toda tentativa de ultrapassar essa etapa. Esse primeiro
ambos. olhar tateante é sempre fácil de dobrar, de tem por trás de si
É bem verdade que o que é suspeito não é a represcnt a "boa vontade, a frágil esperança, mas nenhuma energia constante.
da realidade como um inferno, mas a exortação rotineira Tendo sido definitivamente afugentado da direção que queria ~~
dela. Se o discurso ainda pode se dirigir a alguém hoje, não o animal torna-se tímido e burro,
..
.s,

240 dia(ética do esclarecimento

_ A burrice é uma cicatriz. Ela pode se referir a um tipo


sempenho entre outros, ou' a todos, práticos e intelectunls,
burrice parcial de uma pessoa designa .um lugar em que o Jn
músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento ti
pertar. Com a inibição, teve início a inútil repetição de tcnt
desorganizades e desajeitadas, As perguntas sem fim da crlnn
são sinais de uma _do~ secreta, der uma primeira questão paru
não encontrou reSpOsta e que não sabe formular. corrctnm Notas do capítulo:
A repetição lembra em parte a vontade lúdica, por exemplo O Conceito de Esclarecimento
que salta sem parar em frente da porta que ainda não sab
I. Voltaire, Lettres philosophiques XII, lEuvres completes. Ed. Garnier.
para afinal desistir, quando o trinco está alto demais; em pnrt
Paris, 1879. Vol. XXII, p. 118.
dece a uma compulsão desesperada, por exemplo, quando 11 2. Bacon, In Praise of Knowledge. Miscellaneous Tracts upon Human Phi-
em sua jaula não pára de ir e vir, e o neurótico repete a r losophy, The Works of Francis Bacon, Ed. Basil Montagu. Londres,
de defesa, que já se mostrara inútil. Se as repetições já se rcdus 1825. Vol. I, pp. 254 sg.
na criança, ou se a inibição foi excessivamente brutal, fi 111 3. CC. Bacon, Novum Organum, op. cito vol. XIV. p. 31.
pode se voltar numa outra direção, a criança ficou mais ri 4. Bacon, Valerius Terminus: O] the Interpretation of Nature. Miscela-
experiências, como se diz, mas freqüentemente, no lugar ond neous Tracts, op. cito Vol, I, p. 281.
5. CC. Hegel, Phãnomenologie des Geistes. Werke. Vol. 11. pp. 410 sg.
sejo foi atingido, fica uma cicatriz imperceptível, um pequcnn
6. Xenófanes, Montaigne, Hume, Feuerbach e Salomon Reinach estão de
jecimento, onde a superfície ficou insensível. Essas cicatrizes ~'CI'
acordo nesse ponto. Quanto a Reinach, cC. Orpheus (trad, de F. Sim-
tuem deformações. Elas podeIl)",criar caracteres, duros e capnves, mons) .. Londres e Nova York, 1909, pp. 6 sgg,
dem tornar as pessoas burras - no sentido de uma manilcstn 7. Bacon, De augméntis scientiarum, op, cito Vol. VIII. p. ·152.
.de deficiência, da cegueira e da impotência, quando ficam 1111l'1 8. Les Soirées de Saint-Pétersbourg, Siême entretien. lEuvres completes
estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia e do fanull Lyon, 1891. Vol. IV, p. 256.
quando desenvolvem um câncer em seu interior. A violêncln 9. Bacon, Advancement of Learning, op. cito Vol. 11, p. 126.
frida transforma a boa vontade em má. E não apenas a f>l1fJt\' 10. Gênese I, 26.
proibida, mas também a condenação da imitação, do choro, dn I 11. Arquíloco, frag, 87. Citado por Deussen, Allgemeine Geschichte der
cadeira arriscada, pode provocar essas cicatrizes. Como as CAI1 Philosophie. Vol. 11, l.a seção. Leipzig, 1911, p. 18.
12. Sólon, frag. 13, 25 sg., ibid., p. 20.
da série animal, assim também as etapas intelectuais no intcrlm
13. CC. p. ex. Robert H. Lowie,' An lntroduction to Cultural Anthropology,
gênero humano e até mesmo os pontos cegos no interior de \I
Nova York, 1940, pp. 344 sgg.
'divíduo designam as etapas em que a esperança se imobilizou a II

t
14. CC. Freud, Totem und Tabu. Gesammelte Weree Vol, IX. pp. 106 sgg.
são l9 estemUn!:to.petrificadO
do fato de que todo ser vivo .se.l"~ 15. Ibid., p. 110.
. tra suma fórç queadomina. ~
P".
3<'tM"" •
, .
+0) tI
1fY'C-o.M I"~ 16. Hegel, Phãnomenologie des Geistes, op. cit., p. 424.
17. CC. W. Kirfel, Geschichte lndiens, em: Propylõenweltgeschichte, Vol. 111,
,_ ~ 4«.0.- rM1fca'Jtl~) . o ~<;k/lo/l(f;11,~ pp. 261 sgg., e G. Glotz, Histoire Grêcque. Vol. I, em: Histoire Ancienne.
Paris, 1938, pp. 137 sgg,
18 G. Glotz, op. cit., p. 140.
19. CC. Kurt Eckermann, Jahrbuch der Religionsgeschichte und -MytholOo
gie. Halle, 1845.. Vol, I, p. 241, e O. Kern, Die Religion der Griechen.
Berlim, 1926. Vol. I. pp. 181 sg.
20. Hubert e Mauss descrevem da seguinte maneira o conteúdo ideacional
da "simpatia", da mimese: "L'un est te tout, tout est dans l'un, Ia na-
ture triomphe de Ia nature." ("O uno é o todo, tudo está no uno, a

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